Resumo
Este artigo descreve a evolução do financiamento municipal do Sistema Único de Saúde, de 2004 a 2019, considerando receitas e despesas de fontes próprias e não-próprias, analisa a redistribuição fiscal, de acordo com o porte populacional e a renda média domiciliar, e compara essa evolução em dois períodos, caracterizados como de crescimento econômico (2004-2014) e de recessão (2015-2019). O estudo se baseou em dados do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde. Constatou-se crescimento real dos gastos municipais em saúde de 2004 a 2014 (156,3%), com queda entre 2014 e 2015, seguida de recuperação até 2019. Na recessão, detectou-se aumento global da dependência fiscal dos municípios, indicada pelo aumento de receitas não-próprias, mesmo com a diminuição da participação da União nas transferências. O crescimento das despesas próprias em saúde foi menor entre os municípios de menor renda domiciliar, enquanto para as despesas não-próprias foi maior nos municípios de menor porte populacional. Em suma, indica-se um processo de incremento dos gastos municipais em saúde, assim como o aumento da dependência fiscal para custeio da saúde, intensificado após a crise de 2015, que atingiu especialmente os municípios de pequeno porte e de menor renda domiciliar.
Palavras-chave:
Financiamento dos Sistemas de Saúde; Saúde Pública; Política Fiscal; Recessão Econômica; Brasil
Introdução
Aos sistemas de saúde devem corresponder modelos de financiamento que permitam a concretização de seus princípios. Dessa forma, entende-se por que o Sistema Único de Saúde (SUS), que propõe a universalidade, é financiado por tributos pagos pela totalidade dos brasileiros, sob responsabilidade compartilhada da União, Estados e Municípios11 Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Carvalho NJ, Carvalho AI. Políticas e Sistema de saúde no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012..
O federalismo no Brasil tem como objetivo a descentralização e a redistribuição fiscal para garantir equitativamente as capacidades de financiamento dos serviços públicos, embora problemas no sistema tributário em vigor não permitam o atendimento satisfatório dessa demanda22 Lima LD. Connections between fiscal federalism and the funding of the Brazilian health care policy. Cien Saude Colet 2007; 12(2):511-522..
Os recursos alocados no SUS, pelo governo federal, provêm principalmente dos tributos que alimentam o Orçamento da Seguridade Social (OSS), envolvendo a Previdência e a Assistência Social, além da Saúde. A partir da Lei nº 8.080/1990, foi instituído um modelo descentralizado de transferências dos recursos federais para as esferas subnacionais de governo via Fundo Nacional de Saúde (FNS), considerando, em tese, o perfil demográfico e epidemiológico e a capacidade instalada de rede de serviços de saúde de cada município e estado33 Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 20 set.. Nas esferas municipal e estadual, os serviços e as ações de saúde são custeados com recursos advindos da arrecadação própria - que envolve recolhimento tributário local ou o recebimento de transferências obrigatórias da União e dos estados - e pela receita não-própria - que envolve as transferências voluntárias e os convênios11 Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Carvalho NJ, Carvalho AI. Políticas e Sistema de saúde no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012..
Ao longo da década de 1990, recorrentes ajustes fiscais redesenharam a organização federativa solidária e a vinculação orçamentária do OSS, com foco no redirecionamento dos recursos para despesas financeiras e aumento de margem para renúncias fiscais em detrimento das despesas primárias44 Pinto ÉG. Budgetary-financial erosion of social rights in the constitution of 1988. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4473-4478.. Essas medidas da ortodoxia econômica em busca do equilíbrio fiscal significaram, na prática, a recentralização de receitas pela União, indo de encontro ao processo descentralizador inicialmente proposto22 Lima LD. Connections between fiscal federalism and the funding of the Brazilian health care policy. Cien Saude Colet 2007; 12(2):511-522..
