Multifatorialidade da regulação assistencial para sustentabilidade do território e da regionalização

Multifactoriality of care regulation for the territorial and regionalization sustainability

Débora Mendonça Amaral de Holanda Cavalcanti Ronald Pereira Cavalcanti Rogério Fabiano Gonçalves Keila Silene de Brito e Silva Daiane Cordeiro dos Santos Vinicius Paz dos Santos Adriana Falangola Benjamin Bezerra Sobre os autores

RESUMO

A regionalização é um processo de governança lógico, potente e indispensável no cenário da política de saúde. Diante dos desafios postos a uma regionalização solidária, que viabilize a universalidade do acesso, equidade e integralidade do cuidado, foi implantada a pioneira Rede Interestadual de Saúde do Vale do Médio São Francisco, na região entre os estados de Pernambuco e Bahia (Rede Peba). O estudo analisou a complexa relação gerencial que envolve, na coordenação do cuidado, agentes públicos e privados. A abordagem foi qualitativa, tendo como foco o processo de regionalização da Rede Peba, por meio da regulação assistencial, sob a perspectiva dos gestores, profissionais dos serviços e usuários. A análise da associação oferta-produção-fila de espera permite constatar que a qualificação da gestão da clínica e do processo de encaminhamento e necessidade de organização e comunicação são imprescindíveis para garantir acesso oportuno. Do contrário, ocorrem efeitos diretos no absenteísmo, impactando no aumento das filas, exigindo uma abordagem sistêmica e multifatorial para organização do processo regulatório. Fica evidente a necessidade de arranjos organizacionais envolvendo todos os atores no processo de formulação e desenvolvimento das políticas públicas de saúde, a fim de superar barreiras para a coordenação do cuidado e a integralidade em saúde.

PALAVRAS-CHAVES
Gestão em saúde; Regionalização da saúde; Regulamentação governamental; Formulação de políticas; Acesso aos serviços de saúde

ABSTRACT

Regionalization is a logical, powerful and indispensable governance process in the health policy scenario. Faced with the challenges posed to a supportive regionalization, which enables universal access, equity and comprehensive care, the pioneering Interstate Health Network of the Middle São Francisco Valley was implemented, in the region between the states of Pernambuco and Bahia (PEBA Network). The study analyzed the complex management relationship that involves, in the coordination of care, public and private agents. The approach was qualitative, focusing on the regionalization process of the PEBA Network, through care regulation, from the perspective of managers, service professionals and users. The analysis of the supply-production-waiting line association allows us to see that qualification of clinic management, the referral process and the need for organization and communication are essential to guarantee timely access. Otherwise, there are direct effects on absenteeism, impacting the increase in queues, requiring a systemic and multifactorial approach to organizing the regulatory process. The need for organizational arrangements is evident, involving all actors in the process of formulating and developing public health policies, in order to overcome barriers to care coordination and comprehensive health.

KEYWORDS
Health management; Regional health planning; Government regulation; Policy making; Health services accessibility

Introdução

A regionalização é um dos pilares fundamentais na estruturação e organização dos serviços e das ações de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), em que o planejamento e a organização da rede hierarquizada, com disponibilidade de densidades tecnológicas e assistenciais em níveis de atenção, são consolidados por base territorial, considerando as características socioeconômicas, os condicionantes e determinantes de saúde da região11 Viana ALd’Á, Bousquat A, Ferreira MP, et al. Região e Redes: abordagem multidimensional e multinível para análise do processo de regionalização da saúde no Brasil. Rev Bras Saúde Mater Infant. 2017;17:7-16. DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9304201700S100002
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Um processo de regionalização efetivo é capaz de contribuir com o desenvolvimento regional, bem como a melhoria dos indicadores de saúde. Parte-se do pressuposto de que, através da organização dos serviços e das ações de saúde de forma regional, pode-se atingir a universalidade do acesso e diminuir desigualdades socioeconômicas e espaciais11 Viana ALd’Á, Bousquat A, Ferreira MP, et al. Região e Redes: abordagem multidimensional e multinível para análise do processo de regionalização da saúde no Brasil. Rev Bras Saúde Mater Infant. 2017;17:7-16. DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9304201700S100002
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A fim de garantir a integralidade da saúde, por meio do processo de referência de serviços, o processo regulatório no SUS ocorre sob a ótica da regionalização, considerando as diferentes responsabilidades sanitárias de cada ente federativo – união, estado e município – conforme a complexidade financeira e tecnológica dos serviços. Além disso, a organização do processo regulatório deve estar consoante com os arranjos de rede, integrando os níveis de atenção (primária, média e alta complexidade) por meio da utilização dos sistemas logísticos, de apoio e de governança22 Martins WMCS. Regulação em saúde, instrumento de gestão do SUS na promoção do acesso: uma revisão integrativa [monografia na Internet]. Redenção: Instituto de Ciências da Saúde, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira; 2018 [acesso em 2022 jan 15]. Disponível em: https://repo-sitorio.unilab.edu.br/jspui/handle/123456789/243
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O funcionamento operacional e logístico das Redes de Atenção à Saúde (RAS) depende, dentre outros elementos, da regulação assistencial. Essa tem como objetos a organização, o controle, o gerenciamento e a priorização do acesso e dos fluxos assistenciais no âmbito do SUS33 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 1.559, de 1° de agosto de 2008. Institui a Política Nacional de Regulação do Sistema Único de Saúde – SUS. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2008 ago 4; Seção I:48-49.. A regulação assistencial compõe uma complexa realidade gerencial, onde estão presentes entes federativos e prestadores de serviços, públicos e privados, que atuam na rede de maneira direta ou indireta, seja na programação ou execução dos serviços, sendo fundamental estudos que identifiquem dificuldades e potencialidades na sustentabilidade do território.

