RESUMO
O sertão do Pajeú, região do Semiárido pernambucano, tem seu território marcado por períodos de estiagens e secas e políticas públicas centradas em ações de combate ao fenômeno climático. Contrária a este processo, uma rede, formada por agricultoras agroecológicas da região, aponta para a construção de um território saudável tendo a convivência com o Semiárido como base orientadora. Objetivou-se descrever os projetos em atuação da Rede de Mulheres Produtoras do Pajeú que visam à convivência com o Semiárido e suas reverberações no fortalecimento dos territórios. Estudo observacional, analítico e de abordagem qualitativa. Foram realizadas três rodas de conversação com mulheres integrantes da Rede de Mulheres Produtoras do Pajeú e observação direta de suas atividades no período de dezembro de 2022 a março de 2023. Os dados sistematizados – conversação e diário de campo – foram analisados segundo Bardin. Foram elencadas diversas ações que confluem para o desenvolvimento saudável de um território que é historicamente rico em experiências agroecológicas. A construção da agroecologia mediante mobilização feminista é preditora da formação de territórios saudáveis e sustentáveis na região, para convivência com a natureza.
PALAVRAS-CHAVES
Agroecologia; Mulheres trabalhadoras; Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
ABSTRACT
The Pajeú backlands, a region in the Semi-arid zone of Pernambuco, is characterized by periods of drought and public policies focused on combating this climatic phenomenon. In contrast to this process, a network, formed by agroecological female farmers in the region, advocates for the construction of a healthy territory, having as a guiding principle the coexistence with the Semi-arid environment. The aim was to describe the ongoing projects of the Pajeú Women’s Producers Network aimed at coexisting with the Semiarid environment and their impacts on strengthening the territories. This is an observational, analytical study with a qualitative approach. Three conversation circles were held with women members of the Pajeú Women’s Producers Network, along with direct observation of their activities from December 2022 to March 2023. The systematized data – conversation and field diary – were analyzed according to Bardin. Various actions were identified that contribute to the development of a territory historically rich in agroecological experiences, towards its healthy development. The construction of agroecology through feminist mobilization is a predictor of the formation of healthy and sustainable territories in the region, for coexisting with nature.
KEYWORDS
Agroecology; Women, working; Sustainable Development Goals
Introdução
O Semiárido nordestino é um território complexo, com atravessamentos que partem desde a condição climática, até a grande extensão geográfica, onde a maioria das cidades possui um vasto território campesino, porém com regiões de baixa densidade populacional. Essa grande região biogeográfica que abriga a caatinga, bioma existente exclusivamente no Brasil, é caracterizada por um período anual de estiagem, intercalado por um período curto de chuvas irregulares11 Gonçalves ALR, Medeiros CM, Matias RLA. Sistemas agroflorestais no semiárido brasileiro: estratégias para combate à desertificação e enfrentamento às mudanças climáticas. Recife: Centro Sabiá, Caatinga; 2016..
Períodos de estiagens e secas são naturais no Semiárido, entretanto existem condicionalidades que acentuam sua gravidade aos habitantes da região, nesse aspecto o Atlas Brasileiro de Desastres Naturais22 Ministério do Desenvolvimento Regional (BR), Secretaria de Proteção e Defesa Civil; Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Estudos e Pesquisas em Engenharia e Defesa Civil. Atlas Digital de Desastres no Brasil. Brasília, DF: MDR; 2022., lançado pela Defesa Civil Nacional, possibilita a visualização de dados sobre desastres de forma estruturada, sendo possível observar os detalhes das ocorrências e danos associados a cada região.
Neste Atlas22 Ministério do Desenvolvimento Regional (BR), Secretaria de Proteção e Defesa Civil; Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Estudos e Pesquisas em Engenharia e Defesa Civil. Atlas Digital de Desastres no Brasil. Brasília, DF: MDR; 2022., são apresentados os eventos de Estiagem e Seca, entre os anos de 1991 e 2021. Apontados como evento de significância, representam 18% do total de eventos registrados no Brasil. Destaca-se que em Pernambuco o impacto foi mais relevante, correspondendo a 29% do total de eventos registrados nas últimas três décadas22 Ministério do Desenvolvimento Regional (BR), Secretaria de Proteção e Defesa Civil; Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Estudos e Pesquisas em Engenharia e Defesa Civil. Atlas Digital de Desastres no Brasil. Brasília, DF: MDR; 2022..
No Sertão do Pajeú, território constituído por 20 municípios, totalmente inscrito na região semiárida, relatos apresentados por Carvalho33 Carvalho PP. Vozes da convivência com o semiárido. Galindo W, organizador. Recife: Centro Sabiá; 2013. apontam para um agravamento da aridização, processo caracterizado por maior escassez de chuvas e aumento das temperaturas, pelo manejo inadequado da terra e da água na produção de alimentos e criação de animais, com desmatamento da flora natural da caatinga para plantação de palma e capim ou criação de bovinos.
A convivência com o Semiárido requer uma série de medidas de adaptação, necessárias para permitir uma vida digna, principalmente para as famílias agricultoras que vivem ainda com restrições de acesso à terra44 Ministério do Desenvolvimento Agrário (BR). Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Sertão do Pajeú. Brasília, DF: MDA; 2011.. Caracterizado também por municípios com perfil econômico de produção agrícola, tem na produção convencional, entendida como modo de produção associada à indústria produtora de sementes transgênicas e agrotóxicos, que prioriza a monocultura55 Rapozzo BMS. Transformações no espaço agrário do sertão do Pajeú: a participação das mulheres nos processos de transição agroecológica em quintais de (re) produção da vida [dissertação]. João Pessoa: Curso de Geografia, Universidade Federal da Paraíba; 2017. 155 p., um desafio.
Estas práticas transformam o solo, deixando-o pobre em nutrientes para o plantio, diminuem a água das nascentes, poços, cacimbas e rios e ainda contribuem para causar a desertificação da região11 Gonçalves ALR, Medeiros CM, Matias RLA. Sistemas agroflorestais no semiárido brasileiro: estratégias para combate à desertificação e enfrentamento às mudanças climáticas. Recife: Centro Sabiá, Caatinga; 2016.. A desertificação pode ser compreendida como um processo de degradação das terras áridas, semiáridas e subúmidas secas, resultante de variações climáticas e atividades humanas, ou seja, da perda de nutrientes que parte do manejo inadequado do solo, sobretudo o desmatamento, agravamento da aridização e a contaminação da terra por agrotóxicos.
