Acesso e cuidado a saúde de mulheres privadas de liberdade na penitenciária cearense

Isabella Lima Barbosa Campelo Antônio Diego Costa Bezerra José Maria Ximenes Guimarães Ana Patrícia Pereira Morais Grayce Alencar Albuquerque Regina Glaucia Lucena Aguiar Ferreira Anya Pimentel Gomes Fernandes Vieira-Meyer Sobre os autores

Resumo

O estudo analisa o acesso ao cuidado em saúde de mulheres encarceradas no estado do Ceará, rastreando transtornos mentais comuns. Estudo analítico, transversal, de natureza quantitativa, desenvolvido na única penitenciária feminina do Ceará. Participaram 90 detentas, todas com alguma das seguintes questões de saúde: gestantes, puérperas, portadoras de hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, tuberculose, sífilis, hepatite B ou HIV/Aids. Os dados foram coletados por entrevista estruturada. Evidenciou-se acesso limitado à atenção à saúde das detentas, violando direitos básicos sob tutela do Estado. Foram constatadas limitações de exames de rastreamento de doenças nas presidiárias na ocasião de seu acesso ao cárcere, principalmente as que não se encontravam grávidas no momento do encarceramento. Houve diferenças entre as distintas condições de saúde analisadas, com prioridade da atenção às gestantes e puérperas. Entre as detentas, 68,24% apresentavam risco de transtornos mentais comuns (SRQ > 7). Houve correlação positiva entre idade e saúde mental (p = 0,0002). Embora exista legislação pertinente de garantia de acesso à saúde no cárcere, o sistema prisional está despreparado para atender às necessidades de portadoras de comorbidades, gestantes e puérperas.

Palavras-chave:
População privada de liberdade; Mulheres; Saúde da Mulher; Acesso aos cuidados de saúde; Atenção integral à saúde da mulher

Introdução

A população prisional é crescente em todo o mundo, estando exposta a condições precárias de confinamento, que muitas vezes impossibilitam o acesso das pessoas encarceradas à saúde integral e efetiva11 Lima GMB, Pereira Neto AF, Amarante PDC, Dias MD, Ferreira Filha MO. Mulheres no cárcere: significados e práticas cotidianas de enfrentamento com ênfase na resiliência. Saude Debate 2013; 37(98):446-456.. No Brasil, a situação não é diferente, pois o número de detentos no país, segundo dados publicados pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), também está em constante crescimento. Em pouco menos de dez anos, observou-se um aumento de 50,7% na população carcerária brasileira, passando de 496.251 pessoas em 2010 para 748.009 em 2019, sendo 711.080 (95,06%) homens e 36.929 (4,94%) mulheres22 Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias: dezembro 2019 [Internet]. 2020. [acessado 2020 out 24]. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTlkZGJjODQtNmJlMi00OTJhLWFlMDktNzRlNmFkNTM0MWI3IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9
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Evidencia-se que este aumento apresenta diferenças quanto ao gênero, uma vez que a elevação da população feminina encarcerada foi cerca de 2,9 vezes maior do que a da masculina (564,2% versus 196,2%)22 Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias: dezembro 2019 [Internet]. 2020. [acessado 2020 out 24]. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTlkZGJjODQtNmJlMi00OTJhLWFlMDktNzRlNmFkNTM0MWI3IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9
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. O aumento do número de mulheres privadas de liberdade reflete modificações sociais emergentes que necessitam de constantes estudos e reflexões.

O encarceramento feminino é marcado por uma histórica omissão dos poderes públicos, evidenciada pelo limitado número de políticas públicas que consideram a mulher encarcerada sujeito de direitos inerentes à sua condição de pessoa humana e, muito particularmente, às suas especificidades oriundas das questões de gênero33 Santos BRM, Rezende VA. Sistema carcerário feminino: uma análise das políticas públicas de segurança com base em um estudo local. Cad EBAPEBR 2020; 18(3):583-594.. Os direitos das mulheres encarceradas são violados de modo acentuado pelo Estado brasileiro, havendo prejuízos à saúde, à reintegração social, à educação, ao trabalho, à preservação de vínculos e às relações familiares44 Ribeiro SG, Lessa PRA, Monte AS, Bernardo EBR, Nicolau AIO, Aquino PS, Pinheiro AKB. Perfil gineco-obstétrico de mulheres encarceradas no estado do Ceará. Texto Contexto Enferm 2013; 22(1):13-21..

