Educação Popular na saúde bucal: análise de práticas educativas na Atenção Primária

Lílian Fernandes Amarante Franklin Delano Soares Forte Sharmênia de Araújo Soares Nuto Sobre os autores

Resumo

A Educação Popular em Saúde emerge como norteadora de práticas educativas na Atenção Primária, tornando-as mais dialógicas e em sintonia com a cultura popular, sendo embasada por princípios contidos na Política Nacional de Educação Popular em Saúde. Este estudo analisa as práticas educativas de cirurgiões-dentistas na Atenção Primária, buscando identificar os princípios da Educação Popular em Saúde nessas práticas. Os dados foram coletados através de entrevista semiestruturada com 39 cirurgiões-dentistas do município de Fortaleza-CE, em que foram identificados três corpora de análise baseados em três perfis profissionais evidenciados: passivo, esforçado e empoderado. Nos dentistas passivos não foram identificados princípios da Educação Popular em Saúde. Já nos esforçados, apenas os princípios do díalogo e da construção compartilhada do conhecimento foram evidenciados. No perfil empoderado, foram identificados todos os princípios, sendo perceptíveis o uso e o conhecimento da Educação Popular no cotidiano desses profissionais. Conclui-se que ainda há a necessidade de intensificar e direcionar o processo de Educação Permanente dos profissionais utilizando a Educação Popular como norteadora, possibilitando ações educativas mais dialógicas e problematizadoras junto à comunidade.

Palavras-chave:
Educação em Saúde; Educação em Saúde Bucal; Atenção Primária à Saúde

Introdução

Educação em Saúde é o processo educativo de construção de conhecimentos que envolve as relações entre os profissionais de saúde, os gestores que apoiam esses profissionais e a população que necessita construir seus conhecimentos e aumentar sua autonomia nos cuidados, sendo um instrumento para a Promoção da Saúde por meio da articulação de saberes técnicos e populares (Ferreira 2014FERREIRA, V. F. et al. Educação em saúde e cidadania: revisão integrativa. Trabalho Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p.363-378, ago. 2014.; Ramos 2018RAMOS, C. F. V. et al. Education practices: research action with nurses of Family Health Strategy. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 71, n. 3, p. 1144-1151, 2018.).

Atuando como um processo pedagógico, a Educação em Saúde na Atenção Primária requer o desenvolvimento de um pensar crítico e reflexivo, permitindo desvelar a realidade e propor ações transformadoras que levem o indivíduo à sua emancipação como sujeito histórico e social, capaz de propor e opinar nas decisões de saúde para cuidar de si, de sua família e de sua coletividade. Além disso, por ser uma atividade de prática essencialmente intersetorial e interdisciplinar, ela requer uma construção coletiva e inovadora quer seja no referencial adotado, nas estratégias utilizadas ou nos recursos tecnológicos, deslocando, assim, o foco da doença e da simples prevenção de agravos para a Promoção da Saúde e a integralidade do cuidado (Machado; Vieira, 2009MACHADO, M. F. A. S.; VIEIRA, N. F. C. Educação em saúde: o olhar da equipe de saúde da família e a participação do usuário. Revista Latino-Americana de Enfermagem. Ribeirão Preto, v. 17, n. 2, p. 174-179, 2009.; Freitas; Mandú, 2010FREITAS, M. L. A.; MANDÚ, E. N. T. Promoção da saúde na Estratégia Saúde da Família: análise de políticas de saúde brasileiras. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 23, n. 2, p. 200-205, abr. 2010.).

No contexto da Saúde Bucal, a Educação em Saúde é preconizada pela Política Nacional de Saúde Bucal, constituindo importante ferramenta para redução de riscos e mudanças de cenários epidemiológicos. Além disso, a saúde bucal é parte integrante e essencial da saúde do indivíduo, devendo o cirurgião-dentista na Atenção Primária à Saúde (APS) assegurar sua população adscrita a integralidade da assistência, aliando a atuação clínica à prática preventiva e educativa (Brasil, 2004; Alves; Aerts, 2011ALVES, G. G.; AERTS, D. As práticas educativas em saúde e a Estratégia Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 319-325, jan. 2011.).

A proposição de práticas educativas sensíveis às necessidades do usuário insere-se em um discurso emergente de Educação em Saúde - o modelo dialógico. Esse modelo se baseia na proposição de práticas educativas sensíveis às necessidades das pessoas e tem o diálogo como instrumento essencial por meio do qual elas se tornam capazes de refletir criticamente sua realidade e aperfeiçoar suas estratégias de enfrentamento. As pessoas deixam de ser objetos para assumir o status de sujeitos das práticas educativas, que são realizadas a partir da compreensão de diferentes realidades (Alves, 2005ALVES, V. S. Um modelo de educação em saúde para o Programa Saúde da Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo assistencial. Interface: Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 9, n.16, p. 39-52, fev. 2005.).

