Acesso da população LGBT aos serviços de Atenção Primária à Saúde em uma cidade do interior baiano

Jaciane Ferreira dos Santos Artur Alves da Silva Eliene Almeida Santos Simone Santana da Silva Sobre os autores

Resumo

Mesmo com a criação de políticas públicas voltadas para melhoria do acesso da população LGBT aos serviços de saúde, persiste muita fragilidade nas estratégias inclusivas para esta população. O estudo analisa o acesso da população LGBT às Unidades Básicas de Saúde do município de Senhor do Bonfim, Bahia, a partir de dimensões de acesso teorizadas por Giovanella e Fleury e aprofundados por Assis e Almeida. Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa exploratória que utilizou como técnica de seleção da amostra a snowball sampling, na qual os participantes indicam outros participantes. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas e uma análise de conteúdo temática organizada em quatro dimensões analíticas: à luz da dimensão simbólica, à luz da dimensão técnica, à luz da dimensão política e à luz da dimensão econômica. Os resultados apontaram fragilidades no acolhimento da população LGBT nos serviços de atenção básica à saúde. As pessoas LGBT participantes apontam experiências com profissionais desqualificados para atender suas necessidades e seus anseios, além do convívio cotidiano com preconceito, discriminação, estigma e desrespeito. Os padrões sociais instituídos socialmente influenciam negativamente na inclusão das pessoas LGBT nos serviços.

Palavras-chave:
Acesso aos serviços de saúde; Minorias sexuais e de gênero; Atenção Primária à Saúde

Introdução

A população de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis (LGBT), em todo o mundo, luta historicamente pela garantia de direitos. Nesse caminho, enfrenta barreiras no contexto familiar, na escola, no trabalho e nos serviços de saúde (Crenitte , 2023CRENITTE, M. R. F. et al. Transforming the invisible into the visible: disparities in the access to health in LGBT+ older people. Clinics, v. 78, p. 100149, jan. 2023. DOI 10.1016/j.clinsp.2022.100149.
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; Melo , 2022MELO, L. S. et al. Nurses and health care for gay adolescents. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 30, n. esp., 2022. DOI 10.1590/1518-8345.6293.3792. Available at: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692022000200217&tlng=en.
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; Paiva , 2023aPAIVA, A. T. et al. Atuação de enfermeiras da Estratégia Saúde da Família na atenção à saúde LGBT+. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 76, n. 4, 2023a. DOI 10.1590/0034-7167-2022-0514pt.
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). Os processos discriminatórios agem nas identidades que desviam da norma biologicista e binária, ou seja, centralizadas na reprodução e, em geral, tudo que desvia da norma é violentado e excluído (Paranhos; Willerding; Lapolli, 2021PARANHOS, W. R.; WILLERDING, I. A. V.; LAPOLLI, E. M. Formação dos profissionais de saúde para o atendimento de LGBTQI+. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 25, p. e200684, 2021. DOI 10.1590/interface.200684.
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).

No Brasil, as lutas do movimento LGBT começaram a ganhar força em meados da década de 70. O Grupo de Afirmação Homossexual - Somos, organizado em São Paulo, é considerado o precursor na luta pelos direitos homossexuais. Com a expansão do debate sobre a homossexualidade, tratando-a como tema político, desdobra o debate sobre as sexualidades dissidentes e fortalecimento de outros grupos, o que contorna a formação do movimento LGBT. O movimento propõe mudanças de valores na sociedade brasileira, inclusive aquelas que incluam os diferentes grupos, não somente os homossexuais (Morando, 2022MORANDO, L. Grupo Somos. 2022. Anda Direito. Available at: https://andadireito.com.br/grupo-somos/. Acesso em: 31 out. 2023.
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).

Em 1980, com a epidemia de HIV/Aids, grupos de mobilização foram essenciais para impulsionar movimentos em busca de visibilidade e direitos da população LGBT. A partir das lutas desses movimentos, somente em 1º de dezembro de 2011, o Ministério da Saúde brasileiro apresentou a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (PNSI-LGBT), instituída pela Portaria n º 2.836. O documento objetiva “Promover a saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, eliminando a discriminação e o preconceito institucional, bem como contribuindo para a redução das desigualdades e à consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo” (Brasil, 2013, p. 18). É relevante destacar que ainda que exista o documento legal, o acesso aos serviços de saúde pela população LGBT é permeado por constrangimentos, exclusão, desamparo, negligência, omissão e indiferença (Crenitte , 2023CRENITTE, M. R. F. et al. Transforming the invisible into the visible: disparities in the access to health in LGBT+ older people. Clinics, v. 78, p. 100149, jan. 2023. DOI 10.1016/j.clinsp.2022.100149.
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; Melo , 2022MELO, L. S. et al. Nurses and health care for gay adolescents. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 30, n. esp., 2022. DOI 10.1590/1518-8345.6293.3792. Available at: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692022000200217&tlng=en.
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; Paiva , 2023aPAIVA, A. T. et al. Atuação de enfermeiras da Estratégia Saúde da Família na atenção à saúde LGBT+. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 76, n. 4, 2023a. DOI 10.1590/0034-7167-2022-0514pt.
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).

Estudos apontam que pessoas LGBT não utilizam os serviços da rede pública, primeiramente por não se sentirem acolhidas e, em consequência, suas necessidades não são atendidas. O serviço é inacessível e incapaz de resolver suas demandas, o que os leva a uma busca por dignidade, a procurarem instituições privadas ou outros meios para atendimento de suas necessidades. A Estratégia de Saúde da Família (ESF), que deveria ser a porta de entrada da rede assistencial, não oferta um ambiente de atenção à saúde cuidadosa e sensível para esse público, expondo-os, muitas vezes, a constrangimentos. Os profissionais, com frequência, não oferecem acolhimento, contribuindo para o prosseguimento da vulnerabilidade programática no âmbito dos serviços de saúde (Belém , 2018BELÉM, J. M. et al. Atenção à saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais na Estratégia Saúde da Família. Revista Baiana de Enfermagem, v. 32, dez. 2018. DOI 10.18471/rbe.v32.26475.
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; Melo , 2022MELO, L. S. et al. Nurses and health care for gay adolescents. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 30, n. esp., 2022. DOI 10.1590/1518-8345.6293.3792. Available at: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692022000200217&tlng=en.
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; Paiva et al., 2023b).

