OPINIÃO / OPINION

 

Obsolescência institucional e degradação ambiental e social

 

Institutional obsolescence and environmental and social decay

 

 

Ubiratan D'Ambrosio

Instituto de Matemática, Estatística e Ciência da Computação da Universidade Estadual de Campinas. Caixa Postal 6065, 13081-970, Campinas, SP, Brasil

 

 


RESUMO

Embora as crises militares continuem a ser uma uma preocupação maior para toda a humanidade, é claro que problemas continuados, tais como a disparidade entre ricos e pobres, entre as nações e internamente às sociedades, e outras formas de violação de direitos humanos e de agressão ambiental, em níveis regional e global, ameaçam o futuro da civilização na Terra. A qualidade de vida nos países menos desenvolvidos permanece sem melhorias e, ao mesmo tempo, mergulha vertiginosamente nos países industrializados. Medidas urgentes se fazem necessárias e reclamam um esforço cooperativo entre países mais e menos desenvolvidos em projetos de longo alcance em educação, saúde, agricultura sustentável e suprimento de energia. Sem dúvida, o problema populacional é igualmente fonte de grande preocupação. Falamos não apenas de aspectos quantitativos, mas, principalmente, de aspectos qualitativos. Embora haja instrumentos científicos e tecnológicos para corrigir essas perversões da civilização moderna, um esforço concentrado de todas as nações do mundo em direção à paz, nas suas várias dimensões, é absolutamente necessário.

Palavras-Chave: Ambiente; Conflitos; Paz; Sobrevivência


ABSTRACT

Although military crises continue to be a major concern for all of mankind, it is clear that ongoing problems such as disparities between rich and poor, among nations and within societies, other forms of violation of human rights and regional and global environmental aggression jeopardize the future of civilization on Earth. Quality of life continues to defy improvement in the less developed countries and at the same time plunges dizzily in the industrialized countries. Such issues call for a cooperative effort, bringing developed and less developed nations together in long-range projects in education, health, sustainable agriculture and energy supply. Clearly, the population problem is of equal concern. We are talking not only of quantitative aspects, but mainly of qualitative ones. Although there are scientific and technological instruments to correct these distortions in modern civilization, a concerted effort by all nations in the world towards peace in its various dimensions is an absolute necessity.

Keywords: Environment; Conflict; Peace; Survival


 

 

Embora as transformações políticas ocorridas na Europa Oriental e na União Soviética tenham reduzido drasticamente o perigo de um conflito militar Leste-Oeste, as oportunidades de se reduzir, a partir dessas distensões, os enormes estoques de armamentos convencionais, nucleares e químicos de ambos os lados ainda estão mal aproveitadas. Um esforço continuado e coordenado ainda é necessário para assegurar que se chegue rapidamente a acordos para reduzir esses arsenais e reorientar os recursos humanos e materiais, que têm sido utilizados para a construção e manutenção desses arsenais, em direção a atividades que assegurem a melhoria da qualidade de vida da humanidade como um todo. Mesmo com a redução do potencial de um conflito Leste-Oeste, o perigo de conflitos do tipo Norte-Sul e Sul-Sul parece estar crescendo. A crise no Golfo Pérsico ilustrou, entre outras coisas, a insanidade da enorme transferência de armamentos para essa região durante a última década e ilustra a necessidade de estruturas mais efetivas para a segurança global e regional. Essa mesma crise sublinhou os perigos de uma maior proliferação de armamentos de destruição de massas, que dificilmente poderão ser controlados desde que esses armamentos existam em arsenais nacionais em qualquer parte do mundo.

As crises militares continuam sendo motivo de grande preocupação para a humanidade, mas o que vem dominando a preocupação dos cientistas é o fato que se revela como um dos mais contraditórios e mesmo paradoxais no mundo: a incapacidade da espécie de conviver com outras espécies vivas e com a natureza em geral, e a manutenção de uma ordem social e econômica que se mantém apoiada no odioso conceito de alguns terem e outros não terem, de alguns serem nababescamente ricos, enquanto outros são miseravelmente pobres, e de a humanidade aceitar a existência de um Terceiro Mundo em condições de extrema pobreza, origem de tensõess e conflitos entre nações, entre grupos dentro de uma mesma nação, e entre indivíduos de um mesmo grupo.

