A abordagem territorial nos Territórios Sustentáveis e Saudáveis: um alargamento conceitual a partir da antropologia

The territorial approach in Sustainable and Healthy Territories: a conceptual enlargement from anthropology

Thais Rodrigues Penaforte Sobre o autor

RESUMO

A incorporação da noção de território, no contexto da produção de saúde, apoia-se em uma perspectiva regulada que o informa enquanto um agente passivo, submetido à ação humana. Contudo, quando se aproxima de conceitos orgânicos como a biointeração, observa-se que os fluxos dos agenciamentos operam em direção oposta ao antropocentrismo. Em vista disso, como objetivo, este ensaio pretende expandir a dimensão conferida ao território, na abordagem dos Territórios Sustentáveis e Saudáveis, tomando como fundamento a dimensão territorial na vida quilombola. Adotando o Território de Identidade do Recôncavo como ponto de partida, percebeu-se que ele se porta como um espaço vivo, compartilhado e conectável, que se funde à vida das interlocutoras deste estudo. Seja agenciando identidades ou efeitos terapêuticos, é por meio da sua capacidade de conduzir a relação individuo-território que tanto a vida quanto o processo saúde-doença são deslocados. Concluiu-se que é apenas a partir da recomposição desse arcabouço relacional que será possível orientar a uma produção sustentável da saúde.

PALAVRAS-CHAVE
Territórios Sustentáveis e Saudáveis; Saúde ambiental; Biointeração; Quilombolas; Conceitos ecológicos e ambientais.

ABSTRACT

The incorporation of the notion of territory, in the context of health production, is based on a regulated perspective, which informs it as a passive agent, subject to human action. However, when approaching organic concepts such as biointeraction, it is observed that the flows of agencies operate in the opposite direction to anthropocentrism. In view of this, as an objective, this essay intends to expand the territory dimension in the Sustainable and Healthy Territories approach, taking as a basis the territorial dimension in quilombola life. Adopting the Recôncavo Identity Territory as a starting point, it was perceived that it behaves as a living, shared and connectable space, which merges with the lives of the interlocutors of this study. Whether managing identities or therapeutic effects, it is through their ability to manage the individualterritory relationship that both life and the health-disease process are displaced. It was concluded that it is only by recomposing this relational framework that it will be able to guide a sustainable health production.

KEYWORDS
Sustainable and Healthy Territories; Environmental health; Biointeraction; Quilombola communities; Ecological and environmental concepts.

Introdução

A proposta de promoção de Territórios Sustentáveis e Saudáveis (TSS) pretende incidir sobre condições sanitárias e socioambientais, a partir de ações territorializadas, como forma de enfrentamento das determinações sociais da saúde. Nesse sentido, uma marca constante dessa abordagem é a centralidade do território, como princípio orientador e integrador do planejamento e ação na saúde11 Fundação Oswaldo Cruz. Programa Institucional Territórios Sustentáveis e Saudáveis (PITSS). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2019.,22 Machado JMH, Martins WJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Comum Ciênc Saúde. 2017;28(2):243-249.. Assim, a incorporação do território, no bojo das ações para efetivação da promoção da saúde, assenta-se em uma perspectiva de ação sobre este, a fim de modificar as “condições histórico sociais que determinam a saúde nos territórios”11 Fundação Oswaldo Cruz. Programa Institucional Territórios Sustentáveis e Saudáveis (PITSS). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2019.(9). Trata-se de um movimento que retrata o território, em um certo estado de espera, sendo receptáculo das experimentações sociossanitárias dirigidas à sua reformulação.

No entanto, a contribuição pretendida por este ensaio é de confrontar essa regulação do território pelo homem, para, a partir de uma perspectiva antropológica, o impulsionarmos como um ator-político33 Latour B. Onde Aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020.. Tal proposição não é desconhecida pelo campo da saúde coletiva que, eventualmente, destaca a existência dessas aproximações11 Fundação Oswaldo Cruz. Programa Institucional Territórios Sustentáveis e Saudáveis (PITSS). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2019.,44 Monken M, Barcellos C. O território na promoção e vigilância em saúde. In: Fonseca AD, Corbo AD. O território e processo saúde-doença. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2007. p. 177-224.. Entretanto, é precípuo da antropologia o compromisso “de aprender com a maior variedade de abordagens possível”55 Ingold T. Antropologia: para que serve? Petrópolis: Editora Vozes; 2019.(7). Ademais, se o interesse pelos TSS remete à investigação de seus contextos e fluxos, para ampliarmos essa abordagem, é preciso avançar teoricamente. É por essa razão que nos apoiaremos em um conceito que nasce da experiência íntima do homem com a terra: a biointeração66 Santos AB. Colonização, quilombos, modos e significações. Brasília, DF: INCTI/UnB; 2015..

Esse conceito resgata a comunhão do homem com a natureza, rebatendo qualquer distinção ou hierarquização entre eles. Ao contrário, ele resgata a consciência de que existimos com e no território, em uma relação do tipo orgânica66 Santos AB. Colonização, quilombos, modos e significações. Brasília, DF: INCTI/UnB; 2015.. Desse modo, quando Bruno Latour33 Latour B. Onde Aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020. defende que o território participa da história como um agente da vida pública, o conceito de biointeração informa que é o território que nos dirá qual a melhor forma de viver. Logo, o caminho metodológico mais seguro é investigar as agências e as confluências66 Santos AB. Colonização, quilombos, modos e significações. Brasília, DF: INCTI/UnB; 2015. do território. Ao delimitarmos seus participantes, suas possibilidades de existência e quem e o que está em jogo, conseguiremos entender como e por que as mudanças ocorrem77 Haraway D. O manifesto das espécies companheiras. Cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2021.. É um direcionamento que visa produzir conexões, e não cisões, uma vez que o próprio mundo deve ser tomado como um “nó em movimento”77 Haraway D. O manifesto das espécies companheiras. Cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2021.(11).

