Resumo
Este artigo é resultado de uma pesquisa de pós-doutorado realizada com mulheres negras profissionais de saúde que atuaram nas linhas de frente da pandemia de covid-19 em Pernambuco, Brasil. Com o objetivo de compreender as experiências das profissionais a partir de suas trajetórias familiares, profissionais e de cuidado de si e dos outros, tendo como fio condutor o racismo, foram entrevistadas 14 mulheres de diversas formações em saúde. Foi utilizada a técnica de rede de afetos, em que elas indicavam outras mulheres que estivessem em seu ciclo de trabalho e/ou amizades. As entrevistas foram realizadas em formato online ou nos locais de trabalho das participantes. As análises foram embasadas nos conceitos de dispositivo de racialidade e racismo genderizado, revelando aspectos relacionados à precarização do trabalho, à exaustão e à solidão, ao apagamento de suas contribuições e à continuidade colonial nas relações institucionais e interpessoais no campo da saúde, que, de forma simbólica e material, atribui às mulheres negras funções vinculadas à servidão, elevada à potência máxima no contexto de crise sanitária mundial. O artigo traz uma contribuição para o campo de estudo sobre a saúde da população negra, ao mostrar a necessidade de autocuidado e cuidado institucional para com essas trabalhadoras, focados nas micropolíticas cotidianas de enfretamento ao racismo.
Palavras-chave:
Covid-19; racismo; cuidado; profissionais de saúde, mulheres negras
Introdução
A pandemia de Covid-19, um evento crítico nos termos atribuídos por Veena Das ( 2020 DAS, V. Encarando a Covid-19: Meu lugar sem esperança ou desespero. DILEMAS - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 13. p. 1-8, 2020. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-26 . Acesso em: 08 maio 2024.
https://www.reflexpandemia.org/texto-26... ), marcou drasticamente a sociedade global. A Antropologia contribuiu, com seu histórico de pesquisas em outras epidemias, para desvelar experiências marcadas pelo sofrimento e pelas desigualdades sociais, mas também apresentando iniciativas e resistências de pessoas afetadas pelo evento, como pode ser visto na coletânea Antropologias de uma pandemia (Maluf et al., 2024 MALUF, S. et al. Antropologia de uma pandemia: políticas locais, Estado, saberes e ciência na COVID-19. Florianópolis: Edições do Bosque, 2024. E-book. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/254302/Antropologias%20de%20um a%20pandemia_ebook.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 19 abr. 2024.
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/ha... ). No Brasil, país marcado por desigualdades estruturais intersectadas pela raça e pelo gênero, logo caiu por terra a ideia de que a pandemia atingia a todos(as) da mesma forma, que ela não tinha raça/cor, sexo, nem classe social. Em março de 2020, os jornais brasileiros estampavam a notícia da primeira morte oficial por covid-19, uma mulher negra, empregada doméstica, de 57 anos, moradora de São Paulo. Ao longo de suas fases, diversas pesquisas apontaram para as desigualdades raciais da pandemia, em que a taxa de mortalidade era maior entre a população autodeclarada negra (Rushovich et al., 2021RUSHOVICH, T. et al. As disparidades de sexo na mortalidade COVID-19 variam entre os grupos raciais dos EUA. Journal of General Internal Medicine, Berlin, v. 36, p. 1696–1701, 2021. DOI: 10.1007/s11606-021-06699-4
https://doi.org/10.1007/s11606-021-06699... ). Os dados apontam para continuidades históricas de desigualdades vivenciadas pela população negra, o que a insere nos piores índices de saúde (Dantas; Silva; Barbosa, 2022DANTAS, M. N. P; SILVA, M. F. S.; BARBOSA, I. R. Reflexões sobre a mortalidade da população negra por covid-19 e a desigualdade racial no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 31, n. 3, 2022. DOI: 10.1590/s0104-12902022200667pt
https://doi.org/10.1590/s0104-1290202220... ).
Pessoas negras morreram mais não por causalidades advindas da pandemia, mas porque foram as mais expostas ao perigo de contaminação, principalmente por ocuparem os empregos tidos como essenciais, como o trabalho doméstico e o trabalho na saúde. Durante a pandemia, os(as) profissionais de saúde tiveram grande atenção, principalmente os que atuaram na chamada linha de frente, considerados heróis/heroínas, mesmo que as condições de trabalho colocassem em xeque a dificuldade de resposta à altura dos(as) gestores(as) públicos. No Brasil, uma onda conservadora atuou contra as medidas sanitárias e propagou desinformação, tornando uma situação já difícil em algo pior. Era comum nos noticiários imagens de médicos(as) e enfermeiros(as) falando sobre as rotinas exaustivas de trabalho, sobre o medo, sobre o isolamento da família. Porém, os corpos que ocupavam esses espaços de fala e reconhecimento eram em sua maioria de pessoas brancas. Onde estavam as profissionais negras que compõem 53% da Enfermagem no Brasil? O que pensavam essas mulheres? Quais os atravessamentos da pandemia em suas vidas?
Guiadas por esses questionamentos, iniciamos a pesquisa “Quem cuida de mim: experiências de mulheres negras profissionais de saúde no contexto da pandemia da Covid- 19” 22Como resultado da pesquisa realizamos uma série de podcast intitulada “Quem Cuida de Mim” onde contamos histórias de 6 (seis) interlocutoras. Os episódios estão disponíveis em #1 “Quem cuida de mim?” Museológicas Podcast | Podcast on Spotify. , realizada entre agosto de 2021 e agosto 2022, com equipe composta por duas pesquisadoras e dois bolsistas de graduação. Participaram da pesquisa 14 mulheres autodeclaradas negras, com idades que variaram de 30 a 64 anos. As sujeitas da pesquisa são moradoras de Recife e da Região Metropolitana do Recife, em Pernambuco, que trabalhavam nos serviços públicos e privados de saúde no período da pandemia. Em relação às profissões, foram entrevistadas duas médicas, quatro enfermeiras, duas técnicas de enfermagem (sendo uma delas socorrista do Samu), três assistentes sociais, duas psicólogas e uma agente comunitária de saúde (ACS). Metodologicamente, foi utilizada a técnica de “rede de afetos”, em que as participantes indicavam outras mulheres que estivessem em seus ciclos de amizade ou profissional. As entrevistas foram realizadas de forma online e presencial, quando possível, pois havíamos acabado de voltar do lockdown e ainda perdurava o medo de contaminação. Nas entrevistas presenciais, seguimos os protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde, ainda assim persistindo o receio de estar em campo em instituições de saúde que eram referências em covid-19. Nosso objetivo era compreender as experiências dessas profissionais negras a partir de suas trajetórias familiares, profissionais e de cuidado de si, tendo como fio condutor o racismo.