No que envolve o debate sobre acesso da população brasileira aos serviços de saúde, Assis e Almeida (2014) analisam as fragilidades no acesso, esclarecendo o que que está entre os principais problemas a serem considerados pelo SUS. Afirmam que mesmo frente à dura realidade do acesso aos serviços de saúde e do caráter compulsório das necessidades de saúde, que incita a lógica das demandas induzidas, é preciso sensibilizar a população, derrubar o conformismo social e assegurar o acesso universal e equitativo de forma a garantir o atendimento das necessidades reais da população. No que inclui o acesso de pessoas LGBT, o desafio aponta para o cruzamento de diferentes nuances de violência, as quais propagam estigma e tendem a consolidar a cadeia de exclusões.

Diante da problemática evidenciada, o presente estudo tem como objetivo analisar o acesso da população LGBT na Atenção Primária à Saúde (APS) do município de Senhor do Bonfim, Bahia.

Metodologia

Trata-se de um estudo qualitativo exploratório, desenvolvido na cidade de Senhor do Bonfim-Ba, localizado na região norte do estado, a 375 quilômetros da capital Salvador. A produção dos dados ocorreu entre dezembro de 2021 e março de 2022. Os participantes do estudo foram 10 pessoas LGBT cadastradas nos serviços de APS municipal. A técnica de obtenção dos dados utilizada foi a “bola de neve” ou snowball sampling, uma tática de amostragem não probabilística, na qual os participantes indicam outros participantes, os quais fazem parte de grupos específicos e, frente ao contexto de vulneração, frequentemente é de difícil aproximação (Dewes, 2013DEWES, J. O. Amostragem em bola de neve e respondent driven sampling: uma descrição de métodos. 2013. 53 f. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2013. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/93246/000915046.pdf.
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).

Os critérios de inclusão foram: pessoas LGBT, maiores de 18 anos e que residiam no território onde a pesquisa foi realizada, bem como que possuíssem cobertura por unidade de saúde da família. Como critérios de exclusão, foram considerados a recusa em assinar o TCLE e indisponibilidade dos participantes para entrevista por meio virtual. O início do estudo se deu a partir de convites à população LGBT da Universidade do Estado da Bahia, campus VII. As pessoas interessadas em participar voluntariamente permitiram iniciar a produção dos dados.

Foi utilizado um roteiro semiestruturado para as entrevistas, as quais foram realizadas através do Microsoft Teams, ligações telefônicas e Skype e gravadas mediante autorização dos depoentes. A justificativa para realização das entrevistas por meio virtual se deu pelo contexto da pandemia do Covid-19. A definição do número de participantes para o encerramento das entrevistas se deu a partir do critério de saturação teórico-empírica de dados coletados (Minayo, 2010).

A análise dos dados produzidos se deu através da Análise de Conteúdo Temática (Bardin, 2015BARDIN, L. Análise de Conteúdo. 1a ed. Lisboa, 2015.), sistematizada através da proposta de Oliveira (2008OLIVEIRA, D. C. Análise de conteúdo temático-categorial: uma proposta de sistematização. Revista de Enfermagem da UERJ, v. 16, n. 4, p. 569-76, 2008. Available at: http://files.bvs.br/upload/S/0104-3552/2008/v16n4/a569-576.pdf.
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), a partir das seguintes etapas: após a transcrição na íntegra das entrevistas, foi realizada leitura flutuante dos textos produzidos com criação de hipóteses provisórias sobre o objeto estudado (Oliveira, 2008). Em seguida, levantaram-se Unidades de Registro por temas que possibilitaram a realização da Análise Temática do texto com a definição das dimensões do acesso de LGBT aos serviços de APS segundo dimensões teóricas: simbólica, técnica, política e econômica.

A abordagem teórica que embasou a análise do acesso da população estudada aos serviços de APS se referenciou em Giovanella e Fleury (1995). As autoras apontaram a necessidade de uma visão compreensiva para abordar a acessibilidade aos serviços de saúde que considerasse a dimensão econômica, que diz a respeito da relação entre oferta e demanda; a dimensão técnica, referente à organização e planificação da rede de serviços; a dimensão política, que considere o desabrochamento da organização popular e da consciência sanitária; e a dimensão simbólica, que aborda as representações sociais sobre a atenção e o sistema de saúde (Giovanella; Franco; Almeida, 2020).

A produção dos dados foi iniciada após autorização do município e aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisas da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) (parecer n° 4.840.544). Foi assegurado sigilo das informações partilhadas e solicitada a assinatura do TCLE. Para identificação das pessoas entrevistadas, respeitando o anonimato, os nomes reais foram substituídos nas falas pela palavra participante seguido de um número para diferenciá-los, os quais foram numerados de 1 a 10, como por exemplo: participante 010.

Resultados e Discussão

Caracterização

A Tabela 1, a seguir, desenha o perfil das pessoas LGBT participantes do estudo, em Senhor do Bonfim, Bahia.