Em vista disso, nosso objetivo pretende expandir a dimensão conferida ao território na abordagem dos TSS, tomando como ponto de partida a dimensão territorial na vida quilombola. Para essa empreitada, teremos como interlocutoras duas mulheres quilombolas, destacadas como as mais velhas de suas comunidades. Juvani Viana, de 72 anos, é a líder espiritual da comunidade Kaonge, no município de Cachoeira-BA, e D. Nini é uma rezadeira de 85 anos, moradora da comunidade Buri em Maragogipe-BA. Ambas desfrutam de grande prestígio e reconhecimento dentro e fora de suas comunidades, sendo consideradas mestras dos saberes ancestrais (ou tradicionais).

Nosso contato remonta ao ano de 2014, quando iniciamos uma parceria com o Conselho Quilombola da Bacia e Vale do Iguape. Desde então, temos desenvolvido uma série de pesquisas voltadas ao levantamento do patrimônio terapêutico das comunidades quilombolas da Baía de Todos os Santos. Nossas conversas mesclam relatos orais e entrevistas, conduzidas embaixo de árvores sagradas e quintais coalhados de plantas medicinais. Tais momentos buscaram privilegiar a investigação de seus vínculos com o território, procurando identificar suas confluências e seus modos de interlocução. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal da Bahia, em conformidade com a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do conselho Nacional de Saúde, tendo Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) sob o nº 38573820.4.0000.8035 e parecer nº 4.616.600.

Nessa direção, tomaremos o território não como um espaço delimitado, mas como um emaranhado relacional que dá vida àqueles que o habitam. Como afirma Tim Ingold88 Ingold T. Estar Vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Editora Vozes; 2015., a experiência humana não é fundamentalmente situada, mas situante. Ela se expressa de maneira corporificada não dentro de lugares, mas através deles. Para tanto, foi preciso nos engajarmos em dimensões perceptivas, relacionais e existenciais, aderindo à extensão proposta por Christine Zonzon99 Zonzon CN. A observação participante “do ponto de vista dos nativos”. In: Alves PC, Nascimento LF. Novas fronteiras metodológicas nas ciências sociais. Salvador: Edufba; 2018. p. 105-134. à observação participante. Desse modo, o nosso observar buscou se afastar do pensamento sintético (que se ocupa em desenvolver o ter) para privilegiar o pensamento orgânico (engajado na produção de ser). Além disso, reconhecendo a nossa condição de aprendiz das nossas interlocutoras, subvertemos as lógicas de pesquisador e objeto de pesquisa, para produzirmos um caminho metodológico que seguiu os passos e as orientações delas.

Ademais, procurando nos afastar de conceitos estáveis ou universalizantes, perseguimos os contornos definidos em ação. Atuando a partir de uma dinâmica de auto(re)organização, o território emerge em meio a trajetórias singulares, projetando processos históricos únicos. Assim, nosso propósito é produzir reflexões, à guisa de um conceito indisciplinado, capaz de demonstrar como o território impulsiona cenários de vida e situações de saúde. Outrossim, é partindo do conhecimento tradicional que ofereceremos uma nova contribuição ao debate acadêmico.

Este ensaio se divide em duas seções e em uma pequena síntese final, que percorrem trajetórias distintas e complementares. Na primeira seção, buscaremos oferecer um panorama teórico-reflexivo que situa as transformações operadas nos termos ambiente, meio ambiente e território, a partir de políticas nacionais e programas internacionais de saúde. Na segunda, partiremos de uma crítica aos limites dirigidos ao território, pela abordagem dos TSS, para pensar no território como um fluxo biointerativo. Para esta discussão, iniciamos com o marco teórico dos TSS até sermos colapsados pelas experiências quilombolas. Essas últimas nos apresentarão os elementos fundamentais para a compreensão dos limites da questão identitária e dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS), como modo de assimilação da noção territorial.

A inclusão do território na saúde: perspectivas e transformações

A fim de compreender a ascensão do território, do campo geográfico para a saúde, é preciso remontar às transformações operadas no próprio conceito de saúde e seu rebatimento na organização de sua rede assistencial. Nesse processo, observaremos como o território foi tomado como uma derivação do meio ambiente e sua mobilização para fins de organização das ações e serviços de saúde.

O Relatório Lalonde1010 Lalonde M. A new perspective on the health of canadians: a working document. Ottawa: Government of Canada; 1981. foi um marco na contestação de uma visão reducionista da saúde, notadamente voltada à abordagem da saúde e da doença. Seus apontamentos despertaram para uma produção de saúde que exige mais que desenhos assistenciais bem elaborados. Considerando o impacto das ameaças ambientais e comportamentais e os limites dos sistemas de saúde, o relatório indica a necessidade de maior articulação com o meio ambiente. Sua proposta é de destinar atenção a esse setor, tanto quanto é dirigida à organização dos cuidados em saúde. Desse modo, o meio ambiente foi incluído como um dos elementos constituintes do campo da saúde conjuntamente com biologia humana, estilo de vida e organização da assistência à saúde. Além disso, o desenho conceitual a ele dirigido (cujo conteúdo guiará as ações de gestão e avaliação em saúde) o define como “all those matters related to health wich are external to the human body and over which the indivdual has little or no control”1010 Lalonde M. A new perspective on the health of canadians: a working document. Ottawa: Government of Canada; 1981.(32).

Em seguida a esse primeiro movimento, na Declaração de Alma-Ata1111 Organização Mundial da Saúde. Declaração de Alma-Ata sobre Cuidados Primários. Alma-Ata, URSS: OMS; 1978., ratificou-se a perspectiva de que o alcance de níveis mais altos de saúde só seria possível com a associação a outros setores. Ainda, postularam-se os cuidados primários de saúde como a chave para o alcance desse ideal. Assim, foram lançadas as bases para concepção de um novo segmento, o da promoção da saúde.