Desde a sua criação, o SUS carece de dispositivos constitucionais que garantam a vinculação entre receitas e aplicações em saúde, uma problemática temporariamente manejada pela instituição da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) em 1997. Apenas com a promulgação da Emenda Constitucional (EC) nº 29/2000, o SUS obteve uma sólida base orçamentária, ao serem estabelecidos montantes obrigatórios mínimos de aplicação relativos aos orçamentos próprios dos estados e DF (12%), dos municípios (15%) e da União - posteriormente corroborado pela Lei Complementar (LC) nº 141/201255 Dain S. Os vários mundos do financiamento da Saúde no Brasil: uma tentativa de integração. Cien Saude Colet 2007; 12(S):1851-1864..
Obrigando estados e municípios a empenharem maiores porções de seus orçamentos no SUS, a EC nº 29/2000 contribuiu para a descentralização dos gastos ao aumentar a participação proporcional desses poderes infranacionais, tensionando o cenário centralizador da década de 1990, no qual a União era responsável por 73% de todas as despesas da saúde, enquanto os estados participavam com 15% e os municípios com 12%. Em 2010, a participação federal estava reduzida a 44,7% do total de gastos, sendo 26,7% a participação dos estados e 28,6% a dos municípios11 Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Carvalho NJ, Carvalho AI. Políticas e Sistema de saúde no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012..
Entretanto, a EC nº 29/2000 teve limitações ao não definir especificamente as fontes de receita, apenas os montantes de despesas. Outrossim, o não cumprimento desta EC e a impunidade frente a esse crime de responsabilidade fiscal também foram fatores de limitação da efetividade do dispositivo66 Campelli MGR, Calvo MCM. O cumprimento da Emenda Constitucional nº 29 no Brasil. Cad Saude Publica 2007; 23(7):1613-1623.. A regra de vinculação do orçamento à saúde aplicada à União, relacionada ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e não a um percentual mínimo do orçamento geral como no caso das outras esferas de governo, limitou a possibilidade de aumento substancial dos investimentos no SUS. Desse modo, na primeira década de 2000, o orçamento do Ministério da Saúde (MS) esteve limitado a apenas 5% da despesa efetiva do orçamento federal e a menos de 17% do total do OSS55 Dain S. Os vários mundos do financiamento da Saúde no Brasil: uma tentativa de integração. Cien Saude Colet 2007; 12(S):1851-1864.,77 Ugá MAD. Sobre o financiamento da seguridade social e, em particular, da saúde. Saude Debate 2006; 30(72):80-88.. Como proporção do PIB, o gasto federal em saúde se reduziu, entre 1994 e 2005, passando de 1,94% para 1,76%88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). SIOPS: Gasto federal com saúde como proporção do PIB - E.7 [Internet]. DATASUS [acessado 2021 jul 15]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/tabdata/LivroIDB/2edrev/e07.pdf.
http://tabnet.datasus.gov.br/tabdata/Liv... .
Assim, mesmo com a EC nº 29/2000, críticos apontam necessidades de aperfeiçoamento do sistema de repartição e aplicação fiscal, uma vez que o subfinanciamento crônico do SUS não foi superado. Além disso, é preciso propor dispositivos que reduzam as desigualdades inter-regionais e permitam uma maior colaboração intergovernamental11 Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Carvalho NJ, Carvalho AI. Políticas e Sistema de saúde no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.,22 Lima LD. Connections between fiscal federalism and the funding of the Brazilian health care policy. Cien Saude Colet 2007; 12(2):511-522.,99 Contarato PC, Lima LD, Leal RM. Crise e federalismo: tendências e padrões regionais das receitas e despesas em saúde dos estados brasileiros. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4415-4426..
No decorrer da década subsequente, o Brasil passou por um momento de notável desenvolvimento econômico e social que possibilitou a expansão de políticas sociais, investimentos públicos e redistribuição de renda, contribuindo para a expansão da cobertura de serviços do SUS e provocando impacto positivo na saúde da população1010 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. Lancet 2011; 377(9779):1778-1797..
