O combate à fome na pandemia de covid-19: arranjos de cuidado em saúde mental em uma periferia paulistana

Amanda Seraphico Carvalho Pereira da Silva Lumena Almeida Castro Furtado Valéria Monteiro Mendes Arthur Chioro Sobre os autores

RESUMO

O retorno e o agravamento da fome na pandemia de covid-19 foram importantes retrocessos vividos pela população brasileira nos últimos anos, fruto de uma gestão governamental pautada na necropolítica, que se recusou a olhar e produzir políticas públicas destinadas às populações em situação de vulnerabilidades. O ato de comer, em si, é um produtor de saúde (física-mental), que foi negado a grande parte da população durante a pandemia. A presente pesquisa, produzida a partir da metodologia cartográfica, teve por objetivo investigar os arranjos de cuidado em saúde mental produzidos nos territórios, em comunidade, no bairro de Heliópolis, periferia da capital paulista. Entre os principais achados, destacam-se arranjos para ampliar a oferta de alimentos, resgate da importância política dos indivíduos residentes do território, marchas denunciando a situação da fome na periferia, bem como partilhas afetivas de histórias mediadas pela partilha da comida. Tais ações demonstram a importância do ato de comer como promotor de saúde (física-mental) e ressaltam a relevância das relações produzidas e mediadas pela comida. A luta pela alimentação e seu compartilhamento, em um cenário de desmonte político e retorno da fome no País, apresentou-se como uma forma de resistência e de enfrentamento coletivo à necropolítica.

PALAVRAS-CHAVE
Fome; Covid-19; Saúde mental

Introdução

O retorno do Brasil ao mapa da fome foi um fenômeno que ocorreu em meio à pandemia de covid-19, fruto de um governo genocida, com orientação e ações pautadas na necropolítica11 Mbembe A. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: N-1 edições; 2018. 80 p.. Uma política que faz e deixa morrer, cujo cerne é a distribuição desigual da oportunidade de viver no âmbito do sistema capitalista. Essa lógica tem por consequência o fato de que algumas vidas são compreendidas como de maior valor, enquanto as demais podem ser descartadas.

O fenômeno da fome, em termos de debate na área da saúde, passou por ampla reestruturação: deixou de ser meramente calculado como ingestão de calorias por indivíduos, para ser contemplado em seus aspectos psicológicos, sociais e atravessado pelas desigualdades22 Schall B, Gonçalves FR, Valente PA, et al. Gênero e insegurança alimentar na pandemia de covid-19 no brasil: a fome na voz das mulheres. Ciênc. saúde coletiva. 2022 [acesso em 2023 nov 4]; 27(11):4145-54. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-812320222711.07502022.
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A fome é compreendida como um fenômeno social, multifatorial. Como tal, deve ser combatida por políticas públicas que tenham relação direta com as desigualdades estruturantes da realidade brasileira33 Salles-Costa R. Desafios políticos da retomada da fome e da insegurança alimentar no Brasil. In: Campello T, Bortoletto AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 123-34.. O perfil da fome no Brasil é de famílias em situação de vulnerabilidades, pretas e pardas, e, em geral, chefiadas por mulheres33 Salles-Costa R. Desafios políticos da retomada da fome e da insegurança alimentar no Brasil. In: Campello T, Bortoletto AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 123-34..

Belchior e Moreira44 Belchior D, Moreira A. “O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”. In: Campello T, Bortoletto, AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 147-154 reafirmam a produção da morte e da fome das populações pretas e indígenas por parte do Estado brasileiro desde antes da pandemia e o seu agravamento durante esse período. O regime político da democracia liberal reestruturou as desigualdades e segue produzindo, diariamente, a desumanização dessa parcela da sociedade44 Belchior D, Moreira A. “O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”. In: Campello T, Bortoletto, AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 147-154.

Debater a fome no nosso País passa por questões éticas e que demandam uma ausência de neutralidade com relação a esse fenômeno55 Dowbor L. “Fome, uma decisão política e corporativa”. In: Campello T, Bortoletto AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 181-93.. Quando a produção de alimentos é excedente e, ainda assim, o povo passa fome, a desigualdade de concentração de renda e a ausência de ações governamentais que redistribuam a comida são escolhas políticas que a democracia liberal permitiu no Brasil55 Dowbor L. “Fome, uma decisão política e corporativa”. In: Campello T, Bortoletto AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 181-93..