A superlotação das penitenciárias femininas implica chances elevadas para problemas de saúde, haja vista que nessas instituições está agrupada uma parcela da população socialmente vulnerável. No Brasil, em geral as mulheres encarceradas são jovens (entre 18 e 29 anos), negras, mães, responsáveis pela renda familiar, com baixa escolaridade, baixa renda e autônomas no período anterior ao encarceramento22 Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias: dezembro 2019 [Internet]. 2020. [acessado 2020 out 24]. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTlkZGJjODQtNmJlMi00OTJhLWFlMDktNzRlNmFkNTM0MWI3IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9
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, inclusive sendo beneficiárias de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família55 Bartholo L, Passos L, Fontoura N. Bolsa Família, autonomia feminina e equidade de gênero: o que indicam as pesquisas nacionais? Cad Pagu 2019; 55:e195525.. Adicionalmente, existem subgrupos com fatores de risco para agravos relevantes à saúde, como HIV/Aids, HPV, hepatite B, sífilis, doenças crônicas como hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus e usuárias de drogas66 Santos MV, Alves VH, Pereira AV, Rodrigues DP, Marchiori GRS, Guerra JVV. A saúde física de mulheres privadas de liberdade em uma penitenciária do estado do Rio de Janeiro. Esc Anna Nery 2017; 21(2):e20170033..

Frente a tal cenário e com vistas às necessidades de saúde da população encarcerada, o Ministério da Justiça no Brasil, juntamente com o da Saúde, implementou o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), através da Portaria Interministerial nº 1.777 (9/9/2003), que prevê a inclusão da população penitenciária no Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo que o direito à cidadania se efetive na perspectiva dos direitos humanos77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Interministerial nº 1.777, de 9 de setembro de 2003. Implementa o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP). Diário Oficial da União 2003; 10 set.. Entre as linhas de ação de saúde propostas pelo PNSSP, destacam-se o controle e tratamento da tuberculose e a proteção dos sadios; o controle da hipertensão arterial e da diabetes mellitus; o tratamento de dermatoses, especialmente a hanseníase; e a atenção à saúde bucal e à saúde da mulher77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Interministerial nº 1.777, de 9 de setembro de 2003. Implementa o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP). Diário Oficial da União 2003; 10 set..

Especificamente em relação à saúde da mulher, o PNSSP inclui ações de pré-natal e assistência às intercorrências gestacionais, aos partos e ao puerpério, controle do câncer cérvico-uterino e de mama, assistência à anticoncepção e imunizações, garantindo os encaminhamentos necessários88 Galvão MCB, Davim RMB. Ausência de assistência à gestante em situação de cárcere penitenciário. Cogitare Enferm 2013; 18(3):452-459.. Objetivando manter os laços maternos, também se assegura legalmente que detentas sejam mantidas em ambientes adequados para o convívio com seus filhos, garantindo aleitamento materno exclusivo até os seis meses de vida da criança77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Interministerial nº 1.777, de 9 de setembro de 2003. Implementa o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP). Diário Oficial da União 2003; 10 set..

O contexto das prisões expõe mulheres (gestantes e puérperas) privadas de liberdades às vulnerabilidades presentes nesse espaço. As precárias condições sociais de mães que pariram nas prisões, a precária assistência pré-natal, o uso de algemas durante o trabalho de parto, bem como o relato de violência e a baixa avaliação do atendimento recebido, denotam que o serviço de saúde penitenciário tem funcionado como barreira protetora e ausente de garantia dos direitos desse grupo99 Leal MC, Ayres BVS, Esteves-Pereira AP, Sánchez AR, Larouzé B. Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2061-2070..

Além desse cenário, há também a grande epidemia das doenças transmissíveis, principalmente as infecções sexualmente transmissíveis (IST). Dados do sistema Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) do ano de 20171010 Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) [Internet]. 2017. [acessado 2020 nov 5]. Disponível em: https://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias.
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apontam como morbidades mais prevalentes na população carcerária feminina o HIV/Aids, a sífilis, a hepatite e a tuberculose. Estes agravos são afetados pelas próprias condições do presídio (falta ou não adesão a informações de saúde, negação a métodos de prevenção de barreira, condições de higiene e outros), assim como do contexto social1111 Soares Filho MM, Bueno PMMG. Demografia, vulnerabilidades e direito à saúde da população prisional brasileira. Cien Saude Colet 2016; 21(7):1999-2010..

Além disso, outras condições de morbidade se fazem presentes, muitas vezes como resultado do cenário imposto. Indicadores para saúde mental, como sentimentos de baixa autoestima, ansiedade e sintomas depressivos, além de problemas com imagem corporal, contribuem para uma apreciação negativa sobre a própria saúde e podem estar presentes entre as presidiárias, sendo que tais aspectos se incluem no espectro dos transtornos mentais comuns (TMC)1212 Constantino P, Assis SG, Pinto LW. O impacto da prisão na saúde mental dos presos do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2089-100..

Uma vez que se evidenciam tais problemas que incidem na saúde de mulheres privadas de liberdade, faz-se necessário compreender como ocorre o acesso e a atenção à saúde fornecida pelo sistema penitenciário a esse público, especialmente em regiões menos favorecidas, como a região Nordeste do Brasil, a exemplo do estado do Ceará.