A regulação assistencial, na proposta deste estudo, é utilizada como marcador para análise da regionalização na Rede Interestadual Pernambuco/Bahia (Rede Peba), sendo compreendida como estratégia de governança (dimensão governamental, abrangendo pactuações entre gestores estatais e organizações civis). A estratégia de governança de uma regional interestadual possui características próprias, se comparadas com outras regiões (distrital, municipal, intermunicipal), havendo sobreposição de dificuldades e maiores desafios.

A Rede Peba tem particularidades em relação às demais regiões de saúde do Brasil por ser a pioneira na sua conformação de território interestadual. Além de ser constituída por uma complexa relação gerencial de territórios que envolve, na coordenação do cuidado, agentes públicos, através dos municípios que compõem as regiões de saúde definidas pelo Plano Diretor de Regionalização e das duas gestões estaduais, e agentes privados, que exercem forte influência na coordenação dos serviços de saúde de abrangência interestadual44 Secretaria Estadual de Saúde da Bahia (BA); Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (PE). Tecnologia da informação: uma proposta de integração da Rede de Saúde do Vale do Médio São Francisco. Subprojeto Regional QualiSUS-Rede. Região Interestadual Pernambuco-Bahia: SES-BA, SES-PE; 2012..

Diante desse panorama de complexidade gerencial da RAS em uma região interestadual, este estudo teve como objetivo analisar o processo de regionalização na Rede Peba por meio da regulação assistencial, onde foram consideradas as perspectivas dos gestores, profissionais dos serviços e usuários, compreendendo os atores diversos partícipes do processo.

Material e métodos

Foi realizado um estudo de abordagem qualitativa na Rede Peba, localizada em território interestadual, composta por 53 municípios, com cerca de 2 milhões de habitantes e mais de 800 estabelecimentos de saúde que fazem parte da IV Macrorregião de Saúde de Pernambuco e da Macrorregião Norte da Bahia. A abordagem metodológica adotada permitiu explorar e compreender percepções, motivações, atitudes, crenças e valores relacionados aos processos e fenômenos investigados, de forma aprofundada55 Minayo MCS. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta In: Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 28. ed. Petrópolis: Vozes; 2009. p. 61-77..

Foram realizadas entrevistas semiestru-turadas com dezoito informantes-chaves com experiência, vivência e/ou informações relevantes sobre o objeto investigado66 O’leary Z. Como fazer seu projeto de pesquisa. Guia prático. Petrópolis: Vozes; 2019.. Os informantes foram classificados em três grupos: gestores, trabalhadores e usuários do SUS. O primeiro entrevistado foi contactado considerando seu papel como referência na atenção especializada de uma das linhas de cuidado da Rede Peba. Os demais, foram indicados pelos(as) próprios(as) participantes da pesquisa, seguindo o critério ‘bola de neve’77 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temat. 2014;22(44):203-220. DOI: https://doi.org/10.20396/tematicas.v22i44.10977
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Os gestores, trabalhadores e usuários elencados para participação transitavam em espaços estratégicos para o desenvolvimento do objetivo proposto. Sendo eles: espaços de gestão do processo de regulação, serviços da Atenção Primária à Saúde (APS), Unidades Básicas de Saúde do contexto urbano e rural e serviços de Média e Alta Complexidade (Hospital Estatal e Hospital Filantrópico). Os usuários selecionados faziam uso dos serviços de média e alta complexidade localizados nos municípios-sede das macrorregiões de saúde, Juazeiro-BA e Petrolina-PE e tiveram suas indicações realizadas por trabalhadores, como também entre usuários.

Para cada grupo de informantes foi utilizado um roteiro de entrevista com aspectos específicos. Com os entrevistados no grupo dos gestores, foi abordado o entendimento sobre regionalização em saúde, o processo de criação da Rede Peba e o processo regulatório em seu contexto; o acesso dos usuários aos serviços de saúde e os possíveis motivos para a existência das filas de espera e do absenteísmo.