A partir de 2014, contudo, a economia começou a estagnar, entrando em recessão em 2015, com significativo aumento do desemprego e queda da arrecadação fiscal1111 Santos IS, Vieira FS. Direito à saúde e austeridade fiscal: o caso brasileiro em perspectiva internacional. Cien Saude Colet 2018; 23(7):2303-2314.. A política governamental, reafirmando os princípios norteadores da ortodoxia econômica na tentativa de ajuste fiscal, tem sido predominantemente contracionista, com redução dos investimentos públicos em diversas áreas, não estando os programas sociais, como a seguridade social, a educação e a saúde, poupados das reduções orçamentárias1111 Santos IS, Vieira FS. Direito à saúde e austeridade fiscal: o caso brasileiro em perspectiva internacional. Cien Saude Colet 2018; 23(7):2303-2314.
12 Resende MFC, Terra FHB. Ciclo, crise e retomada da economia brasileira: avaliação macroeconômica do período 2004-2016. Econ Soc 2020; 29(2):469-496.-1313 Carvalho L. Valsa Brasileira: Do boom ao caos econômico. 1ª ed. São Paulo: Todavia; 2018..
Os críticos apontam que essa austeridade, na prática, é mais uma reorganização do sistema de proteção social visando a atender a interesses privatistas, do que uma busca do equilíbrio de contas1111 Santos IS, Vieira FS. Direito à saúde e austeridade fiscal: o caso brasileiro em perspectiva internacional. Cien Saude Colet 2018; 23(7):2303-2314.,1313 Carvalho L. Valsa Brasileira: Do boom ao caos econômico. 1ª ed. São Paulo: Todavia; 2018.
14 Mendes Á. A saúde no capitalismo financeirizado em crise: o financiamento do SUS em disputa. Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz 2017; 7:5-7.-1515 Rossi TRA, Sobrinho JEL, Chaves SCL, Martelli PJL. Crise econômica, austeridade e seus efeitos sobre o financiamento e acesso a serviços públicos e privados de saúde bucal. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4427-4436.. Mesmo que outras medidas de pretensa austeridade já tivessem contribuído para o desmonte do direito constitucional à saúde, a mais pungente foi a aprovação da EC nº 95/20161616 Brasil. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o ADCT, para instituir o NRF, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2016; 16 dez., que congelou, em termos reais, as despesas primárias da União, impondo um teto de gastos por 20 anos, e que desvinculou os gastos da saúde e educação em relação às receitas (revogação da EC nº 86/2015). Ressalta-se que esta é a medida de austeridade mais rígida do mundo, considerando que países com problemas fiscais mais graves adotaram medidas mais brandas, por um período menor1717 Pires MCC. Nota Técnica: Análise da PEC 241. Brasília: IPEA; 2016..
Essa conjuntura de austeridade fiscal, associada às características históricas do federalismo brasileiro e as desigualdades socioeconômicas crescentes a partir do período de crise, engendra uma situação complexa, na qual a relação entre os entes federativos pode se deteriorar, com acirramento das disputas por recursos22 Lima LD. Connections between fiscal federalism and the funding of the Brazilian health care policy. Cien Saude Colet 2007; 12(2):511-522..
Assim, analisar a evolução do financiamento municipal da saúde, no período compreendido entre 2004 e 2019, que inclui dois contextos macroeconômicos distintos, permite identificar o grau de influência da restrição orçamentária promovida por um ajuste fiscal sobre as relações entre entes federativos. Dado que os municípios são os principais executores das políticas de saúde, este estudo almejou, portanto, analisar o comportamento orçamentário das prefeituras e as alterações nos repasses estaduais e federais no decorrer do período. Considerando que a evolução temporal dos orçamentos de saúde deve ter variado entre os municípios brasileiros, este estudo avalia essa evolução de acordo com o porte populacional e a renda domiciliar média dos municípios, o que permite identificar a existência de desigualdades entre municípios de maior ou menor porte populacional e de maior ou menor renda.
Metodologia
Trata-se de um estudo quantitativo, analítico e documental da evolução do financiamento em saúde dos municípios brasileiros, do período de 2004 a 2019.