Um conflito já em pleno desenvolvimento é aquele que põe em confronto homem e natureza. Isso nos convida a ir mais além no exame das reais causas das repetidas crises a que a humanidade está sujeita e a questionar se há uma solução possível no quadro institucional do mundo de hoje. Não podemos nos esquecer que a crise no Golfo sintetiza muitos componentes da crescente tensão entre os países industrializados e o chamado Terceiro Mundo, ou, conforme vem se falando agora, entre o Norte e o Sul. De fato, essse é o primeiro confronto, em grandes proporções, Norte-Sul. A crise nas Malvinas teve as mesmas características, tendo sido, porém, desviada a atenção do verdadeiro significado do conflito para a situação interna na Argentina, fazendo com que a crise fosse simplificadamente tratada não como um confronto Norte-Sul, mas simplesmente como uma loucura megalomaníaca do insustentável regime militar argentino. Foram evidentes as tentativas no sentido de caracterizar a crise no Golfo Pérsico da mesma maneira. Mas, essencialmente, a crise no Golfo teve como determinantes noções obsoletas e perversas de propriedade de bens naturais, que são efetivamente patrimônio de toda a humanidade. Estou claramente me referindo, nesse caso, a bens fósseis. Os desastres ecológicos que se seguiram não são mais que um reflexo da conceituação obsoleta de soberania.

Ninguém poderá discordar quando afirmamos que não pode haver segurança real no mundo enquanto as causas de instabilidade política e tensão internacional não forem abordadas. Uma discussão mais detalhada poderá ser encontrada em D'Ambrosio (1991). Proeminente entre esses fatores estão as disparidades entre ricos e pobres, internamente nas nações e entre as nações, outras formas de abuso de direitos humanos, e problemas ambientais regionais e globais — poluição do ar e das águas, buracos ozónicos, mudanças de clima, erosão do solo, elevação do nível das águas, perda de biodiversidade —, fatores que estão paulatinamente destruindo a qualidade de vida e o bem-estar tanto nos países industrializados quanto naqueles menos desenvolvidos. Veja os estudos contidos em Macy (1989). A solução para esses problemas requer um esforço cooperativo sem precedentes, unindo países do Norte e do Sul em projetos de educação, de saúde, de agricultura sustentável, de suprimento de energia. Não se trata apenas de aspectos quantitativos, mas, igualmente, dos aspectos qualitativos desses projetos. Igualmente importantes são as medidas que permitam a utilização mais eficiente de energia, a redução dos resíduos de consumo, tais como os lixos doméstico e industrial, e a eliminação adequada desses resíduos, evitando a crescente poluição de sítios ambientais e mesmo incrementando a limpeza dos mesmos. E não podemos deixar de lado o problema populacional, tanto do ponto de vista de crescimento da população quanto de enormes fluxos migratórios por causas as mais diversas. Veja maiores detalhes em D'Ambrosio (1989).

Tentar manter 80% da população mundial em condições de carência e mesmo de miséria nos países do Terceiro Mundo, ou de se manter, nos países mais prósperos, uma parte das populações confinadas a bairros ou periferias em condições equivalentes a essas, causará, inevitavelmente, a ruptura das instituições em nível internacional. A imoralidade dessa situação terá como resposta, nos países e regiões desenvolvidas, o consumo de drogas, um desequilíbrio psico-emocional generalizado, uma insegurança combatível apenas com intolerável violência, e uma conseqüente violação de direitos individuais e de privacidade, com a multiplicação das chamadas doenças da civilização. Uma discussão mais ampla sobre esse tema encontra-se em D'Ambrosio (1988). Esses sintomas já são evidentes e sentidos, sobretudo nos países mais prósperos, e aí encontramos um contramovimento sintetizado na procura de um novo pensar e de uma nova ordem mundial. Propostas aparentemente radicais talvez ofereçam a única possibilidade de salvação para a humanidade.

Esses são problemas de absoluta urgência e totalmente relacionados com um problema de complexidade talvez ainda maior, que é o tratamento dado à natureza. A situação é de conflito ainda mais grave que aquela associada a conflitos armados, pois a ação destrutiva — o ataque — é unilateral, sem oportunidade dos mecanismos de defesa da parte atacada — a natureza — se ativarem e reagirem de imediato, dando, assim, a ilusão de vitória, o que torna a parte agressora surda à voz macia de uma natureza generosa, mas agonizante. A única esperança está em a voz de toda a humanidade se associar à voz da natureza através da organização em grupos comunitários, associações, partidos, populações como um todo, usando como seus porta-vozes a mídia. Mas, sobretudo, devem ser ativadas as casas legislativas, através dos representantes eleitos pelo voto de cada um de nós, os executivos federal, estaduais e municipais, os organismos internacionais e as organizações não-governamentais. O exercício pleno da cidadania num regime democrático só se atinge quando a população exigir, individual e coletivamente, ação dos seus representantes eleitos, no sentido de proporcionar qualidade de vida à população e à humanidade como um todo, qualidade esta que essencialmente significa a satisfação, com segurança e dignidade, das necessidades materiais e culturais básicas.