Entre as unidades prisionais brasileiras, 158 ficam no estado do Ceará, sendo apenas uma para regime fechado de mulheres. O Ceará tem a 6ª população prisional do país, com 21.789 detentos, atrás apenas dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Sul. No Ceará, o número de detentas cresceu 129% entre os anos de 2014 e 2019, passando de 1.065 para 2.440. Apesar do número de homens privados de liberdade ser bem superior ao feminino, seu percentual de aumento foi menor no período mencionado (53,1%), passando de 20.583 para 31.287 presos1313 Brasil. Ministério da Justiça (MJ). Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Penitenciário [Internet]. 2014. [acessado 2020 nov 5]. Disponível em: https://www.diariodasleis.com.br/legislacao/federal/226123-politica-nacional-de-atencao-as-mulheres-em-situacao-de-privacao-de-liberdade-e-egressas-do-sistema-prisional
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Nesse contexto, é importante compreender as características e necessidades de saúde sexual e reprodutiva, as doenças crônicas e o estado de saúde mental da população feminina encarcerada. Essas informações são essenciais para que se possa dimensionar os desafios e realizar o planejamento adequado, a fim de garantir o direito à saúde e para que políticas públicas possam ser ajustadas e/ou criadas, levando-se em consideração a realidade das mulheres privadas de liberdade. O presente trabalho teve por objetivo analisar o acesso ao cuidado à saúde de mulheres encarceradas no estado do Ceará, assim como rastrear os transtornos mentais comuns (TMC) nessa população.

Métodos

Estudo de caráter analítico, transversal e quantitativo desenvolvido na única penitenciária feminina do estado do Ceará. As instalações físicas direcionadas à prestação de cuidados em saúde conta com consultório médico, consultório de atendimento gineco-obstétrico, consultório odontológico, posto de enfermagem, enfermaria e almoxarifado1414 Ceará. Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas. Relatório de inspeções: estabelecimentos prisionais do estado do Ceará [Internet]. 2022. [acessado 2023 maio 30]. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/05/relatorio-de-inspecoes-prisionais-no-estado-do-ceara-web-2022-05-09.pdf
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, estando em processo de reestruturação para o cumprimento do PNSSP.

Existiam, no momento da coleta de dados, 998 presidiárias em regime fechado. Foram coletadas informações de todas as encarceradas que tinham em suas fichas clínicas diagnóstico para HAS, DM, tuberculose, sífilis, hepatite B e ou HIV/Aids, assim como todas as puérperas e gestantes, totalizando 90 mulheres participantes do estudo.

Antes do início da coleta de dados, fez-se contato prévio com a Secretaria de Segurança Pública do Ceará (SSP), órgão que administra as penitenciárias no estado, em que se explicou a pesquisa, a dinâmica de realização dela e sua importância. Houve também contato prévio com a administração da penitenciária e com os profissionais de saúde do local. Dessa forma, conseguiu-se a lista das mulheres e seus agravos. Além disso, fez-se contato com os agentes penitenciários, com vistas a acompanhar os pesquisadores no momento da coleta, garantindo a segurança deles.

Os dados foram coletados no período de setembro de 2019 a fevereiro de 2020, por meio de um instrumento estruturado, elaborado pelos autores, com base na pesquisa “Nascer na prisão”99 Leal MC, Ayres BVS, Esteves-Pereira AP, Sánchez AR, Larouzé B. Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2061-2070., nos documentos da PNSSP77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Interministerial nº 1.777, de 9 de setembro de 2003. Implementa o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP). Diário Oficial da União 2003; 10 set., nas diretrizes do SUS1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 19 set. e em seus programas de controle de tuberculose1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Programa Nacional de Controle da Tuberculose [Internet]. 2016. [acessado 2020 nov 5]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/ProgramaTB.pdf
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, diabetes e hipertensão1717 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Linhas de cuidado hipertensão arterial e diabetes [Internet]. 2010. [acessado 2020 nov 5]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/linhas_cuidado_hipertensao_diabetes.pdf
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e IST/HIV-Aids1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de DST/AIDS princípios, diretrizes e estratégias [Internet]. 1999. [acessado 2020 nov 5]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd03_17.pdf
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. Para a coleta das informações, foi feito contato com o público feminino privado de liberdade a fim de fazer o convite para a participação e apresentar o estudo e seus objetivos. Após esses esclarecimentos, elas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e responderam ao questionário.