Somam-se a isso a ampla legalização da utilização de agrotóxicos e o consumo de alimentos industrializados no País, ambos afetando negativamente a saúde (física-mental) da população66 Torre E, Amarante P. Saúde mental, direitos humanos e justiça ambiental: a ‘quimicalização da vida’ como uma questão de violação de direitos humanos decorrente da intoxicação institucionalizada. Saúde debate. 2022; 46(esp2):327-44..

No contexto de um território preto e afetado pela pandemia, este estudo adentrou a periferia de São Paulo, no bairro de Heliópolis, a maior favela em extensão territorial da capital paulista77 União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região. Heliópolis - Maior favela de São Paulo. [acesso em 2022 jul 15]. Disponível em: https://www.unas.org.br/heliopolis.
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Os dados verificados em âmbito nacional, de aumento da fome e da insegurança alimentar na pandemia, também foram intensamente observados nessa comunidade. De acordo com levantamento realizado pelo Observatório De Olho na Quebrada88 União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região. Heliópolis contra coronavírus: saúde alimentar na pandemia. 2020. [acesso em 2022 jul 15]. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1qEIuFiVnbXxLm6toe9pLl9bNhXxGgV53/view.
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, apenas 58% das residências realizavam três refeições por dia no período da primeira onda de covid-19 (meados de Abril de 2020).

Considerando que a fome não é apenas um fenômeno macro, tendo em vista que afeta diretamente os corpos-subjetividades daqueles que sofrem com ela, esta pesquisa teve por objetivo analisar a produção de arranjos de cuidado em saúde mental nos territórios e pelas comunidades, afetados pelo retorno e agravamento da fome.

Metodologia

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, a partir da cartografia99 Rolnik S. Cartografia Sentimental: Transformações Contemporâneas do Desejo. São Paulo: Editora Estação Liberdade; 1989., realizado no território de Heliópolis, periferia de São Paulo (SP). A inserção nesse local se deu pelos contatos do Laboratório de Saúde Coletiva (Lascol) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com a União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas), ou seja, por meio de um dos principais movimentos sociais do bairro.

A cartografia é um desenho da paisagem que se faz enquanto ela se transforma, é poder dar voz a sentimentos e desejos presentes em diferentes paisagens psicossociais; é o modo de registro que um corpo vibrátil faz sobre aquilo que percebe, sente e experiencia com relação a essas paisagens sociais99 Rolnik S. Cartografia Sentimental: Transformações Contemporâneas do Desejo. São Paulo: Editora Estação Liberdade; 1989.. Com essa perspectiva, foi desenvolvido o campo da pesquisa, no território estudado. Na saúde coletiva, o uso da cartografia tem permitido a conexão e a invenção de modos de cuidado e de produção da vida.

O ato de pesquisar cartograficamente leva a movimentos por vários ‘mundos’, ou pelas conexões entre eles, ou ainda a inventar mundos de cuidado em saúde a cada momento em que se produz um novo campo de pesquisa, até porque essa metodologia não coleta dados, mas os produz em ato1010 Slomp Junior H, Merhy EE, Rocha M, et al. Contribuições para uma política de escritura em saúde. Athenea Dig. 2020 [acesso em 2022 jul 15]; 20(3):e2617. Disponível em: https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2617.
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O instrumento utilizado foi o do Diário de Campo (DC), com anotações sobre os deslocamentos afetivos produzidos pelos encontros, que ocorreram, majoritariamente, no ano de 2022. Na produção da cartografia, foram partilhados momentos, emoções e sensações de todos os envolvidos com a pesquisa.

Este artigo, inserido no âmbito da saúde coletiva, utiliza-se de conceitos-chave que orientaram sua construção, entre os quais: a perspectiva dos usuários, a produção de encontros e os territórios afetivos.

A partir de Merhy1111 Merhy EE. O conhecer militante do sujeito implicado: o desafio de reconhecê-lo como saber válido. In: Franco TB, Peres MAA, Foschiera MMP. Acolher Chapecó: uma experiência de mudança com base no processo de trabalho. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 21-45., interrogaram-se as lógicas de saber biomédicas e buscou-se construir relações horizontais com aqueles que são assistidos/cuidados por equipamentos de saúde. O deslocamento desse lugar de suposto saber científico sobre o objeto que se estuda coloca centralidade nas percepções e perspectivas dos usuários dos sistemas de saúde.