Referendado na Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada em Ottawa no Canadá1212 Organização Mundial da Saúde. Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. Carta de Ottawa. Ottawa: OMS; 1986., o conceito de promoção da saúde se apresentou como uma nova forma de fazer saúde pública e incluiu a necessidade de modificações no meio ambiente como um pré-requisito. Assim, aderindo a uma abordagem socioecológica, a promoção da saúde tomou as ligações entre a população e o meio ambiente, como a base para a criação de ambientes positivos, tendo como fundamento norteador a atuação recíproca entre: “cada um a cuidar de si próprio, do outro, da comunidade e do meio ambiente natural”1212 Organização Mundial da Saúde. Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. Carta de Ottawa. Ottawa: OMS; 1986.(2).

No entanto, antes de continuarmos, é preciso pontuar alguns aspectos limitantes das perspectivas ora apresentadas. A atuação recíproca reivindicada submete-se a um ordenamento unilateral. É o homem que cuida do meio ambiente, em uma nítida divisão entre a dimensão social e a natural. Então, a que se refere a abordagem socioecológica da saúde? Seria apenas uma justaposição dos termos - sociedade e ecologia? Isso porque, se considerarmos que, até o momento, a posição do meio ambiente se entrelaça a aspectos exteriores ao indivíduo, a sua função na produção de saúde torna-se ambígua. Se, por um lado, a sua participação e influência parecem estar bem estabelecidas, por outro, não é revelado como essas interações são processadas. Tomado como um conceito genérico, não há exploração da própria capacidade de ação/reação do meio ambiente. Outrossim, estando confinado à categoria de fator de influência, em detrimento da posição de ator, sua função se reduz a um tipo de paisagem que o campo da saúde se viu convencido a incorporar. Nessa perspectiva, escapa ao debate seus modos de mobilização e associação. Todavia, antes de nos debruçarmos nessa discussão, outros elementos adensaram essa perspectiva estática e domesticada do meio ambiente.

No contexto das inciativas, que visaram à ampliação do conceito de saúde, a superação da explicação biológica, como eixo central ao estudo das doenças, foi estimulada pela inclusão outras dimensões (como as sociopolíticas e ambientais) à complexa relação saúde-doença - e ainda que em alguns momentos houvesse a preponderância de determinados enfoques, a saúde pública sempre se manteve hegemônica, uma orientação voltada ao controle de doenças, fundamentada pelo conhecimento científico e epidemiológico1313 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis. 2007;17(1):77-93. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312007000100006
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Após 25 anos da Declaração de Alma-Ata, o desafio proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) foi de enfrentamento dos contrastes entre os padrões de saúde ao redor do mundo1414 World Health Organization. The World Health Report 2003: Shaping the Future. Genebra: WHO; 2003.. Para isso, essa organização liderou um conjunto de investigações acerca das circunstâncias capazes de influenciar negativamente a saúde das populações. Identificados como DSS, tais condições afetariam a maneira como as pessoas vivem e, consequentemente, a chance de serem acometidas por doenças. Além do mais, na perspectiva da equidade em saúde, os DSS se relacionam com as desvantagens que se dirigem a determinados grupos populacionais1515 World Health Organization. Closing the gap in a generation. Health equity through action on the social determinants of health. Genebra: WHO; 2008.. No Brasil, a criação da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS) procurou entrelaçar os DSS às análises de situação de saúde. Nesse panorama, por adotar como modelo analítico a proposta de Dahgren e Whitehead1616 Organização Mundial da Saúde, Comissão para os Determinantes Sociais da Saúde. Redução das desigualdades no período de uma geração: igualdade na saúde através da ação sobre os seus determinantes sociais. Relatório final. Genebra: OMS; 2010., o ambiente se posiciona como um determinante mais geral, comprometido, especialmente, com as definições de estratificações econômico-sociais, as quais se atrelam a diferenciações em saúde1313 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis. 2007;17(1):77-93. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312007000100006
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Com uma clara influência epidemiológica e de sua comunidade de pesquisadores1717 Almeida-Filho N, Kawachi I, Pellegrini Filho A, et al. Research on health inequalities in latin America and Caribbean: bibliometric analysis (1971-2000) and descriptive contente analysis (1971-1995). Am J Public Health. 2003;93(12):2023-2043. DOI: https://doi.org/10.2105/ajph.93.12.2037
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,1818 Martins PH. Usuários, redes de mediadores e associações públicas híbridas na saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: Cepesc; 2007. p. 115-142.
, os desenhos das DSS refletem preocupações particulares a depender da posição do ator que esteja indicando e/ou considerando determinado fator de risco. Para Martins1818 Martins PH. Usuários, redes de mediadores e associações públicas híbridas na saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: Cepesc; 2007. p. 115-142., quando quem está definindo os DSS são os planejadores da saúde,

há uma tendência a se enfatizar indicadores abstratos, aqueles condicionantes institucionais gerais, como educação, meio ambiente, trabalho, habitação, renda entre outros1818 Martins PH. Usuários, redes de mediadores e associações públicas híbridas na saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: Cepesc; 2007. p. 115-142.(132).

Por outro lado, quando são os usuários que indicam os DSS,

há uma tendência a se ressaltar indicadores concretos ligados a experiências religiosas, memórias de automedicação ou de visitas hospitalares, conselhos de pessoas de confiança1818 Martins PH. Usuários, redes de mediadores e associações públicas híbridas na saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: Cepesc; 2007. p. 115-142.(132).

Desse modo, o autor defende que é preciso confrontar o status explicativo e autoritativo dos DSS.