Aspectos mais danosos recaem, principalmente, sobre a redução da fertilidade e capacidade de produção das terras. Cequeira66 Cequeira MA, Rodrigues FM, Almeida GVL. Susceptibilidade à desertificação para o estado de Pernambuco. Geosul. 2020;35(76):151-70. DOI: http://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n76p151
http://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35... aponta que existe uma tendência climática à desertificação, com susceptibilidade de aproximadamente 80% no estado de Pernambuco, com destaque para as mesorregiões do sertão de Pernambuco e Sertão do São Francisco. Indicando que as regiões possuem elevadas disposições em tornarem-se áreas com grande processo de desertificação.
As secas e estiagens impactam diretamente a saúde das populações. De acordo com o Atlas de Desastres no Brasil22 Ministério do Desenvolvimento Regional (BR), Secretaria de Proteção e Defesa Civil; Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Estudos e Pesquisas em Engenharia e Defesa Civil. Atlas Digital de Desastres no Brasil. Brasília, DF: MDR; 2022., em 2009, duas mortes em Pernambuco foram atribuídas à estiagem. Entre 2012 e 2017, a região do Semiárido nordestino enfrentou a pior seca, que durou seis anos consecutivos77 Machado JMH, Martins WJ, Souza MSS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Comum Ciênc Saúde [Internet]. 2017 [acesso em 2023 out 4];28(2):243-249. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/ccs_artigos/territorio_%20saudaveis_%20sustentaveis.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodico... . Nesse período, 4.417.829 pessoas foram afetadas, dessas, 359 pessoas ficaram desalojadas ou desabrigadas.
Milhorance88 Milhorance C, Mendes P, Mesquita P, et al. O desafio da integração de políticas públicas para a adaptação às mudanças climáticas no Semiárido brasileiro. Rev Bras Climatol. 2019;24(15):175-195. DOI: https://doi.org/10.5380/abclima.v24i0.56484
https://doi.org/10.5380/abclima.v24i0.56... observa que a seca no Semiárido nordestino causou diversos impactos socioambientais e econômicos, como a queda na produção agrícola, perdas significativas na pecuária e a redução dos níveis de água nos reservatórios utilizados para abastecimento humano, animal e geração de energia.
Em relação à saúde, os efeitos agudos e crônicos da seca incluem um aumento na morbidade e mortalidade33 Carvalho PP. Vozes da convivência com o semiárido. Galindo W, organizador. Recife: Centro Sabiá; 2013.. As condições de saúde mais comuns durante a seca são várias formas de má nutrição (desnutrição, deficiências nutricionais, sobrepeso e obesidade), doenças transmissíveis (diarreia), doenças respiratórias (asma e rinite), doenças transmitidas por vetores (dengue), além de impactos psicossociais e na saúde mental (depressão, suicídios), deslocamentos populacionais e interrupções nos serviços de saúde99 Santana AS, Santos GS. Impactos da seca de 20122017 na região semiárida do Nordeste: notas sobre a abordagem de dados quantitativos e conclusões qualitativas. Bol Reg Urb Amb. 2020;(22):119-129. DOI: http://dx.doi.org/10.38116/brua22art9
http://dx.doi.org/10.38116/brua22art9... .
Os impactos mais significativos da estiagem estão ligados à escassez de alimentos e água, comprometendo atividades agrícolas e pecuárias, afetando desde pequenos até grandes produtores. Isso altera a produção, acesso, demanda e consumo de alimentos, prejudicando sua qualidade e quantidade devido à falta de água e saneamento. Além disso, os prejuízos financeiros decorrentes da perda parcial ou total das fontes de renda e trabalho afetam o poder de compra dos agricultores.
Esses fatores influenciam diretamente a saúde das pessoas e a segurança alimentar e nutricional, especialmente entre as populações mais vulneráveis e socialmente desiguais. Gonçalves11 Gonçalves ALR, Medeiros CM, Matias RLA. Sistemas agroflorestais no semiárido brasileiro: estratégias para combate à desertificação e enfrentamento às mudanças climáticas. Recife: Centro Sabiá, Caatinga; 2016. sugere que é fundamental adotar uma abordagem de convivência com o Semiárido, na qual o cuidado com a vida se adapta ao ambiente, promovendo uma gestão da água e um modelo de produção sustentável88 Milhorance C, Mendes P, Mesquita P, et al. O desafio da integração de políticas públicas para a adaptação às mudanças climáticas no Semiárido brasileiro. Rev Bras Climatol. 2019;24(15):175-195. DOI: https://doi.org/10.5380/abclima.v24i0.56484
https://doi.org/10.5380/abclima.v24i0.56... .
Este cenário confirma o que Sena et al.1010 Sena A. Land Under Pressure – Health Under Stress. Global Land Outlook: Working Paper. [Local desconhecido]: United Nations Convention to Combat Desertification; 2019. afirmam: a seca impacta as populações de diferentes maneiras, dependendo das condições de exposição e vulnerabilidades dos habitantes e dos territórios. As desigualdades sociais intensificam os impactos sobre os afetados e a natureza, acelerando processos degradativos.
As questões sobre a relação entre água, seca e saúde são partes cruciais da Agenda 2030, da qual o Brasil é signatário, e estão incluídas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Vale lembrar que a formulação dos ODS foi uma proposta da Colômbia e Guatemala1111 Comissão Econômica para a América Latina. RIO+20: Objetivos de Desarrollo Sostenible. Propuesta de los Gobiernos de Colombia y de Guatemala para Someter a Consideración de los Países Participantes [Internet]. [local desconhecido]: Cepal; 2011 [acesso em 2023 out 4]. Disponível em: http://www.cepal.org/rio20/noticias/paginas/5/43755/2011-612-Rio+20-Nota_de_la_Secretaria-Rev.1_Prop_Col_Guat.pdf
http://www.cepal.org/rio20/noticias/pagi... na Conferência Rio+20, em 2012, e, posteriormente, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2014, onde um relatório com 17 objetivos e 169 metas1212 Organização das Nações Unidas. Report of the Open Working Group of the General Assembly on Sustainable Development Goals. UN Report A/68/970: 2014 [Internet]. [local desconhecido]: ONU; 2014 [acesso em 2023 out 4]. Disponível em: http://www.un.org/en/development/desa/news/sustainable/sdgs-post2015.html
http://www.un.org/en/development/desa/ne... foi apresentado. O Brasil se comprometeu internacionalmente a alcançar todas essas metas.