Esse primeiro conceito-chave extrapola a dimensão da relação profissional/usuário na saúde e foi essencial para a construção de uma pesquisa e de pesquisadores que estivessem abertos e disponíveis para o desconhecido. Assim, a partir do cultivo desse movimento para se deixar afetar, foi possível a produção de encontros. Com esse conceito-chave, compreende-se que encontros são acontecimentos entre corpos, que mobilizam afetos e que movimentam os envolvidos nessa produção1212 Gomes MPC, Merhy EE. Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental - Porto Alegre: Rede UNIDA; 2014. 176 p..

Diante da curiosidade que um encontro proporciona, desse contato com outros e com afetos novos e antigos, é que foi se construindo esta cartografia. É na percepção de si, no nomear de afetos e relações, nas vozes e línguas que se desdobram dos encontros, que despontam os territórios afetivos99 Rolnik S. Cartografia Sentimental: Transformações Contemporâneas do Desejo. São Paulo: Editora Estação Liberdade; 1989..

A presente pesquisa contou, também, com espaços de troca entre os sujeitos que a compuseram, com a escrita de DC a cada ida ao território físico de Heliópolis e a cada novo desdobramento territorial afetivo produzido pelo próprio caminhar da pesquisa.

Este estudo é um recorte de uma pesquisa mais ampla, inserida em um Programa de Pesquisa para o SUS (PPSUS), financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unifesp, sob o parecer de número 4.737.913.

Resultados e discussão

Desde o primeiro contato com o território de Heliópolis, as marcas da fome e da pandemia estavam fortemente presentes, nas faces dos muitos moradores que apareciam na porta da Unas solicitando a inclusão de seus nomes na fila de cestas básicas. Esse fenômeno era recorrente porque, em 2020, a Unas conseguiu arrecadar e distribuir mais de 40.000 cestas, que também continham instrumentos de proteção contra a covid-191313 União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região. Doações levam esperança as famílias de Heliópolis e região. 2020. [acesso em 2022 jul 15]. Disponível em: https://www.unas.org.br/single-post/doacoes-levam-esperanca-as-familias-de-heliopolis-regiao.
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Seja pela alimentação em si, que sustenta o corpo físico e subjetivo das pessoas, ou pela ação política proposta pela Unas durante a distribuição, esse foi o primeiro arranjo de cuidado em saúde mental encontrado na pesquisa. Afinal,

a Unas usava o momento de distribuição de cestas básicas para fazer discussões leves e de forma descontraída sobre políticas públicas, do papel do governo e da importância dos votos nas dimensões de acesso à alimentos, à vacinação, ao cuidado em uma pandemia, entre outros temas que apareciam. (Trecho do Diário de Campo em 08/02/2022).

Essas conversas resgatavam o papel e a produção política da fome, mas também eram momentos de processamento coletivo sobre a realidade com a qual o território se deparava. Poder dialogar sobre aquilo que se vivia, na pele, na barriga vazia, nas dificuldades cotidianas, promovia encontros afetivos e promovia saúde mental naquele território.

Na fala dos líderes comunitários sobre essa ação, ficava evidente o caráter de resistência e subversão incluído nesse gesto. Doar alimentos, em um país que sofre com a fome, já é, por si só, uma resistência1414 Rodrigues D. Alimento: memória e ancestralidade. In: Campello T, Bortoletto AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 165-73.; convocar os indivíduos que sofrem com a fome e com a necropolítica11 Mbembe A. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: N-1 edições; 2018. 80 p. a (com)partilhar coletivamente suas dores é subverter o local imposto por essa mesma política a esses corpos.

A problematização e a apropriação acerca da realidade em que se vive, a produção de uma reflexão crítica1515 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários para a prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2021., transformam um ato que poderia ser somente assistencialista em político-assistencial, engajado socialmente.

Na lógica da ocupação de espaços públicos, tem papel importante a 24ª Caminhada pela Paz, que ocorre anualmente no território, para denunciar as situações de violência vivenciadas pela comunidade. No ano de 2022, não à toa, uma das principais pautas foi a fome.

[Caminhada] marcada por jograis puxados no carro de som, como: ‘O arroz tá caro, o feijão tá caro, junta todo mundo e manda embora o Bolsonaro’. Nas diversas faixas com dizeres ‘Quem tem fome tem pressa, a fome dói’. Ou, ainda, nas camisas das crianças, que levavam um prato vazio e dados sobre a fome no Brasil e na comunidade de Heliópolis. (Trecho do Diário de Campo em 24/07/2022).