Para cada município brasileiro e para cada ano do período estudado, foram obtidos do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), disponibilizado pelo MS1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). SIOPS: Indicadores Municipais [Internet]. DATASUS; 2019 [acessado 2019 jun 4]. Disponível em: http://siops-asp.datasus.gov.br/CGI/deftohtm.exe?SIOPS/serhist/municipio/mIndicadores.def.
http://siops-asp.datasus.gov.br/CGI/deft... , os seguintes dados: população, receita própria, participação (%) da receita própria na receita total do município e despesa liquidada em saúde. A partir dessas informações, a receita total do município foi obtida pela razão entre a receita própria e a participação desta na receita total. Ademais, a receita não-própria foi considerada como o resultado da subtração entre a receita total calculada e a receita própria. Quanto à despesa, também foram coletados dados acerca da origem dos recursos (próprios ou não-próprios) e da proporção de recursos próprios aplicados em saúde de acordo com a EC nº 29/2000.
Dados acerca da renda média domiciliar per capita produzidos pelo Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foram acessados por meio do TABNET/DATASUS1919 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Informações de Saúde - Demográficas e Socioeconômicas: Renda média domiciliar per capita (2010) [Internet]. DATASUS; 2019 [acessado 2020 jan 10]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?ibge/censo/cnv/rendabr.def.
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht... e foram utilizados para fins de categorização dos municípios em quintis. Os municípios também foram categorizados de acordo com seu tamanho populacional baseado nos grupos padronizados pelo IBGE: ≤5.000; 5.001-10.000; 20.001-50.000; 10.001-20.000; 50.001-100.000; 100.001-500.000; >500.000 habitantes.
Todas as variáveis orçamentárias absolutas tiveram os seus correspondentes valores per capita calculados para cada município e foram deflacionadas para os valores correntes de dezembro de 2019 por meio das taxas do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), para fins de comparabilidade, efetuada pela calculadora oficial do Banco Central do Brasil (Calculadora do Cidadão)2020 Banco Central do Brasil. Calculadora do Cidadão [Internet]. Brasília: BCB; 2019 [acessado 2019 out 15]. Disponível em: www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/..
Os novos municípios criados depois de 2004 foram excluídos das análises. Foram retiradas também as observações anuais que tinham valores ausentes ou nulos registrados para quaisquer um dos campos de despesa ou receita, mantendo apenas municípios com informações completas.
Para os indicadores financeiros per capita, foi calculada a média nacional anual entre todos os municípios e a média segundo o porte populacional e renda. Para análise da associação entre a variação anual da despesa per capita própria e não-própria e o porte populacional ou a renda média domiciliar per capita, foi aplicada uma regressão de dados em painel empilhado (modelo pooled), adotando-se o nível de significância de α<5%.
Utilizou-se o software Stata (versão 14) para tratamento de dados e construção dos gráficos. Como se trata de um estudo que utilizou dados secundários e públicos, foi dispensada a apreciação por um Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
Excluindo-se do estudo os dez municípios criados no período, foram feitas 88.960 observações correspondentes aos dados financeiros anuais de 5.560 municípios no intervalo de 16 anos. Entretanto, dessas observações, 3.805 foram excluídas por terem informações omissas relativas aos campos de receitas ou despesas, resultando, portanto, em 85.155 observações de dados municipais abarcados neste estudo.
Evolução das receitas
A receita tributária per capita do conjunto dos municípios aumentou 115,07% no período, passando de R$ 1962,6 à R$ 4221,1 de 2004 a 2019. Contudo, houve dois momentos de inflexão negativa: um entre 2008 e 2009 (-4,02%) e outro entre 2014 e 2015 (-6,96%), ilustrado no Gráfico 1.
Evolução dos indicadores financeiros per capita (R$) de receita total, própria, não própria e despesa em saúde dos municípios brasileiros, de 2004 a 2019.