Dentre os 17 ODS, tem-se o objetivo 2, que trata sobre a redução da fome e desenvolvimento de agricultura sustentável; o 5, que aborda igualdade de gênero; o 13, convocando a construção de medidas que combatam a mudança climática; e o 15, que busca ações para proteção, recuperação e promoção do uso sustentável dos ecossistemas terrestres1616 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1994..
Nesse sentido, a promoção da saúde e a sustentabilidade, como práticas no Semiárido, envolvem inúmeros atores sociais, econômicos e agentes governamentais que podem atuar na mediação de diversos interesses que contribuem para o desenvolvimento sustentável do território1313 Sena A, Freitas CM, Barcellos C, et al. Medindo o invisível: análise dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável em populações expostas à seca. Ciênc saúde coletiva. 2016;21(3):671-684. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232015213.21642015
https://doi.org/10.1590/1413-81232015213... .
Diante do movimento de camponesas, presente no território, bem articulado e com diversas ações voltadas ao desenvolvimento da agroecologia, questionou-se quais projetos desenvolvidos por elas poderiam auxiliar nas ações de combate à seca. Dessa forma, o presente artigo tem por objetivo descrever os projetos em atuação da Rede de Mulheres Produtoras do Pajeú (RMPP) que visam à convivência com o Semiárido e suas reverberações no fortalecimento dos territórios.
Material e métodos
Este artigo foi construído a partir de um recorte da pesquisa desenvolvida no mestrado em Saúde Pública. Trata-se de um estudo analítico e de abordagem qualitativa, realizado no período de 2022 a 2023.
Morin1414 Morin E. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2002. aborda que o pensamento complexo nos processos de resgate de saberes e diálogo com outras matrizes de conhecimentos nos traz a oportunidade de entendermos a problemática socioambiental fora dos limites impostos pela racionalidade dominante. Para Leff1515 Leff E. Pensar a complexidade ambiental. In: Leff E, organizador. A complexidade ambiental. São Paulo: Cortez Editora; 2003. p. 15-64., no mesmo sentido, destaca a possibilidade de redescobrir as relações sociedade-natureza através de outras lentes, engendradas a partir da racionalidade ambiental, consciente da alienação e incerteza do mundo ‘economicizado’.
O território de estudo foi o sertão do Pajeú, localizado no estado de Pernambuco, limítrofe com o sertão da Paraíba e sertão do Ceará. A população do estudo foi composta por mulheres vinculadas a projetos agroecológicos de diversos grupos de agricultura, que se unem na RMPP para produção, comercialização, formação técnica e construção de alternativas para convivência com o Semiárido. Como critério de inclusão, foi definida a participação apenas das lideranças dos grupos de mulheres e foram excluídas as representações de grupos que não participavam, no momento da pesquisa, em nenhum projeto voltado à agroecologia.
Coleta de dados
Foram realizadas rodas de conversação e construção do diário de campo a partir da observação direta de reuniões, oficinas e seminários, realizados na RMPP nos meses de dezembro de 2022 a março de 2023.
As rodas de conversação foram baseadas em Machado1616 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1994., sendo realizadas mediante construção de espaços coletivos para a discussão e reflexão sobre as experiências, desafios e potencialidades encontradas na vivência agroecológica dos grupos em seus projetos. Os encontros para realização das rodas aconteceram nos dois municípios polo, Afogados da Ingazeira e São José do Egito. Elas realizam reuniões periódicas mensais nesses locais (Sede própria da RMPP em Afogados e Sindicato dos Trabalhadores Rurais em São José do Egito), onde ocorreram três rodas, totalizando um grupo de 40 mulheres participantes.
Utilizou-se um roteiro semiestruturado com perguntas disparadoras para promover o debate, que seguiu os seguintes tópicos: os projetos em andamento e suas estratégias para execução; a articulação dos grupos em rede; apoios externos a RMPP; e a reverberação política de suas ações na região. A cada encontro foi sistematizado o diário de campo1717 Valle FAAL, Farah BF, Carneiro Júnior N. As vivências na rua que interferem na saúde: perspectiva da população em situação de rua. Saúde debate. 2020;44(124):182-192. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202012413
https://doi.org/10.1590/0103-11042020124... , no qual foram registradas questões tais como a articulação entre os grupos que compõem a Rede, os desafios e potenciais das gestões locais no apoio a rede e registro em fotos, além do acompanhamento de seus seminários e reuniões ordinárias.
A análise de dados se deu pela Análise de Conteúdo de Bardin1818 Machado TMG, Carvalho PIN, Brandão ASM, et al. A roda de conversa como ferramenta de planejamento de ações: relato de experiência. Rev. G & S [Internet]. 2015 [acesso em 2023 out 4];(1):751-761. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rgs/article/view/2707
https://periodicos.unb.br/index.php/rgs/... , sendo as informações inicialmente organizadas e sistematizadas, em seguida foram exploradas para codificação, classificação e categorização e finalmente passaram pela etapa de tratamento, inferência e interpretação, que culminou em uma análise crítica e reflexiva do conteúdo coletado.
O percorrer pelo campo e as trocas realizadas através dos encontros presenciais, participação em oficinas e seminários organizados durante o período da pesquisa, assim como leitura de materiais elaborados pelas mulheres que compõem a Rede, foram o arcabouço para a construção dos resultados aqui apresentados. Através de leituras, sistematização e análise de falas das integrantes e elaboração de diário de campo.
No que toca aos projetos ligados à agroecologia, água e fortalecimento dos Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS), as respostas foram categorizadas em: Mulheres e agroecologia no sertão do Pajeú e a Construção de TSS a partir da soberania campesina.
O projeto foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa do IAM/Fiocruz, seguindo o cumprimento das Resolução CNS nº 466/20121919 Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos e revoga as Resoluções CNS nos. 196/96, 303/2000 e 404/2008. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 jun 13; Seção I:549. e Resolução n° 510/20162020 Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2016 maio 24; Seção I:44., sob Certificado de Apresentação de Apreciação Ética – CAAE nº 67120523.1.0000.5190 e parecer nº 5.997.262. Para proteção e garantia do anonimato das participantes, foi solicitado que elas se identificassem através de codinomes que fossem representações da natureza que elas julgassem ser importantes para suas histórias. Dessa forma, também não será correlacionado o município em que resida, grupo que faça parte, projeto que esteja envolvida ou idade, tendo em vista que são mulheres com relatos importantes e reconhecidas politicamente em suas localidades.