Além das denúncias sobre a fome, as crianças e os adolescentes levavam cartazes com dados numéricos sobre os assassinatos dessa população em ações da polícia militar, reiterando que a cor do corpo alvo da fome é a mesma do atingido pela bala de modo frequente: preta44 Belchior D, Moreira A. “O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”. In: Campello T, Bortoletto, AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 147-154.

Essas vivências, que tiveram vozes através dos cartazes, constituem e atravessam a produção de subjetividade dessas pessoas que ali moram e que nem sempre são consideradas por parte dos serviços de cuidado em saúde mental. A fome não é um fenômeno novo para o povo preto, mas a sua atualização de modo exacerbado possui impacto direto nas condições de saúde dessa população44 Belchior D, Moreira A. “O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”. In: Campello T, Bortoletto, AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 147-154.

Debater a fome durante a pandemia em um território marcadamente preto, portanto, é olhar para as desigualdades. É, também, ilustrar os enfrentamentos coletivos e as potências das ações, institucionais ou não.

Outro arranjo encontrado foi o de oferta de alimentação por parte dos Centros para Crianças e Adolescentes (CCA) ligados às Unas, que não fecharam durante a pandemia. Ao fornecer alimentação para a população infanto-juvenil que assistiam, podiam realizar acolhimentos e verificar casos de violências. Assim, o serviço pôde ofertar cuidado e assistência para as famílias, ampliando a rede do território para além dos equipamentos de saúde.

O CCA ganhou centralidade no combate à fome e na promoção de cultura durante a pandemia; e, passada a fase mais crítica do processo de transmissão da doença, um desses equipamentos despontou como um grande ponto de encontro da comunidade. Ter um espaço de referência dentro do território também se mostrou uma importante forma de ampliar o acesso ao cuidado em saúde mental.

As conversas mediadas por alimentos, sejam eles salgados, doces ou o simples café preto, vêm atravessadas por múltiplos sentidos. A dimensão afetiva e de resgate de memórias que a comida carrega consigo1414 Rodrigues D. Alimento: memória e ancestralidade. In: Campello T, Bortoletto AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 165-73., em um país com fome, tornou-se maior ainda durante a pandemia. Eu disse: hoje saí de casa sem comer, não tive tempo. Mas, sinceramente, só preciso de um café preto.

‘Vamo no CCA, lá cê vai encontrar’. Encontramos mais três pessoas dispostas a me achar um café, mas nada da bebida. Ao final do percurso dessa saga éramos em seis pessoas, três coxinhas de frango e dois copos grandes de café, conseguidos na biblioteca comunitária. (Trecho do Diário de Campo em 05/04/2022).

Outro arranjo que merece destaque é o Observatório De Olho na Quebrada, que produziu pesquisas sobre a fome da população de Heliópolis e as divulgou de forma maciça na própria comunidade. Esse Observatório é composto por jovens, que se encontram diariamente para produzir e resgatar dados sobre o bairro que habitam, e esses encontros são mediados pela partilha de alimentos.

Foi central, ao longo desta pesquisa, acompanhar de perto o trabalho realizado por esse grupo. Foi também por meio da comida partilhada no espaço do Observatório que foi possível conectar, conhecer novos mundos e circular afetos. Entre balas, cafés e bolachas, foi sendo construído o pertencimento a esse coletivo. A comida, portanto, vem estreitar os laços já existentes nesse grupo.

Partilhar o ato de cozinhar e a divisão de comida, ao longo da pandemia, foram ferramentas terapêuticas para lidar com o desconhecido imposto pela covid-19.

Ela conta que começou a cozinhar mais também por hábito, e para ter uma ‘ocupação para a cabeça, para não surtar’ [...] podendo agora compartilhar as tarefas de louça com a mãe e as comidas em excesso com outra jovem do Observatório. (Trecho do Diário de Campo em 29/03/2022).

As intervenções não farmacológicas para o manejo do cuidado em saúde mental foram essenciais para o enfrentamento da pandemia1616 Garcini LM, Rosenfeld J, Kneese G, et al. Dealing with distress from the COVID-19 pandemic: Mental health stressors and coping strategies in vulnerable latinx communities. Health Soc Care Community. 2022 [acesso em 2024 abr 11]; 30(1):284-94. Disponível em: https://doi.org/10.1111/hsc.13402.
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. O estabelecimento de rotinas, com inclusão de atividades culinárias e de educação física, apareceu em diversos relatos por parte dos jovens do Observatório, em especial, das mulheres do grupo.