O instrumento considera aspectos relacionados à temática do estudo, englobando questões demográficas (idade, escolaridade, local de nascimento etc.), socioeconômicas (estado civil, religião, beneficiária do bolsa família antes do cárcere etc.), situação de vulnerabilidade (história de violência, história de saúde pregressa etc.), principais riscos potenciais de saúde (usuária de drogas, história de doenças infectocontagiosas, tabagismo e etilismo etc.), acesso a serviços de saúde, doenças crônicas não transmissíveis, hipertensão (diagnóstico, fatores de risco, tratamento, exames, métodos preventivos etc.), diabetes (diagnóstico, consulta, medicação, acompanhamento etc.), tuberculose (diagnóstico, medicação, acompanhamento, etc.) e saúde mental (aplicação de questionário SRQ, utilizado para rastreamento de fatores relacionados a transtornos mentais comuns)1919 Gonçalves DM, Stein AT, Kapczinski F. Performance of the Self-Reporting Questionnaire as a psychiatric screening questionnaire: a comparative study with Structured Clinical Interview for DSM-IV-TR. Cad Saude Publica 2008; 24(2):380-390..

Os dados obtidos na pesquisa foram organizados e analisados de acordo com o objetivo do estudo, utilizando o programa Stata 14.1. para a análise estatística. Os dados foram analisados à luz da literatura pertinente.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade de Fortaleza sob o parecer número 2.934.233.

Resultados

Participaram da pesquisa 90 detentas, não havendo recusa para participação no estudo. Entre as entrevistadas, 30 (34,3%) eram grávidas (n = 13) ou puérperas (n = 17), 35 (38%) eram mulheres diagnosticadas com hipertensão arterial sistêmica (HAS) e/ou diabetes mellitus (DM) e 25 (27,7%) diagnosticadas com doenças infectocontagiosas, destas, 15 com síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids/HIV), duas com tuberculose (TB) e 12 com sífilis. Vale destacar que algumas mulheres tinham mais de um agravo à saúde e ou condição relacionada à maternidade (Tabela 1). De acordo com as fichas clínicas, nenhuma detenta apresentava diagnóstico de hepatite B.

Tabela 1
Características sociodemográficas, infracional e de saúde de mulheres encarceradas em penitenciárias femininas, Fortaleza (CE), 2020.

Em relação ao perfil das mulheres privadas de liberdade, 65 (72,22%) eram pardas, 47 (52,22%) professavam a religião protestante, 50 (50,55%) tinham o ensino fundamental incompleto, 54 (60%) não recebiam auxílio do Bolsa Família antes da detenção, eram tabagistas (n = 82; 91,11%) e elitistas (n = 56; 62,22%). Quanto ao perfil infracional, a maioria cometeu tráfico de drogas (n = 56; 62,22%) e já foi detida duas ou mais vezes (n = 50; 55,55%).

Em relação aos cuidados de saúde, a maioria recebeu orientação de saúde dos profissionais de saúde no presídio (n = 69; 76,66%), não fez acompanhamento ginecológico (n = 54; 64,44%) e não utilizou métodos contraceptivos (n = 80; 88,8%), conforme a Tabela 1.

Quando se analisam as gestantes, frente ao número de consultas nos exames de pré-natal, a maioria, cinco detentas (38,48%), relatou até três consultas. Das mulheres que tiveram as consultas de pré-natal, 92,31% (n = 12) apresentavam o cartão pré-natal. Das grávidas estudadas, quatro (30,77%) informaram que já sofreram algum tipo de aborto. Quanto às puérperas, a maioria relatou manter o recém-nascido na penitenciária (n = 10; 58,82%), com nove (52,94%) tendo consultas com médico na penitenciária, conforme a Tabela 2.

Tabela 2
Dados descritivos das mulheres grávidas encarceradas quanto á situação e atendimento pré-natal, Fortaleza (CE), 2020.

Os dados descritivos das mulheres na penitenciária com HAS (n = 35) e DM (n = 11) são apresentados na Tabela 3. Desse grupo, 22 (57,89%) das hipertensas e nove com DM (81,82%) foram diagnosticadas antes do encarceramento. Quanto ao acesso à medicação específica para HAS e DM, 20 (55,26%) e quatro (36,36%) informaram que recebiam a medicação, contudo, 12 (34,21%) das hipertensas e cinco (9,09%) das diabéticas informaram que, apesar de terem o acesso, havia falta constante dos medicamentos na penitenciária.

Tabela 3
Dados descritos das mulheres com HAS e DM encarceradas em Penitenciária, Fortaleza (CE), 2020.

Sobre a participação em atividades de promoção da saúde (rodas de conversa, aconselhamento etc.), não se obteve relato dessas ações dentro da penitenciária. Buscou-se também informações acerca do acesso a consultas médicas, constatando-se que a maior parte das mulheres avaliadas no presente estudo informou que “raramente” tinha acesso a consultas médicas (n = 15; 42,11% e n = 6; 54,55% das mulheres hipertensas e diabéticas, respectivamente).

Em relação às doenças infectocontagiosas, constatou-se que, na ocasião da admissão das mulheres encarceradas não grávidas, 30 (32,58%) não realizaram o teste rápido para HIV, 60 (67,42%) para hepatite A, 60 (67,42%) para hepatite B, 33 (32,96%) para sífilis e 80 (88,76%) não realizaram baciloscopia, para detecção da tuberculose, conforme a Tabela 4.