Resultados e discussão
Mulheres e agroecologia no sertão do Pajeú
Nos relatos apresentados pelas participantes da pesquisa, observou-se que variadas formas de resistência foram criadas, ao longo dos anos, voltadas à convivência com o Semiárido e não à ideia reduzida de combate à seca. A grande maioria induzidas por sindicatos dos trabalhadores rurais e entidades ligadas à igreja católica. Nos municípios que compõem o sertão do Pajeú, diversos grupos de mulheres agricultoras foram formados com o intuito de se fortalecerem frente aos desafios políticos e sociais. Em 2006, esses grupos se uniram em uma Rede de Mulheres Produtoras, que teve inicialmente apoio da Casa da Mulher do Nordeste que hoje une aproximadamente 40 grupos, com mais de 200 mulheres inscritas.
Essas mulheres são em sua maioria casadas, com idade entre os 30 e 50 anos, possuindo filhos e netos, com vinculação ao território desde seu nascimento e que tem na agricultura sua principal fonte de renda. A maioria delas é cadastrada em programas de transferência de renda, mora em casas de alvenaria em sítios de poucos hectares, com presença de cisternas e, poucas, abastecem-se também pelo Rio Pajeú.
A sua produção é voltada a horticultura, frutas que passam por processos de beneficiamento, tornando-se polpas, por exemplo; criação de pequenos animais em seus quintais e envolvimento em projetos agroecológicos que têm como objetivo o manejo da água, revitalização das margens do Rio Pajeú e suas nascentes. Elas costumam ser pertencentes às mesmas famílias, as quais se organizam em seus espaços de forma coletiva, seja no plantio e execução das atividades ou mesmo na comercialização de seus produtos.
Ao entrarem em contato com a agroecologia, relatam que passaram a disputar, com os homens de sua família e a comunidade local, os princípios que norteiam a produção em suas terras. São alternativas propostas, a partir da agricultura agroecológica, a racionalização do uso da água, cultivos diversificados de espécies vegetais e animais, uso de técnicas agrícolas para proteção, fertilização do solo de forma orgânica e harmonização entre saberes tradicionais e científicos, como também os sistemas agroflorestais2121 Sena ARM, Alpino TMA. Seca silenciosa, saúde invisível: um desastre naturalizado no semiárido do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. DOI: https://doi.org/10.7476/9786557081747
https://doi.org/10.7476/9786557081747... .
Em suas terras há multicultivo adensado, com plantio de diversas espécies, que tem como objetivo o manejo, produção e recuperação do solo em um mesmo sistema, com os recursos disponíveis e com a dinâmica de ciclagem de nutrientes típica das florestas55 Rapozzo BMS. Transformações no espaço agrário do sertão do Pajeú: a participação das mulheres nos processos de transição agroecológica em quintais de (re) produção da vida [dissertação]. João Pessoa: Curso de Geografia, Universidade Federal da Paraíba; 2017. 155 p.. Através desse quadro, projetos agroecológicos que visem uma melhor utilização da água, seja ela para consumo, seja para produção, são um dos focos de atuação técnica da RMPP. Dentre eles, tem-se o projeto ATER de nascentes, visando o reflorestamento de nascentes do Rio Pajeú, produção de mudas e áreas de recuperação de mata ciliar de rios e riachos, com apoio da secretaria estadual de meio ambiente.
Agroindústria de beneficiamento de polpas de frutas nativas como umbu, banco de sementes, fogões agroecológicos, área comunitária de agrofloresta na comunidade, geodésica, biofiltros e barramento também são projetos que estão em andamento nas comunidades. A construção da agroecologia no Semiárido vem fortalecendo a perspectiva de um modelo de produção alinhado à convivência com o Semiárido, avançando nas discussões locais sobre os impactos da produção voltada à agricultura convencional2222 Primavesi A. Agroecologia: ecosfera; tecnosfera e agricultura. São Paulo: Nobel; 1997..
A aproximação dos grupos de mulheres com a agroecologia teve início através de projetos executados pelas organizações sociais presentes no território, como o centro Sabiá e a Casa da Mulher do Nordeste. Inicialmente, esses projetos eram levados como formação aos sindicatos de trabalhadores rurais, lá as mulheres, que se articulavam em grupos, aderiram a proposta e se desafiaram a passar pela virada agroecológica através do apoio mútuo.
Os caminhos para construção da agroecologia no território são posteriores ao fortalecimento dessas mulheres enquanto coletivo, o que reflete na práxis e consequentemente na relação delas com a natureza. Ao relatarem sua aproximação com a agroecologia e como ela se articula no seu cotidiano elas apresentaram uma ampla definição do papel que ela tem em sua vida.
Trabalhar agroecologicamente é exatamente isso, para gente não usar agrotóxico a gente planta e planta também coisas que serão um defensivo natural, que não precise usar agrotóxicos para matar determinados tipos de insetos, a gente planta exatamente assim, misturado, que é para o inseto não atacar a planta que a gente quer. (Invernada).
Então a gente tem que saber trabalhar dessa forma, então você tem em casa, planta uma diversidade de coisas, a gente pode não plantar em conjunto, mas tem uma diversidade de coisas que vão se ajudar no crescimento. (Galo de campina).
A partir de 2012, foi que a gente começou a trabalhar para valer mesmo. A cuidar do meio ambiente, aí veio o projeto das mudas, desde essa época a gente nunca deixou de plantar, quando não vende assim, a gente planta nas áreas, nos olhos d’água. (Algaroba).
Shiva2323 Shiva V. Terra mater: reivindicación del principio femenino. Estud. – Cent Estud Av. 2022;48:93-100. expõe que as mulheres têm papel central na transição agroecológica, como os papéis de gênero definem que as mulheres sejam nutridoras, cuidadoras, submissas e solidárias, são elas que estão ligadas à sustentabilidade do meio. Elas são as primeiras a identificar as mudanças no clima e na vida no entorno de sua família, principalmente as mulheres do Sul Global, as mais diretamente expostas aos danos sociais e ambientais do sistema mercadológico.