O Brasil, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), foi o país onde mais morreram profissionais de saúde em decorrência da covid-19. Diante disso, interessava-nos saber como essas mulheres negras estavam lidando com a morte, com o medo do desconhecido, com o esgotamento físico, com os efeitos psicológicos e adoecimentos e com a solidão. As experiências dessas mulheres revelaram dimensões do racismo institucional e estrutural presentes no campo da formação educacional e da atuação profissional em saúde, mas, sobretudo, mostraram as dimensões micropolíticas do cotidiano, como os enfrentamentos internos em busca de autorreconhecimento, autovalorização e sobrevivência nas instituições de saúde, espaços marcados pela branquitude.
São justamente nessas dimensões micropolíticas que o debate de raça e gênero tem avançado timidamente, como aponta Grada Kilomba ( 2019KILOMBA, G. Memórias da Plantação. Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. ), ao afirmar que os estudos deram muita ênfase às macros perspectivas com foco nas estruturas políticas do racismo (Almeida, 2018ALMEIDA, S. O que é Racismo Estrutural? São Paulo: Letramento, 2018. Série Feminismos Plurais. ) e pouco na “realidade experienciada do racismo, nos encontros subjetivos onde as cicatrizes psíquicas têm sido negligenciadas” (Kilomba, 2019KILOMBA, G. Memórias da Plantação. Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. , p. 72). Para a autora, nessas grandes narrativas sobre racismo, a mulher negra continua ocupando o lugar de “sujeita incompleta”, o que leva ao seu silenciamento. Observamos isso nitidamente quando essas profissionais falaram sobre as estratégias de silenciamento, sobre nunca serem ouvidas, sobre precisarem que uma pessoa branca valide seu conhecimento ou confirme sua profissão, porque as mulheres negras não poderiam estar nos cargos de poder sem a validação de uma pessoa branca, porque sempre foram colocadas em profissões diversas, menos naquelas responsáveis por salvar vidas.
Para maior compreensão dos argumentos levantados a partir dos dados da pesquisa, o artigo foi dividido em três partes complementares. Na primeira parte, apresentamos o lugar das mulheres negras profissionais de saúde durante a pandemia e as consequências do racismo genderizado em suas experiências de trabalho. Na segunda, mobilizamos o conceito de dispositivo de racialidade para mostrar a continuidade colonial presente nas relações institucionais e interpessoais que reforçam o estigma de “servidão” para com as mulheres negras. No terceiro e último, por meio da pergunta “quem cuida de mim?”, trabalhamos aspectos relativos à solidão dessas mulheres durante a pandemia, à necessidade de autocuidado e às relações de afetação na realização da pesquisa.
As linhas de frente na pandemia e o racismo genderizado
Pesquisas internacionais que cruzaram gênero e raça para compreender a mortalidade por covid-19 mostraram que os dados iniciais, que apontavam maior prevalência entre homens, eram mais complexos do que se pensava. Homens negros eram maioria entre grupos raça/sexo, mas, quando se analisava os dados interseccionados, as mulheres negras morriam mais do que os homens brancos e do que as mulheres brancas (Rushovich et al., 2021RUSHOVICH, T. et al. As disparidades de sexo na mortalidade COVID-19 variam entre os grupos raciais dos EUA. Journal of General Internal Medicine, Berlin, v. 36, p. 1696–1701, 2021. DOI: 10.1007/s11606-021-06699-4
https://doi.org/10.1007/s11606-021-06699... ). O feminismo negro alertou para a necessidade de análise interseccional (Collins; Bilge, 2021COLLINS, P. H.; BILGE, S. Intersecconalidade. São Paulo: Boitempo, 2021. ; Akotirene, 2019AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Polen, 2019. Série Feminismos Plurais. ), uma vez que as dimensões de poder e opressão estruturam os riscos de diferentes formas. Dados de pesquisas no Brasil mostraram que a profissão em saúde foi a terceira em que mais morreram profissionais durante a pandemia (Silva, 2022SILVA, A. C. R. “O cuidado negro”. Mulheres negras profissionais da/na saúde no contexto da Pandemia da Covid-19. Novos Debates, Brasília, DF, v. 8, n. 1, e8103, 2022. DOI: 10.48006/2358-0097/V8N1.E8103
https://doi.org/10.48006/2358-0097/V8N1.... ). No entanto, é preciso um olhar crítico e interseccional para compreender, por exemplo, que há um processo de feminilização (70% das profissionais de saúde são mulheres) e de racialização da profissionalização em saúde, composta em sua maioria por mulheres negras e jovens.