Tabela 1
Perfil sociodemográfico das pessoas LGBT entrevistadas, Senhor do Bonfim-Ba, 2021-2022

Os dados revelam que a idade das pessoas participantes variou entre 18 e 36 anos. O sexo biológico masculino se destacou entre as pessoas entrevistadas representada por um total de 70% de participantes. No que envolve a escolaridade, 50% dos participantes possuíam ensino superior incompleto. Em relação à orientação sexual, 80% se declararam homossexuais, ou seja, pessoas que sentem atração física ou emocional por pessoas do mesmo gênero, 10% bissexuais, ou seja, pessoas que se atraem física ou emocionalmente por pessoas do gênero masculino ou feminino e 10% pansexuais, que sentem atração por pessoas, sem distinção de gênero. Quanto à identidade de gênero, 90% das pessoas entrevistadas se declararam cisgêneras, ou seja, pessoas cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhes foi atribuído no nascimento e 10% não binário, ou seja, que não se encaixam nos papéis sociais definidos como femininos ou masculinos.

Todas as pessoas que participaram do estudo revelaram não possuir plano privado de saúde. Em relação a vínculo empregatício, 50% relataram possuir algum tipo de vínculo empregatício. Quanto ao cadastramento no serviço de APS do município, expressiva parte dos entrevistados, 40%, informam vinculação com a Estratégia de Saúde da Família do Centro I, localizada na parte central do município, os demais se distribuem em outros bairros.

As dimensões de acesso e a vivência de pessoas LGBT aos serviços de Atenção Primária à saúde do município de Senhor do Bonfim-Bahia

Partindo do pressuposto de que a APS engloba um conjunto de ações que visam à prevenção de doenças e agravos, que objetiva ser a primeira porta de entrada dos usuários aos serviços de saúde e, consequentemente, deve assegurar um acesso universal, equânime, integral e igualitário, pressupõe essencialmente a descontinuidade de qualquer tipo de exclusão baseada em raça/cor, idade, estado de saúde, sexo, identidade de gênero, orientação sexual dentre outras características (Brasil, 2017).

É relevante esclarecer que a oferta de serviços, bem como a qualidade deles, sofre ação de diferentes forças. O financiamento, por exemplo, demonstra refletir diretamente nas práticas implementadas e na organização dos serviços. Isso se confirma com a implantação, em 2019, do Programa governamental: Previne Brasil (Brasil, 2022). Trata do novo modelo de financiamento da APS, o qual destoa do que prevê as bases propositivas da APS parecendo ter objetivo restritivo, limitar a universalidade, aumentar a distorções do financiamento, parece reverter a redução das desigualdades na saúde e ainda induz a focalização das ações da APS (Harzheim, 2020HARZHEIM, E. “Previne Brasil”: bases da reforma da Atenção Primária à Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 4, p. 1189-1196, abr. 2020. DOI 10.1590/1413-81232020254.01552020.
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). Isto se confirma ao incentivar, em sua proposta central, o desenvolvimento do trabalho centrado na lógica dos indicadores, que estabelecem estratégias de ações voltadas somente para o pré-natal, saúde da mulher, saúde da criança e condições crônicas, excluindo as demais populações que necessitam dos serviços de saúde.

Partindo do entendimento de que são várias dimensões de acesso, como já mencionado, os dados da presente produção serão apresentados seguindo as dimensões de acesso adotadas por Giovanella e Fleury (1995) aprofundados por Assis e Almeida (2014): dimensão simbólica, técnica, política e econômica.

O acesso de LGBT aos serviços de Atenção Primária à Saúde: uma análise à luz da dimensão simbólica

A dimensão simbólica aqui destacada inclui percepções relacionadas às diferentes representações sociais e como o sistema está organizado para atender às especificidades de cada usuário. Através das experiências e interações, a pessoa constrói um saber que lhe permite ter uma dimensão simbólica dos objetos, que se expressam ou se manifestam em acontecimentos, ideias, pessoas, noções e sentimentos (Jesus; Assis, 2010JESUS, W. L. A. de; ASSIS, M. M. A. Revisão sistemática sobre o conceito de acesso nos serviços de saúde: contribuições do planejamento. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 1, p. 161-170, jan. 2010. DOI 10.1590/S1413-81232010000100022.
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).

No que envolve a temática, a grande maioria das pessoas entrevistadas apontaram inexistência ou fragilidade na garantia de sua autonomia durante a consulta. Evidenciam que o acesso da população LGBT a esse serviço é frequentemente cercado de prejulgamentos e que não há uma preocupação por parte dos profissionais sobre questões relacionadas a gênero e sexualidade. Tais aspectos são revelados nas falas a seguir:

[...] Na maioria das vezes que as pessoas LGBT procuram atendimento, já existe um certo preconceito no atendimento pela equipe médica, das pessoas que estão naquele local [...], as pessoas já fazem prejulgamentos, olha se lá no posto de saúde tem uma travesti, já começa com olhares, pensam que é algum tipo de doença e manda para o CTA, enfim, as pessoas acabam achando que os LGBT [...] só buscam atendimento de saúde nessas condições. (Participante 07).

A fragilidade no acolhimento dos serviços pode, sem dúvidas, estar associada a diferentes fatores, mas é importante esclarecer que a vulnerabilidade das pessoas LGBT intensificam-se ainda mais com essa problemática. O preconceito, a discriminação e a estigmatização se tornam uma barreira de acesso, que contribuem negativamente para a não procura dos serviços de saúde. (Ferreira; Pedrosa; Nascimento, 2018FERREIRA, B. de O.; PEDROSA, J. I. dos S.; NASCIMENTO, E. F. do. Diversidade de gênero e acesso ao Sistema Único de Saúde. Revista Brasileira em Promoção da Saúde, v. 31, n. 1, p. 1-10, 28 fev. 2018. DOI 10.5020/18061230.2018.6726.
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).

Os padrões socialmente impostos influenciam negativamente na inclusão das pessoas LGBT, bem como na criação de vínculo e acolhimento. Isso se confirma a partir dos relatos de experiências vividas pelos participantes do estudo nos serviços.