Nesse contexto, a Educação Popular em Saúde (EPS) surge como movimento e prática social na perspectiva de tornar a saúde mais humanizada e em sintonia com a cultura popular. Embasada pelos princípios de Educação Popular de Paulo Freire, ela valoriza a prática educativa numa perspectiva horizontal da relação entre os sujeitos, incentivando as trocas interpessoais e buscando compreender o saber popular através do diálogo. Esta metodologia reconhece o usuário como sujeito capaz de estabelecer uma interlocução dialógica com o serviço de saúde, desenvolvendo uma análise crítica sobre sua realidade e superando a distância cultural entre os serviços e a população assistida de modo participativo (Bonetti; Pedrosa; Siqueira, 2011BONETTI, O. P.; PEDROSA, J. I. S.; SIQUEIRA, T. C. A. Educação popular em saúde como política do Sistema Único de Saúde. Revista da APS. Juiz de Fora, v. 14, n. 4, p. 397-407, out-dez. 2011.; Vasconcelos, 2011VASCONCELOS, E. M. Educação popular, um jeito de conduzir o processo educativo. In: VASCONCELOS, E. M.; CRUZ, P. J. S. (Orgs.). Educação popular na formação universitária: reflexões com base em uma experiência. São Paulo: Hucitec, 2011. p. 28-34.).

Em 2013, houve a institucionalização da EPS através da Portaria n° 2.761, instituindo a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS), contemplando alguns princípios que envolvem dimensões políticas, éticas e metodológicas que dão sentido e coerência à práxis da EPS. São eles: o diálogo, a problematização, a amorosidade, a construção compartilhada do conhecimento, o compromisso com a construção do projeto democrático e popular e a emancipação (Brasil, 2013).

O diálogo é a troca entre sujeitos e de seus conhecimentos construídos histórica e culturalmente, acontecendo quando cada um coloca, de forma respeitosa, o que sabe à disposição do outro. Representa uma perspectiva crítica de construção de novos saberes, que parte da escuta do outro e da valorização dos seus saberes e iniciativas. Já o princípio da problematização propõe a construção de práticas em saúde alicerçadas na leitura e análise crítica da realidade, com base na experiência prévia dos sujeitos, na identificação de situações limites presente no seu cotidiano e nas potencialidades para transformá-las (Brasil, 2013).

A amorosidade reconhece a valorização do afeto como elemento estruturante da busca pela saúde e leva ao vínculo, à compreensão mútua e à solidariedade, buscando estabelecer relações de confiança e acolhimento entre as pessoas (Brasil, 2013).

A construção compartilhada do conhecimento consiste em processos pedagógicos entre pessoas e grupos de saberes, culturas e inserções sociais diferentes, na perspectiva de compreender e transformar de modo coletivo as ações de saúde. Como resultado do diálogo, permite a construção de práticas e de conhecimentos de forma participativa, unindo o saber técnico ao saber popular (Brasil, 2013).

O compromisso com a construção do projeto democrático e popular se orienta pela perspectiva de criação de uma sociedade justa, solidária, democrática, igualitária e culturalmente diversa que permeia as lutas sociais, tendo como protagonistas os sujeitos populares e os movimentos sociais. Já o princípio da emancipação promove a superação e a libertação de todas as formas de opressão, discriminação e violência ainda vigentes na sociedade, fortalecendo o sentido da coletividade na perspectiva de uma sociedade justa e democrática (Brasil, 2013).

No entanto, apesar da grande difusão de metodologias educativas utilizando o referencial da EPS, ainda é dominante, nas práticas educativas em saúde bucal, a realização de ações centradas na transmissão dos conhecimentos, na comunicação unidirecional, com foco na doença e na cura, utilizando abordagens tradicionais. Por serem centradas no cirurgião-dentista, essas abordagens acabam não encorajando os indivíduos a refletirem e a conquistarem a autonomia do cuidado, além de não levarem em conta a complexidade dos determinantes sociais (Lemkuhl 2015LEMKUHL, I. et al. A efetividade das intervenções educativas em saúde bucal: revisão de literatura. Cadernos Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 336-346, 2015.; Vasconcelos; Cruz; Ernande, 2016VASCONCELOS, E. M.; CRUZ, P. J. S. C.; ERNANDE, V. A contribuição da Educação Popular para a formação profissional em saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 20, n. 59, p. 835-838, 2016.; Mendes ., 2017MENDES, J. D. R.; FREITAS, C. A. S. L.; DIAS, M. C. A. et al. Análise das atividades de Educação em Saúde realizadas pelas equipes de saúde bucal. Revista Brasileira em Promoção da Saúde, Fortaleza, v. 30, n. 1, p. 13-21, jan-mar. 2017.).

Além disso, mesmo com a noção de que práticas embasadas pelos princípios da EPS devem estar inseridas no trabalho cotidiano, muitos profissionais de saúde relegam as atividades educativas a um segundo plano no planejamento e ações de cuidado (Carneiro ., 2012CARNEIRO, A. C. L. L. et al. Educação para a promoção da saúde no contexto da atenção primária. Revista Panamericana de Salud Publica, Washington, v. 31, n. 2, p. 115-120, mar-abr. 2012.).

Com a necessidade de promover um novo olhar para a Educação em Saúde Bucal, embasada pela participação popular e por ações educativas realmente transformadoras, o presente estudo objetiva analisar as práticas educativas dos cirurgiões-dentistas da Atenção Primária do município de Fortaleza-CE, sob a ótica da EPS, buscando identificar os princípios contidos na PNEPS-SUS nessas práticas.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal, descritivo e exploratório, que utilizou como referencial teórico os princípios da EPS contidos na PNEPS-SUS, com abordagem qualitativa. A escolha da abordagem foi feita pela necessidade de captar a singularidade das situações particulares e suas características, permitindo trabalhar com o universo de significados, aspirações, crenças e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (Minayo, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.).