Essa realidade demonstra que há uma divisão sexual no trabalho em saúde já abordada em algumas pesquisas (Lotta et al., 2020 LOTTA, G. et al. Nota Técnica. A pandemia de COVID-19 e (os)as profissionais de saúde pública: uma perspectiva de gênero e raça sobre a linha de frente. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2020. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/documento/pandemia-de-covid-19-e-osas-profissionais-de-saude-publica-uma-perspectiva-de-genero-e . Acesso em: 20 out. 2023.
https://portal.fiocruz.br/documento/pand... ), mas essa constatação não é suficiente para compreendermos o fato de que, entre os profissionais de saúde que mais morreram, a maioria era mulheres negras. Por isso, precisamos falar sobre a divisão racial do trabalho em saúde. Segundo pesquisas da Fundação Getúlio Vargas (Silva, 2022SILVA, A. C. R. “O cuidado negro”. Mulheres negras profissionais da/na saúde no contexto da Pandemia da Covid-19. Novos Debates, Brasília, DF, v. 8, n. 1, e8103, 2022. DOI: 10.48006/2358-0097/V8N1.E8103
https://doi.org/10.48006/2358-0097/V8N1.... ), as profissionais de saúde negras foram as mais afetadas pela pandemia. Por outro lado, no topo da pirâmide, o homem branco profissional de saúde possui os menores índices de impactos com a covid-19, e isso é um bom exemplo do racismo genderizado e do privilégio racial. Se todos(as) os(as) profissionais de saúde enfrentaram condições adversas para combater a covid-19, como a falta de estrutura e de treinamentos, as mulheres negras enfrentaram situações ainda piores.
Em Pernambuco, onde foi realizada nossa pesquisa, entre os(as) profissionais de saúde que foram afetados(as) pela Covid-19, mais de 70% eram mulheres, porém não há registro de dados por raça/cor, o que invisibiliza o olhar para as questões raciais. Entre as profissões afetadas, no topo estavam as auxiliares e técnicas de enfermagem (26%), em seguida enfermeiras (11%), biomédicos (7,7%) e, por fim, os médicos (7,6%) (Covid-19 […], 2020 COVID-19: mortalidade entre profissionais da Saúde em PE é de 0,35%. Folha de Pernambuco, [s. l.], 2020. Disponível em: https://www.folhape.com.br/noticias/pernambucoregistra-1384-novos-casos-e-57-mortes-pela-covid-19/147265/ . Acesso em: 8 maio 2024.
https://www.folhape.com.br/noticias/pern... ). Esses dados vão ao encontro dos apresentados por nossas interlocutoras de pesquisa e têm relação direta com a hierarquização das profissões de saúde, uma vez que quem estava em contato direto nos cuidados aos pacientes com covid-19 eram as profissionais da enfermagem e as agentes de saúde, afinal, são as que realizam o cuidado perigoso (Pimenta, 2019PIMENTA, D. O cuidado perigoso: tramas de afeto e risco na Serra Leoa (A epidemia do ebola contada por mulheres, vivas e mortas). 2019. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. ). Entretanto, as que mais se expunham aos riscos foram também as que menos tiveram acesso a treinamentos e equipamentos de proteção individuais (EPIs) (Lotta et al., 2020 LOTTA, G. et al. Nota Técnica. A pandemia de COVID-19 e (os)as profissionais de saúde pública: uma perspectiva de gênero e raça sobre a linha de frente. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2020. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/documento/pandemia-de-covid-19-e-osas-profissionais-de-saude-publica-uma-perspectiva-de-genero-e . Acesso em: 20 out. 2023.
https://portal.fiocruz.br/documento/pand... ). O foco no profissional médico(a) hegemônico(a), branco(a) de classe média, dado pela mídia, apaga as experiências das que não foram consideradas da linha de frente, como relata uma agente comunitária de saúde (ACS), mulher negra, interlocutora da nossa pesquisa:
[…] nessas horas a gente é psicólogo, a gente é médico, a gente é enfermeira, a gente sempre tem um turno extra. Isso é à noite, é de madrugada, na Covid mesmo, muita gente veio me procurar. (…) Aí, assim, capacitação a gente teve, mas era online, a gente teve, mas quem teve mais foi o nível superior . A enfermeira e a médica , a gente teve não, teve muito não, agente de saúde não teve muito não, mas o trabalho foi muito.
(ACS, 2021, grifo nosso)
As linhas de frente da saúde no Brasil têm cor e gênero, porém, apesar de maioria, as mulheres negras ocupam os cargos mais baixos na hierarquia das profissões, assim como nos cargos de decisão política e de gestão. No momento da realização da pesquisa, quatro das nossas entrevistadas ocupavam cargos de chefia, duas como enfermeiras chefes, responsáveis por unidades de atendimento à covid-19, e duas atuando em comando de equipes interdisciplinares em hospitais de campanha ou referência em covid-19. Suas experiências mostram o quanto é difícil para uma profissional de saúde negra realizar seu trabalho, pois esse é sempre colocado em suspensão. Isso pode ser compreendido por meio da separabilidade moderna, que, segundo Denise Ferreira ( 2022FERREIRA, D. Homo Modernus: para uma ideia global de raça. Rio de Janeiro: Cobogó, 2022. ), coloca a sujeita negra na lógica da obliteração, reafirmando a imagem de alguém definido(a) pela falta de capacidade, como as narrativas abaixo mostram:
Eu senti muito quando eu cheguei para assumir o cargo de enfermeira, porque houve uma rejeição muito grande que a gente não espera que aconteça isso na rede pública, a gente espera acontecer isso na rede privada. E eu tive muita dificuldade de aceitação, tanto da parte de nível médio, como com alguns colegas que não aceitam, porque a mulher negra, você é… aquilo que eu acabei de falar, você tem que tá provando o tempo todo que você é boa. E as pessoas, muitas vezes, elas nem percebem que é racismo, mas elas tentam o tempo todo, colegas mesmo, enfermeiros, elas tentam o tempo todo desvalorizar a tua fala. Eu sei o quanto é difícil para gente que é negro assumir cargos de líderes, a aceitação é muito difícil, né? . (Enfermeira Chefe, 2021)
[…] inclusive eu tive um caso de assédio essa semana, fiquei super mal. Pelo simples fato de reivindicar mesmo, reivindicar um direito que é nosso, o direito de poder trabalhar, o direito de ser médica, de ser a pessoa que vai decidir o que é que vai ser feito com o paciente e o que não vai ser feito, isso é conduta médica. Os brancos, eles dizem: “Eu que sou médico aqui” e pronto. Ninguém vai questionar nada, eu já escutei relatos de várias pessoas nesse mesmo serviço que eu trabalho dos absurdos que são feitos pelos médicos brancos mais antigos, que estão lá há mil anos e aí o povo conta como piada. No meu caso, foi um rebuliço dentro do hospital, mais uma vez estou lidando com o fato de ser o patinho feio do serviço, apesar de ser o patinho mais querido, em tese. É isso .