[...] Cabe à capacitação dos profissionais [...], porque é desconfortante você chegar em um local e só porque você está vestindo roupas que não são comuns para algumas pessoas, tipo algumas trans, gays, lésbicas, cada um tem o seu estilo e todo mundo é livre pra está utilizando dele e ficarem com olhares ou perceber que tem alguém que está cochichando deles é constrangedor, já presenciei olhares, mas foram bem discretos, então acredito que seria muito legal se os profissionais pudessem tratar melhor, atender melhor, pois muitas das vezes a pessoa não quer se consultar com determinado estilo de gênero e ai sabe tem que fazer de uma maneira que todo mundo se sinta bem. (Participante 09).

A expressão de gênero, que se refere ao modo como a pessoa exprime a sua identidade de gênero e envolve aspectos como vestuário, comportamento, expressão verbal e até corporal, se desdobra em uma problemática enfrentada pela população LGBT. A fala acima expressa o sentimento de repressão e julgamento das pessoas que destoam dos padrões cis-heteronormativos. (Oliveira, 2020). Ademais, as falas sinalizam também a marcante confusão entre identidade de gênero e orientação sexual nos serviços e outros fatores que colaboram com a invisibilidade e o afastamento deste público dos serviços de saúde.

Apesar dos contextos mencionados acima, as pessoas entrevistadas também apontam caminhos possíveis e entendimento sobre as especificidades de sua existência, como na fala a seguir, a qual, inclusive, aporta aspectos sobre uma consciência dos aspectos interseccionais existentes.

[...] Os profissionais da unidade básica de saúde, confundem, por exemplo, igualdade com equidade [...] eu sou negro e, por ser negro, eu tenho que ter o mesmo atendimento que um branco? Porque para a atendente de saúde, para o médico e até muitas vezes para o enfermeiro todos somos pessoas, todos somos iguais, independente e nós sabemos que não é assim. Existem características específicas que são da raça negra e características que são da raça branca que a gente precisa alinhar a depender do tipo de atendimento. (Participante 01).

Ao discutir sobre a saúde das pessoas LGBT, é necessário enfatizar a necessidade de mais diálogo sobre a temática. A PNSI contém objetivos, diretrizes e responsabilidades das esferas de governo, incluindo o Plano Operativo que serve como base norteadora para implementação da política, no acolhimento e no atendimento das pessoas LGBT, dentre outras ações necessárias para à inclusão e garantia de um acesso mais equânime, visando à garantia de um atendimento pautado nas demandas e especificidades que englobam esse público (Gouvêa; Souza, 2021GOUVÊA, L. F.; SOUZA, L. L. de. Saúde e população LGBTQIA+. Revista Periódicus, v. 3, n. 16, p. 23-42, 18 dez. 2021. DOI 10.9771/peri.v3i16.33474.
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).

Os discursos dos participantes da pesquisa reforçam a necessidade de sensibilização e qualificação profissional para que se tenha um atendimento integral, equânime e que contemple as especificidades das pessoas LGBT.

O acesso de LGBT aos serviços de Atenção Primária à Saúde: uma análise à luz da dimensão técnica

Esta dimensão se refere ao planejamento e a organização dos serviços, os quais contribuem na viabilização do acesso da população aos serviços de saúde. Documentos basilares e norteadores do sistema de saúde brasileiro tem como princípios fundamentais a regionalização e a hierarquização da rede de serviços de saúde, visando estabelecer universalidade, equidade e integralidade (Jesus; Assis, 2010JESUS, W. L. A. de; ASSIS, M. M. A. Revisão sistemática sobre o conceito de acesso nos serviços de saúde: contribuições do planejamento. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 1, p. 161-170, jan. 2010. DOI 10.1590/S1413-81232010000100022.
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).

A respeito dessa dimensão, os participantes apontaram contextos comuns a toda população usuária dos serviços de saúde, não estando, portanto, associados diretamente aos aspectos relacionados ao gênero ou sexualidade. Indicam dificuldades no acesso aos serviços de saúde durante a noite e finais de semanas é difícil. Afirmam, ainda, que o atendimento ocorre apenas com agendamento.

[...] final de semana e noite não, só durante o dia. Nos finais de semana e a noite normalmente temos que procurar a UPA. (Participante 04).

As consultas têm que ser agendadas, você agenda tipo hoje para ser atendido na próxima semana, se estiver mal tem que procurar a UPA [...]. (Participante 05).

Algumas cidades brasileiras estão adotando o método de horário estendido de funcionamento dos serviços da APS, as quais passaram a funcionar 24 horas por dia, como Boa Vista e Mogi das Cruzes, em Recife. Nesses locais, desde 2014 foi implementado um novo padrão de atendimento em algumas ESF. Essas unidades possuem horários estendidos para consultas, 7 horas às 19 horas e 24 horas para as pequenas urgências, além de uma sala de observação (Pessoa; Gouveia; Correia, 2017PESSOA, B. H. S.; GOUVEIA, E. de A. H.; CORREIA, I. B. Funcionamento 24 horas para Unidades de Saúde da Família: uma solução para ampliação de acesso? Um ensaio sobre as “Upinhas” do Recife. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, v. 12, n. 39, p. 1-9, 11 out. 2017. DOI 10.5712/rbmfc12(39)1529.
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). Nesse caminho, em 2020, o Programa Saúde na Hora é instituído pelo Ministério da Saúde e se configura também como outra estratégia que propõe ampliar o acesso às ações e serviços de APS por meio do horário estendido (Brasil, 2019; Giovanella; Franco; Almeida, 2020GIOVANELLA, L.; FRANCO, C. M.; ALMEIDA, P. F. de. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 4, p. 1475-1482, abr. 2020. DOI 10.1590/1413-81232020254.01842020.
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).