Nessa mesma direção, Bonet e Tavares1919 Bonet O, Tavares FRG. O cuidado como metáfora nas redes de prática terapêutica. In: Pinheiro R, Mattos RA. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: Cepesc; 2007. p. 263-278. reconhecem que a premissa dos DSS ignora o reconhecimento de que “a eficiência de um sistema de saúde passa por uma enormidade de procedimentos que não podem ser limitados em subsistemas com competências específicas”1919 Bonet O, Tavares FRG. O cuidado como metáfora nas redes de prática terapêutica. In: Pinheiro R, Mattos RA. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: Cepesc; 2007. p. 263-278.(193). Outrossim, a dinâmica e a heterogeneidade dos mediadores envolvidos no processo saúde-doença escapam ao controle dos planejadores. Além disso, o foco excessivo nessas determinações deixa de fora outros agenciamentos sobre os corpos e a própria dimensão incorporada (embodiment) da experiência do adoecer1919 Bonet O, Tavares FRG. O cuidado como metáfora nas redes de prática terapêutica. In: Pinheiro R, Mattos RA. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: Cepesc; 2007. p. 263-278..

Não obstante esses limites ora apresentados, o privilégio conferido aos DSS reforça uma visão das condições ambientais, como espaço de atuação e intervenção sanitária, sem localizar a relação sujeito-ambiente. Neste ponto, percebemos como os termos ambiente, meio ambiente e território se fundem e se confundem. Eles se fundem na retratação de uma dimensão situacional e organizativa das ações e serviços de saúde, mas se confundem na compreensão da sua relação com o homem e a vida.

Para Bruno Latour33 Latour B. Onde Aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020., o melhor termo a ser utilizado é território, porque esse, além de mobilizar emoções e posições mais contundentes que aquelas dirigidas ao meio ambiente, torna mais compreensível o espaço do problema ao se aproximar do mundo cotidiano dos indivíduos. “É uma questão de solo”33 Latour B. Onde Aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020.(18) que diz respeito aos nossos vínculos e aos nossos modos de vida33 Latour B. Onde Aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020.. Nessa dimensão, o território não materializa relações humanas, elas o habitam; e esse habitar, que aqui é tomado a partir de perspectiva de Tim Ingold88 Ingold T. Estar Vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Editora Vozes; 2015. (e que remete às relações que operam os processos de formação), potencializa-se quando associado ao conceito de biointeração. Todavia, essa é uma explicação antropológica - e, por ora, voltemos às escolhas sanitaristas para utilização do termo território.

Ao tomar como base o arcabouço legal do SUS, é possível notar que os primeiros documentos (Constituição Federal de 1988 e Lei nº 8.080/1990) adotam o termo meio ambiente para segmentar um dos espaços da saúde. Entretanto, com a organização do sistema de saúde municipal pela Norma Operacional Básica - NOB SUS 1/19962020 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.203, de 5 de novembro de 1996. Regulamenta a NOB SUS 01/96 no que se refere às competências da União, estados, municípios e Distrito federal, na área de epidemiologia e controle de doenças, define a sistemática de financiamento e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Nov 1996., o perímetro do município passa a conformar um território. Assim, o território assume contornos normativos, para definir um espaço de ação e abrangência, e o meio ambiente incorpora uma dimensão exterior. A partir de então, esses princípios ordenaram o uso desses termos nas políticas públicas subsequentes, como o Programa de Saúde da Família, a Política Nacional de Atenção Básica e a Política Nacional de Promoção da Saúde. Contudo, esse território, como referência à produção de saúde, em nenhum momento, ocupa um lócus de interesse por si mesmo. É por abrigar o local de residência das pessoas e ser a base da assistência e das investigações epidemiológicas que ele se imbrica à saúde e à qualidade de vida.

Nessa direção, movimentos como o das Cidades Saudáveis e, mais recentemente, os TSS vêm tentando agir sobre esses espaços, de modo a oportunizar novas produções de sentido e melhoria nas condições de vida e saúde. O primeiro, ao focalizar mecanismos alternativos para gestão das cidades, vincula-se à promoção da saúde para enfrentar as contradições que são vivenciadas nas cidades e suas múltiplas e complexas conexões, que operam em constante transformação e movimento2121 Hirao H. Da cidade dos afetos para a cidade saudável. Saude soc. 2020;29(2):e200054. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902020200054
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22 Sperandio AMG, Correa CR, Serrano MM, et al. Caminho para a construção coletiva de ambientes saudáveis: São Paulo, Brasil. Ciênc saúde coletiva. 2004;9(3):643-654. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232004000300016
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-2323 Westphal MF. Cidades saudáveis, estratégias e desafios em novos tempos. Labor e Eng. 2018;12(4):472-481. DOI: https://doi.org/10.20396/labore.v12i4.8654315
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. Buscando articular qualidade de vida, acesso ao conhecimento, comportamentos positivos, políticas públicas e participação popular, a construção das Cidade Saudáveis visa à organização comunitária que, por meio da luta cotidiana, agiria sobre os ambientes físicos e sociais2424 Adriano JR, Werneck GAF, Santos MA, et al. A construção de cidades saudáveis: uma estratégia viável para a melhoria da qualidade de vida? Ciênc saúde coletiva. 2000;5(1):53-62. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232000000100006
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A construção dos TSS também se apoia nas perspectivas da promoção da saúde, todavia, adota o território como elemento contextualizador de sua operacionalização2525 Gallo E, Setti AFF. Território, intersetorialidade e escalas: requisitos para a efetividade dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Ciênc saúde coletiva. 2014;19(11):4383-4396. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-812320141911.08752014
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. O território é tomado como base tanto para a atuação dos DSS quanto para o efeito das transformações políticas, econômicas e sociais22 Machado JMH, Martins WJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Comum Ciênc Saúde. 2017;28(2):243-249.. Assim, dialogando estritamente com o desenvolvimento sustentável, os TSS buscam dirigir a produção sociossanitária a partir de uma racionalidade contra-hegemônica22 Machado JMH, Martins WJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Comum Ciênc Saúde. 2017;28(2):243-249.,2525 Gallo E, Setti AFF. Território, intersetorialidade e escalas: requisitos para a efetividade dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Ciênc saúde coletiva. 2014;19(11):4383-4396. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-812320141911.08752014
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,2626 Gallo E, Setti AFF. Desenvolvimento Sustentável e Promoção da Saúde: implantação de agendas territorializadas e produção de autonomia. Saúde debate. 2012;36(esp1):55-67. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042012E08
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O fundamento para essa perspectiva de sustentabilidade se reporta às primeiras discussões acerca do termo ‘desenvolvimento sustentável’ inaugurado pelo Brundtland Report2727 United Nations. Report of the World Commission on Environment and Development. Our Common Future. Oxford: Oxford University Press; 1987.. Estruturado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1987, esse relatório desenvolveu princípios orientadores para o combate dos problemas ambientais nos países em desenvolvimento que sofriam com os padrões não sustentáveis de consumo e produção dos países desenvolvidos. Como forma de unificar desenvolvimento e ambiente, o termo desenvolvimento sustentável foi tomado como eixo norteador para salvaguardar o futuro global2727 United Nations. Report of the World Commission on Environment and Development. Our Common Future. Oxford: Oxford University Press; 1987.. Já no contexto das diretrizes para o campo sanitário, o meio ambiente foi apontado como um lócus da saúde, e não apenas em uma perspectiva geográfica, mas enquanto uma entidade que também provoca movimentos e intervenções nesse campo. Nesse sentido, o relatório reafirmou a necessidade de readequação das políticas de saúde, de modo a superar seu viés médico-biológico, para incluir abordagens integradas que incidam sobre outras dimensões capazes de afetar positivamente a saúde das populações2727 United Nations. Report of the World Commission on Environment and Development. Our Common Future. Oxford: Oxford University Press; 1987..