(Médica, 2021)
Essas narrativas revelam as artimanhas do racismo genderizado: no geral são homens brancos ou mulheres brancas desconsiderando o conhecimento de mulheres negras que possuem autoridade para estarem exercendo a profissão. Como nos informa Rosana Castro ( 2022CASTRO, R. Pele negra, jalecos brancos: racismo, cor(po) e (est)ética no trabalho de campo antropológico. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 65, n. 1, 2022. DOI: 10.11606/1678-9857.ra.2022.192796
https://doi.org/10.11606/1678-... ), o jaleco branco numa pele negra não é garantia de autoridade. Não importa se essas profissionais estão paramentadas iguais aos(às) outros(as) profissionais, elas ocupam sempre o lugar de incompletude, seja na condição de chefia ou em cargos subalternizados. Dessa forma, não há justificativa outra para as desigualdades nos tratamentos a não ser o racismo, que, no Brasil, como nos ensina Lélia Gonzalez ( 2020GONZALEZ, L. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio Janeiro: Zahar, 2020. ), pode ser definido como a “neurose brasileira” e se dá por omissão. O racismo está no inconsciente e é cotidianamente reiterado nas práticas sociais mais triviais. No caso da saúde, a negação da sujeita negra e de seu conhecimento ocorrem por meio da necessidade de validação do conhecimento por pessoas brancas.
É… [pausa longa]. As minhas experiências não foram fáceis não. Eu tenho uma sensação de sempre… E eu preciso dizer, porque é para uma pesquisa, […] e eu já escutei isso de outros pares negros, sabe? […] Eu me sinto o tempo inteiro sendo observada, sendo avaliada, inclusive em qualquer contexto que seja, é como se eu precisasse produzir mais, a cobrança fosse maior, a chance de erro fosse mais fatal para mim, a consequência do erro. Eu também sinto que a flexibilidade em relação a mim é menor, a flexibilização das coisas. Em todas as experiências de trabalho, eu me deparei com algumas questões delicadas, que eu já falei, assim, né? “Será que é uma coisa da minha cabeça? Será que sou eu que sou difícil?” .
(Psicóloga, 2021)
Além da validação do conhecimento, há a construção social de ver pessoas brancas sempre nos cargos mais altos. E quando isso se reflete em um cargo que tem em suas mãos a vida de outras pessoas, causa um choque, pois foi construída socialmente a negação de acesso às mulheres negras a cargos de lideranças. Por outro lado, ficou evidente, no campo, o esforço feito por essas mulheres para exercerem suas funções e combater a rejeição que é cotidiana e não esporádica. O controle de seus corpos é muito maior, porque existe a cobrança social de ter que provar que sabe. Então, a liderança torna-se mais cansativa, e seus títulos de especialização e mestrado não são suficientes para o respeito e o reconhecimento no exercício de suas profissões.
Primeiro que você precisa ter uma postura muito… um arquétipo bem arqueado, digamos assim, para se ter respeito, mas não é fácil, principalmente na minha área. Na área de saúde, que é uma área muito aristocrática, é uma área de branco, não é uma área de negro e a profissão de enfermeira, ela deixa de forma intrínseca a condição de você ser um líder, você já tem que se formar entendendo que você vai ter liderança, mas nem sempre exercer essa liderança é possível. Eu tenho alguns títulos para exercer essa liderança , eu levo o nome de sargento, levo o nome de tanta coisa, eu sou extremamente estigmatizada principalmente no (nome ocultado). […] Impressionante isso, as pessoas no ambiente normal, médicos, a grande maioria dos médicos, não me reconhecem, não me tratam como profissional, eu vejo claramente isso, que o tratamento é diferenciado com as enfermeiras brancas. O convite para as visitas clínicas que acontecem todos os dias, dificilmente eu sou convocada. Não reconhecem meu saber, meu conhecimento.
(Enfermeira chefe, 2021, grifo nosso)
Percebemos, ainda, que essas mulheres se cobram no jeito de se vestir, porque precisam estar sempre arrumadas, de salto, não importa o tempo que o plantão dure. E se assumem uma estética diferente da esperada para o cargo, como, por exemplo, o uso do cabelo black , muitas portas são fechadas. Uma enfermeira/interlocutora expôs suas estratégias cotidianas que refletem o contínuo colonial ainda presente nas relações de trabalho que envolvem as mulheres negras:
Uma certa vez, eu fui beber água no estar médico e aí chegou uma família, essa família … Eu tava paramentada do mesmo jeito que todo mundo está, porque era uma roupa única, hoje que eles selecionam classe por cor. Eram duas mulheres, quando uma perguntou informação sobre paciente, eu nem abri a boca e ela falou: “Ela é da limpeza”, pelo fato de você ser negra e uma das coisas que você sempre vai me ver, que eu tenho muito cuidado, eu sempre vou estar de salto, eu nunca tiro o salto porque eu tenho certeza que com salto as pessoas ainda vão ter dúvida, porque se eu tiver com rasteirinha, as pessoas sempre vão me identificar como da limpeza. Infelizmente isso aqui para mim é estratégico, você não me vê sem salto, todo mundo sabe que, aonde me ver, eu vou, eu vou estar com salto, mas é estratégia para as pessoas perceberem que, se eu tiver limpando o chão, eu não vou tá de salto. Porque as pessoas vão te confundir sempre como alguém que é da limpeza .