Entretanto, é necessário o rompimento com os paradigmas sociais que imperam sobre sua vida para que essas possam construir novos caminhos de encontro com a liberdade e harmonia com a natureza. Ao fazerem isso, de forma solidária e cooperativa, avançam para uma nova cosmologia, havendo convergência dos sentidos da transição agroecológica e o empoderamento das mulheres, no qual uma apoia a outra, em uma relação essencial de motivação, revolução e envolvimento2424 Umann PBV. Transição agroecológica e mulheres: um estudo bibliométrico a partir da revista Cadernos de Agroecologia da ABA [monografia]. Florianópolis: Centro de Ciências Agrárias, Agronomia, Universidade Federal de Santa Catarina; 2022..
Ao serem questionadas sobre as mudanças cotidianas que são provocadas por esses projetos agroecológicos, as mulheres relataram mudanças distintas, seja na relação entre elas, elas com sua comunidade, a percepção do seu papel político e sua relação cotidiana com o Semiárido. O constante nas respostas foi como a mobilização e novos conhecimentos engrandeceram sua percepção de mundo e de relação consigo mesmas, conforme segue.
Mudou, porque por exemplo, de um litro de água de um biofiltro que você utiliza ou melhor, reutiliza, você economiza um litro de água natural, que você ia desperdiçar. (Minadouro).
Não precisa mais sair pra pegar água longe, porque com o biofiltro a gente aproveita mais e gasta menos, não tem que tá toda hora indo ao açude. (Macambira).
Eu tenho uma cisterna de 52.000 L, tenho, eu usei para lavar minha louça, minha roupa e tomar banho, mandei para o biofiltro e depois peguei pra regar uma planta ali, então se eu peguei 20.000 L de água dali eu não economizei 20000 dela lá? Então pra mim teve uma mudança positiva. (Cupira).
Essas mulheres que saíram dessa formação, elas ocupam outros espaços e também são considerados importantes e abrem portas para outras que estão vindo. (Abelha Italiana).
No início, tivemos muita dificuldade, mas depois que a gente começou a convencer os homens e eles também viram que dava resultado, porque a gente além de repassar, as mulheres também, tem que provar que está certo para o povo aprovar. (Trovoada).
Primaveresi2222 Primavesi A. Agroecologia: ecosfera; tecnosfera e agricultura. São Paulo: Nobel; 1997.(11) traz que nosso planeta não é um “depósito de fatores isolados, que se pode usar, retirar, gastar, modificar, desperdiçar ou destruir à vontade”. A convivência harmônica com a terra é intimamente ligada à manutenção de todas as formas de vida, inclusive a humana. Nesse aspecto, a agroecologia tem forte implicação na construção de novos caminhos e reaproximação com saberes ancestrais.
Percebe-se que, para os grupos que fazem parte da RMPP, a agroecologia foi um reencontro com a natureza, com a forma como o meio ambiente se organiza, onde plantas e insetos atuam harmonicamente para o crescimento e principalmente como guardiãs da terra. Seu trabalho nas áreas dos olhos d’água implica na preservação de todo um rio que garante vida à região. Entretanto, alguns entraves são elencados pelos grupos, conforme relatos apresentados.
O rio Pajeú passa por terra de vizinhos da gente, que lidam com gado. Lá a gente não pode entrar para fazer o reflorestamento. Deveria ter lei impedindo o rio de ter dono, mas como ele é amigo do prefeito [...]. (Trovoada).
O que eu ia falar é que as polpas do grupo da gente, da agricultura familiar, a prefeitura não quer comprar, da gente, mas compra lá de fora sem saber de onde saiu, sabendo que a nossa é orgânica, que vem da caatinga. (Umbuzeiro).
Esse projeto da mata ciliar, se não fosse a gente, nossa mobilização, não tinha nada aqui [...]. Nada, teve reunião com prefeito, sindicato, muita liderança sem dar valor, só mulher mesmo pra ver a importância do rio. (Macambira).
No início foi difícil convencer nossos pais, maridos e os vizinhos sempre vinham dizer que a gente era louca em plantar daquele jeito, mas hoje a maior dificuldade é na hora das vendas. (Cupira).
Costa2525 Costa AM. Água. In: Dias AP, Stauffer AB, Moura LHG, et al., organizadores. Dicionário de agroecologia e educação. São Paulo: Expressão Popular; Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2021. p. 112-118. traz a temática da água como uma disputa de sentidos, nas quais narrativas são criadas a fim de demonstrar a importância dela enquanto um bem comum, outras como recurso hídrico, que leva a processos de objetificação-material, como produção de sentido da água como mercadoria, que no contexto capitalista é hegemônico, destituindo, dessa forma, sua importância para biosfera.
A fragmentação de um processo tão importante quanto o reflorestamento da mata ciliar de um rio, que tem grande importância no território, aponta uma desvalorização da água, enquanto pulsão da vida. O que pode levar a vazão de águas que deixam de compor o ciclo da água em decorrência de desmatamento; compactação do solo; redução da infiltração e alimentação dos aquíferos; aumento do escoamento superficial; assoreamento; redução de vazão de base de aquíferos; redução de vazão superficial de riachos e rios; alteração do regime de chuvas, situação conceituada como “águas dissipadas”2525 Costa AM. Água. In: Dias AP, Stauffer AB, Moura LHG, et al., organizadores. Dicionário de agroecologia e educação. São Paulo: Expressão Popular; Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2021. p. 112-118.(113).
Os autores ainda apontam que isso se dá, em maior escala, tanto por dificuldades de auto-organização para atuação política quanto por não serem considerados parte legítima em decorrência das injustiças sociais e ambientais às quais estão sujeitos2020 Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2016 maio 24; Seção I:44.. Entretanto, a pesquisadora Sena2121 Sena ARM, Alpino TMA. Seca silenciosa, saúde invisível: um desastre naturalizado no semiárido do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. DOI: https://doi.org/10.7476/9786557081747
https://doi.org/10.7476/9786557081747... expõe que quando a comunidade tem lideranças femininas, mesmo auto-organizadas politicamente, elas sofrem com mais intensidade a desvalorização de suas pautas e seus saberes tradicionais, sendo eles subalternizados.
Evidenciar o relato das mulheres, que são protagonistas no cuidado ao rio, diante da negligência de políticas que sejam voltadas de fato ao cuidado ambiental, aponta a necessidade da construção de espaços multifacetados para o fortalecimento dos processos de resolução das problemáticas socioambientais. Leff1515 Leff E. Pensar a complexidade ambiental. In: Leff E, organizador. A complexidade ambiental. São Paulo: Cortez Editora; 2003. p. 15-64. aponta a necessidade de desenvolver relações sociedade-natureza através de outras perspectivas, engendradas a partir da racionalidade ambiental, consciente da alienação e incerteza do modelo capitalista.