No grupo dos trabalhadores, além dos pontos comuns na abordagem dos gestores, foi acrescida a viabilização do projeto terapêutico construído para o usuário/paciente e a atuação profissional na dinâmica de funcionamento do serviço público. Com os usuários, foi considerado todo o itinerário terapêutico, desde a sua experiência com o diagnóstico nos serviços de saúde até o tratamento, bem como outras experiências vividas no cuidado à saúde.

Para a identificação de cada entrevistado na análise dos questionários, foi adotado um sistema: sigla formada por uma letra, representando o grupo do qual o entrevistado faz parte (G, T ou U), seguida de um número, escolhido de forma aleatória, correspondendo a cada participante, depois a letra P e um número, representando a página da transcrição da entrevista em que a fala está localizada. A coleta de dados foi realizada entre os meses de novembro de 2020 e janeiro de 2021.

O método utilizado para analisar os dados foi a análise de conteúdo de Bardin, mediante o uso da análise temática, que analisa o discurso, indicando quais são os modelos de comportamentos e os valores de referências presentes e procura conhecer aquilo que está por trás das palavras proferidas pelo entrevistado88 Bardin L. Análise de conteúdo. Tradução: Luís Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70; 2016.. Os núcleos de sentido presentes nas entrevistas foram identificados e categorizados, como modo de organizar, realizar associações, descrever e analisar os dados66 O’leary Z. Como fazer seu projeto de pesquisa. Guia prático. Petrópolis: Vozes; 2019.. A partir da categorização foram produzidas inferências, permitindo o deslocamento da descrição para a interpretação dos conteúdos das mensagens e tornando possível a interpretação e compreensão teoricamente significativa dos conteúdos da comunicação88 Bardin L. Análise de conteúdo. Tradução: Luís Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70; 2016.. A categoria trabalhada neste artigo é a Multifatorialidade da regulação assistencial na sustentabilidade da regionalização na Rede Peba.

Este estudo é parte do projeto de pesquisa ‘Análise de distintas regulações assistenciais em uma rede interestadual de saúde: o caso da Rede Pernambuco/Bahia’, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Pernambuco – Facepe (Edital PPSUS n°10/2017, APQ-0561 – 4.06/17) e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco, sob parecer número 4.435.150 e CAEE: 04186917.2.0000.5208, em conformidade com as Resoluções n° 466/2012 e n° 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde99 Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução n° 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 jun 13., 1010 Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução n° 510, de 7 de abril de 2016. Trata sobre as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa em ciências humanas e sociais. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2016 maio 24.. Todos os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), após aceitarem participar.

Resultados e discussão

A regulação assistencial, integrante da estrutura logística da RAS, em seu aspecto normativo, tem sua ação focada na relação entre a demanda dos usuários por serviços de saúde e o atendimento às necessidades dos usuários, com vistas à manutenção de suas vidas e a efetiva prestação de serviços oferecidos pela Rede Pública de Saúde. Como mecanismo de comunicação entre os diversos pontos de atenção da RAS, a regulação tem papel fundamental na promoção da integralidade por meio de fluxos assistenciais, processos e protocolos. Diversos atores sociais participam do desenvolvimento da ação regulatória – entes federados, prestadores de serviços de saúde, trabalhadores e os usuários.

O funcionamento fragmentado das RAS, a inexistência de fluxos organizados entre os níveis de atenção à saúde, bem como a ausência de mecanismos, como prontuários eletrônicos integrados, que permitem a comunicação interprofissional qualificando a referência e contrarreferência do usuário na rede, são problemas evidenciados na literatura1111 Bousquat A, Giovanella L, Campos SEM, et al. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuários. Ciênc saúde coletiva. 2017;22(4):1141-1154. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.28632016
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, assim como na fala do trabalhador da Rede Peba. Este trabalhador reconhece que, na prática, não há uma regulação assistencial que cumpra seu papel de organização da rede, ao afirmar que

Não existe regulação. Existe uma central de marcação. Tem o pessoal aí, mas regulação não existe, o que existe hoje é uma central de marcação, não que todos são marcados, mas não se regula como deve ser. (T.5.P7).

A regionalização dos serviços, na perspectiva de construir RAS, propõe-se a orientar o processo de descentralização capaz de garantir o direito à saúde; a integralidade no cuidado e no acesso aos diferentes níveis de atenção e densidades tecnológicas; a resolubilidade e qualidade de assistência devendo, portanto, orientar o processo de identificação e construção de regiões de saúde, organizadas em uma rede de atenção regionalizada e hierarquizada1212 Viana ALd’À, Lima LD. Regionalização e relações federativas na política de saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. 216 p.. Sendo assim, a ausência de uma regulação assistencial capaz de integrar o sistema de saúde tem seu impacto no fortalecimento da Rede Peba, bem como na integralidade do cuidado à saúde.