Assim, é possível demarcar que foi a partir da proposta de desenvolvimento sustentável que o envolvimento entre a saúde e o meio ambiente sofreu uma primeira crise paradigmática. De uma paisagem voltada à intervenção, exterior ou fracamente integrada à ação humana, ele se associa à vida social, abrigando a complexa trama das relações humano-ambientais. Um deslocamento que coaduna com o pensamento de Milton Santos2828 Santos M. O Espaço geográfico como categoria filosófica. Terra Livre [Internet]. 2015 [acesso em 2023 jun 6];(5):9-20. Disponível em: https://publicacoes.agb.org.br/terralivre/article/view/67
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, que defende que é a própria sociedade corporificada, dentro das unidades geográficas, que delimita o território, como resultado de transformações e produções, em seus aspectos materiais e imateriais, sendo a expressão da práxis humana.

A produção de saúde vislumbrada pela construção dos TSS, contudo, ainda recupera o sentido normativo de território, como “a base sobre a qual as determinações sociais da saúde produzem efeitos transformadores”22 Machado JMH, Martins WJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Comum Ciênc Saúde. 2017;28(2):243-249.(244), em um franco resgate da noção típica das políticas de saúde. Para se contrapor a essa posição, apoiamo-nos no conceito de biointeração66 Santos AB. Colonização, quilombos, modos e significações. Brasília, DF: INCTI/UnB; 2015.. É apenas reavivando o território e resgatando a sua agência que encontraremos uma realidade que é fruto de sua própria determinação2828 Santos M. O Espaço geográfico como categoria filosófica. Terra Livre [Internet]. 2015 [acesso em 2023 jun 6];(5):9-20. Disponível em: https://publicacoes.agb.org.br/terralivre/article/view/67
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. Nesse sentido, de acordo com Milton Santos,

de fato, as determinações não se podem fazer independentemente dos objetos sociais pré-existentes, aos quais se devem adaptar cada vez que elas - as determinações sociais - não podem criar novas formas nem renovar formas antigas2828 Santos M. O Espaço geográfico como categoria filosófica. Terra Livre [Internet]. 2015 [acesso em 2023 jun 6];(5):9-20. Disponível em: https://publicacoes.agb.org.br/terralivre/article/view/67
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No bojo das reorientações dirigidas ao conceito de saúde, portanto, é preciso propiciar um novo arcabouço sistêmico ao território. Abarcando a sua posição já delimitada, como objeto propício à análise social22 Machado JMH, Martins WJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Comum Ciênc Saúde. 2017;28(2):243-249., procuraremos desaterrá-lo do domínio da determinação social para alcançar novas propriedades ontológicas e organizativas. Desse modo, será a partir das relações entre o território e a população quilombola que, no contexto dos TSS, produziremos uma reflexão crítica acerca do conceito de território e sua ação na vida e na saúde. Procurando deslocá-lo de um certo pragmatismo sanitarista, buscaremos perceber o território em suas naturezas e articulações.

Territórios: espaços de vida e cuidado

A atuação estratégica da abordagem dos TSS opera a partir de uma agenda territorializada que fornece subsídios para a tomada de decisão e formulação de políticas públicas, de modo a interferir nos fatores ambientais que influenciam, negativamente, a saúde humana2525 Gallo E, Setti AFF. Território, intersetorialidade e escalas: requisitos para a efetividade dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Ciênc saúde coletiva. 2014;19(11):4383-4396. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-812320141911.08752014
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,2929 Fundação Nacional de Saúde (BR). Territórios sustentáveis e saudáveis: experiências de saúde ambiental territorializadas marco teórico. Brasília, DF: Funasa; 2021.
. Considera também que “o processo saúde-doença reflete as alterações territoriais, geográficas, demográficas, produtivas e culturais que impactam o lugar de vida”3030 Gallo E, Setti AFF, Magalhães DP, et al. Saúde e economia verde: desafios para o desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza. Ciênc saúde coletiva. 2012;17(6):1457-1468. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000600010
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. Portanto, intervir sobre as DSS é fundamental para promoção da justiça ambiental, equidade e sustentabilidade3030 Gallo E, Setti AFF, Magalhães DP, et al. Saúde e economia verde: desafios para o desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza. Ciênc saúde coletiva. 2012;17(6):1457-1468. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000600010
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À primeira vista, é notável a referência ao território como um organismo biológico ou como um corpo-território3131 Torres LV, Dias LO. Corpo-território e urbanidade: performance como proposta dialógica e de cura. PERI. 2022;1(18):25-40. DOI: https://doi.org/10.9771/peri.v1i18.49924
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. As transformações anômalas convertem o território em um espaço disfuncional, o que exige análises e técnicas de ação de ordem sanitária. Já os DSS desvelam a face mais explícita dessa regularidade causal. Ademais, a força do determinismo epidemiológico ratifica a relação positivista entre o território e o indivíduo.