O uso insustentável da água está baseado em uma racionalidade economicista hegemônica que tem gerado problemas imensuráveis para a humanidade, sendo que ainda hoje quase 1 bilhão de pessoas não têm acesso à água de qualidade para beber e precisam enfrentar diversos tipos de conflitos para se (re)apropriar da água2222 Primavesi A. Agroecologia: ecosfera; tecnosfera e agricultura. São Paulo: Nobel; 1997..
A construção de territórios saudáveis e sustentáveis a partir da soberania campesina
Um dos principais objetivos da RMPP, elencado através das rodas de conversação e seus documentos oficiais, é a produção de forma agroecológica, tendo na convivência com o Semiárido um farol orientador de toda ação proposta pelos grupos. Desde o início de sua articulação, a preocupação com um trabalho que abrace a realidade local, demandas da comunidade e características do Semiárido são motes para a construção de projetos que as atenda.
As implicações das mudanças ambientais e climáticas sobre a saúde pública são múltiplas, muitas vezes não sendo correlacionadas diretamente, o que dificulta a atuação sobre elas. Em casos de municípios vulneráveis às situações de seca, juntamente com as baixas condições sociais e econômicas normalmente observadas na região, tornam mais difícil ainda o desenvolvimento de ações de redução de riscos e de promoção da saúde2626 Petersen RS, Silveira M, Fenner ALD, et al. Índice de Território Saudável e Sustentável dos municípios do semiárido brasileiro. Cad Saúde Pública. 2020;36(11):e00200020. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00200020
https://doi.org/10.1590/0102-311X0020002... .
Esses desafios, somados às condições ambientais já existentes no sertão do Pajeú e seus impactos nas condições de vida dos sertanejos, especialmente no que se refere ao acesso à água em quantidade e qualidade, demandam uma maior integração do setor de saúde com outros setores no planejamento de ações, tanto a nível local quanto estadual. Segundo as entrevistadas, a ausência do poder público em discussões importantes sobre a construção de TSS é evidente tanto no âmbito municipal quanto estadual.
A construção de novos cenários para os territórios, por meio de mudanças estruturais na produção, na forma de coexistir junto ao meio ambiente e principalmente na constituição de políticas públicas que subsidiem a práxis agroecológica é tensionada com a atuação da Rede em diversas frentes, não apenas no campo, mas na participação em sindicatos, associações e fóruns de discussão municipal, estadual e nacional. Movimento que auxilia a construção de TSS, através do estímulo à participação popular e à construção da soberania campesina.
A soberania é um princípio que trata do direito dos povos em definir as políticas, com autonomia sobre o que produzir, para quem produzir e em que condições produzir. Significa garantir a soberania dos agricultores sobre os bens da natureza desde a semente, que é um bem fundamental99 Santana AS, Santos GS. Impactos da seca de 20122017 na região semiárida do Nordeste: notas sobre a abordagem de dados quantitativos e conclusões qualitativas. Bol Reg Urb Amb. 2020;(22):119-129. DOI: http://dx.doi.org/10.38116/brua22art9
http://dx.doi.org/10.38116/brua22art9... .
Os desafios para implantação de um modelo de desenvolvimento ambientalmente equilibrado, socialmente justo e economicamente viável estão na agenda dos debates e na construção de políticas públicas e privadas em todo o globo1212 Organização das Nações Unidas. Report of the Open Working Group of the General Assembly on Sustainable Development Goals. UN Report A/68/970: 2014 [Internet]. [local desconhecido]: ONU; 2014 [acesso em 2023 out 4]. Disponível em: http://www.un.org/en/development/desa/news/sustainable/sdgs-post2015.html
http://www.un.org/en/development/desa/ne... , não sendo diferente na RMPP. Ao traçarem suas metas anuais, elencaram ações de formação, intervenção e articulação com outros grupos de territórios distintos, tendo como eixo principal o debate sobre desenvolvimento socioambiental e a convivência com o Semiárido.
A agroecologia, por sua vez, é considerada como um dos caminhos referenciais para o avanço dessa agenda, especialmente na busca do atingimento das metas estabelecidas nos ODS, com destaque para a promoção da biodiversidade e combate ao aquecimento global1818 Machado TMG, Carvalho PIN, Brandão ASM, et al. A roda de conversa como ferramenta de planejamento de ações: relato de experiência. Rev. G & S [Internet]. 2015 [acesso em 2023 out 4];(1):751-761. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rgs/article/view/2707
https://periodicos.unb.br/index.php/rgs/... .
O movimento agroecológico em redes de produtores no sertão do Pajeú é alinhado a esse processo. Onde as camponesas participam ativamente da construção de projetos que irão executar, além da construção de políticas públicas a nível local. Como apontado através dos relatos dessas mulheres camponesas.
As ONGs fazem uma reunião com os agricultores, pegam nossas ideias, fazem o projeto e mandam para os editais, então quando aprovado vão lá iniciam com a gente e nós damos continuidade, porque se parar perde o sentido e lá a gente sempre dá continuidade. (Pé de Serra).
A gente teve a construção da política de agroecologia, que vai acontecer em afogados. Foi muita discussão, muita reunião. A gente foi atrás de quem pode, juntou o Caritas, Centro Sabiá, Casa da Mulher do Nordeste, Secretaria de Saúde, de Agricultura, A Rede de Produtores Agroecológicos do Pajeú. Tudo puxado pela gente, uma articulação grande e deu certo. O município tem legislação para produção agroecológica. Isso é muito bom pra gente, para o povo, pra saúde da gente e da terra. (Cupira).
A gente foi vendo a necessidade da comunidade. Aí fomos para uma capacitação da Rede lá em afogados e começamos a construir os biofiltros. No início era só a gente, foi um trabalho da gota, mas depois os vizinhos foram se chegando. (Macambira).
Um processo de soberania que oriente e promova o desenvolvimento territorial, com cooperação e parceria, é construído a partir de escolhas de políticas públicas, tendo em conta a perspectiva dos diferentes territórios e suas especificidades, dentro de ambientes democráticos2626 Petersen RS, Silveira M, Fenner ALD, et al. Índice de Território Saudável e Sustentável dos municípios do semiárido brasileiro. Cad Saúde Pública. 2020;36(11):e00200020. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00200020
https://doi.org/10.1590/0102-311X0020002... . Nesse aspecto, as experiências apresentadas pelas agricultoras revelam que, para o desenvolvimento e a implementação de ações de intervenção realizadas a partir de recortes territoriais, bem como para que se cumpram as diversas agendas sociais territorializadas, é preciso atuar em redes de governança.