A oferta de serviços de saúde foi analisada no Projeto Avaliação do Desempenho do Sistema de Saúde (Proadess), que descreve e compara indicadores de 17 Regiões de Saúde (RS), classificando-as em tipologia constituída por análise fatorial e de clusters, incluindo três dimensões: desenvolvimento econômico, desenvolvimento humano e complexidade do sistema de saúde. A RS de Juazeiro apresentou baixo desenvolvimento socioeconómico e baixa oferta de serviços de saúde. Já a RS de Petrolina caracterizou médio/alto desenvolvimento socioeconómico e baixa oferta de serviços1313 Pavão AL, Duarte CR, Viacava F, et al. Aspectos socioeconómicos, de estrutura e desempenho dos serviços de saúde das 17 regiões de saúde do Projeto Regiões e Redes. Novos Caminhos [Internet]. 2016 [acesso em 2022 jan15];7:1-31. Disponível em: http://https://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2015/12/NovosCaminhos7.pdf
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A análise do Proadess evidencia que, apesar dos avanços na disponibilidade de serviços com a implantação da Rede Peba, ainda há uma baixa oferta de serviços de saúde que atendam às necessidades dos usuários em sua integralidade. A baixa, ou inexistente oferta, não é constatada apenas por estudos, mas também pela vivência de usuários que buscaram o serviço.

Então esses exames não faziam pelo município [...] Eu paguei a cintilografia óssea, que é a do corpo todo; e paguei duas tomografias, uma do tórax e outra do abdome. Foi tudo pago! (U.1.P13).

Além da baixa oferta, ou ausência, outros fatores interferem na garantia do acesso aos serviços de saúde1212 Viana ALd’À, Lima LD. Regionalização e relações federativas na política de saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. 216 p.. No âmbito da regulação assistencial, tais acessos ocorrem por meio de processos regulatórios que, diante de fatores como a fragilidade no planejamento da oferta, a baixa qualidade nos encaminhamentos, a não absorção de profissionais qualificados, a fragilidade na relação com o setor complementar, entre outros, não garantem acesso oportuno aos cidadãos e favorecem a formação de filas de espera.

Os parâmetros assistenciais no SUS, historicamente, tiveram um caráter normativo que, em princípio, não consideravam evidências científicas para o cálculo das necessidades de saúde da população, mas, sim, séries históricas de produção. Em 2015, o Ministério da Saúde atualizou critérios e parâmetros para o planejamento e programação de ações e serviços de saúde no âmbito do SUS, na busca por definir aproximações de ofertas que levassem em consideração as necessidades de saúde da população, independente da série histórica da oferta de serviços, das restrições financeiras ou outros condicionantes1414 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Regulação, Avaliação e Controle de Sistemas. Critérios e Parâmetros Assistenciais para o Planejamento e Programação de Ações e Serviços de Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017..

Tais critérios e dimensionamentos foram baseados em evidências científicas publicadas em produções nacionais e internacionais, em locais onde os sistemas de saúde são centrados na atenção básica. Também foram realizadas comparações entre sistemas municipais de saúde com cobertura da Estratégia de Saúde da Família ampla e com Complexos Reguladores, a fim de desenvolver modelos que dessem conta da complexidade da relação Demanda x Oferta em saúde1515 Silva JFM. A relação público-privado para a atenção de média complexidade em uma região de saúde [dissertação na Internet]. Londrina: Universidade Estadual de Londrina; 2018 [aceso em 2022 fev 2]. 169 p. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?view=vtls000218226
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Apesar da existência de normas que possibilitam o planejamento e a programação da disponibilidade de ações e serviços de saúde, é possível identificar, na fala de um gestor, como o descompasso entre a programação da oferta e as necessidades da população impactam na fila de espera:

Mas, na verdade, o prestador contratualizado tem que cumprir as metas na oferta de consultas, e termina ofertando às vezes uma especialidade que não é o que a região necessita. (G.4.P7).

Em pesquisa realizada sobre a relação entre gestores públicos e prestadores do sistema privado complementar, destacando o processo de descentralização e regionalização do SUS, constatou-se que a relação público-privada na região estudada, no âmbito da média complexidade, era evidenciada como uma arena de conflitos de interesses que envolviam questões como financiamento, contratos, demanda, relação de profissionais, gestores, prestadores e usuários. Conflitos de interesses estes relacionados à macro e micropolítica, determinados por processos de gestão municipal e regional, com a presença de forte influência dos prestadores privados sobre os gestores públicos1515 Silva JFM. A relação público-privado para a atenção de média complexidade em uma região de saúde [dissertação na Internet]. Londrina: Universidade Estadual de Londrina; 2018 [aceso em 2022 fev 2]. 169 p. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?view=vtls000218226
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Tal realidade também é identificada na região da Rede Peba, sendo possível observar não só a divergência na programação entre a oferta e a demanda, mas também a fragilidade na forma de contratualização. No primeiro caso, fazendo com que haja oferta de especialidades com perdas primárias, ou seja, uma oferta maior que a demanda, enquanto em outras especialidades há filas com tempo de espera elevados. No segundo caso, a fragilidade na forma de contratualização, considerando que o prestador tem por competência contratual o alcance de metas do quantitativo de vagas ofertadas, engessando a atenção às necessidades de saúde e à demanda real existente.