Fortaleza é dividida em seis Distritos de Saúde, tendo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) como órgão gestor. Atualmente, o município possui 118 UAPS, sendo 16 na Regional I, 12 na Regional II, 19 na Regional III, 13 na Regional IV, 27 na Regional V e 31 na Regional VI. A cobertura da estratégia Saúde da Família (ESF) em Fortaleza é de 70,38%, e das equipes de saúde bucal (EqSB), 50% (Fortaleza, 2023).

Diante dos objetivos propostos para este estudo, os sujeitos desta pesquisa foram cirurgiões-dentistas da APS; e como critério de inclusão, serem servidores efetivos que atuavam na Estratégia de Saúde da Família (ESF) do município de Fortaleza. Segundo dados da SMS, dos 412 cirurgiões-dentistas distribuídos nas seis Regionais de Saúde, foram excluídos dentistas que estivessem em cargo comissionado/gestão e de licença de saúde, maternidade, dentre outras. Com base nesses critérios de inclusão e exclusão, estimou-se um quantitativo de 279 dentistas.

Com base nesse quantitativo, a Gerência Especial de Saúde Bucal da SMS e as Coordenadorias Regionais de Saúde Bucal foram questionadas quanto às UAPS com EqSB que se destacavam por experiências educativas exitosas e/ou inovadoras, para seleção de uma amostra intencional.

Para definir o número de participantes, Minayo (2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.) ensinam que uma amostra ideal é aquela que reflete as múltiplas dimensões do objeto de estudo e permite abranger a totalidade do problema investigado em suas múltiplas definições. Assim, optou-se por uma amostra intencional, em que a seleção dos elementos decorre, sobretudo, da preocupação de que a amostra contenha e espelhe certas dimensões do contexto a ser estudado.

A amostra selecionada para o estudo foi então formada por 46 cirurgiões-dentistas que atuavam em 12 UAPS, distribuídos nas seis Regionais de Saúde. Após a exclusão de dentistas que conheciam o objetivo do estudo e de recusas, obteve-se como amostra final o quantitativo de 39 participantes.

Os dados foram coletados no período de novembro de 2021 a fevereiro de 2022, por uma pesquisadora, que não possuía nenhuma relação com os participantes, através de entrevistas que utilizaram um roteiro semiestruturado em três eixos: 1) Práticas de Educação em Saúde Bucal realizadas por cirurgiões-dentistas na APS; 2) Princípios da EPS presentes em práticas educativas de saúde bucal; e 3) Potencialidades e desafios, segundo os cirurgiões-dentistas, para a realização dessas ações.

As entrevistas foram realizadas no consultório odontológico das próprias UAPS, mediante agendamento e disponibilidade de cada profissional. Os áudios das entrevistas foram gravados e, posteriormente, transcritos pela mesma pesquisadora e os cirurgiões-dentistas entrevistados foram identificados em seus depoimentos por meio da letra E e por números (E1, E2), como forma de garantir o anonimato dos participantes. O tempo médio de entrevista foi de 30 minutos. Além da entrevista, um diário de campo foi utilizado para descrição de impressões e sentimentos que emergiram da pesquisadora após a realização de cada entrevista.

Após a leitura flutuante e exaustiva das entrevistas e diário de campo, realizou-se a leitura compreensiva de todo o material e categorização das falas, sendo utilizado para a análise o método de Análise do Discurso (AD). Para Pêcheux (1993PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 1993.), a língua é a materialização da fala, contando com os planos material e simbólico, tendo o discurso produzido pela fala uma relação com o contexto sócio-histórico em que o indivíduo está inserido. Além disso, a AD possibilita a compreensão do discurso individual e coletivo, histórico e socialmente determinado, evidenciando elementos que permitam redirecionar as práticas sanitárias (Rocha; Deusdará, 2005ROCHA, D.; DEUSDARÁ, B. Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: aproximações e afastamentos na (re)construção de uma trajetória. Alea: Estudos Neolatinos, v. 7, n. 2, p. 305-322, 2005.).

Baseados nos depoimentos desta pesquisa, identificou-se o corpus de análise, utilizando como referencial modalidades de prática profissional evidenciados no estudo de Terra (2018TERRA, L. O médico alienado: reflexões sobre a alienação do trabalho na atenção primária à saúde. 1ª Edição. São Paulo: Hucitec, 2018. 228p.). Dessa forma, foram identificados três corpora de análise: dentista passivo, dentista esforçado e dentista empoderado.

É importante destacar que as entrevistas só foram realizadas após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE) sob o parecer nº 5.078.770. A pesquisa foi financiada pelos próprios pesquisadores, e é um dos resultados da dissertação de mestrado “Educação popuar e saúde bucal: análise das práticas educativas de cirurgiões-dentistas na Atenção Primária”, não havendo conflitos de interesse envolvidos.

Resultados e Discussão

Em relação à caracterização da amostra do estudo, 27 (69,2%) são mulheres, com média de idade de 48 anos entre os entrevistados, variando de 38 a 66 anos; 19 (48,7%) possuem entre 16 e 20 anos de tempo de formação profissional e 14 (35,9%) estão o mesmo tempo de trabalho na Estratégia Saúde da Família. Em relação à pós-graduação, 25 (64,1 %) dos entrevistados possuem algum curso de Especialização e 23 (59%) na temática de Saúde da Família ou Saúde Coletiva. No entanto, apenas 14 (35,9%) dos dentistas fizeram algum curso ou capacitação envolvendo o conhecimento de Metodologias Ativas e/ou Educação Popular.