A gente é vizinho, mas não tava se vendo. Até o dia que a mãe dele foi trabalhar e ele ficou sem comida, daí eu apareci lá com o arroz e bife para gente comer. Desde então, acabou o isolamento entre a gente, a gente mantinha com as outras pessoas, mas entre as nossas famílias deixou de existir. (Trecho do Diário de Campo em 20/05/2022).

A produção de um cuidado individual e coletivo a partir da alimentação foi algo extremamente pulsante no território de Heliópolis durante a pandemia, sendo essa a forma de enfrentamento coletivo mais encontrada.

Esse fazer político do povo pelo povo resgata uma herança quilombola em um território preto44 Belchior D, Moreira A. “O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”. In: Campello T, Bortoletto, AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 147-154. Além das tecnologias desenvolvidas nos quilombos para ampliar e compartilhar a produção de alimentos, as ações e atividades coletivas são marcas históricas no cotidiano dessas populações44 Belchior D, Moreira A. “O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”. In: Campello T, Bortoletto, AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 147-154.

Conclusões

O perverso projeto político imposto ao Brasil durante a pandemia de covid-19 acirrou as desigualdades sociais e produziu o retorno da fome enquanto um fenômeno social. A insegurança alimentar, somada à falta de alimentos nos pratos, tem cor, sendo as populações preta e parda as mais afetadas por elas.

A ausência de uma alimentação digna e de qualidade mata lentamente, desnutre e faz adoecer, produz subjetividades impregnadas pelo sofrimento mental. Combater a fome é possível, e está condicionado à implementação de políticas públicas conectadas com um projeto de país que busque enfrentar e superar as absurdas desigualdades, constitutivas da realidade brasileira.

Em meio à pandemia, com o agravamento das situações de vulnerabilidades, o resgate de práticas quilombolas e coletivas garantiu a manutenção da saúde (física, mas, também, mental) das populações expostas à fome. Produziu vida. Partilhar comidas foi um gesto coletivo e comunitário, que produziu vínculos, fez circular afetos de cuidado, de carinho e construiu novas realidades possíveis.

Destaca-se que o estudo reflete a realidade de uma parcela urbana da população que sofreu com as mazelas da fome. No âmbito da saúde, ainda é necessário que o debate sobre a fome seja feito de maneira mais crítica e recorrente, considerando a realidade social e desigual do Brasil. E, a partir dessa concepção, auxiliar na construção de políticas públicas de saúde eficazes e que reflitam a realidade da população.

Em um país com fome, comer e dividir alimentos não é uma mera prática assistencialista. Acima de tudo, é um ato político e de resistência.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Mbembe A. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: N-1 edições; 2018. 80 p.
  • 2
    Schall B, Gonçalves FR, Valente PA, et al. Gênero e insegurança alimentar na pandemia de covid-19 no brasil: a fome na voz das mulheres. Ciênc. saúde coletiva. 2022 [acesso em 2023 nov 4]; 27(11):4145-54. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-812320222711.07502022
    » https://doi.org/10.1590/1413-812320222711.07502022
  • 3
    Salles-Costa R. Desafios políticos da retomada da fome e da insegurança alimentar no Brasil. In: Campello T, Bortoletto AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 123-34.
  • 4
    Belchior D, Moreira A. “O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”. In: Campello T, Bortoletto, AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 147-154
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    Dowbor L. “Fome, uma decisão política e corporativa”. In: Campello T, Bortoletto AP. Da fome à fome: Diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Editora Elefante; 2022. p. 181-93.
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    União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região. Heliópolis contra coronavírus: saúde alimentar na pandemia. 2020. [acesso em 2022 jul 15]. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1qEIuFiVnbXxLm6toe9pLl9bNhXxGgV53/view
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  • 9
    Rolnik S. Cartografia Sentimental: Transformações Contemporâneas do Desejo. São Paulo: Editora Estação Liberdade; 1989.
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    Slomp Junior H, Merhy EE, Rocha M, et al. Contribuições para uma política de escritura em saúde. Athenea Dig. 2020 [acesso em 2022 jul 15]; 20(3):e2617. Disponível em: https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2617
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  • 12
    Gomes MPC, Merhy EE. Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental - Porto Alegre: Rede UNIDA; 2014. 176 p.
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    União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região. Doações levam esperança as famílias de Heliópolis e região. 2020. [acesso em 2022 jul 15]. Disponível em: https://www.unas.org.br/single-post/doacoes-levam-esperanca-as-familias-de-heliopolis-regiao
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2023
  • Aceito
    14 Nov 2023
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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