É essa insistência em exteriorizar a natureza do homem, moldando o campo da saúde de maneira altamente antropocêntrica, que torna a proposta adotada para saúde ambiental problemática. Como afirma Latour3232 Latour B. Políticas da natureza. Como fazer ciência na democracia. Bauru: EDUSC; 2004., não existe a dicotomia entre política e natureza ou entre homem e natureza, nem mesmo entre sistemas de produção e ambiente. Saúde ambiental não deve ser um espaço de interseção ou de conjugação de campos, mas um cenário singular no qual a vida se desenrola. A falta desse entendimento conduz a um tipo de abstração que suprime a diversidade e a pluralidade de formas de vida e existência3333 Krenak A. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras; 2020.. Desse modo, os movimentos que se dirigem à saúde procuram impor uma noção específica de seu significado, e não a busca por contornos explicativos e compreensivos do processo saúde-doença. Assim, esse cenário se complexifica pelos próprios vieses que a compreensão de território assume.

Para subsidiar essa reflexão, tomemos como ponto de partida a proposta do marco teórico acerca dos TSS2929 Fundação Nacional de Saúde (BR). Territórios sustentáveis e saudáveis: experiências de saúde ambiental territorializadas marco teórico. Brasília, DF: Funasa; 2021., produzido pela cooperação interinstitucional entre a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Os produtos dessa cooperação compõem um conjunto de três publicações, que buscam subsidiar proposições futuras para a construção de TSS. Dado o seu pioneirismo, no fortalecimento institucional da saúde ambiental no SUS, e o elevado grau de organização de seus resultados, essa experiência foi tomada como plataforma para a problematização do uso do termo território.

Esse projeto teve como objetivo “promover práticas que conferem sustentabilidade aos territórios com base no protagonismo das populações e comunidades rurais e tradicionais”2929 Fundação Nacional de Saúde (BR). Territórios sustentáveis e saudáveis: experiências de saúde ambiental territorializadas marco teórico. Brasília, DF: Funasa; 2021.(13). Além disso, a base conceitual, que guia a concepção de território2929 Fundação Nacional de Saúde (BR). Territórios sustentáveis e saudáveis: experiências de saúde ambiental territorializadas marco teórico. Brasília, DF: Funasa; 2021., cita a perspectiva de Milton Santos que interrelaciona localidade e a identidade das pessoas.

O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da resistência, das trocas materiais e espirituais e do exercício identitário das comunidades que nele vivem2929 Fundação Nacional de Saúde (BR). Territórios sustentáveis e saudáveis: experiências de saúde ambiental territorializadas marco teórico. Brasília, DF: Funasa; 2021.(13).

O território nos TSS é tomado a partir da questão identitária, posicionando-se como lócus das intervenções, nas condições sanitárias e socioambientais, de comunidades expostas e vulneráveis aos DSS2929 Fundação Nacional de Saúde (BR). Territórios sustentáveis e saudáveis: experiências de saúde ambiental territorializadas marco teórico. Brasília, DF: Funasa; 2021.. Ademais,

permite entender as situações provocadas pelo desequilibro de forças entre os atores e aplicar propostas de desenvolvimento mais justas para cada localidade3434 Villardi JWR, Monken M, Netto GF, et al. Saúde, Ambiente, Sustentabilidade e Territórios. In: Fundação Nacional de Saúde (BR). Territórios sustentáveis e saudáveis: experiências de saúde ambiental territorializadas marco teórico. Brasília, DF: Funasa; 2021. p. 39-58.(41).

Nesse sentido, a dimensão territorial se submete às epistemes sanitárias. É apenas a partir do conhecimento científico que se revelarão os movimentos das forças que convergem negativamente sobre os indivíduos e as mudanças necessárias à transformação sociossanitária. As ações territorializadas se aproximam, desse modo, à uma missão civilizatória - e é por considerar a necessidade de intervenções contextualizadas que a planificação dos TSS adota os DSS para a implantação de sua agenda3535 Gallo E. Territórios Sustentáveis e Saudáveis: desafios teórico-práticos para o bem viver. In: Fundação Nacional de Saúde (BR). Territórios sustentáveis e saudáveis: experiências de saúde ambiental territorializadas marco teórico. Brasília, DF: Funasa; 2021. p. 99-124..