Foi identificado que mesmo submetidos à mesma conjuntura econômico-social, trabalhando em um mesmo contexto e no mesmo município, existiam distintas condutas e percepções das práticas educativas, que foram agrupadas em três perfis profissionais. O Quadro 1 contempla as características das principais atividades educativas, assim como os princípios da EPS evidenciados nas práticas em cada perfil profissional.

Quadro 1
Resumo comparativo entre os perfis profissionais passivo, esforçado e empoderado. Fortaleza-CE, 2022

É preciso ressaltar que a classificação em perfis não é definidora do profissional, mas de sua atuação em práticas educativas em um dado momento, a partir de todas as condições e possibilidades do seu exercício profissional. Não houve nenhuma associação relevante quanto ao tipo de perfil e a caracterização por gênero, idade, tempo de formação profissional e tempo na ESF.

Dentista passivo e os princípios da EPS

Esse perfil foi encontrado em 14 (35,9%) dos cirurgiões-dentistas entrevistados, sendo observado que a maioria deles nunca havia escutado o termo educação popular, e também tinham bastante dificuldade em conceituá-la, mesmo que de forma empírica. Dos 14 cirurgiões-dentistas desse perfil, cinco fizeram alguma pós-graduação em Saúde da Família ou Saúde Coletiva, e apenas um fez algum curso envolvendo a temática da educação popular.

Esses dentistas tinham pouca participação durante a entrevista, além de aparentar cansaço e desestímulo em relação ao seu próprio processo de trabalho, como também em suas práticas educativas, que eram em sua maioria realizadas com abordagens educativas tradicionais. Esses profissionais se mostravam indiferentes em relação às suas próprias ações e ao contexto político/social em que a sua população estava inserida.

Não foram identificadas nas falas dos dentistas desse perfil os princípios da EPS, nem referências a ações com abordagens educativas problematizadoras ou com outros métodos ativos que permitissem a interação, o diálogo e a troca de saberes entre os profissionais e a comunidade. As ações de Educação em Saúde desses profissionais ainda se encontram fundamentadas na transmissão dos conhecimentos, com uma comunicação unidirecional, caracterizando ações centradas no cirurgião-dentista que não encorajam a reflexão e a autonomia. As ações mais realizadas pelos dentistas desse perfil são as palestras, com temáticas relacionadas apenas a saúde bucal, e atividades preventivas, como a higiene bucal supervisionada e a aplicação tópica de flúor no ambiente escolar.

Geralmente a gente faz palestras, falando mais de saúde bucal mesmo. (E7)

A gente dá palestra [...] e normalmente fala de saúde bucal. E às vezes fazemos instrução de higiene bucal e aplicação de flúor. (E4)

Esses achados confluem com outros estudos que evidenciam que muitas ações educativas em saúde ainda são realizadas tendo como base paradigmas tradicionais de intervenções educativo-preventivas, com foco na higiene bucal supervisionada, palestras e aplicações de fluoretos (Mendes .,2017MENDES, J. D. R.; FREITAS, C. A. S. L.; DIAS, M. C. A. et al. Análise das atividades de Educação em Saúde realizadas pelas equipes de saúde bucal. Revista Brasileira em Promoção da Saúde, Fortaleza, v. 30, n. 1, p. 13-21, jan-mar. 2017.; Matos; Gondinho; Ferreira, 2015MATOS, C. V.; GONDINHO, B. V. C.; FERREIRA, D. L. A. A educação em saúde bucal e suas representações na atenção primária à saúde. Revista Gestão & Saúde. Brasília, n. 1, p 845-855, 2015.).

Sabe-se que, embora as práticas de prevenção sejam consideradas ações relevantes e capazes de diminuir a incidência de doenças bucais, elas devem estar atreladas a processos educativos que façam “sentido” para a população, com abordagens que estimulem o autocuidado e aumentem a troca de conhecimentos entre a equipe de saúde bucal e a comunidade. Além disso, práticas educativas apoiadas na simples transmissão de informações com base na abordagem higienista (ancorada no paradigma comportamentalista), com temáticas predefinidas só restritas a “boca”, não expressam qualquer preocupação com a problematização em saúde, nem com a busca de estratégias capazes de viabilizar a continuidade de ações educativas efetivas e realmente transformadoras (Pauleto; Pereira; Cyrino, 2004PAULETO, A. R. C.; PEREIRA, M. L. T.; CYRINO, E. G. Saúde bucal: uma revisão crítica sobre programações educativas para escolares. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 121-130, 2004.; Brasil, 2018BRASIL, P. R. C. S; MAIA, A. Desafios às ações educativas das Equipes de Saúde Bucal na Atenção Primária à Saúde: táticas, saberes e técnicas. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 4, p. 4-14, out-dez. 2018.).

Nesse perfil profissional, identificou-se de forma unânime o processo de culpabilização da comunidade pela sua falta de participação em práticas educativas.