Esse último aspecto aponta para a fragilidade na relação entre o setor público e o privado, restringindo a assistência em saúde à seletividade dos prestadores em ofertar o que é conveniente a seus interesses. E, diante de um modelo econômico neoliberal adotado pelo Estado brasileiro, que minimiza os investimentos nas políticas públicas e valoriza as iniciativas privadas, as programações são, por vezes, baseadas nas ofertas existentes e não nas necessidades de saúde da população.

Por exemplo, exames de imagem, a gente tava com um prestador que ofertava Ressonância e densitometria óssea e ele disse que não tem mais interesse de ofertar pro SUS aqui na região, mas Ouricuri ainda tem Tomografia e aí a gente regula pra lá. Então a gente regula bastante pra Recife o que não tem implantado aqui. (G.4.P8).

Em relação à baixa oferta de especialidades com alta demanda, outra questão levantada diz respeito à disponibilidade de profissionais qualificados. A desigualdade na distribuição territorial dos profissionais de saúde, bem como o déficit quantitativo e de qualificações de algumas categorias constituem problemas históricos no País1616 Rocha EMS, Boiteux PA, Azevedo GD, et al. Preditores educacionais para fixação de médicos em áreas remotas e desassistidas: uma revisão narrativa. Rev Bras Educ Med. 2020;44(1):e024. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.1-20190281
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Na busca por compreender e identificar os aspectos educacionais determinantes da fixação de médicos em áreas remotas e de-sassistidas, uma revisão de literatura aponta que um fator importante para a fixação de profissionais em áreas urbanas com escassez de profissional e em áreas rurais é o vínculo do profissional com a região, caracterizado não somente pela naturalidade, mas também pelo tempo de residência na localidade1616 Rocha EMS, Boiteux PA, Azevedo GD, et al. Preditores educacionais para fixação de médicos em áreas remotas e desassistidas: uma revisão narrativa. Rev Bras Educ Med. 2020;44(1):e024. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.1-20190281
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Considerando ser a oferta de graduações e especializações um dos fatores importantes para a fixação de profissionais na região1616 Rocha EMS, Boiteux PA, Azevedo GD, et al. Preditores educacionais para fixação de médicos em áreas remotas e desassistidas: uma revisão narrativa. Rev Bras Educ Med. 2020;44(1):e024. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.1-20190281
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, a criação, em 2002, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), uma das primeiras Universidades Federais a ter sede no interior do Nordeste, é de suma importância para o fortalecimento da Rede Peba. Além do Curso de Medicina, oferecido desde a inauguração da Univasf, em 2010, foram criados os programas de Residência Médica: Medicina de Família e Comunidade, Clínica Médica e Cirurgia Geral.

Neste sentido, a ausência de especialistas não é apontada pelos gestores como um fator negativo, mas, sim, o fato de haver uma resistência dos profissionais em exercer suas funções no SUS. A solução foi conceder benefícios, a exemplo da negociação de carga horária de trabalho, para garantia do acesso ao serviço pela população.

Neuro teve uma época que não ofertava nada, porque nenhum neuro aqui quer e bota a maior dificuldade pra trabalhar no SUS. Mas aí ela conseguiu um neuro para vir de Recife, pra atender quinzenalmente. Foi aí que conseguiu e tem um outro de Juazeiro também. (G.4.P25).

A redução de carga horária como moeda de negociação para garantir oferta de especialidades com escassez de profissionais termina por ser uma estratégia paliativa, que limita a oferta e perpetua a existência de demoradas filas de espera.

Na percepção de trabalhadores, a baixa oferta não é apenas devido à ausência de profissionais especializados na região. Há outros motivos da não adesão dos profissionais de saúde ao SUS, relacionados aos processos de trabalho e à estrutura dos serviços de saúde, como na fala seguinte, que ressalta o aspecto estrutural.

Nós temos um único cirurgião oncológico no SUS para uma população de 2 milhões de habitantes. Aí você diz: ‘mas é porque não tem cirurgiões oncológicos’. Tem, lógico que tem. Têm outros cirurgiões oncológicos. Só que os serviços não aumentaram suas capacidades de funcionar para absorver essas pessoas que estão no mercado, e nem para dar fluxo a uma fila que existe. (T.2.P2).

Ainda no âmbito dos fatores associados à fila de espera, na percepção de trabalhadores, a frágil qualificação da gestão da clínica e da coordenação do cuidado por parte de profissionais que estão atuando no nível da APS têm impacto negativo na qualidade dos encaminhamentos ao nível secundário, consequentemente no aumento das filas de espera.

Agora, outro aspecto da fila de espera é o encaminhamento desnecessário, que é também um aspecto bem importante. Você vê que a maior parte dos trabalhadores que estão atuando hoje na atenção primária não têm qualificação suficiente para tal, não fazem uma consulta como deve ser feita. Então há um encaminhamento desnecessário enorme no município. (T.1.P.6).