Atores dos mais diversos espaços dialogando conjuntamente, com poder de decisão e capacidade de execução do que é planejado. Parcerias que vão além de momentos pontuais e que têm grande impacto no fomento de estratégias para atender as demandas locais e regionais, desenvolvendo os TSS, que se relacionam à promoção da saúde e ao desenvolvimento humano, com redução das vulnerabilidades presentes no território.
Panorama que é visualizado nas ações realizadas pela RMPP, seja através de seus projetos locais – construção de biofiltros, agroindústria de beneficiamento de frutas nativas da caatinga e banco de sementes – como na articulação para formulação da Lei ordinária nº 94.712.022, de l0 de novembro de 2022, que versa sobre a criação da política municipal de Agroecologia e produção orgânica no município de Afogados da Ingazeira e estabelece as diretrizes para o plano municipal de Agroecologia e produção orgânica da cidade.
A criação de uma política municipal que tenha como objetivos promover a soberania e segurança alimentar; estimular e fomentar o uso de práticas produtivas, estratégias e técnicas de manejo sustentável; fortalecimento da produção de base agroecológica e de sistemas orgânicos de produção agropecuária; fomento e apoio a práticas sustentáveis na perspectiva da convivência com o Semiárido e suas especificidades ambientais, culturais, econômicas e sociais, só evidencia a importância da articulação em rede, criando espaços de governança e impulsionando a soberania dos agricultores.
Esses avanços são marcados por disputa em espaços governamentais e articulações com a gestão e o poder público, por vezes, segundo as lideranças dos grupos de mulheres, suas pautas são invisibilizadas pela ganância e machismo que perpassa esses espaços.
Cardoso2727 Cardoso EM. Introdução. In: Rody T, Telles L, organizadores. Caderneta agroecológica: o saber e o fazer das mulheres do campo, das florestas e das águas. Viçosa, MG: Editora Asa Pequena; 2021. p. 10-12. aponta que a agroecologia é uma saída ao modelo de produção convencional, que traz desequilíbrio ao meio ambiente, entretanto existe uma série de aparatos econômicos e políticos que atravessam a produção, como dificuldade de acesso a financiamento para as cooperativas e comercialização de seus produtos, além da invisibilidade de suas ações e do impacto positivo na região.
Panorama que pode levar a desarticulação de alguns grupos e reafirmação da crença de impossibilidade em romper com o modelo mercadológico e uso de agrotóxicos na produção. Ana Primavesi2222 Primavesi A. Agroecologia: ecosfera; tecnosfera e agricultura. São Paulo: Nobel; 1997. aponta que esse é o grande desafio, enquanto sociedade, que vivemos. Romper com a lógica mercadológica que permeia a forma como plantamos, consumimos e vivemos no planeta.
Considerações finais
O desenvolvimento de ações que abarque os ODS deve vir através da construção de TSS, onde, a partir de atores locais, que vivenciam o processo de desertificação, estiagens e secas, se pensem os problemas locais, os caminhos possíveis e que também estejam juntos na execução das etapas. Portanto, as redes de produtores e produtoras são de grande importância por articular os camponeses e camponesas a projetos que fortalecem os seus próprios territórios e apoiá-los na sua condução.
Tradicionalmente, em situações de seca, as preocupações são mais voltadas para os determinantes ambientais e econômicos. Especificamente em se tratando de agricultura, como uso do solo, falta de água para irrigação e perdas econômicas, com ênfase limitada em certos determinantes sociais que têm impactos em longo prazo sobre a saúde, a exemplos de precário acesso à educação de qualidade, escassez de alimentos e profundas desigualdades sociais e econômicas. Contexto que aponta a ineficiência e fragilização decorrente do agronegócio e políticas que sustentam um sistema excludente e destrutivo.
A agroecologia e soberania popular apontam caminhos para um novo cenário de justiça socioambiental, convivência com o Semiárido e construção de TSS. As análises decorrentes desse estudo apontam que o engajamento de organizações feministas nos movimentos da agroecologia tem contribuído na ampliação do conceito de agroecologia para além das questões tecnológicas e ambientais, ressaltando sua dimensão social e de equidade de gênero. Ao mesmo tempo, as organizações feministas têm sido influenciadas pela discussão da sustentabilidade ambiental trazidas pela agroecologia, ampliando assim seus discursos e práticas nesse campo.
O fato de a formação dos grupos de mulheres ser, em sua maioria, influenciado pela necessidade de se fortalecer conjuntamente, de pleitear mais espaço e voz nos espaços de discussão, como sindicatos de trabalhadores rurais, impulsionou discussões que posteriormente tiveram impacto importante na construção de políticas públicas e projetos que são executados em suas comunidades.
A articulação das trabalhadoras em grupos de mulheres e, posteriormente, em rede teve grande impacto no fomento da agroecologia no território, auxiliadas pelas Organizações Não Governamentais (ONGs), como a Diaconia, Casa da Mulher do Nordeste e Centro Sabiá, e com apoio de universidades presentes no território, dando suporte através da assistência técnica rural, mas também na construção dos territórios saudáveis.
Entretanto, os objetivos do desenvolvimento sustentável só se darão efetivamente com a participação popular ativa. Não é possível pensar na construção de outra relação com a terra e superar o modelo do agronegócio sem ter a população como eixo central das discussões, pois é através das vivências que é possível pensar alternativas à convivência com o Semiárido.
Vale destacar que o Pajeú é uma região privilegiada por ter em seu território uma boa quantidade de ONGs e associações com muitas experiências exitosas e uma tendência de avanço nas discussões políticas pela experiência dos agricultores nas discussões dos sindicatos. Quadro que por si aponta alternativas a serem vislumbradas por outras áreas do Semiárido pernambucano, valendo sempre da necessidade de outros estudos que ampliem a discussão e aprofundem alguns dos aspectos da construção de TSS, por meio da agroecologia e da articulação de trabalhadoras.
- Suporte financeiro: não houve
Referências
- 1Gonçalves ALR, Medeiros CM, Matias RLA. Sistemas agroflorestais no semiárido brasileiro: estratégias para combate à desertificação e enfrentamento às mudanças climáticas. Recife: Centro Sabiá, Caatinga; 2016.