Decompondo essa receita total nos seus componentes, observa-se que, entre 2004 e 2013, a receita própria evoluiu de maneira semelhante à receita total, acompanhando a queda entre 2008 e 2009 e retomando o crescimento nos anos subsequentes. Entretanto, diante da diminuição de 5,36% entre 2014 e 2015, a receita própria ficou praticamente estagnada entre 2015 e 2017, com queda de 0,004% nesses três anos, passando a não mais acompanhar o padrão de crescimento da receita total. A receita total passou então a evoluir de modo semelhante à receita não-própria, que sustentou a recuperação financeira nos anos subsequentes. No período como um todo, esta cresceu 240,9%, enquanto a receita própria cresceu apenas 69,1% (Tabela 1). Ademais, a participação das receitas próprias no orçamento total dos municípios foi decrescente, passando de uma média de 70,9% em 2004 para 64,9% em 2015, com queda acentuada nos três anos seguintes, fechando o período do estudo com média de participação de 55,1%.
Em relação ao porte populacional (Tabela 1), foi notável o maior crescimento relativo das receitas não-próprias nos municípios de menor porte populacional. Essa tendência também foi observada com as receitas próprias, embora não em termos percentuais, e sim absolutos. Por outro lado, a evolução das receitas próprias e não-próprias não aparentou ter associação com quintil de renda média familiar.
Evolução das despesas
A despesa total per capita em saúde dos municípios acompanhou o comportamento das receitas em geral e, mais especificamente, da receita própria. Cresceu de R$ 395,03 em 2004 para R$ 887,07. Entre 2004 e 2014, houve crescimento de 124,6%, com queda de -9,0% entre 2014 e 2015, seguido de recuperação entre 2015 e 2019 (14,0%).
De modo similar à evolução das receitas, a parcela de despesas financiadas por fontes não-próprias cresceu mais do que a parcela financiada com recursos próprios. As despesas bancadas com recursos próprios cresceram 101,2%, enquanto aquelas financiadas com recursos não-próprios aumentaram 170,0% no período. Há de se destacar a participação das distintas esferas governamentais: em 2004, 36,6% das despesas em saúde foram liquidadas com recursos oriundos de transferências advindas de outras esferas de governo - sendo a União responsável por 91,9% destas. Já em 2019, as transferências liquidaram 43,9% das despesas em saúde, com a União tendo sido responsável por 87,1% do total transferido, o que representou uma redução da participação da União com possível aumento da participação dos estados nas transferências em relação ao início do período.
Verificou-se ainda que os municípios têm investido em saúde além do mínimo determinado pela EC nº 29/2000. Com efeito, a média de aplicação percentual da receita própria no sistema municipal de saúde foi de quase seis pontos percentuais acima do preconizado em lei, tendo passado de 15% para 20,7% entre 2004 e 2019. Registre-se, entretanto, que houve casos de aplicação inferior ao regulamentado (apenas 1,3% das observações entre 2004 e 2019), concentrados especialmente em 2004 e 2005, onde, respectivamente, 578 (13,44%) e 171 (3,27%) dos municípios descumpriram a norma. Nos anos seguintes, o número de municípios irregulares manteve-se entre o mínimo de nove (0,16%) em 2017 e o máximo de 51 (0,96%) em 2012.
Evolução das despesas de acordo com o tamanho populacional
Tratando-se do porte populacional, a regressão pooled demonstrou que, em relação ao grupo de referência (≤5.000 habitantes), todos os demais grupos tiveram menor variação anual da despesa per capita financiada com recursos próprios no período (p<0,001), ou seja, os municípios de menor porte foram os que mais aumentaram os gastos em saúde com recursos próprios. Além disso, a diminuição progressiva dos coeficientes entre os quintis indica que até 50.000 habitantes, quanto maior o porte populacional, menor o crescimento dessa despesa. A partir de 50.000 habitantes, a relação foi inversa: quanto maior o porte populacional, maior o crescimento. Vale ressaltar que grupo de mais de 500.000 habitantes que teve coeficiente similar ao grupo de 5.001 a 10.000 habitantes (Tabela 2).
Quanto às despesas em saúde financiadas por fontes não-próprias, o grupo de referência teve variação significativamente maior que a dos demais grupos, com exceção dos municípios do grupo de mais de 500.000 habitantes que não obteve associação estatística significativa (p=0,217). Quando se considerou a variação percentual total (VPT), foi notado que no geral a despesa oriunda de fontes não-próprias cresceu mais do que a despesa própria, indicando ainda uma tendência de que quanto menor o porte populacional, maior o crescimento da despesa não-própria (Tabela 1). De fato, a VPT da evolução dessas despesas não-próprias nos municípios com menos de 5.000 habitantes foi 130,5% maior do que nos municípios com mais de 500.000 habitantes.