Acho que faltam questões de educação da população em si. Eles não têm ideia do que representa aquele serviço educativo que a gente tá fazendo. Eles não querem participar e nem valorizam. (E7)

Victor Valla (1993VALLA, V. V.; STOTZ, E. N. (Org.). Participação popular, educação e saúde: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993. 87p.) descreveu esse processo como sendo o produto de práticas tradicionais de educação em saúde que se limitam à prescrição de comportamentos individuais adequados à obtenção da boa saúde, provocando a interpretação de que a população é a principal culpada pelo seu adoecimento. Com esse raciocínio, é frequente encontrarmos atividades educativas prescritivas, tratando a população de forma passiva, transmitindo conhecimentos técnicos sobre as doenças e como cuidar da saúde, desqualificando o saber popular e as condições de vida dessas populações. Assim, o monopólio do saber técnico põe em segundo plano o saber acumulado da comunidade, não levando em conta suas vivências e experiências. A individualização da culpa se torna, portanto, a “explicação” de uma prática coletiva ineficiente (Valla; Stotz, 1989; Vasconcelos, 1999VASCONCELOS, E. M. Educação popular nos serviços de saúde. São Paulo: Hucitec, 1999. 142p.).

É preciso ultrapassar essas barreiras educativas para construir métodos mais dialógicos, que substituam a atitude modeladora de comportamento pela atitude emancipatória. Além disso, é preciso haver o despertar do interesse pelo trabalho educativo nesses profissionais, além do reconhecimento e enfrentamento de problemas relativos à educação em saúde.

Dentista esforçado e os princípios da EPS

Esse perfil foi encontrado em 12 (30,7%) dos profissionais entrevistados, sendo evidenciados a participação e o esforço desses profissionais em relação ao seu processo de trabalho e práticas educativas. Já se observa nesse perfil uma melhor conceituação em relação ao termo educação popular:

Eu considero que é uma estratégia de trabalho que a gente chega mais próximo ali do usuário, dos cidadãos. Numa linguagem mais adequada, a gente permite a participação deles [...]. Observando também que eles têm a sua cultura. Eu acho que é uma troca (E2).

Dos 12 dentistas desse perfil, nove fizeram alguma pós-graduação em Saúde da Família ou Saúde Coletiva, o que se reflete na forma de cuidado evidenciado em relação à saúde da sua comunidade, sendo a principal atividade educativa realizada por esse perfil as práticas em grupos, realizadas dentro das UAPS. Contudo, essa titulação não garante que abordagens problematizadoras sejam prioridade nessas práticas, já que apenas dois profissionais fizeram algum curso sobre essa temática, o que acaba impactando nas práticas educativas utilizadas.

No grupo de idosos, a enfermeira da minha equipe é a responsável. Ela chega para abordar o tema, aí ela diz para a gente o que devemos abordar também (E2).

Ainda se percebe certo distanciamento desses profissionais em relação ao contexto social de sua comunidade, com poucas reflexões acerca do seu potencial de transformação e construção de autonomia através de suas práticas. Os grupos, por exemplo, devem gerar uma prática coletiva de problematização e discussão, provocando um processo de aprendizagem crescente em todos os participantes, inclusive nos profissionais envolvidos. Com isso, há mais participação ativa do indivíduo no processo educativo e envolvimento da equipe de profissionais com a comunidade (Menezes; Avelino, 2016MENEZES, K. K. P.; AVELINO, P. R. Grupos operativos na Atenção Primária à Saúde como prática de discussão e educação: uma revisão. Caderno de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 124-130, 2016.).

A culpabilização também emerge nesse perfil, mas já se percebe neste grupo uma visão ampliada da Odontologia, com a abordagem de temáticas diferentes, que não se restringem apenas a saúde bucal, diferente do perfil profissional passivo:

Com as gestantes, a gente fala da questão de imunização, de aleitamento, de alimentação. Assuntos que vão muito além da boca. Elas não veem a gente só como dentistas, elas realmente acreditam que a gente possa opinar sobre outras coisas. Aí acaba que a gente sai dessa de só falar da saúde bucal. (E8)

Percebe-se um avanço no redirecionamento dessas práticas, através da percepção de que a boca não se encontra isolada, mas dentro de um corpo, que é resultado do biológico, do psíquico e do afetivo, ampliando o olhar dessas ações sob a perspectiva da integralidade (Merhy; Franco, 2003MERHY, E. E.; FRANCO, T. B. Por uma composição técnica do trabalho centrada nas tecnologias leves e no campo relacional. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, 2003.).

Durante as entrevistas, os profissionais desse perfil se mostraram mais motivados em relação ao seu processo de trabalho, o que se refletia também em suas práticas educativas e no seu “esforço” em realizá-las, mesmo diante algumas dificuldades, o que difere bastante do perfil profissional passivo. Além disso, foi quase unânime o posicionamento desses profissionais quanto à necessidade de melhorar os tipos de abordagem educativa em suas práticas, mostrando um direcionamento desses dentistas em modificar suas ações de Educação em Saúde.