Em estudo realizado na central de regulação do município de Mombaça-CE, identificou um número considerável de encaminhamentos para média complexidade, oriundos da APS, tanto para consultas quanto para exames especializados. No entanto, ao comparar o número de atendimentos realizados na APS no mesmo período, observou-se que o volume não era o maior entrave, mas, sim, o tempo inoportuno para o agendamento e falhas nas descrições das justificativas clínicas e hipóteses diagnosticas1717 Marques ANT. Avaliação dos encaminhamentos da atenção primária para a atenção especializada na central de regulação [dissertação na Internet]. Fortaleza: Faculdade de Farmácia, Odontologia e Enfermagem, Universidade Federal do Ceará; 2019 [acesso em 2022 mar 26]. 88 p. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/49524/1/2019_dis_antsousa.pdf
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Em avaliação do tempo de espera médio pela primeira consulta com médico especialista, outro estudo verificou que, nos formulários de encaminhamento em que a justificativa clínica estava completa, o tempo de espera para a consulta foi menor, quando comparado aos formulários com a justificativa parcialmente preenchida1818 Vieira EWR, Lima TMN, Gazzinelli A. Tempo de espera por consulta médica especializada em um município de pequeno porte de Minas Gerais, Brasil. REME Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [acesso em 2022 mar 26];19(1):65-71. Disponível em: http://www.revenf.bvs.br/pdf/reme/v19n1/v19n1a06.pdf
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A Política Nacional de Atenção Básica considera de suma importância o planejamento e organização da agenda, assim como a avaliação constante dos agendamentos, pois quanto maior o tempo de espera, maior a chance de os usuários buscarem outros meios de resolver os seus problemas e maiores costumam ser as taxas de absenteísmo dos pacientes agendados1919 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Acolhimento à demanda espontânea. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013..

A gente fez aqui no município de Juazeiro em 2015 / 2014 [...] E aí começamos a ligar, quase nenhum paciente tinha vindo a óbito. ‘Sr. Paciente, por que é que você não veio?... Ahhh, porque eu estava sentindo isso, o médico passou esse tanto de exame que eu não precisava, aí nem fui...’, ‘Ah, porque demorou muito, eu vendi meu carro, minha casa e fui fazer outro exame’. Então são situações compartilhadas da necessidade que não existia e da demora em ofertar serviços. E essa demora em ofertar serviços é muitas vezes desse inchaço que não tinha necessidade. (G.3.P35).

Fica assim explícita a percepção de gestores de que, encaminhamentos fora da necessidade clínica do usuário, associado ao tempo de espera na fila e a urgência necessária para realização do procedimento/consulta são fatores determinantes na relação fila de espera x absenteísmo. Esta visão é ponto comum, perceptível quando observamos a afirmação de um trabalhador baseada em sua vivência.

Quando eu era residente eu rodava nos serviços com alguns especialistas, e eu ficava chocada. Eu ia lá acompanhar um ginecologista e tinha lá 3 pessoas agendadas para ela. E eu na minha unidade não conseguia marcar consulta com ginecologista, né. Então... tinham 3 pessoas agendadas que estavam lá presentes, outras que estavam agendadas e não foram, por que não foram? Porque às vezes não conseguiam chegar àquela informação a tempo para aquelas pessoas que tinham consulta naquele dia. Ou então, às vezes demora tanto para conseguir marcar aquela consulta, que quando chega a pessoa já buscou outras formas de tentar resolver aquilo. (T.1.P4).

O planejamento e a programação dos serviços de saúde, além da atenção ao usuário que busca a resolução de seus problemas de saúde individuais e coletivos, visam a economia de escala1717 Marques ANT. Avaliação dos encaminhamentos da atenção primária para a atenção especializada na central de regulação [dissertação na Internet]. Fortaleza: Faculdade de Farmácia, Odontologia e Enfermagem, Universidade Federal do Ceará; 2019 [acesso em 2022 mar 26]. 88 p. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/49524/1/2019_dis_antsousa.pdf
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. Neste sentido, quando ocorre o absenteísmo, além da oportunidade perdida de garantir assistência a outro usuário que a necessitava, há prejuízo financeiro, bem como comprometimento da visão do serviço frente à sociedade, desqualificando o SUS, constituindo um grande custo social. A ociosidade de recursos disponíveis é um desperdício que favorece a formação das filas de espera.

A organização de fluxos assistenciais e de dispositivos regulatórios com conhecimento dos profissionais, racionalizando a oferta existente, tende a potencializar a qualidade assistencial aos usuários. Para isso, faz-se necessária a criação de linhas e/ou espaços institucionais de comunicação entre os serviços da APS, e dessa com os serviços da Atenção Especializada e da central de regulação, que permitam decisões coletivas, simplificação de processos e celeridade na resolução de itinerários terapêuticos.

A gente tem um grupo de WhatsApp dos médicos do município e pode ter certeza que se eu abrir aqui vai ter alguém perguntando ‘ah eu tô com paciente tal, para onde é que eu mando?’. Porque fica perdido no fluxo assim, é uma coisa que ninguém compreende, e toda hora muda também, então a gente nunca sabe. (T.5.P2).