O que justifica a ampliação do horário de funcionamento é o fato de que a APS parece ser a via preferencial de acesso da população e pela constatação de que após as 17 horas há alta procura pelos serviços de emergência por condições não urgentes, o que acaba colaborando com a superlotação.

É salutar reconhecer, conforme apontam Pessoa, Gouveia e Correia (2017PESSOA, B. H. S.; GOUVEIA, E. de A. H.; CORREIA, I. B. Funcionamento 24 horas para Unidades de Saúde da Família: uma solução para ampliação de acesso? Um ensaio sobre as “Upinhas” do Recife. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, v. 12, n. 39, p. 1-9, 11 out. 2017. DOI 10.5712/rbmfc12(39)1529.
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) e Giovanella (2020GIOVANELLA, L.; FRANCO, C. M.; ALMEIDA, P. F. de. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 4, p. 1475-1482, abr. 2020. DOI 10.1590/1413-81232020254.01842020.
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), que apesar de esse modelo demonstrar maior tendência a garantir a assistência por um profissional de saúde, pode favorecer a descontinuidade do cuidado, pois tende a transformar a ESF em pronto-atendimento (Pessoa; Gouveia; Correia, 2017). Ademais, o horário estendido, na maioria das vezes, é cumprido por plantonistas, os quais, por sua própria formação, tendem a possuir uma abordagem diferente dos médicos de saúde da família, o que pode comprometer atributos da APS como a longitudinalidade e coordenação do cuidado.

Em relação à resolubilidade e qualidade dos serviços de saúde, algumas das pessoas entrevistadas afirmam que não possuem seus anseios atendidos durante as consultas e que as mesmas são muito superficiais e mecânicas: tratam a dor, mas não buscam a causa. Estas afirmações são constatadas nas falas abaixo:

[...] eu gostaria que eles nos tratassem melhor, a gente passa muito tempo lá aguardando um atendimento e quando é atendido não é atendido de uma forma boa, como falei mal olham na nossa cara, passam uma medicação e pronto (Participante 08).

[...] A gente não tem autonomia na consulta, uma autonomia sobre o que a gente está sentindo, é dizer dor de cabeça e automaticamente ter uma dipirona prescrita. [...] Não estou generalizando, mas a maioria das consultas são muito automáticas, a palavra é essa. (Participante 01).

Uma escuta qualificada e o envolvimento do paciente no próprio cuidado auxiliam na criação de vínculo com a equipe de saúde. A APS é a primeira porta de entrada dos usuários aos serviços de saúde, mas como podemos observar nas falas acima, várias barreiras dificultam este acesso. Estas vão desde o horário de funcionamento, processo de trabalho das equipes, especialmente as que trabalham com agendamento e não deixam o percentual para atendimento de demanda espontânea, aos profissionais de saúde que não estão preparados ou estão sobrecarregados e não realizam uma prestação de serviço adequada para a população. Tudo isso, sem dúvidas, se reflete na inexistência de vínculo e no frágil acolhimento dos usuários dos serviços. As propostas isoladas, como as de ampliação de horários de atendimento, sem desenho de articulação com a rede de urgências, bem como sem valorizar o indivíduo, tendem a direcionar a atenção às demandas agudas e manejo de doenças, com monitorização de casos graves à espera de transferência.

O acesso de LGBT aos serviços de Atenção Primária à Saúde: uma análise à luz da dimensão política

A dimensão política está relacionada às políticas públicas de saúde, com a conformação histórica do modelo de atenção à saúde e participação da comunidade. Esta dimensão se preocupa com o desenvolvimento e fortalecimento da consciência sanitária e organização popular (Jesus; Assis, 2012). Em relação a isto, é importante reconhecer que a participação efetiva da sociedade sobre as ações do Estado no desenvolvimento de projetos a serem implementados no Sistema Único de Saúde (SUS) podem colaborar com a construção de um acesso aos serviços de saúde mais equânime, integral e universal. Isto se dá, pois este será pautado nos anseios e necessidades apontados pela sociedade.

No que envolve a realidade demarcada pelas pessoas que participaram da pesquisa, a maioria relatou não ter conhecimento, por exemplo, sobre as reuniões do Conselho Municipal de Saúde do município e que desconhecem a realização de ações assistenciais e de educação voltadas para a população LGBT.

Não, eu nunca participei não. Nunca ouvi falar disso não [Conselho Municipal de Saúde]. (Participante 03).

Nunca participei, não sabia nem que tinha e se teve, não foi bem divulgado. (Participante 09).

Outros participantes afirmam ter conhecimento da existência do Conselho Municipal de Saúde, mas alegam não participar por falta de informação sobre horário e local das reuniões, bem como por compreenderem ser atividade restrita aos funcionários da Secretaria Municipal de Saúde, os quais, segundo essas pessoas entrevistadas, não dão abertura para participação popular.

Além de ser exclusivo das pessoas que trabalham na secretaria de saúde, já respondo logo que não, nunca participei [...] é exclusivo também de pessoas ligadas ao governo, a gestão municipal atual. (Participante 01).

[...] eu tenho uma base de conhecimento de como funciona e de como ele deve ser, mas esse conselho da saúde eu não tenho esse conhecimento, mas eu sei que ele existe, sei que é operante porque existe as reuniões, o agendamento das reuniões [...] ele é um ponto para discutir pontos definidos, ele tá ali pra fazer o contorno social e de fato garantir que as políticas públicas existam, tem que garantir transparência, então tem que procurar à sociedade, por exemplo tal dia vai ter reunião e convidar todos para participar e ter conhecimento das aprovações, publicar em Diário Oficial, trazer pros sites oficiais, enfim todas as decisões elas sejam divulgadas, mas de certa forma isso acaba não acontecendo. (Participante 07).