Tabela 4
Dados sobre doenças infecciosas em mulheres encarceradas em penitenciária, Fortaleza (CE), 2020.

O percentual de detentas com risco de transtornos mentais comuns (SRQ > 7) por problema de saúde foi de 68,24%. Ao estabelecer a relação entre saúde mental e as condições de saúde estudadas, observou-se que, entre as grávidas, esse percentual é de 53,85%, e entre as puérperas, 27,78%, significativamente menor do que na população geral do estudo.

Observou-se correlação positiva entre idade e saúde mental, sendo que, quanto maior a idade, maior o índice do SRQ (risco de TMC) (p = 0,0002 e rs = 0,3925), assim como idade e tempo de encarceramento (p = 0,0213 e rs = 0,2424). Contudo, não se observou correlação entre SRQ e tempo de encarceramento (p = 0,5005 e rs = 0,0741). Também não se observou relação entre SRQ categórico (SRQ <= 7 ou SRQ > 7) e situação jurídica, estado civil ou situação conjugal (p > 0,05) das detentas (teste qui-quadrado).

Discussão

O presente estudo reforça a existência de violação de direitos femininos de saúde, uma vez que os achados revelam as ainda limitadas práticas de acesso e atenção à saúde de mulheres encarceradas. Foram constatadas limitações de exames de rastreamento de doenças nas presidiárias na ocasião de seu acesso ao cárcere, principalmente as que não estavam grávidas no momento do encarceramento. Compreendendo a saúde como direito universal garantido na constituição brasileira, e ciente que no cárcere não há alternativa ao cuidado em saúde que não passe pelo Estado, evidenciou-se acesso limitado à atenção à saúde das detentas, o que viola seus direitos básicos quando sob tutela do Estado. Além disso, observaram-se diferenças entre as distintas condições de saúde analisadas, com prioridade da atenção às gestantes e puérperas, que recebiam, ainda que de forma limitada, melhor assistência em saúde quando comparadas às outras questões de saúde analisadas.

As políticas públicas de saúde começaram a priorizar as mulheres nas primeiras décadas do século XX, sendo limitadas, inicialmente, às demandas relativas à gravidez e ao parto2121 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Integral a Saúde da Mulher [Internet]. 2004. [acessado 2020 nov 5]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nac_atencao_mulher.pdf
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. Essas práticas ainda parecem se destacar nas condutas dos profissionais de saúde, que, em seu processo formativo, priorizam a assistência feminina voltada ao ciclo reprodutivo2222 Lima ACSD, Alves MJH, Pereira EV, Pereira AP, Albuquerque GA, Belém JM. Gênero e sexualidade na formação de enfermeiros no ensino superior público brasileiro: estudo documental. Rev Enferm Cent-Oeste Min 2021;11:387..

É fato que o Brasil avançou consideravelmente no acesso à atenção à gestação, ao parto e ao nascimento, no entanto ainda persistem iniquidades, sobretudo na qualidade da atenção ofertada, que é inferior para as mulheres de baixa condição socioeconômica2020 Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, Bastos MH, Leal MC. Assistência pré-natal no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(Suppl. 1):S85-S100.. Grande parte da população prisional é originária de grupos com pior condição socioeconômica, o que é confirmado em nosso estudo pela alta prevalência de mulheres com baixa escolaridade. Além do fator de risco inerente a essa baixa condição, as mulheres que passam por gestação e parto em uma prisão são ainda mais vulneráveis99 Leal MC, Ayres BVS, Esteves-Pereira AP, Sánchez AR, Larouzé B. Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2061-2070.. Essa vulnerabilidade se agrava pelas especificidades ligadas à maternidade e ao nascimento de seus filhos no ambiente prisional2323 Tomkin J. Orphelins de justice A la recherche de l'intérêt supérieur de l'enfant lorsqu'un parent est en prison: analyse juridique. Geneva: Quaker UN Off; 2009..

Mesmo com uma atenção em saúde diferenciada dentro da penitenciária em comparação com as não grávidas, ainda se evidencia a falta de políticas públicas que garantam o acesso integral à saúde dentro do presídio. Há falta de preparação do sistema penitenciário para receber essa população, que necessita de atenção e cuidados diferenciados e especializados2424 Araújo MM, Moreira AS, Cavalcante EGR, Damasceno SS, Oliveira DR, Cruz RSBLC. Assistência à saúde de mulheres encarceradas: análise com base na Teoria das Necessidades Humanas Básicas. Esc Anna Nery 2020; 24(3):e20190303..