(Enfermeira, 2021)
E, nesse relato, não há como não relacionar o fato de, no passado escravista, a primeira coisa que os escravizados(as) adquiriam quando libertos eram sapatos, símbolos de status e definidores de lugar social. Estar sempre no salto não é apenas uma questão estética, mas uma estratégia de sobrevivência.
Do dispositivo de racialidade em saúde: o estigma da servidão
Para Sueli Carneiro ( 2023CARNEIRO, S. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. ), a noção de dispositivo de racialidade oferece recursos teóricos com capacidade compreensiva das práticas racistas e da discriminação racial no Brasil. O dispositivo instala, por meio de determinados saberes, em um campo de poder, efeitos de enunciação sobre o outro. Para nosso propósito aqui, o dispositivo tem operado para a construção de imagem das mulheres negras no campo da saúde como “seres destinados a servir”. O jogo de poder ora opera permitindo que um grande contingente de pessoas negras ocupe os espaços da saúde como mão de obra para execução de determinadas funções, ora atua impedindo o acesso aos cargos no topo da hierarquia das profissões.
Nesse sentido, o trabalho em saúde passa pelo crivo do racismo genderizado e, quanto maior a hierarquia nessas profissões, mais esse trabalho é questionado, além de quanto menos valorizada é a ocupação, mais se naturaliza esse “trabalho/servidão”. Não é à toa que a maioria das interlocutoras da pesquisa apontaram a educação como caminho para romper um histórico de profissões ligadas à subalternização. Elas investiram na carreira para ultrapassar o quase sempre destino da mulher negra de ocupar o lugar da “empregada doméstica”. Mas a educação por si não é suficiente, pelo menos nos moldes atuais, pois, como demonstrou Suely Carneiro ( 2023CARNEIRO, S. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. ), houve um verdadeiro apagamento desses sujeitos (negros e indígenas) no que concerne a suas contribuições epistemológicas. No caso da pandemia, nossa pesquisa mostrou que há um legado deixado por essas mulheres referente a seus esforços em salvar vidas, em seu poder de liderança, de acolhimento e de resiliência, mas que não são reconhecidos.
Para Lélia Gonzalez ( 2020GONZALEZ, L. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio Janeiro: Zahar, 2020. ), o privilégio racial é a base para compreendermos as desigualdades no Brasil, e esse privilégio conforma as relações de trabalho na saúde. E, como apontam nossas interlocutoras, é difícil romper com o “imaginário da doméstica”. Em termos simbólicos/práticos, mesmo que elas cheguem ao topo das profissões em saúde, a Medicina, elas serão colocadas nesse lugar de domésticas, confundidas com várias outras funções, porém nunca identificadas como médicas. O não lugar é um enfretamento cotidiano para as mulheres negras que sobem na hierarquia das profissões de saúde.
Por que a gente tem uma sociedade no que essa estrutura é racista, mas assim… O que é nítido, né? O impressionamento da pessoa, quando eu dizia que estudava Medicina e tudo, porque impacta e choca, porque você realmente não espera, né, de um corpo negro de uma mulher assim. Principalmente de uma mulher negra tá ocupando esse lugar, então até ser surpresa é uma expressão do racismo em nossas vidas. E até hoje, sim, enfrentamento sociais de racismo, sobre eu nunca ser identificada como médica quando eu estou dentro dos meus locais de trabalho. As pessoas olham e ficam procurando, não querem ver e durante muito tempo, né, era a desculpa do “Ah, porque você é muito nova, eu não pensei que já fosse médica”, aí depois eu fui compreendendo cada vez mais que é a questão racial pesando muito nessa identificação como profissional. Percebo hoje em dia nos lugares que eu trabalho, eu já tenho dez, nove anos de trabalho nesses lugares, que eu me formei em 2011, mas, assim, no começo enfrentei muita dificuldade em questão de autoridade, de hierarquia, das pessoas respeitarem os meus comandos e questionarem, então. Os outros profissionais de saúde, eu sentia que comigo tinham questionamento: “É isso mesmo para fazer?” Sabe? E vem disso da insegurança das pessoas que a gente é capaz de tá ocupando aquele posto .
(Médica, 2021)
No que concerne às condições desiguais das profissionais negras na saúde no contexto da pandemia, o dispositivo de racialidade operou mostrando como elas partem de lugares diferentes de profissionais brancas e isso moldou as condições de enfretamento da Covid-19, como podemos observar na narrativa da enfermeira que trabalhou na linha de frente:
Então, eu não pude me dar o luxo de ficar em casa, eu peguei Covid, eu pedi a Deus para não pegar Covid, mas nossa UTI é referencial em Covid e eu pedindo a Deus para não pegar Covid, porque eu precisava trabalhar. Hoje, o meu salário, o salário de uma enfermeira do Estado, é dois mil reais, então, se eu paro de trabalhar, eu não tenho renda para pagar minhas contas, não fecha, né? [….] Então, eu tenho que trabalhar, eu tenho que trabalhar, pegar minha renda, pagar as despesas mensais, então eu não tive o luxo de poder parar de trabalhar, eu só parei realmente quando eu adoeci. Eu tive Covid, fiquei em casa oito dias, que para mim foi um prejuízo financeiro, mas fiquei em casa oito dias, me isolei da família, me isolei das minhas filhas.
(Enfermeira, 2021).
Novamente, a divisão racial do trabalho revela um dispositivo que privilegia os e as profissionais brancas que estão em cargos mais valorizados e que possuem condições de manutenção da vida marcadas pelo privilégio branco. Nesse sentido, o racismo não é apenas um operador simbólico, ele atua na materialidade, na manutenção básica da existência de mulheres negras.