- 2Ministério do Desenvolvimento Regional (BR), Secretaria de Proteção e Defesa Civil; Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Estudos e Pesquisas em Engenharia e Defesa Civil. Atlas Digital de Desastres no Brasil. Brasília, DF: MDR; 2022.
- 3Carvalho PP. Vozes da convivência com o semiárido. Galindo W, organizador. Recife: Centro Sabiá; 2013.
- 4Ministério do Desenvolvimento Agrário (BR). Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Sertão do Pajeú. Brasília, DF: MDA; 2011.
- 5Rapozzo BMS. Transformações no espaço agrário do sertão do Pajeú: a participação das mulheres nos processos de transição agroecológica em quintais de (re) produção da vida [dissertação]. João Pessoa: Curso de Geografia, Universidade Federal da Paraíba; 2017. 155 p.
- 6Cequeira MA, Rodrigues FM, Almeida GVL. Susceptibilidade à desertificação para o estado de Pernambuco. Geosul. 2020;35(76):151-70. DOI: http://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n76p151
» https://doi.org/10.5007/2177-5230.2020v35n76p151 - 7Machado JMH, Martins WJ, Souza MSS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Comum Ciênc Saúde [Internet]. 2017 [acesso em 2023 out 4];28(2):243-249. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/ccs_artigos/territorio_%20saudaveis_%20sustentaveis.pdf
» https://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/ccs_artigos/territorio_%20saudaveis_%20sustentaveis.pdf - 8Milhorance C, Mendes P, Mesquita P, et al. O desafio da integração de políticas públicas para a adaptação às mudanças climáticas no Semiárido brasileiro. Rev Bras Climatol. 2019;24(15):175-195. DOI: https://doi.org/10.5380/abclima.v24i0.56484
» https://doi.org/10.5380/abclima.v24i0.56484 - 9Santana AS, Santos GS. Impactos da seca de 20122017 na região semiárida do Nordeste: notas sobre a abordagem de dados quantitativos e conclusões qualitativas. Bol Reg Urb Amb. 2020;(22):119-129. DOI: http://dx.doi.org/10.38116/brua22art9
» https://doi.org/10.38116/brua22art9 - 10Sena A. Land Under Pressure – Health Under Stress. Global Land Outlook: Working Paper. [Local desconhecido]: United Nations Convention to Combat Desertification; 2019.
- 11Comissão Econômica para a América Latina. RIO+20: Objetivos de Desarrollo Sostenible. Propuesta de los Gobiernos de Colombia y de Guatemala para Someter a Consideración de los Países Participantes [Internet]. [local desconhecido]: Cepal; 2011 [acesso em 2023 out 4]. Disponível em: http://www.cepal.org/rio20/noticias/paginas/5/43755/2011-612-Rio+20-Nota_de_la_Secretaria-Rev.1_Prop_Col_Guat.pdf
» http://www.cepal.org/rio20/noticias/paginas/5/43755/2011-612-Rio+20-Nota_de_la_Secretaria-Rev.1_Prop_Col_Guat.pdf - 12Organização das Nações Unidas. Report of the Open Working Group of the General Assembly on Sustainable Development Goals. UN Report A/68/970: 2014 [Internet]. [local desconhecido]: ONU; 2014 [acesso em 2023 out 4]. Disponível em: http://www.un.org/en/development/desa/news/sustainable/sdgs-post2015.html
» http://www.un.org/en/development/desa/news/sustainable/sdgs-post2015.html - 13Sena A, Freitas CM, Barcellos C, et al. Medindo o invisível: análise dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável em populações expostas à seca. Ciênc saúde coletiva. 2016;21(3):671-684. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232015213.21642015
» https://doi.org/10.1590/1413-81232015213.21642015 - 14Morin E. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2002.
- 15Leff E. Pensar a complexidade ambiental. In: Leff E, organizador. A complexidade ambiental. São Paulo: Cortez Editora; 2003. p. 15-64.
- 16Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1994.
- 17Valle FAAL, Farah BF, Carneiro Júnior N. As vivências na rua que interferem na saúde: perspectiva da população em situação de rua. Saúde debate. 2020;44(124):182-192. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202012413
» https://doi.org/10.1590/0103-1104202012413 - 18Machado TMG, Carvalho PIN, Brandão ASM, et al. A roda de conversa como ferramenta de planejamento de ações: relato de experiência. Rev. G & S [Internet]. 2015 [acesso em 2023 out 4];(1):751-761. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rgs/article/view/2707
» https://periodicos.unb.br/index.php/rgs/article/view/2707 - 19Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos e revoga as Resoluções CNS nos. 196/96, 303/2000 e 404/2008. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 jun 13; Seção I:549.
- 20Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2016 maio 24; Seção I:44.
- 21Sena ARM, Alpino TMA. Seca silenciosa, saúde invisível: um desastre naturalizado no semiárido do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. DOI: https://doi.org/10.7476/9786557081747
» https://doi.org/10.7476/9786557081747 - 22Primavesi A. Agroecologia: ecosfera; tecnosfera e agricultura. São Paulo: Nobel; 1997.
- 23Shiva V. Terra mater: reivindicación del principio femenino. Estud. – Cent Estud Av. 2022;48:93-100.
- 24Umann PBV. Transição agroecológica e mulheres: um estudo bibliométrico a partir da revista Cadernos de Agroecologia da ABA [monografia]. Florianópolis: Centro de Ciências Agrárias, Agronomia, Universidade Federal de Santa Catarina; 2022.
- 25Costa AM. Água. In: Dias AP, Stauffer AB, Moura LHG, et al., organizadores. Dicionário de agroecologia e educação. São Paulo: Expressão Popular; Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2021. p. 112-118.
- 26Petersen RS, Silveira M, Fenner ALD, et al. Índice de Território Saudável e Sustentável dos municípios do semiárido brasileiro. Cad Saúde Pública. 2020;36(11):e00200020. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00200020
» https://doi.org/10.1590/0102-311X00200020 - 27Cardoso EM. Introdução. In: Rody T, Telles L, organizadores. Caderneta agroecológica: o saber e o fazer das mulheres do campo, das florestas e das águas. Viçosa, MG: Editora Asa Pequena; 2021. p. 10-12.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
02 Dez 2024 - Data do Fascículo
Oct-Dec 2024
Histórico
- Recebido
01 Jan 2024 - Aceito
05 Ago 2024