Essa primazia conferida às DSS na coordenação das ações retrata um território cuja base de ação já está, previamente, povoada por agentes externamente impostos. Não obstante, a realidade cotidiana da saúde opera a partir de contornos mais amplos, de caráter criativo e sensível, o que confere dinamismo e historicidade à experiência do processo saúde-doença3636 Bonet O, Tavares FRG. Redes em redes: dimensões intersticiais no sistema de cuidados à saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA. Gestão em redes. Práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: Cepesc; 2006. p. 385-400.. É, preciso, portanto, operar a partir de perspectivas que sejam capazes de entrelaçar vida e território, restaurando elementos que foram segmentados pelos campos disciplinares. Nessa lógica, esse é o fundamento do conceito de biointeração66 Santos AB. Colonização, quilombos, modos e significações. Brasília, DF: INCTI/UnB; 2015. que conflui com a antropologia ecológica de Tim Ingold3737 Ingold T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação [Internet]. 2010 [acesso em 2023 jun 9];33(1). Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/6777
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Para ambos os autores, é preciso converter a atual ancoragem do conhecimento, que se sustenta a partir de sistemas de informação, para se abrir a um diálogo histórico. Assim, pensar no território como “espaço de representações das relações em sociedade”3434 Villardi JWR, Monken M, Netto GF, et al. Saúde, Ambiente, Sustentabilidade e Territórios. In: Fundação Nacional de Saúde (BR). Territórios sustentáveis e saudáveis: experiências de saúde ambiental territorializadas marco teórico. Brasília, DF: Funasa; 2021. p. 39-58.(43) reduz aquilo que deve ser tomado como relacional, como uma entidade em si. Logo, nossa proposta remete a um território que “não é meramente uma fonte de problemas e de desafios adaptativos a serem resolvidos; ele se torna parte dos meios de lidar com isso”3737 Ingold T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação [Internet]. 2010 [acesso em 2023 jun 9];33(1). Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/6777
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. Nessa direção, nem o indivíduo nem o território podem ser tratados como elementos residuais ou isolados em si. O ponto de partida deve ser o agente situado, em um contexto de relações e interpenetrações com os demais (humanos e não humanos)3737 Ingold T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação [Internet]. 2010 [acesso em 2023 jun 9];33(1). Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/6777
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,3838 Benites LFR. Editorial de Tim Ingold (tradução). R Contemp Ant. 2022;1(40):307-314. DOI: https://doi.org/10.22409/antropolitica2016.1i40.a41787
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.

Trata-se de um tipo de confluência66 Santos AB. Colonização, quilombos, modos e significações. Brasília, DF: INCTI/UnB; 2015. entre homem e território que contribui para a produção de outras compreensões acerca da vida e da saúde. Nestas, é o território que dirige o esclarecimento da dimensão identitária, da agenda territorial e das necessidades operacionais. Um franco reconhecimento de que o território tem ação por si e que pode se fundir à realidade - e que produz como corolário que a “biointeração é a contra-colonização do desenvolvimento sustentável”3939 Martins G, Felipe HJ, Leal NS. Das confluências, cosmologias e contra-colonizações. Uma conversa com Nego Bispo. Rev EntreRios. 2019;2(1):73-84. DOI: https://doi.org/10.26694/rer.v2i1.10481
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. Destarte, se tais postulados nos parecem inovadores, não o são para os povos tradicionais, que desde sempre assumiram tais pressupostos como orientação epistemológica.

O Território de Identidade do Recôncavo é entendido por seus interlocutores como um espaço de conhecimento vivo, compartilhado e conectável4040 Colegiado Territorial do Recôncavo. Plano territorial de desenvolvimento rural sustentável e solidário - PTDRSS do Recôncavo. Cruz das Almas, BA: UFRB, 2017.. Tal reconhecimento indica a sua inexistência enquanto um objeto puramente atual ao mesmo tempo que ratifica a sua interconexão a outros elementos, a partir de circuitos coexistentes. Um movimento que se opõe ao conceito e à representação, e que busca na experimentação traçados dinâmicos, que se conformam diretamente com a natureza e com a história4141 Deleuze G. Diferença e Repetição. São Paulo: Paz e Terra; 1968.. Um desenho muito presente nas comunidades quilombolas e que moldaram a vida de Juvani e D. Nini.

Por parte de mãe, os avós de Juvani são originários da África, e por parte de pai, sua bisavó e sua avó eram ‘índias’ (optamos por manter a categoria nativa da interlocutora). Seu pai nasceu na cidade baiana de Cachoeira, na comunidade da Campina, e depois sua família foi morar na comunidade do Acupe. Esse movimento de Campina para o Acupe deu-se em razão da maior facilidade, nessa última, de acessar os barcos que se dirigiam à capital, servindo tanto para transporte de pessoas como para escoamento da produção. Ele ainda residiu na cidade de Salvador, e ao retornar para Cachoeira, morou novamente no Acupe e depois na comunidade da Sicupema. A sua mudança, em definitivo, para a comunidade do Kaonge se entrelaça ao afloramento de sua mediunidade. Após sonhar com números, ele fez uma aposta e ganhou uma quantidade de dinheiro suficiente para comprar um barco, que ele denominou de Nova Aldeia. Após uma celebração em agradecimento a essa conquista, um de seus primos indicou-lhe uma localidade em que ele pudesse se instalar - o Kaonge. Nesse novo território, ele estabeleceu o seu terreiro, a ‘Casa de Oração 21 Aldeias de Mar e Terra’, e fixou sua família, cujos descendentes permanecem até os dias atuais.

Juvani nasceu quando os pais viviam na comunidade da Sicupema e, com 7 anos de idade, passou a morar com a madrinha, na comunidade cachoeirana de Santiago do Iguape, para estudar. Aos 11 anos, seguiu com a madrinha para Salvador, onde ficou até a finalização de seus estudos. Juvani ainda estudava em Salvador quando seus pais falecerem. Isso fez com que, aos 14 anos, ela se instalasse em definitivo no Kaonge e no terreiro de seu pai. Hoje, ela é a líder espiritual da ‘Casa de Oração 21 Aldeias de Mar e Terra’ e mantém uma descendência de filhos de sangue e de fé nesse território.

Se analisarmos o entrelaçamento da vida de Juvani ao território do Kaonge, sem nos comprometermos com uma perspectiva etno-histórica, podemos incorrer em equívocos e estabelecer dicotomias artificiais sobre a relação entre identidade e dimensão territorial. Ao destinarmos atenção à historicidade das configurações sociais e seu caráter relativo com a terra, observamos como o território também age e se edifica a partir desse movimento histórico. Um pressuposto que se contrapõe às práticas que procuram impedir a visão desse movimento a partir da criação de pontos de fixação.