Eu levo duas horas para me deslocar da Guabiraba para Jaboatão Centro. Então, ao invés do plantão de oito, todo dia eu dou plantão de doze, porque duas horas para ir e duas horas para voltar. Além de deslocamento, eu trabalho 70 horas semanais, porque eu preciso ter dois empregos para me manter . (Enfermeira, 2021)
Eu pego o ônibus, pego ônibus e pego metrô para chegar aqui. Geralmente eu passo uma hora, quando não tem trânsito pesado. Quando é o horário de pico, eu passo uma hora e meia, duas horas para chegar. Eu vou e volto em pé, já chego cansada . […] Mas era o uso da máscara o tempo todo, estou com álcool aqui na mão sempre, estou fazendo higiene, mas como ter essa garantia, essa segurança, se eu estou direto no transporte público? Se eu pego metrô e ônibus para chegar aqui, por exemplo. .
(Psicóloga, 2021)
Outro aspecto relacionado às condições assimétricas marcadas pelo racismo genderizado refere-se ao fato de que muitas mulheres negras no campo da saúde são arrimo de família. Por conta disso, elas precisam trabalhar em vários empregos, dar muitos plantões e mesmo assim não conseguem ter uma vida confortável.
A maioria das profissionais de saúde são separadas dos maridos, a maioria mulheres, separadas e chefe de família, entendeu? Se você fizer uma pesquisa aqui, a maioria são mulheres e muitas sofrem violência, eu escuto os relatos, são chefes de família, são mulheres com idade mais avançada que faz: “Por que você não se aposenta?” Aí porque ela tem empréstimo, porque sustentam netos, sustentam uns filhos. É uma questão financeira mesmo . […] Mas a gente não quer só aplausos, a gente quer o reconhecimento financeiro, porque é o que faz a gente morrer, ter um AVC, porque a maioria são mulheres, chefes de famílias. É o que faz a gente morrer.
(Enfermeira, 2021, grifo nosso)
Entrevistamos mulheres com formações e atuações distintas dentro do campo da saúde e não seria justo afirmar que existe uma simetria entre elas, mas, mesmo no seio da psicologia e do serviço social, ser mulher negra é sempre um desafio em termos de representatividade e oportunidades de manutenção material da existência. Duas de nossas interlocutoras tinham mais de 60 anos e o que poderia ser um processo de finalização da carreira com uma aposentadoria tranquila, tornou-se um problema. Tanto por elas serem esse arrimo, quanto por assumirem também uma responsabilidade em termos políticos e sociais em prol dos direitos da população negra. Como no caso da assistente social que trabalha em um hospital de referência no atendimento à violência contra a mulher, sendo ela uma das responsáveis pela implementação dessa política, ou no caso da psicóloga que atuou na gestão pública de implementação da política de saúde da população negra, além de lecionar em uma universidade particular e realizar atendimentos clínicos particulares.
Corroborando com o que foi dito no início deste artigo, não foram as condições da pandemia que colocaram negros e negras ocupando os maiores índices de morbimortalidade, mas as condições estabelecidas historicamente, que colocam mulheres negras como um segmento que está na base da pirâmide social. É o que nos faz morrer dia a dia uma morte lenta, afinal esses corpos estão inscritos no signo da morte (Carneiro, 2023CARNEIRO, S. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. ; Ferreira, 2022FERREIRA, D. Homo Modernus: para uma ideia global de raça. Rio de Janeiro: Cobogó, 2022. ). Se as pessoas negras são as que mais cuidam, por contraditório também são as que mais morrem. Nesse sentido, é preciso fazer a pergunta: quem cuida de quem cuida?
Quem cuida de mim? solidão, autocuidado e afetação em campo
No que se refere ao Estado, as instituições de saúde pouco ou nada fizeram para mitigar os efeitos advindos do exercício de uma profissão marcada pelo excesso de trabalho, pelo esgotamento físico e psicológico e pela exaustão (Franch et al., 2024 FRANCH, M. et al. Da prontidão à exaustão: a experiência entre tempos de mulheres trabalhadoras na crise da Covid-19. In: MALUF, S. et al. Antropologia de uma pandemia: políticas locais, Estado, saberes e ciência na COVID-19. Florianópolis: Edições do Bosque, 2024. p. 21-46. E-book. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/254302/Antropologias%20de%20uma%20pandemia_ebook.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 19 abr. 2024.
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/ha... ). A pandemia agravou um quadro já precário das condições de saúde mental das trabalhadoras em saúde. Todas as nossas interlocutoras apresentaram quadros de ansiedade, insônia, burnout , e uso de medicamentos, como antidepressivos, durante e após a pandemia.
Não procurei profissional, mas eu tive bastante insônia, tive muito medo, chorei muito, chorei muito só, e aquilo, tinha aquele medo, aquela angústia, mas eu tinha que me mostrar forte para minhas filhas. Então, assim, eu tive os meus medos, mas os meus medos eu não compartilhei, eu não compartilhei. Muitas vezes eu ficava angustiada só no quarto, dentro do meu quarto, achando que todo mundo iria morrer, mas eu não compartilhava, esse medo não foi compartilhado, não procurei profissional. (Enfermeira chefe, 2021)
Então, eu tive um AVC em plena pandemia e o AVC eu tive em casa, fui pro neurologista, cardiologista, consegui reverter, foi um AVC transitório, isquêmico transitório. Não fiquei com sequela, fiquei com sequelas discretas no rosto, mas fiz fisioterapia, tudo virtual, que foi bem difícil, mas acho que me ajudou a questão de ser enfermeira e compreender exatamente os movimentos. Fui para o psiquiatra, comecei a iniciar um tratamento cardiológico, psiquiátrico, terapia, mas, desde então, tudo isso aconteceu comigo . (Enfermeira chefe, 2021)
Eu usei Citalopram e Rivotril, tive crise de ansiedade, eu fui levada para o hospital, quando eu falei que eu tive colapso ansioso, eu entrei assim. E a crise de ansiedade era taquicardia, dispneia e falta de ar e aí você já imagina, né (risos). E aí tomei Citalopram, Rivotril para crise de ansiedade. Aí eu precisei fazer psicoterapia, ansiosa porque eu tava trabalhando muito, aí eu comecei a entregar pouco no trabalho, por isso que eu precisei sair de um serviço para poder ser 100% nos dois, senão eu ia ficar 30, 20 em um e ia acabar não entregando o que o paciente merecia. Aí fiquei ansiosa e fiz psicoterapia e terapia medicamentosa.