Em relação ao evidenciado acima, é salutar ratificar que a Lei nº 8.142/90 regulamenta a participação social, a partir da criação de Conselhos de Saúde e Conferências de Saúde. A mesma aborda a composição do Conselho de Saúde, o qual deve ser composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários (Brasil, 1990). No entanto, como podemos observar nas falas, o Conselho Municipal de Saúde do município de Senhor do Bonfim, na Bahia, não parece atender a contento o que está disposto nesta lei, afinal, as pessoas entrevistadas não possuem conhecimento sobre a realização das reuniões e compreendem que estas são restritas às pessoas ligadas à gestão.

A participação ativa da comunidade na construção do SUS local auxilia na construção de sujeitos politizados, críticos, militantes e não alienados. A participação social contribui no monitoramento dos projetos implementados e em seu funcionamento de acordo com as demandas expostas pela sociedade.

Em relação aos efeitos da implementação dos projetos e políticas voltados à população LGBT até os dias atuais, os participantes relatam não ter tido muitas mudanças e que as referidas políticas não são respeitadas; afirmam que os gestores não dão a importância necessária.

Não, para mim não funciona, não dá certo, as políticas não são respeitadas, as ações feitas a partir da população LGBT elas não são respeitadas, não são feitas de forma efetiva, tudo é muito encoberto, tudo muito perigoso falar [...] acham que o CTA (centro de testagem e acolhimento) é o local de abrigo para a população LGBT. (Participante 01).

[...] não, por falta de empenho mesmo do governo, né? Enfim, do governo e das gestões, tipo individuais mesmo de focar nessa comunidade, sabe? Que tanto que, quando a gente vê o novembro azul, e todos esses meses de comemoração, o setembro amarelo, e tudo mais, à gente vê uma certa mobilização voltada para atender essas demandas, do homem, da mulher, enfim, de transtornos psicológicos, mas aí a gente não vê nada focado e nem dirigido em mês nenhum à comunidade LGBTQIA+11 Tornou-se um acrônimo para lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e queer, com um sinal “+” para reconhecer as orientações sexuais ilimitadas e identidades de gênero usadas pelos membros dessa comunidade., então acredito que à política ela está, ela foi feita, mas ela não é colocada à risca, sabe, não é cumprido que foi posto. (Participante 02).

[...] eu acredito que falta mesmo é à questão de conhecimento, na verdade aprova-se os projetos, aprova-se as leis e talvez esses projetos e essas leis acabam não chegando aonde de fato deveriam chegar né, [...] para que a gente consiga fazer esse conselho social a gente precisa ter conhecimento do que está acontecendo. (Participante 07).

As falas destacadas acima reiteram a fragilidade que contorna a pauta participação social e, em consequência, o estigma que rodeia a população LGBT. O relato do participante 07, por exemplo, reafirma a importância da participação da comunidade nos Conselhos Municipais de Saúde, afinal é durante essas reuniões que a população terá conhecimento dos projetos e leis implementadas e o que o governo pensa em fazer em prol daquela comunidade. O conhecimento da população e da equipe de saúde acerca da PNSI-LGBT, por exemplo, que é a base norteadora para o atendimento desta população, afinal tem como objetivo propiciar um acesso a saúde integral e livre de discriminação e preconceito institucional, assim como a redução das desigualdades e a consolidação do SUS (Brasil, 2013).

Apesar das fragilidades descritas até aqui, um participante relata a existência de iniciativa potencialmente positiva no município:

[...] Secretaria de Assistência Social, tem um grupo que está sendo inicializado [...] acho que no distrito de Igara, eles tão fazendo os encontros né, com os jovens LGBT da região da comunidade, do distrito e estão discutindo políticas públicas e vendo quais são os anseios dessas pessoas e eu acho que esse grupo está crescendo, que tá se fortalecendo e foi uma iniciativa, eu acho que das pessoas do próprio CRAS em fazer o atendimento para esse público, levar conhecimento, levar discussões, tentar atender seus anseios, conhecer quais são as suas realidades e por onde é que permeia essa realidade, mas outras ações inclusivas e até mesmo de educação eu não vejo acontecer. (Participante 07).

Discorrer sobre a dimensão política possibilita a construção de sujeitos politizados, críticos, militantes e atuantes dentro da comunidade e da gestão municipal. A consciência social e a criação de autonomia são elos essenciais para a construção de um SUS pautado nos princípios da universalidade, equidade e da integralidade. A população necessita ser mais atuante, incluída nas demandas da gestão e, consequentemente, cobrar dos gestores ações que visem melhorar as estratégias implementadas até os dias atuais, além também de abrir caminhos para a implementação de leis e projetos que ainda são inoperantes no município. Não se pode deixar de considerar que a população LGBT, de modo interseccional, convive com uma série de questões como lógica patriarcal, papéis sociais binários socialmente impostos, homo/trans/lesbofobia, estigmas relacionados à saúde e outras que são de difícil enfrentamento e, consequentemente, podem contribuir com a paralisação na reivindicação de direitos básicos como os mencionados acima. As dimensões aqui abordadas, no que envolve os grupos vulneráveis como mulheres, negros e LGBT, necessitam ser de engajamento de toda sociedade, e não somente dos diretamente afetados. Os grupos políticos partidários têm por obrigação garantir segurança e saúde a todas as pessoas.