Evolução das despesas de acordo com a renda média familiar
Quanto às diferenças da evolução dos gastos municipais per capita de acordo com o quintil de renda média domiciliar do município, as regressões indicam que as despesas próprias do grupo de referência (≤5.000 habitantes) cresceram em menor taxa do que as dos demais (p<0,001). Ou seja, os coeficientes progressivamente maiores mostram que, quanto maior a renda domiciliar dos municípios, maior o aumento anual das despesas próprias. Para as despesas não-próprias, ao contrário, não foi detectada relação estatística entre o quintil de renda e o crescimento dessas transferências (Tabela 3).
Ainda em relação aos quintis de renda, entre 2004 e 2019, os percentuais da receita própria absoluta aplicada em saúde foram diferentes entre os grupos: o quintil de menor renda aplicou 19,6% das suas receitas próprias em saúde, já o de maior renda aplicou, em média, 21,6%, sem mudanças substanciais dessa desigualdade ao longo do período. Em adição, 30,5% das despesas em saúde no período foram financiadas por transferências no quintil de maior renda, enquanto foi de 48,8% no quintil de menor renda, o que sugere que municípios de menor renda são mais dependentes das transferências para financiamento da saúde.
Discussão
Evolução das receitas
Considerando os moldes tributários do Brasil concentrados em impostos incidentes sobre o consumo, a arrecadação será maior quanto maior for a prestação de serviços e a circulação de mercadorias11 Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Carvalho NJ, Carvalho AI. Políticas e Sistema de saúde no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.,1313 Carvalho L. Valsa Brasileira: Do boom ao caos econômico. 1ª ed. São Paulo: Todavia; 2018.. Dito de outro modo, as receitas são especialmente sensíveis à atividade econômica vigente no período.
Nesse sentido, no que concerne às receitas, a evolução do financiamento municipal da saúde descrita neste estudo pode ser associada aos seguintes contextos econômicos: (a) a conjuntura do “Milagrinho Econômico” entre 2004 e 2014 permitiu o crescimento estável das receitas totais tributárias municipais observado no período1313 Carvalho L. Valsa Brasileira: Do boom ao caos econômico. 1ª ed. São Paulo: Todavia; 2018.; (b) a queda das receitas próprias dos municípios entre 2008 e 2009 pode estar relacionada à perturbação decorrente da crise internacional de 2008, que levou a queda do PIB no Brasil, em 2009, com variação de -0,1%2121 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sistema de Contas Nacionais Trimestrais [Internet]. Brasília: IBGE; 2019 [acessado 2019 jan 20]. Disponível em: www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/contas-nacionais/9300-contas-nacionais-trimestrais.html?=&t=series-historicas.; (c) a recessão econômica iniciada em 20142222 Bastos PPZ. Ascensão e crise do governo Dilma Rousseff e o golpe de 2016: Poder estrutural, contradição e ideologia. Rev Econ Contemp 2017; 21(2):1-63. provocou a queda das receitas totais de todos os municípios entre 2014-2015; (d) a subsequente recuperação econômica permitiu a retomada do aumento das receitas totais entre 2016 e 2019.
A maior variação total da receita não-própria em relação à receita própria no período de 2004 a 2019 indica um processo de aumento da dependência fiscal dos municípios. Esse processo se tornou mais evidente após 2016, quando a receita não-própria per capita passou a representar, em média, 40,18% da receita total, maior do que média histórica entre 2004 e 2015 de 29,92%. Esse panorama de dependência das transferências federais é um indicativo da baixa capacidade arrecadatória dos municípios, agravada com a aprovação de emendas constitucionais que limitaram a autonomia municipal no desenvolvimento de mecanismos locais de tributação2323 Padilha A, Oliveira DC, Alves TA, Campos GWS. Crise no Brasil e impactos na frágil governança regional e federativa da política de saúde. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4509-4518.. Como aponta Tristão2424 Tristão JAM. A administração tributária dos municípios brasileiros: uma avaliação do desempenho da arrecadação [tese]. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas; 2003., há um desestímulo ao esforço fiscal municipal, quando há transferências intergovernamentais disponíveis sem a exigência de contrapartidas na cobrança efetiva de tributos próprios. Dessa forma, as transferências intergovernamentais se tornam a “coluna vertebral” do financiamento municipal.