O desconhecimento dos fluxos formais e o contato informal entre profissionais favorecem o acesso dos usuários à rede de atenção através de relações pessoais, que, por muitas vezes, se dá fora dos protocolos clínicos, além de promover um acesso desigual aos pontos de atenção2020 Silva AP, Morais HMM, Albuquerque MSV, et al. Os desafios da organização em rede na atenção psicossocial especializada: o caso do Recife. Saúde debate. 2021;45(128):66-80. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202112805
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A consolidação de um modelo de atenção à saúde que tenha a APS como coordenadora do cuidado, com capacidade de articular os diferentes pontos da RAS, garantindo a integralidade do cuidado ao usuário, é um consenso na Rede Peba. Também se percebe a necessidade de investimentos e estratégias de qualificação da assistência – imprescindíveis para fortalecimento da gestão da clínica e da rede, com tomadas de decisões baseadas nas necessidades do cidadão – e da gestão do SUS.

A fragilidade na consolidação/fixação e na qualificação é apontada, não só no âmbito do profissional da assistência, mas também da gestão do sistema de saúde. Na visão de gestores, torna-se um desafio conduzir o processo de planejamento e discussão da RAS em âmbito interestadual diante da qualificação, bem como da rotatividade dos gestores da saúde.

Qualificação de gestores, e a gente vê que esse próximo ano mais de 50% dos gestores da Rede Peba vão mudar, então é um desafio muito grande pra gente que vai começar tudo de novo. São novos gestores, novos secretários de saúde, novos gestores de hospitais. Isso é bom e ruim. (G.2.P11).

Diante da fragilidade de efetivar a regionalização e da necessidade de fortalecimento de instrumentos de planejamento, monitoramento e avaliação, o Ministério da Saúde, através do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), vem realizando investimentos em estratégias de qualificação da gestão do SUS.

São 3 regionais que são polo da Bahia. E tem as 3 regionais de Pernambuco que são Salgueiro, Ouricuri e Petrolina. A gente ainda está encaminhando, mas na medida do possível isso tem acontecido para que esses municípios resolvam os problemas dos municípios que são do seu entorno. Senhor do Bonfim, por exemplo, tem 9 municípios que são dependentes dele, então é muito mais efetivo que Senhor do Bonfim esteja fortalecido para que esses pacientes não precisem vir para cá. Então a nossa luta tem sido essa. Inclusive no plano que tem sido construído pelo HAOC (Hospital Alemão Oswaldo Cruz) [Proadi-SUS], é fortalecer essas regiões para que elas não fiquem dependentes e superlotando os grandes municípios polos ou as capitais. (G.3.P5).

A parceria do Ministério da Saúde com o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, que desde 2009 desenvolve projetos inseridos no âmbito do Proadi-SUS, constitui um arranjo de articulação da relação pública e privada nas políticas de saúde no Brasil. A implementação dos projetos de apoio ao desenvolvimento institucional prevê, além da oferta da saúde, ações voltadas à pesquisa, capacitação dos profissionais e gestão em serviços de saúde2121 Borysow IC, Limeira PC, Pinho APNM, et al. Avaliação de portfólio: A experiência do HAOC no Proadi-SUS. RBAVAL. 2021;10(2):e101921. DOI: https://doi.org/10.4322/rbaval202110019
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O projeto Fortalecimento dos Processos de Governança, Organização e Integração da Rede de Atenção à Saúde: Regionalização, em execução através do Proadi-SUS, pensado para apoiar a elaboração do Planejamento Regional Integrado (PRI), pelos gestores e profissionais que levantem problemáticas e elaboração de indicadores que permitam o monitoramento e a avaliação das ações programadas, com efeito duradouro, permeável às mudanças governamentais2222 Ministério da Saúde (BR); A Beneficência Portuguesa de São Paulo; Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Projeto: Fortalecimento dos Processos de Governança, Organização e Integração da Rede de Atenção à Saúde: Regionalização [Internet]. Brasília, DF: Hospitais PROADI-SUS; [data desconhecida] [acesso em 2022 abr 23]. Disponível em: http://hospitais.proadi-sus.org.br/projeto/regionalizacao1
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Além da análise dos investimentos realizados no fortalecimento da governança na Rede Peba, por meio de processos de qualificação, é possível observar que a relação público-privado transcende a complementaridade da oferta de ações e serviços para a organização e estruturação das políticas de saúde. Em tese, ao serem analisados os triênios 2009-2011, 2012-2014 e 2015-2017 do Proadi-SUS, constatou-se a realização de 407 projetos no valor de R$ 3.377.444.187,62, com aumento real dos recursos investidos no programa, com variação anual de 40% e 42% para o segundo e terceiros triênios2323 Santos JA. Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS): reconfiguração das relações público-privadas e avanço da filantropia mercantil no setor da saúde [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2021. 206 p..