O acesso de LGBT aos serviços de Atenção Primária à Saúde: uma análise à luz da dimensão econômica

A dimensão econômica aqui evidenciada está pautada no princípio da equidade e na racionalização entre oferta e demanda, visando manter o equilíbrio entre o que se é ofertado nos serviços de saúde e a demanda que possuem. Neste caminho, demarca como objetivo a oferta de um acesso à saúde com disponibilidade, acessibilidade, adequação funcional e financeira (Jesus; Assis, 2010JESUS, W. L. A. de; ASSIS, M. M. A. Revisão sistemática sobre o conceito de acesso nos serviços de saúde: contribuições do planejamento. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 1, p. 161-170, jan. 2010. DOI 10.1590/S1413-81232010000100022.
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)

É indiscutível que o SUS enfrenta desafios para garantir um acesso de qualidade. O subfinanciamento do sistema de saúde, por exemplo, é um dos grandes desafios. Após a aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95), que congela os gastos com saúde e educação por 20 anos, agravou a situação do SUS, culminando no alargamento da discrepância entre o disposto em lei e na oferta real dos serviços o que reflete na prerrogativa do direito ao acesso da população à saúde equânime, integral e igualitário. Além da EC 95, existe o novo modelo de financiamento da atenção básica através da criação do programa “Previne Brasil”, como já mencionado, que acarreta o aumento da invisibilidade principalmente das minorias. Em adição, é lúcido reconhecer que a lógica cartesiana, que valoriza a forte fragmentação das ações de saúde e a lógica médica centrada, tendem a demarcar fortemente a construção subjetiva da noção de acesso das pessoas que utilizam os serviços de saúde.

Com referência à dimensão econômica, os participantes apontaram que a demanda dos usuários e usuárias do SUS local é maior do que é ofertado. A agenda de serviços ofertados no dia a dia nos serviços da APS é insuficiente e para que a população tenha acesso aos serviços precisam chegar nas unidades muito cedo, uma vez que o critério para as marcações é a ordem de chegada num contexto em que as ofertas de vagas são limitadas. Isso se confirma com a necessidade de permanecer em filas durante a madrugada para realizar esses agendamentos. Como podemos constatar na fala a seguir:

[...] aqui funciona no seguinte você vai em uma sexta-feira pela manhã, e eles falam não precisa ir 5 horas, as senhas só são liberadas às 6 horas, mas se você chegar lá as 6 ou 7 horas, você não consegue mais pegar senhas [...] você tem que chegar cedo, você tem que se comprometer à quase madrugar na porta do postinho de saúde pra você conseguir a vaga. (Participante 01).

Além da insuficiência de médicos nos serviços da APS, os participantes também relataram a insuficiência de especialidades médicas no atendimento das suas necessidades. Os participantes mencionaram, com frequência, a necessidade de aguardar meses para uma consulta com especialista focal. É relevante esclarecer que uma unidade de saúde do município, unidade esta que a maior parte das pessoas entrevistadas estavam vinculadas, além de funcionar como ESF, também funciona como centro de especialidades médicas, numa mesma estrutura física, o que confunde a população acerca da proposta basilar de funcionamento da APS e contribui com o reforço da valorização da lógica da forte especialização. Isso pode ser constatado nas falas a seguir:

[...] demora. Tem alguém da minha família, que já está tentando marcar um oftalmologista e já tem alguns meses e não está conseguindo, é tanto que tem que madrugar aí nas filas para tentar conseguir uma vaga. (Participante 03).

Normalmente, quando preciso tenho que procurar outro lugar (particular), quando não tem o que preciso no postinho daqui, demora um pouco, não tem uma facilidade de marcar sabe. (Participante 04).

A central de marcação também precisa ser mudada, eles não divulgam quando tem marcação, quem divulga é o posto e eles divulgam meia hora antes e aí quando você chega lá no local as consultas já acabaram, não tem mais vagas, não tem vagas para todo mundo, então essas são as minhas ressalvas, tem que aumentar o número de profissionais. (Participante 10).

A partir do depoimento das pessoas, infere-se que se a APS, a qual deveria ser a porta de entrada dos usuários aos serviços de saúde do SUS, não parece funcionar de maneira eficaz, seja pela frágil compreensão dos usuários e usuárias relativas à proposta inicial dos serviços de APS ou pela escassez de recursos para garantir a oferta. Tudo isso dificulta a abordagem ideal para o manejo do processo de saúde e doença, na promoção e prevenção de agravos e certamente reflete na sobrecarga dos serviços secundários e terciários de saúde.

Confirmando os aspectos descritos neste estudo sobre dificuldade de acesso aos serviços de especialidades médicas, Silva e colaboradores (2017SILVA, C. R. et al. Dificuldade de acesso a serviços de média complexidade em municípios de pequeno porte: um estudo de caso. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 4, p. 1109-1120, abr. 2017. DOI 10.1590/1413-81232017224.27002016.
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) abordam que a oferta insuficiente de especialidades médicas colabora para que gestores encontrem muita dificuldade em garantir o acesso da população a esses tipos de atendimento. (Silva et al., 2017). E, diante dessa problemática de acesso, as necessidades de saúde dos usuários ou suas demandas por serviços de saúde não são contempladas. Retomamos o entendimento de que essa ideia de necessidades de saúde focada na especialização das ações médicas é frequentemente reafirmada e não reflete a real necessidade da população.

Como já abordado, inúmeras são as razões que corroboram o afastamento das pessoas dos serviços de saúde. No que envolve as razões específicas da pessoa LGBT, a fala a seguir destaca a necessidade de respeito, não só nas unidades de saúde, mas em todos os âmbitos sociais, trazendo também em sua fala os impactos que o preconceito causa na sua vida diária:

[...] ninguém tem nada a ver com a sexualidade do outro, muitas pessoas acham que a pessoa é assim porque quer, tipo eu nasci e escolhi sofrer preconceito, ser destratada [...] até a gente se olhar e falar que não quer escutar aquilo de fulano e de beltrano, a gente vai sofrendo, até o dia da gente bater o pé e dizer não, o que falarem pra mim agora não me serve de nada, então assim, é demora um pouco, mas imagina aí, você se conhecer assim, você se denominar assim, você não vai mais escutar aquilo e não lhe serve, demora um pouquinho né? Então, por isso que eu falo, o respeito é uma das coisas que tem que ser em primeiro lugar, não só na saúde, mas em todo lugar, em todo lugar mesmo. (Participante 10).