Os achados obtidos corroboram essas afirmações, ao evidenciarem que gestantes e puérperas recebem uma frágil assistência de consulta pré-natal, em sua maioria três consultas, abaixo do quantitativo mínimo preconizado pelo Ministério da Saúde, que é de seis consultas2525 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Cadernos de atenção básica: atenção ao pré-natal de baixo risco (nº 32) [Internet]. 2012 [acessado 2020 nov 5]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cadernos_atencao_basica_32_prenatal.pdf
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. No que se refere às orientações de promoção da saúde, a maioria não recebe esse tipo de atendimento, e tal cenário aumenta a susceptibilidade para outros agravos em saúde (tanto para as mulheres quanto para seus bebês), gerando um questionamento sobre o papel do Estado na garantia dos direitos à saúde dessa população, uma vez que as mulheres encarceradas não têm a opção de buscar o cuidado em outras redes de atenção.

A condição de mulher grávida no ambiente prisional demanda uma atenção especial, sobretudo no que se refere à assistência pré-natal e aos cuidados puerperais. Assim, ressalta-se que o acesso à saúde na prisão não segue os princípios da integralidade, resolutividade e humanização que regem a saúde pública brasileira2626 Reis CA, Zucco LP. Saúde sexual e saúde reprodutiva no cárcere. Front Rev Catarin Historia 2019; 33:66-86..

As prisões brasileiras enfrentam vários fatores de risco à saúde, podendo incluir diversas morbidades, como a hipertensão e diabetes, variáveis deste estudo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) sejam a principal causa de alta mortalidade na população mundial, sendo necessária a oferta de medicamentos e práticas de promoção da saúde, de acordo com as recomendações da política pública em saúde, que devem ser adotadas por equipe multiprofissional2727 Ribeiro AG, Cotta RMM, Ribeiro SMR. A promoção da saúde e a prevenção integrada dos fatores de risco para doenças cardiovasculares. Cien Saude Colet 2012; 17(1):7-17.

A prevenção e a promoção da saúde devem ser consideradas como atividades prioritárias para a população carcerária feminina, como já é garantido pelo SUS. Contudo, nosso estudo destacou a precariedade das ações de promoção da saúde e prevenção de doenças, assim como dos atendimentos à saúde que ocorrem no cenário do estudo no que se refere à oferta de exames e medicações que deveriam ser disponibilizadas para as presidiárias. Mesmo esse atendimento sendo garantido por lei, ficou claro o não rastreamento de casos e o adequado cuidado em saúde, principalmente com relação medicações de uso contínuo, como para HAS e DM, que quando não devidamente controlados implicam riscos à saúde e desfechos insatisfatórios.

As mulheres estudadas apresentaram altos valores para tabagismo, etilismo e uso de drogas, o que as deixa em maior risco para certos agravos de saúde. Contudo, é o profissional de saúde a sua principal fonte de informação - sendo importante que as ações de promoção da saúde e prevenção de agravos sejam desenvolvidas junto a essa população por esses profissionais para evitar o desenvolvimento e o agravamento de condições de saúde. Entretanto, esse não foi o cenário encontrado na penitenciária analisada, onde mais de um quinto das entrevistadas informou nunca ter sido atendida por um profissional de saúde no complexo investigado.

Questões de insalubridade e superlotação no ambiente prisional são consideradas fatores de risco para doenças infectocontagiosas, especialmente para esse grupo2828 Diuana V, Ventura M, Simas L, Larouzé B, Correa M. Direitos reprodutivos das mulheres no sistema penitenciário: tensões e desafios na transformação da realidade. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2041-2050.. As mulheres privadas de liberdade são mais vulneráveis a contrair IST, em decorrência do conhecimento deficitário acerca da saúde sexual/reprodutiva e das condições do cárcere, o que eleva nessa população os comportamentos de risco2929 Tres AB, Sena AD, Caires DA, Lima IMB, Coelho K, Rigo LE, Silva LO, Ribeiro RS, Santos VB, Machado EFA. Saúde sexual e reprodutiva no cárcere: discussão sobre os desafios das mulheres privadas de liberdade. Rev Eletr Acervo Saude 2021; 13(7):e7891.. A carência de educação em saúde contribui para o não conhecimento das detentas sobre higiene e cuidados necessários com o corpo feminino, bem como facilita a propagação de informações errôneas e preconceitos acerca da saúde sexual e do uso de preservativo, especialmente quando esse não é devidamente distribuído.

Nicolau e colaboradores3030 Nicolau AIO, Aquino PS, Ximenes LB, Pinheiro KB. Determinantes sociais proximais relacionados ao câncer cervicouterino em mulheres privadas de liberdade. Reme Rev Min Enferm 2015; 19(3):733-740. apontaram que durante as visitas íntimas não são oferecidos preservativos às mulheres, dado importante que revela a desproteção dessa população em relação às ISTs. Nosso estudo corrobora esses achados, tendo evidenciado a falta de acesso das mulheres privadas de liberdade a preservativos.