Os princípios do diálogo e da construção compartilhada do conhecimento foram evidenciados no discurso de alguns profissionais:

Fazíamos as ações de acordo com a demanda da comunidade. A gente tentava ver, tentava conversar com a população, para ver o que eles queriam e começava a fazer uma atividade de acordo com o que eles demandam. (E6)

No grupo de gestante, a gente ia pedindo para elas darem a opinião delas e o que elas achavam que seria bom abordar. E também a gente via algumas necessidades e fazia os encaminhamentos com base naquilo que a gente observava. Mas nós tínhamos esse diálogo constante com elas. (E22)

O diálogo é considerado um encontro de conhecimentos, em que há o compartilhamento respeitoso dos diversos saberes, ampliando o conhecimento crítico e contribuindo com o processo de autonomia e emancipação dos sujeitos. Dessa forma, a participação e o envolvimento da comunidade só são possíveis através de um diálogo que permita a união, o desenvolvimento e a conscientização, ou seja, a educação para transformação social (Nuto ., 2006NUTO, S. A. S. et al. O saber popular em odontologia e o processo saúde-doença. In: DIAS, A. A. Saúde bucal coletiva metodologia de trabalho e práticas. São Paulo: Santos, 2006. p. 119-137.; Fittipaldi; O’Dwyer; Henriques, 2021FITTIPALDI, A. L. M.; O’DWYER, G.; HENRIQUES, P. Educação em saúde na atenção primária: as abordagens e estratégias contempladas nas políticas públicas de saúde. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 25, p. e200806, 2021.).

É importante refletir que, se há relação de confiança e diálogo entre os sujeitos, há a aceitação da proposta de caráter educativo, mesmo que essa proposta não implique um “ganho” imediato para a população envolvida. O convívio e o respeito às diferenças tornam-se, algumas vezes, fator tão ou mais importante do que as informações técnicas no desenvolvimento das ações educativas junto aos grupos populares (Acioli, 2008ACIOLI, S. A prática educativa como expressão do cuidado de saúde pública. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 61, n. 1, p. 117-121, jan-fev. 2008.). Além disso, no processo de comunicação, é fundamental que ocorram a escuta, a observação e a interação entre as pessoas, sendo imprescindível a disponibilidade interna do trabalhador, a partir de uma ação intencional, orientada por um interesse concreto (Alves; Aerts, 2011ALVES, G. G.; AERTS, D. As práticas educativas em saúde e a Estratégia Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 319-325, jan. 2011.).

A construção do conhecimento refere-se a um processo de interação em que sujeitos possuidores de saberes diferentes se articulam a partir de interesses comuns. A realização desse tipo de proposta pressupõe incorporar nas práticas educativas os conhecimentos produzidos pelos sujeitos envolvidos, valorizar a troca de experiências e saberes entre profissionais de saúde e população, bem como propor a incorporação do planejamento participativo nas práticas educativas, o que já começa a ser observado nas falas desse grupo (Vasconcelos, 2001VASCONCELOS, E. M. Redefinindo as práticas de Saúde a partir de experiências de Educação Popular nos serviços de saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 5, n. 8, p. 121-126, 2001.).

Observa-se que os dentistas esforçados já demonstram certo avanço na relação dialógica e na construção compartilhada do conhecimento no processo educativo. No entanto, ainda permanecem incipientes outros princípios da EPS como a problematização, a amorosidade e a emancipação, assim como o uso de metodologias educativas mais ativas em ações de Educação em Saúde. Também é pouco perceptível, nesse perfil profissional, o planejamento de ações de forma dinâmica, desenvolvida a partir da observação da realidade, dos interesses e das necessidades identificadas da população, com base em seu contexto social.

Dentista empoderado e os princípios da EPS

Nesse perfil, os profissionais mostraram-se mais solícitos e comunicativos, demonstrando uma visão crítica da importância do seu papel na construção da autonomia da população, tendo como base o contexto político/social na qual ela está inserida, presente em um terço dos entrevistados. Identificararm-se planejamento e realização de ações educativas em espaços sociais no território, com uso de abordagens problematizadoras e de troca de saberes. Além disso, no discurso desses profissionais, percebem-se seu comprometimento e motivação nas ações educativas, ainda que com muitas críticas à forma de organização dos serviços e ao modelo biomédico ainda predominante.

Em relação ao termo “educação popular”, observa-se um empoderamento desses entrevistados em relação a esse conceito:

Na educação popular a gente deve aproveitar sempre o conhecimento da população e agregar ao nosso conhecimento mais técnico. Então eu acho que é a gente se unir a comunidade e a gente tentar fazer uma educação junto. Aquela coisa bem Paulo Freiriana, de você aproveitar o que a população já conhece, já faz. (E1)

A educação popular em saúde é a participação da comunidade dentro do próprio território. É a troca, é a discussão de estratégias entre os profissionais e a própria comunidade. […] É a comunidade ser ativa no processo educativo. (E20)

Dos 13 dentistas desse perfil, 11 apresentam cursos voltados para a temática de educação popular, o que parece interferir diretamente no discurso, na forma como o profissional se insere no processo educativo e nas abordagens realizadas nas práticas, sendo a roda de conversa, em espaços no território, a prática educativa mais citada por esse perfil.

A melhor forma de aprender é tentar vincular algo a aquilo que você já sabe. Então, as nossas rodas de conversas se baseavam em eles trazerem primeiro os conhecimentos que eles tinham, e a gente conseguia dialogar de uma forma clara com eles. O saber popular deles acrescenta muito para gente […]. Aí vem a história também das benzedeiras que é uma situação que a gente respeita e tem como aliado muito importante nessas ações. (E11)

A gente parte que existe um processo que a gente pode trazer com relação a problematização, né? De Paulo Freire. Seria tentar trazer um pouco mais de conhecimento a eles fazendo alguns tipos de reflexões nessas ações. (E15)

O diálogo, a reflexão crítica (problematização) e a construção compartilhada do conhecimento, vistos claramente nessas falas, confluem e representam ferramentas que propiciam o encontro entre a cultura popular e a científica.