Os primeiros passos para a mobilização de toda a sociedade se resumem em alguns pontos: 1. tomada de consciência do problema e de sua extrema urgência a nível mundial; 2. lançamento de um apelo a todos os responsáveis científicos, culturais, espirituais, econômicos e políticos para que esta tomada de consciência se traduza, sem demora, em ação efetiva; 3. exame das causas, de todos os tipos, que nos conduziram ao desastre planetário, e das novas vias a contemplar para que esta sobrevivência ainda seja possível a médio prazo.

Ademais, ela repousa sobre um grande número de considerações, que podem resumir em alguns pontos mencionados a sseguir.

A iminência de uma explosão demográfica, levando a população do planeta a seis bilhões de habitantes no ano 2000, num momento em que, como conseqüência da poluição e da desertificação, os recursos planetários vão se reduzindo em proporções consideráveiss, está entre as principais causas. Além disso, enumera-se o esquentamento do planeta e o risco que um terço das terras atuais seja submergido, a destruição da biosfera, e os gastos inimagináveis de recursos financeiros e humanos com vistas a guerras.

A origem do problema pode ser traçada à concepção científica que, no seu aspecto reducionista e atomista, conduziu o homem a considerar a natureza e o universo como um poço de riquezas sem fim e a explorar os recursos com um espírito de poder e de possse suicidas. Este comportamento contra a natureza e a vida conduziu o homem a privilegiar um único modelo de desenvolvimento, ignorando a complexidade cultural, econômica, espiritual e social que constitui a verdadeira essência da espécie.

Essas reflexões põem em causa o conjunto dos conceitos e modelos atuais, na medida em que sobreviver depende de uma visão global ou holística da realidade, visão esta que emana, por sua vez, das grandes tradições e das conclusões mais recentes da física. Isto exige uma mudança radical que se aplica a todos os níveis do saber e do fazer. Claramente, a interação viva de todas as coisas no universo implica, no nosso ambiente e na tradução de nossos conhecimentos, um processo de integração que compreende os aspectos mais sutis da realidade. Este é o espírito de uma unidade total de vida entre o homem, a natureza e o corpo cósmico.

Uma redefinição de poderes da ciência e da tecnologia, que devem encontrar caminhos para o seu desenvolvimento que respeitem o meio vivo e proceder a um auto-controle de todas as aplicações que possam ameaçar a vida, o meio ambiente e o conhecimento tradicional de vários grupos culturais.

O preço da sobrevivência é a conseqüência de uma revolução fundamental e da emergência de valores qualitativos, em oposição às estruturas quantitativas e destrutivas que existem hoje.

Resumindo, é necessário facilitar o aparecimento de uma nova consciência através da qual o homem poderá encontrar a plenitude de seus direitos ligados à sua dignidade de ser vivo, num quadro de solidariedade e responsabilidade que compromete cada Estado, cada grupo social e cada indivíduo. Um dos caminhos para se chegar a essa consciência redentora exige uma análise global, holística, da evolução das idéias e das práticas, das explicações e dos entendimentos, no curso da história da humanidade.

Em conclusão, devemos atingir uma transformação radical de nossos modelos de desenvolvimento, de educação e de civilização. Um reconhecimento e um respeito para a pluralidade dos modelos, das culturas, das espiritualidades e das diversificações sócio-econômicas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

D'AMBROSIO, U., 1988. Alleviating Underdevelopment, Poverty and Hunger: The Moral Dimension. In: Proceedings of the Thirty-Eighth Pugwash Conference on Science and World Affairs (Dagomys, URSS, 29 August — 3 September 1988), pp. 546-550, London: Pugwash.        

_____, 1989. Free Will, Creativeness and Survival. In: Vancouver Declaration, (D. MacLaren, ed.), Final Report of the Unesco Symposium on Science and Culture for the 21st Century: Agenda for Survival, Vancouver 10-15 September 1989, pp. 103-107, Ottawa: Canadian Commision for Unesco.        

_____, 1991. Cooperation in Science and Technology for Development. In: Towards a Secure World in the 21st Century (J. Rotblat & F. Blackby, eds.), pp. 323-325, London: Taylor and Francis Ltd.        

MACY, M. (ed.), 1989. Solutions for a Troubled Word. Boulder: Earthview Press, Inc.        

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