(Enfermeira, 2021)
Os relatos dessas profissionais nos levam a refletir sobre o processo de silenciamento muitas vezes oriundo da introjeção do papel de heroínas, de fortalezas. Elas cuidam de todos(as), mas falta tempo para o cuidado de si, deixado quase sempre em último plano. Quando, durante as entrevistas, fazíamos a pergunta “quem cuida de você?”, muitas vezes havia o silêncio ou a resposta imediata era que a responsável pelo cuidado era ela mesma, o relato da médica/interlocutora explica melhor o que queremos apontar:
Vai ser difícil responder essa, difícil mesmo entender quem cuida de mim, eu cuido de todo mundo, de todas as pessoas da minha família. Por exemplo, na festa de formatura, eu cuidei do sapato até o penteado de todas as mulheres da minha família, e aí é essa família mais próxima, são quinze pessoas, cuidei de todo mundo, eu paguei de todo mundo, ainda teve as outras pessoas que foram que eu também cuidei, tive que escolher vestido, escolher isso, escolher aquilo, financiar e tudo mais, aí chegou um momento no dia da minha colação de grau, eu cheguei atrasada, porque eu tava sozinha para vestir minha roupa, no outro dia, no dia do baile de formatura, tinha uns amigos aqui, então todo mundo me ajudou, a colação como eu não tinha focado muito, até isso eu precisava escalar alguém pra poder tá aqui comigo, então não rolou isso, porque não deu tempo de eu escalar alguém pra ficar comigo. […] Aí eu olhei assim, eu disse: “meu Deus do céu, no final das contas sou eu mesmo”. […] mas dizer mesmo que tem alguém ali que cuida, não! Até quando a gente assume um relacionamento é isso, você tá naquele papel de cuidado o tempo inteiro, então isso foi um dos motivos da separação, porque a gente tá ali sempre cuidando muito de alguém e alguém na hora de cuidar mesmo de você, claro que tem um cuidado, mas eu tô falando dessas relações que a gente tem com as pessoas, então dificilmente tem alguém que vai ter esse cuidado com a gente, aí antes eu dizia: “ah, não, mas é coisa da gente mulher negra”, mas existe mulheres negras e mulheres negras, então apesar desse contexto da gente ter uma vivência muito… dos atravessamentos muito parecidos, próximos no sentido geral, mas a gente também tem também aquelas mulheres negras que são as peça de ferro, que são aquelas que vêm acompanhadas dessa coisa da força […] , então acho que pensar nesse todo faz com que a gente se sinta sozinha e com que a gente não tenha uma pessoa de referência assim para dizer “essa pessoa realmente cuida de mim”, é tudo muito coletivo, e aí, em alguns momentos em específico, fica a desejar, mesmo tendo tanta gente, mas ainda assim falta alguém.
(Médica, 2021)
O servir das mulheres negras, que vem desse corpo colonizado, coloca-nos no lugar de peças de ferro, em que tudo deve ser suportado, tanto nas relações interpessoais, quanto nas relações institucionais. Analisando o caso da pandemia, quem cuidou dessas profissionais? Quais são os cuidados advindos dos(as) empregadores(as)? Quem cuida/ou de quem cuida? Quem vai pagar a conta das sequelas de uma pandemia na qual milhares de vítimas foram acometidas? E como tudo isso afetou o corpo profissional? Quem vai pagar a conta? Como nos relata a enfermeira chefe:
Aqui foi bastante pesado, perdemos muita gente, perdemos muito pacientes com Covid, pacientes jovens que não tinha outra patologia. Às vezes, até tinha uma hipertensão, mas não tinha nenhuma outra patologia e morreram por Covid, a gente teve uma demanda muito grande de óbito, começou a ver que pessoas conhecidas que estavam morrendo, pessoas próximas. Porque no início eram números, depois começou a ser nomes, colegas indo embora e ter que continuar e ter o psicológico, na verdade, não foi fácil, tem que ter o psicológico para continuar .
(Enfermeira chefe, 2021)
A entrevista com essa enfermeira foi bem emocionante, porque primeiro havia o medo de acessar o hospital depois de uma pandemia em que milhares de pessoas morreram, sentir a angústia da profissional de saúde que falava de suas feridas, a dor da morte e seus rituais, do desespero da família ser atingida e o questionamento que, na ausência da mãe, que é única cuidadora da família, quem assume? O afastamento da família nos fez perceber que a necessidade de vínculos se acostava na cura dos(as) pacientes, então cada morte, cada emergência, tornou-se afetação, especialmente com quem se construiu mais laços de afetividade, e, no fim, a solidão tomou conta, junto sempre à narrativa social do cuidado, do servir e do “no fim estamos sós”.
A afetação não ocorreu apenas entre pacientes e profissionais de saúde, mas também por parte das pesquisadoras. Sendo mulheres negras pesquisando junto a outras mulheres negras, foi impossível não fazer comparações com nossas próprias trajetórias, comuns também a tantas outras. Nesse sentido, Silva ( 2022SILVA, A. C. R. “O cuidado negro”. Mulheres negras profissionais da/na saúde no contexto da Pandemia da Covid-19. Novos Debates, Brasília, DF, v. 8, n. 1, e8103, 2022. DOI: 10.48006/2358-0097/V8N1.E8103
https://doi.org/10.48006/2358-0097/V8N1.... ) fala da necessidade de trazer a questão racial para pensarmos o cuidado de si e o cuidado dos(as) outros(as). Há um processo coletivo característico do cuidado negro ligado à sobrevivência coletiva que é importante (Collins et al., 2019COLLINS, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019. ) e aparece no relato de uma das médicas entrevistadas. Entretanto, não podemos negligenciar o fato de que, dentro desse coletivo, as mulheres negras ainda continuam sendo esse corpo atravessado por várias opressões e até mesmo as “peças de ferro” precisam de cuidado.