A EPS tem construído sua singularidade a partir da contraposição aos saberes e práticas autoritárias, distantes da realidade social e orientadas por uma cultura medicalizante imposta à população. Contudo, não se contrapõem, nem ambicionam se sobrepor ao saber científico, e sim agir compartilhada e dialogicamente com as práticas profissionais de saúde instituídas no SUS, portando uma visão de saberes e práticas diferentes que convivem em situações de reciprocidade e cooperação (Oliveira ., 2014OLIVEIRA, L. C. et al. Participação popular nas ações de educação em saúde: desafios para os profissionais da atenção primária. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 18, supl. 2, p. 1389-1400, 2014.).

O jeito de fazer saúde acumulado tradicionalmente nas formas populares de cuidar, denominadas práticas populares de cuidado, tem revelado possibilidades de construção de processos de cuidado dialogados, participativos e acolhedores do saber popular. Alguns exemplos das práticas populares de cuidado e de seus atores, os quais alguns inclusive foram citados por esse perfil, são os raizeiros, benzedores, curandeiros, parteiras, práticas dos terreiros de matriz africana, dentre outros. É, portanto, fundamental tomar o saber das classes populares como ponto de partida do processo pedagógico, promovendo um processo de debate horizontal e de respeito à cultura popular, mas com questionamentos que possibilitem sua desmistificação (Marteleto, 2009MARTELETO, R. M. Jovens, violência e saúde: construção de informações nos processos de mediação e apropriação de conhecimentos. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde. Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, p. 17-24, 2009.).

É importante refletir que se há relação de confiança e diálogo entre os sujeitos, há a aceitação da proposta de caráter educativo, mesmo que essa proposta não implique um “ganho” imediato para a população envolvida. O convívio e o respeito às diferenças tornam-se, algumas vezes, fator tão ou mais importante do que as informações técnicas no desenvolvimento das ações educativas junto aos grupos populares (Vasconcelos, 2001VASCONCELOS, E. M. Redefinindo as práticas de Saúde a partir de experiências de Educação Popular nos serviços de saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 5, n. 8, p. 121-126, 2001.).

A ampliação do olhar sobre a realidade com base na ação-reflexão-ação e o desenvolvimento de uma consciência crítica que surge da problematização permite que homens e mulheres se percebam sujeitos históricos, configurando um processo humanizador, conscientizador e de protagonismo, como observado na fala deste entrevistado:

Se você procura uma identidade com aquele público, se você utiliza mecanismos que possam estar mexendo com o raciocínio das pessoas, gerando questionamentos, se você usa uma boa didática, a educação flui. Você tem que ter uma troca. Você tem que gerar uma reflexão. (E9)

A construção compartilhada do conhecimento como princípio da EPS orienta as práticas educativas em busca da interdisciplinaridade, da autonomia e da cidadania. Ou seja, práticas que privilegiem a interação comunicacional onde sujeitos detentores de saberes diferentes, apropriam-se destes, transformando-se e transformando-os (Oliveira ., 2014OLIVEIRA, L. C. et al. Participação popular nas ações de educação em saúde: desafios para os profissionais da atenção primária. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 18, supl. 2, p. 1389-1400, 2014.).

É na articulação e diálogo constante entre os diversos saberes que se pode constituir um conhecimento novo, um terceiro conhecimento, que representa a união e horizontalidade entre o conhecimento científico e popular. Trata-se, portanto, de um processo dinâmico e contínuo, que exige dos profissionais da saúde, uma compreensão o mais ampliada possível a respeito do mundo que cerca as pessoas e os grupos que expressam esses saberes (Marteleto, 2009MARTELETO, R. M. Jovens, violência e saúde: construção de informações nos processos de mediação e apropriação de conhecimentos. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde. Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, p. 17-24, 2009.).

Essa lógica de você trabalhar numa educação mais ativa, principalmente ouvindo o que eles têm a trazer e comentando em cima dos conhecimentos adquiridos que eles já têm, fazem toda a diferença nessas ações. A ação educativa deve ser construída junto à população. (E15)

O princípio da amorosidade foi bastante percebido na fala dos entrevistados deste perfil, e aparece como elemento-chave para a aproximação entre serviço de saúde e a população com a construção de vínculos com os usuários, pois ela permite a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da sensibilidade. Dessa forma, o afeto se torna elemento estruturante da busca pela saúde.

Eu percebo a participação, o reconhecimento e o vínculo que eu formo com esse usuário [...]. Há essa interação entre a comunidade e eu, como profissional de saúde. A gente percebe a confiança, a amizade que a comunidade tem com a gente. (E5)

Pergunto como eles estão se sentindo, como está a relação com a família. Procuro ver aquela pessoa como um todo. Tem que ter empatia, amor no que faz. E mesmo com as dificuldades, eu me sinto muito realizada com esse trabalho. (E10)

A amorosidade é uma dimensão importante na superação de práticas desumanizantes e na criação de novos sentidos e novas motivações para as práticas educativas. Além disso, ela traz um novo significado ao cuidado em saúde, fortalecendo processos inovadores já em construção no SUS como a humanização, o acolhimento, a participação social e o enfrentamento das iniquidades em saúde (Prado ., 2011PRADO, E. V. et al. Construindo cidadania: Educação Popular em Saúde via rádio comunitária. Revista da APS, Juiz de Fora, v. 14, n. 4, p. 497-501, 2011.).