Para prevenção da transmissão das IST/Aids, considerando a dimensão programática, faz-se necessária a efetivação de políticas públicas que reduzam a vulnerabilidade a elas por meio de acesso a informação/educação, rede de apoio para identificação precoce dos casos e tratamento imediato, levando-se em consideração as especificidades de cada grupo populacional, como o grupo de mulheres estudadas na presente pesquisa3131 Lôbo MP, Penna LHG, Carinhanha JI, Vilela ABA, Yarid SD, Santos CS. Ações de prevenção e enfrentamento das IST/AIDS vivenciadas por mulheres encarceradas. Rev Enferm UERJ 2019; 27:e40203..

Outro fator encontrado foi o baixo percentual de realização de testes rápidos de HIV, sífilis e hepatite B, tanto na admissão na unidade penitenciária como no processo de institucionalização, principalmente entre as mulheres que vivem com HIV. O Ministério da Saúde preconiza que todas as presidiárias realizem os testes rápidos para infecções sexualmente transmissíveis. O estudo revelou que a maioria das participantes não fez esses testes, caracterizando um fator de risco de transmissibilidade para outras detentas. Por isso, esse cenário é considerado um problema grave dentro do presídio que deve ser amplamente discutido para reduzir suas consequências.

O não controle das detentas infectadas com HIV/Aids na prisão pode favorecer a disseminação dessa infecção no cárcere, colocando em risco não somente a saúde das mulheres já sabidamente infectadas, mas daquelas que potencialmente podem se contaminar no ambiente prisional (por meio de relações sexuais, contaminação com sangue e ou outros fluidos, contaminação de crianças no parto e ou amamentação etc.)

Assim, percebe-se que o sistema prisional está despreparado para atender às necessidades da população feminina que vive em um ambiente insalubre, com superlotação e suscetível ao desenvolvimento de doenças infectocontagiosas, haja vista existirem lacunas no acesso adequado às políticas de promoção à saúde e prevenção de doenças2929 Tres AB, Sena AD, Caires DA, Lima IMB, Coelho K, Rigo LE, Silva LO, Ribeiro RS, Santos VB, Machado EFA. Saúde sexual e reprodutiva no cárcere: discussão sobre os desafios das mulheres privadas de liberdade. Rev Eletr Acervo Saude 2021; 13(7):e7891..

Achados semelhantes foram encontrados em revisão de escopo realizada com 49 estudos na África, revelando que a prestação de serviços de saúde e clínicos estão abaixo do padrão, caracterizada por falta de estoque de medicamentos, carência de pessoal de saúde treinado e exames médicos de rotina, disponibilidade limitada ou falta de equipamentos básicos e cobertura insuficiente de consultas ginecológicas3232 Van Hout MC, Mhlanga-Gunda R. Contemporary women prisoners health experiences, unique prison health care needs and health care outcomes in sub Saharan Africa: a scoping review of extant literature. BMC Int Health Hum Rights 2018; 18(1):31.. O cenário resultante do cárcere e das condições insalubres, associado à insuficiência de ações e serviços de saúde ofertados, pode ocasionar, para além do adoecimento físico, desordens mentais na população carcerária.

A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) enfatiza os agravos decorrentes do confinamento como potencializadores de doenças psicossociais, exigindo um olhar mais atento dos profissionais de saúde para a identificação de possíveis transtornos mentais e para o uso de álcool e outras drogas3333 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Guia sobre gênero, HIV/AIDS, coinfecções no sistema prisional [Internet]. 2012. [acessado 2020 nov 5]. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/lpobrazil/Topics_aids/Publicacoes/GUIA_SOBRE_GENERO_2012_1.pdf
https://www.unodc.org/documents/lpobrazi...
. Audi e colaboradores3434 Audi CAF, Santiago SM, Andrade MGG, Francisco PMSB. Inquérito sobre condições de saúde de mulheres encarceradas. Saude Debate 2016; 40(109):112-124. ressaltam que, ao abandonarem o sistema carcerário, as presidiárias apresentam morbidades físicas e mentais adquiridas no período do cumprimento da pena ou deixam o cárcere tendo seus problemas de saúde pré-existentes agravados. Dessa forma, o impacto que a situação de privação de liberdade tem sobre as mulheres pode desencadear transtornos mentais ou potencializar os já existentes, assim como afetar a capacidade de assistir sua prole (dentro e fora do cárcere) - impactando não só sua saúde, mas o desenvolvimento de seus filhos.

No sistema prisional brasileiro, a saúde mental é considerada um assunto preocupante, especialmente para o público feminino, que apresenta cinco vezes mais chances de manifestar problemas mentais do que mulheres em liberdade3535 Cloud D, Dougherty M, May RL, Parsons J, Wormeli P, Rudman WJ. At the Intersection of Health and Justice. Perspect Health Inf Manag 2014; 11(Winter):1c.. Essa realidade torna a saúde mental dessa população um tema que deve ser aprofundado e pesquisado.