Muito se fala sobre a solidão das mulheres negras, sobre a construção social de não serem destinadas ao amor (hooks, 2010) e a pandemia foi esse momento em que a solidão chegou com toda força. Três de nossas interlocutoras se separaram durante a pandemia, outras revelaram a solidão mesmo estando na presença de companheiros e familiares, afinal, havia sempre o medo pairando nas relações. Há um contínuo colonial que perpassa a experiência de ser mulher negra no Brasil e a solidão é uma das consequências, como foi apontado por bell hooks ( 2020hooks, b. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2020. ) e Franz Fanon ( 2020FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. São Paulo: Ubu, 2020. ).
E, quando analisamos o campo da saúde e as experiências dessas profissionais, constatamos que o processo colonial que subalternizou esses corpos ainda se faz presente e mistura emoção e trabalho. As condições precárias em termos de salários, carga horária de trabalho e tempo para cuidado de sua saúde física e mental caminham junto às condições de solidão e de apagamento dessas sujeitas. Pessoas negras foram referência em cuidado em saúde, mas as engrenagens de uma ordem moral, econômica e racista excluíram/apagaram esse protagonismo. Quando se institucionalizou a prática da Enfermagem no Brasil, mulheres negras foram impedidas de participar desse processo de formação, a Medicina sempre foi uma profissão de elite e, até hoje, apenas 20% dos(as) médicos(as) formados(as) no Brasil são negros(as). A população negra era estimulada à formação técnica, e, não por acaso, técnicas e auxiliares de enfermagem são majoritariamente negras.
Considerações finais
A pesquisa com profissionais negras nos levou a diversos caminhos, o principal foi compreender como os corpos dessas mulheres entraram e saíram da pandemia, nos impondo a pergunta: quem cuida de quem cuida? Identificamos que ainda há diversas feridas coloniais que precisam ser cuidadas. É preciso pensar o autocuidado dessas mulheres e as estratégias utilizadas para sobreviver em um ambiente ainda racista, que tenta colocar esses corpos em lugares subalternizados, de “servidão”, elevando as experiências de pessoas brancas como universais (Bento, 2022BENTO, C. Pacto da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. ) e as das mulheres negras como específicas. Nesse processo, tudo que as pessoas brancas fazem tem proporções maiores e o trabalho realizado pelas profissionais negras não é percebido. Apesar de estarem nos holofotes da pandemia, o amparo que essas profissionais tiveram durante o período veio de grupos autônomos de psicólogas e psicólogos negras(os), que identificaram a necessidade de atendimento, uma vez que muitas pessoas negras perderam empregos, e a primeira coisa que se deixa de lado é o cuidado com a saúde mental. Assim, conforme a interlocutora Jesus Moura, criou-se uma rede de profissionais de diversos lugares do Brasil para atender online e de forma gratuita pessoas que precisavam de atendimento psicológico. Várias delas relataram o aumento da solidariedade entre os(as) profissionais de saúde, como, por exemplo, ceder casa para montar um “QG”, na impossibilidade de voltarem às suas próprias casas, e no cuidado com os(as) profissionais contratados, com os(as) novatos(as), para atuar na pandemia. Mas tudo isso partiu delas, “nós por nós”, como falavam, e não por iniciativas de gestores(as). Um relato comum nas entrevistas foi o medo de morrer, de contaminar a família e o preconceito que se construiu com os(as) profissionais de saúde. Todas elas relataram algum episódio de discriminação, inclusive por seus familiares, e, em alguns casos, houve exclusão total de contatos, acirrando o processo de solidão.
Pensar a pandemia pelo prisma das profissionais negras abre várias possibilidades reflexivas em torno de temas importantes para o campo da saúde, como a racialização do trabalho em saúde, mostrando que as linhas de frente se configuraram também como uma frente negra, uma vez que os cuidados diretos eram realizados por profissionais da Enfermagem, composta majoritariamente por mulheres negras. Nesse sentido, precisamos problematizar as condições materiais de sobrevivência dessas mulheres que vivenciam condições desumanas no exercício de suas profissões, a exemplo da excessiva carga de trabalho antes, durante e após a pandemia e os baixos salários pagos ao setor de Enfermagem. Foi durante a pandemia que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do piso nacional da Enfermagem ganhou notoriedade, sendo aprovada em 2022, após muita luta e mobilização da categoria, e, mesmo assim, ainda encontra dificuldade de implementação em vários estados.
Acionar o conceito de dispositivo de racialidade para analisar o campo da saúde nos ajudou a entender as engrenagens do racismo genderizado e das interseccionalidades sobrepostas nas experiências dessas profissionais. Se o contínuo colonial as colocam como sujeitas incompletas, são suas experiências de resistências que afrontam cotidianamente o racismo presente nas instituições e nas relações interpessoais. Em termos de cuidados dos outros, elas entregam seu melhor, mas não se contentam com elogios e almejam ações efetivas, afinal “ a gente não quer só aplausos, a gente quer o reconhecimento financeiro, porque (sua falta) é o que faz a gente morrer ” (Enfermeira, 2021).
Agradecimentos
Agradecemos a todas as profissionais de saúde que participaram da pesquisa, a pesquisadora Ana Carla Lemos e aos bolsistas de apoio acadêmico Felipe Bernado e Allyn Pietro.
Referências
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- 1Pesquisa de pós-doutorado realizado na Universidade Federal da Paraíba sob a supervisão da Dra. Ednalva Neves.
- 2Como resultado da pesquisa realizamos uma série de podcast intitulada “Quem Cuida de Mim” onde contamos histórias de 6 (seis) interlocutoras. Os episódios estão disponíveis em #1 “Quem cuida de mim?” Museológicas Podcast | Podcast on Spotify.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
20 Dez 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
13 Maio 2024 - Aceito
10 Ago 2024