A construção do Projeto Democrático e Popular incentiva que atos educativos e de cuidado, implicados com a EPS, devem estar comprometidos com a transformação, com a superação das injustiças, com a superação das iniquidades em saúde e da desigualdade social, como o que é visto na fala deste entrevistado:

Eu vejo que essa comunidade é muito rica culturalmente. Muita gente tem uma cultura histórica porque esse é um bairro que cresceu de uma luta. [...] e aqui eles têm muita consciência política. Essa unidade de saúde existe por uma luta popular. E nós devemos usar esse potencial nessas práticas. (E30)

Observa-se que o “potencial de luta” é usado como uma forma de enfrentamento dos problemas da realidade naquela realidade, fazendo com que as ações educativas não foquem apenas na transmissão de conhecimento, mas que a equipe de saúde e a comunidade sejam capazes de construir um projeto rico e dinâmico, de luta e superação, dando voz aos sujeitos populares e movimentos sociais.

Alinhados a isso, a emancipação é percebida como um processo coletivo e compartilhado de conquista das pessoas e libertação de todas as formas de opressão, discriminação e violência ainda vigentes na sociedade e que produzem a desumanização e a determinação social do adoecimento (Brasil, 2013).

Às vezes você tá falando, orientando, e não sabe a realidade daquela família. Como você quer mudar uma realidade que você não conhece? É preciso termos uma proximidade com o modo de vida das pessoas, para então propormos uma mudança naquela realidade. […]. A gente tem que ter consciência que a saúde não é só a ausência de doença. Tem muitos outros fatores envolvidos. Violência doméstica, fome, falta de moradia adequada, tudo isso gera vulnerabilidade. (E9).

A emancipação vinculada à prática educativa promove o fortalecimento do sentido da coletividade na perspectiva de uma sociedade justa e democrática, em que as pessoas e grupos sejam protagonistas por meio da reflexão, do diálogo, da expressão da amorosidade, da criatividade e da autonomia, afirmando que a libertação somente acontece na relação com o outro (Pinheiro; Bittar, 2016PINHEIRO, B. C.; BITTAR, C. M. L. Práticas de educação popular em saúde na atenção primária: uma revisão integrativa. Cinergis, Santa Cruz do Sul, v. 18, n. 1, p. 77-82, jan-mar. 2016.).

É notável que, nas intervenções mediadas pela EPS, houve maior autonomia, protagonismo e participação da comunidade, confirmando o potencial dessa metodologia para favorecer a participação dos usuários e o diálogo entre o saber científico e o popular.

O município de Fortaleza-CE possui um relevante histórico de ações e de processos formativos em EPS, a exemplo das experiências do Cirandas da Vida, do Espaço Ekobé e de edições do curso do EdPopSUS. Apesar da influência exercida por essas vivências em alguns profissionais desse perfil, observa-se que houve um distanciamento da gestão municipal em relação a esses movimentos:

Antigamente, essa questão da educação permanente e da educação popular era muito valorizada. A gente tinha as Cirandas, a gente tinha uma troca, a gente tinha um intercâmbio maior do saber popular com o nosso. Eles coexistiam. Aí quando mudou a gestão, mudou-se muito a lógica do cuidado. (E11)

Percebeu-se, neste estudo, que mesmo com a percepção da importância da ação educativa no contexto da promoção da saúde, há pouco investimento em uma política de Educação Permanente que busque a difusão do saber da EPS como estratégia redirecionadora das práticas educativas profissionais.

Ao observar que a maioria dos dentistas empoderados possui algum curso ou capacitação relacionados a educação popular, é perceptível que práticas educativas transformadoras não são construídas de forma intuitiva, e sim através de um processo contínuo e dinâmico de conhecimento e reflexão no qual os profissionais da saúde necessitam estar imersos. Dessa forma, o uso dos princípios da EPS em práticas de Saúde Bucal se torna um instrumento de reorientação de práticas educativas, que estimulam a consciência crítica e a autonomia da população frente às decisões de saúde no âmbito individual e coletivo.

Conclusões

Com base nos depoimentos analisados, este estudo evidencia a existência de três perfis profissionais, o passivo, o esforçado e o empoderado, que mesmo submetidos à mesma conjuntura econômico-social, trabalhando em um mesmo contexto e no mesmo município, realizam e percebem suas ações educativas de forma completamente distintas.

Mesmo com a seleção de uma amostra intencional, em que foram selecionadas UAPS com histórico de boas práticas educativas, e da percepção da forte presença de princípios da EPS nas ações dos profissionais empoderados, são necessários o conhecimento, o exercício, a reflexão e a vivência desses princípios pelos dentistas dos outros perfis. Além disso, é de suma importância a consolidação da EPS nas práticas desses profissionais, como um recurso estratégico que potencializa a conscientização da população sobre suas condições de vida e reforça a organização popular e as lutas sociais pela saúde.

Isso evidencia um desafio ainda presente nas ações de Educação em Saúde, demonstrando a necessidade da criação de uma nova hegemonia representada por profissionais orientados pela EPS e pelo respeito aos saberes da comunidade. Para isso, é preciso inseri-los em um processo de Educação Permanente dinâmico e contínuo, sendo uma possibilidade o uso da própria EPS como proposta educativa na formação e capacitação desses profissionais, não apenas como método de trabalho, mas como um disparador de reflexões acerca de suas práticas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2023
  • Revisado
    26 Fev 2024
  • Aceito
    02 Abr 2024
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