Nesse desenho, a identidade não se entrelaça nominalmente a um território, mas, a cada território, novas configurações identitárias são produzidas e acumuladas. Desse modo, tratar o território como uma aleatoriedade de traços, trajetórias e experiências é perder de vista a maneira como as relações são conduzidas, por e mediante ele. Ignora-se, portanto, a sua capacidade fundamental de modificar e ser modificado a partir de sua interrelação e integração com os indivíduos. Nesse sentido, o conceito de território deve privilegiar o processo historicamente dinâmico que, ao incidir sobre humanos e não humanos, em condições e relações particulares, produz novas identidades.

A inexistência de uma correspondência imediata, mas que é mediada pelo território, também implica uma noção de territorialidade que demarca diferentes vínculos de expressão. Nessa direção, igualmente, o efeito terapêutico das plantas medicinas tem sua funcionalidade imersa na interioridade do território, como veremos no relato de D. Nini. Quando perguntada acerca dos procedimentos adotados para a coleta das plantas medicinas, ela nos ensina que:

D. Nini: Todo mato a gente tem obrigação, por obrigação, de fazer pedido antes. Você tem o que é seu, não quer é que ninguém tire... Assim é isso, tudo tem domínio!

Pesquisadora: Então, até se a senhora for pegar, por exemplo, uma água de levante a senhora pede licença?

D. Nini: Com certeza... Com certeza. De manhã cedo, uma hora ou... Por favor, você me empresta uma galha de você para fazer tal remédio assim? Conversando que se entende, por que você não tem o que é seu para eu chegar aí meter a mão e fazer o que quero, você vai achar ruim... [...].

Pesquisadora: E para o efeito da planta a senhora também conversa com ela ou ela já sabe?

D. Nini: Não, tem também que conversar com ela. É como a gente, já tá morta não vai fazer o que? Ela viva é que a gente tem uma obrigação de conversar com ela, eu converso com isso, eu abraço, eu beijo, faço tudo.

Pesquisadora: Mas mesmo morta ela carrega o efeito ainda?

D. Nini: Sim. Ela morta vai fazer o efeito... Dela vai vir fazer o efeito.

A relação entre D. Nini, as plantas medicinais e o território destaca o dinamismo inerente a cada um desses elementos que não atuam sobre agentes passivos, mas sobre sujeitos ativos, capazes de uma vontade de associação e de modificação, a partir de seus interesses recíprocos e contextuais. Uma construção biointerativa de cuidado, que indica os saberes e fazeres de uma ação terapêutica. Aqui, novamente, argumentamos que o território não representa o mundo ou um conjunto de relações, ao contrário, ele conjuga fluxos desterritorializados4242 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34; 1995. V. 3. (tanto por meio de D. Nini quanto da própria planta) para, a partir de sua extensão territorial, propiciar agenciamentos de cura. Desse modo, a efetividade da ação terapêutica não poder ser individualizada, uma vez que é forjada na e em relação, o que implica a impossibilidade de repartir a ação de engajamentos, fatores terapêuticos e ambientais.

Nessa direção, as questões sanitárias só podem ser compreendidas em complementaridade à determinada visão de mundo e seus aspectos socioculturais4242 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34; 1995. V. 3.. Elas não devem estar inscritas em um modelo pragmático de conhecimento, que busca tornar os fenômenos cada vez mais tecnicamente controláveis e interpretáveis4343 Stengers I. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Editora 34; 2002.. É por essa razão que Tim Ingold3737 Ingold T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação [Internet]. 2010 [acesso em 2023 jun 9];33(1). Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/6777
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nega que fluxos ecológicos ou epidemiológicos sejam capazes de inscrever ações contexto-independente. O processo saúde-doença não é deslocado pelos DSS, mas pela relação individuo-território. Portanto, não há efeitos de causas, mas de relações. O ‘indivíduo situado’ se interliga à rede de sociabilidade em que se encontra inserido. Nessa trama, as relações estabelecidas não se estendem de modo uniforme, ao contrário, organizam-se em distintos graus de qualidade e diversidade3636 Bonet O, Tavares FRG. Redes em redes: dimensões intersticiais no sistema de cuidados à saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA. Gestão em redes. Práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: Cepesc; 2006. p. 385-400.. Desse modo, recompor esse arcabouço relacional, implicado em uma base territorial, é que deve orientar o conjunto de ideias, interpretações e percepções que esclarecem o processo saúde-doença.

Considerações finais

Ao longo deste ensaio, buscamos mostrar como a evolução das políticas e programas de saúde implicou modificações à situação do território, tanto no contexto da produção de saúde quanto no esclarecimento do processo saúde-doença. Mesmo com todas essas transformações, a resistência de uma orientação territorial aterrada nos fluxos dos DSS contribuiu para a corrupção de sua habilidade de atuar como o fluxo que se entrelaça às experiências humanas. Isso fez que com as políticas públicas de saúde não alcançassem os múltiplos níveis aos quais o território pode se abrir e se revelar.

Nesse panorama, impedidos de reconhecer a miríade de caminhos que ele torna possível, equivocou-se em pensar que seria o domínio antropocêntrico que governaria a relação território-saúde. No entanto, auxiliados pela antropologia, conseguimos perceber que é a dimensão biointerativa, entre homem e território que é capaz de fornecer um paradigma mais adequado, tanto ao desenvolvimento sustentável quanto à produção de saúde. Desse modo, a saúde pública não deve agir ‘sobre’ o território, mas se assumir como parte guiada ‘por’ ele. Apenas substituindo os antigos conceitos, elos e (pré)determinações, para pensar no território a partir de sua biointeração e confluências, conseguiremos reconhecer seus movimentos e compreender a sua vocação ética, que sempre escolhe os melhores caminhos e condições de desenvolvimento a todos os envolvidos.

  • Suporte financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia. Programa Pesquisa para o SUS - PPSUS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2023
  • Aceito
    06 Fev 2024
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