Estudo conduzido em uma penitenciária do Rio de Janeiro com 40 mulheres privadas de liberdade sobre a saúde mental durante o período de confinamento revelou que elas apresentaram ansiedade, estresse, depressão, alteração do padrão de sono, uso indevido de medicação psicotrópica e de drogas lícitas e ilícitas, abstinência sexual, condições precárias de confinamento e interrupção das relações familiares3636 Santos MV, Alves VH, Pereira AV, Rodrigues DP, Marchiori GRS, Guerra JVV. A saúde física de mulheres privadas de liberdade em uma penitenciária do estado do Rio de Janeiro. Esc Anna Nery 2017; 21(2):e20170033.. Nosso estudo revela que dois terços das mulheres encarceradas estão em risco de TMC, valor muito acima da média (REF). Contudo, entre as grávidas e puérperas esse valor é inferior.

A literatura envolvendo mulheres não encarceradas demonstra que as grávidas e puérperas têm frequentemente maior percentual de risco para TMC do que as demais mulheres3737 Machado MMT, Rocha HAL, Castro MC, Sampaio EGM, More FAOS, Silva JPF, Aquino CM, Sousa LAR, Carvalho FHC, Altafim ERP, Correia LL. COVID-19 e saúde mental de gestantes no Ceará, Brasil. Rev Saude Publica 2021; 55:37.. Dessa forma, nosso estudo evidencia que, no cárcere, essa relação se inverte, o que talvez se dê pela forma que são cuidadas no presídio. Elas são separadas das demais presidiárias, tendo espaço mais adequado para gestação, pós-parto e amamentação. Imagina-se então que, caso os espaços dos presídios e os cuidados em saúde fossem mais adequados, encontraríamos menor risco de TCM e, quem sabe, melhor ambiente para ressocialização, o que facilitaria a futura reinserção das mulheres encarceradas à sociedade.

Embora o encarceramento eleve as chances para transtornos mentais comuns (TMC), achados do presente estudo não evidenciaram relação significativa entre o SRQ e o tempo de detenção das mulheres. Tal achado corrobora estudo realizado com 287 mulheres recolhidas em penitenciária feminina na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em que os sintomas depressivos não aumentaram com o tempo de reclusão, pelo contrário, foram menos frequentes após 26 meses de prisão3838 Canazaro D, Argimon IIL. Características, sintomas depressivos e fatores associados em mulheres encarceradas no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saude Publica 2010; 26(7):1323-1333..

Dado o cenário apresentado, embora documentos norteadores direcionem ações e serviços voltados à saúde prisional para a integralidade do cuidado, ainda existem muitos desafios para a efetiva implantação do acesso aos serviços e a humanização da saúde prisional feminina, constituída como direito. É importante ressaltar que as pessoas privadas de liberdade não devem estar privadas dos demais direitos, incluindo o da saúde, preconizado pela lei como um direito universal.

Apesar da importância da presente pesquisa, ao avaliar o acesso ao cuidado em saúde em um presídio feminino na região Nordeste, o mesmo não ocorreu sem limitações. Um possível viés se dá pelo fato de que foram entrevistadas apenas as detentas com diagnóstico prévio hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, doenças infectocontagiosas, HIV, sífilis, hepatite B, tuberculose, gestantes e puérperas. A coleta ocorreu antes da pandemia de COVID-19. Originalmente havia o interesse de investigar um grupo mais amplo, contudo, a chegada da pandemia impossibilitou essa expansão. Imagina-se que os resultados incluindo detentas sem questões de saúde conhecidas evidenciaria uma situação ainda mais precária de cuidado no cárcere.

Conclusão

Os achados deste estudo apontam que o sistema prisional é despreparado para atender às necessidades das detentas; grávidas e puérperas não têm acesso às condições ideais ao parto e nascimento e as não grávidas são suscetíveis ao desenvolvimento e agravamento de doenças infectocontagiosas, uma vez que não têm acesso adequado às políticas de promoção de saúde e prevenção de doenças, não recebem de forma satisfatória preservativos e não têm acesso na totalidade a consulta ginecológica e testes rápidos para HIV, hepatite B e sífilis. Ainda há dificuldades para acesso às medicações e exames exigidos em face do processo saúde-doença, a exemplo da HAS e da DM.

A partir da análise deste estudo, pode-se inferir que, apesar da existência de leis que garantam o acesso à saúde da população carcerária feminina, esse serviço não é ofertado na quantidade e qualidade prevista, sendo esse um achado pioneiro e inovador na região de desenvolvimento da pesquisa, com potencial para direcionar ações de melhorias no sistema de saúde carcerário feminino, ao descrever lacunas da assistência em saúde e o déficit de atuação do Estado, reforçando a necessidade de um cuidado digno e humanizado às mulheres em privação de liberdade, como previsto por lei.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2023
  • Aceito
    31 Jul 2023
  • Publicado
    02 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br