As responsabilidades são múltiplas. Em um plano, cabe aos gestores articular meios de ampliar a acessibilidade da população aos serviços de saúde e criar estratégias de gestão da demanda. O fortalecimento da participação social, por exemplo, poderia possibilitar a criação de caminhos possíveis. Camargo e Castanheira (2020CAMARGO, D. S.; CASTANHEIRA, E. R. L. Ampliando o acesso: o Acolhimento por Equipe como estratégia de gestão da demanda na Atenção Primária à Saúde (APS). Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 24, n. suppl 1, 2020. DOI 10.1590/interface.190600.
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) abordam, em seu estudo, uma estratégia criada por profissionais de uma Unidade Básica de Saúde de São Bernardo do Campo, São Paulo, o acolhimento por equipe (AE), que visa acolher os usuários e ouvir suas demandas, se o paciente procura à unidade e não possui consulta agendada, ele será encaminhado para o AE, caso esteja fora do horário de funcionamento o usuário será encaminhado para o acolhimento geral. (Camargo; Castanheira, 2020). Nesta metodologia de acolhimento, os profissionais organizam suas agendas de atendimentos, visando aumentar a oferta de consultas do dia através do AE.

O exercício da participação social retira a população do lugar de passividade nessa relação. A plena atuação nos Conselhos Municipais de Saúde, os quais devem ser abertos e divulgados para a sociedade, é possível dialogar, entender e indagar sobre seus anseios e necessidades em relação aos serviços de saúde, com a finalidade de melhorar o acesso aos serviços ofertados, dando sentido aos princípios da igualdade, liberdade, diversidade e solidariedade (Brasil, 2013). A gestão local tem o dever de apresentar um plano de saúde a cada quatro anos, o qual deve conter as ações e os objetivos que devem ser alcançados durante esse período. Nesse plano, é salutar existir o incentivo à participação social no que envolve a discussão e elaboração desse plano, afinal, é um momento em que poderá elencar as necessidades, especificidades e anseios sobre as políticas públicas de saúde que serão traçadas e mais que participar, à população deve estar munida de conhecimento sobre seus direitos.

O preconceito, a discriminação e o estigma são as principais barreiras de acesso à saúde que a população LGBT tem que enfrentar no dia a dia, o que culmina no afastamento dessas pessoas dos serviços de saúde e/ou quando os procuram. Em consequência, omitem informações sobre a sua orientação sexual por medo de não serem bem acolhidos e atendidos dentro dos serviços. E ainda, barreiras predispõem essas pessoas ao adoecimento psíquico, uso abusivo de drogas e/ou medicações de forma desordenadas, colocando em risco sua vida. Diante de tudo que foi exposto, ainda há a necessidade de maior sensibilização de grande parte da população acerca das demandas que envolvem a população LGBT.

Considerações finais

O acesso aos serviços de saúde constitui um entrave para a população brasileira. Em relação ao acesso da população LGBT nos serviços de Atenção Primária à Saúde do município de Senhor do Bonfim, Bahia, a partir das dimensões analíticas adotadas, constatou-se que o acesso é permeado por preconceito, discriminação, estigma e pela marcante fragilidade na abordagem, por parte dos profissionais, sobre questões relacionadas à gênero e sexualidade. Isso contribui para o afastamento da população dos serviços de saúde.

Na dimensão simbólica, fica bastante evidente como os padrões sociais, sobretudo os heteronormativos e cisnormativos, interferem no atendimento prestado e, consequentemente, no acesso das pessoas LGBT aos serviços. Na dimensão técnica, as pessoas entrevistadas relatam dificuldades em relação ao horário de funcionamento dos serviços, o que também influencia no grau de acesso ao serviço a que a pessoa está vinculada, bem como apontam a ação do estigma associado às pessoas LGBT e como isso se reflete no acesso. Na dimensão política, estão bastante destacadas as nuances relacionadas à participação popular, desde a percepção de inexistência de incentivo governamental, dificuldade de engajamento e até o reconhecimento da pouca proatividade por parte da própria população. A dimensão econômica, por sua vez, demarca fortemente problemáticas relativas à oferta e demanda e como interferem no acesso das pessoas LGBT.

Partindo das dimensões adotadas na análise, fica demarcado o sentimento de exclusão, de falta de acolhimento, sensação de desrespeito, omissão e indiferença por parte dos profissionais da assistência.

Em adição aos fatores supracitados, ainda relacionados ao frágil acesso da população LGBT no âmbito do SUS, existe a precariedade nas ações relacionadas à educação permanente dos profissionais, o que, em consequência, contribui para o não respeito aos princípios e diretrizes do sistema de saúde. Além de divergir com os objetivos e premissas de outros programas e políticas, como por exemplo, “Brasil sem homofobia” e a “PNSI-LGBT”, o que interfere na garantia de direitos em diversos municípios brasileiros.

A partir da realidade pesquisada, fica evidente também que ainda que haja políticas públicas específicas, as quais visam a um acesso livre de qualquer forma de preconceito e estigma, isso não está efetivamente garantido. A lógica social existente em nossa sociedade também interfere nas práticas profissionais implementadas.

Agradecimentos

Agradecemos a todas as pessoas que participaram da pesquisa e ao Programa Interno de Auxílio Financeiro à Publicação em Periódicos Nacionais e Internacionais Qualificados para a Pós-Graduação (PROPUBLIC) da Universidade do Estado da Bahia - Edital 087/2023.

Referências

  • 1
    Tornou-se um acrônimo para lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e queer, com um sinal “+” para reconhecer as orientações sexuais ilimitadas e identidades de gênero usadas pelos membros dessa comunidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2023
  • Revisado
    16 Dez 2023
  • Aceito
    26 Abr 2024
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