Além da fragilidade com falta de transparência no monitoramento e avaliação do Programa, foram notificadas dificuldades no alinhamento às diretrizes do SUS e aos projetos. No que diz respeito às instituições privadas participantes, além da isenção de impostos concedida, os dados indicam benefício direto. Cabe ressaltar que os hospitais partícipes do Programa, todos de grande porte, concentram parte significativa do capital privado do setor da saúde. No entanto, pontua-se que, diante da falta de financiamento da política de saúde e do cenário de austeridade, os recursos são significativos, além do Programa ser visto como uma forma de contornar a burocracia estatal2323 Santos JA. Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS): reconfiguração das relações público-privadas e avanço da filantropia mercantil no setor da saúde [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2021. 206 p..

Sim, foi aprovado na CRIE (Projeto do Proadi-SUS) e foi mandado pro Ministério e vai pra outras instâncias de cada estado. Ele tá sendo conduzido pelos dois COSEMS dos dois estados, é quem tão junto com a HUOC à frente do projeto. Então a gente tá bem esperançoso que vai andar. (G.3.P20).

Na fala de gestores, é possível identificar que o Projeto fortalece a crença no êxito do processo de regionalização na Rede Peba. Nos últimos anos, foram estabelecidos critérios e diretrizes para a regionalização e definido que o acordo de colaboração entre os entes, disposto no inciso II do art. 2º do Decreto nº 7.508/2011, é resultado do PRI. Além disto, o Ministério da Saúde assume o papel de indutor das articulações entre os entes, nas discussões interestaduais2424 Ministério da Saúde (BR); Comissão Intergestores Tripartite. Resolução CIT nº 23, de 17 de agosto de 2017. Estabelece diretrizes para os processos de Regionalização, Planejamento Regional Integrado, elaborado de forma ascendente, e Governança das Redes de Atenção à Saúde no âmbito do SUS. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2017 ago 1; Seção I:96-97., 2525 Ministério da Saúde (BR); Comissão Intergestores Tripartite. Resolução CIT nº 44, de 25 de abril de 2019. Define que o acordo de colaboração entre os entes federados, disposto no inciso II do art. 2º do Decreto nº 7.508/2011, é resultado do Planejamento Regional Integrado. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2019 maio 20; Seção I:114.. Apesar de não aparecer nos resultados, a necessidade de arranjos organizacionais, construídos de forma coletiva, são necessários para a coordenação do cuidado e a integralidade em saúde. Cria-se a expectativa de que o PRI consolide a regionalização da saúde no SUS.

Considerações finais

O processo de regionalização da Rede Pernambuco/Bahia surgiu a partir da necessidade de formalização de um fluxo assistencial existente informalmente, criado pela busca da garantia do direito à saúde por parte dos usuários dos dois estados, especificamente da Região de Juazeiro e Petrolina. As limitações da Rede são constatadas a partir da Regulação Assistencial, mas são reconhecidos avanços no que diz respeito à disponibilidade de ações e serviços de saúde, ainda que não garantam a integralidade do cuidado.

A análise sobre as filas de espera e resultados da associação de oferta-produção-fila de espera na região da Rede Peba leva a uma perspectiva multifatorial. Há a percepção que a qualificação da gestão da clínica, do processo de encaminhamento e a necessidade de organização e comunicação na Rede são imprescindíveis para garantir um acesso oportuno. A ausência deste acesso tem efeitos diretos no absenteísmo e impacta no aumento das filas, exigindo, assim, uma abordagem multifatorial e sistêmica para a organização do processo regulatório.

Para superar as barreiras na coordenação do cuidado e para a integralidade em saúde, destaca-se a necessidade de reformulação da atual estrutura de governança que se encontra fragmentada, partindo para arranjos organizacionais perenes, construídos de forma coletiva, buscando ampliar a participação e o envolvimento de atores no processo de formulação e desenvolvimento das políticas públicas de saúde.

O período pandêmico e de troca de gestão municipal pode ser apontado como um limitador no acesso desta pesquisa aos atores-chave no processo de regionalização da Rede Peba. No entanto, o conhecimento e a perspectiva de análise dos participantes mostraram-se suficientes para a compreensão do objeto de estudo e a proposição de melhorias na constituição de redes regionalizadas no âmbito do SUS.

Diante da complexidade da instituição de um processo de regionalização e de uma Rede Interestadual de Saúde que consigam estruturar um modelo de atenção baseado nas necessidades sociais em contexto inter-regional, são necessários estudos mais aprofundados, com abordagem multidimensional, que possibilitem analisar as dimensões política, estrutural e organizacional da Região do Vale do Médio São Francisco, identificando o grau de influência de cada uma dessas dimensões no processo de regionalização. Com isso, será possível impulsionar a construção de modelos de gestão, regulação e atenção à saúde que concretizem a Rede Peba.

  • Suporte financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa de Pernambuco - Facepe (Edital PPSUS nº10/2017, APQ-0561-4.06/17

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2023
  • Aceito
    13 Maio 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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