Nesse sentido, embora seja uma característica estrutural, própria da conformação tributária estabelecida, a dependência dos municípios em relação às transferências intergovernamentais aumentou a partir 2014, em um contexto de crise econômica. Essa situação está especialmente presente nos municípios de menor porte populacional, os quais tiveram maior crescimento das receitas e despesas em saúde oriundas de fontes não-próprias, e os de menor renda média familiar, que tiveram maior crescimento das despesas não-próprias.
No contexto de pandemia da COVID-19, vale registrar que o aumento da dependência fiscal persiste em 2020, com uma queda de 13,5% nas receitas próprias e aumento de 18,3% nas receitas não-próprias de todos os municípios, entre 2019 e 20202525 Bremeaker FEJ. As finanças municipais em 2020 [Internet]. Maricá: Observatório de Informações Municipais; 2021 [acessado 2021 jul 16]. Disponível em: http://www.oim.tmunicipal.org.br/?pagina=documento&tipo_documento_id=1..
Evolução das despesas
O aumento das despesas per capita em saúde no período observado pode ser atribuído a várias causas, dentre elas: expansão da infraestrutura, investimentos na melhoria da qualidade dos serviços prestados e incorporação de novas tecnologias de saúde, notadamente aquelas de alto custo2626 Teles AS. O financiamento público do Sistema Único de Saúde (2003-2018) [tese]. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana; 2019.,2727 Ocké-Reis CO. Os problemas de gestão do SUS decorrem também da crise crônica de financiamento? Trab Educ Saude 2008; 6(3):613-622.. Já a queda das despesas a partir de 2014 pode estar associada à deterioração das receitas como consequência da crise econômica.
O aumento da participação das transferências para pagamento das despesas, associado à redução proporcional da arrecadação própria, corrobora a hipótese de que houve aumento da dependência fiscal dos municípios, neste caso, atingindo diretamente o custeio da saúde. Ademais, a redução da participação da União nessas transferências, intensificada a partir de 2015 quando se agudiza a crise econômica e se impõe o Novo Regime Fiscal (NRF - EC nº 95/2016), traz como consequência uma maior responsabilização financeira dos estados e municípios pelo custeio da saúde.
Nesse contexto, o equilíbrio das finanças estaduais se torna um grande desafio na medida em que a “guerra fiscal” e o endividamento se intensificam em meio a um processo de recentralização e redução de repasses federais concomitante ao aumento de pressão política por repasse aos municípios numa situação de escassez de recursos99 Contarato PC, Lima LD, Leal RM. Crise e federalismo: tendências e padrões regionais das receitas e despesas em saúde dos estados brasileiros. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4415-4426..
Quanto à relação entre as diferentes esferas de governo no contexto de crise, Padilha et al.2323 Padilha A, Oliveira DC, Alves TA, Campos GWS. Crise no Brasil e impactos na frágil governança regional e federativa da política de saúde. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4509-4518. indicam ainda que houve forte redução dos repasses federais para as redes regionais de atenção a partir de 2015, afetando assim a governança subnacional. Registram também a ocorrência de disputas entre os poderes legislativo, judiciário e executivo federais em torno da alocação de recursos, evidenciadas pelo aumento dos gastos da União com emendas parlamentares relacionadas à saúde e pelo grande número de ações judiciais (judicialização da saúde), fenômenos que favorecem a fragmentação dos gastos em detrimento dos investimentos em redes de atenção e programas universalizantes2323 Padilha A, Oliveira DC, Alves TA, Campos GWS. Crise no Brasil e impactos na frágil governança regional e federativa da política de saúde. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4509-4518..
No que tange à participação da União, a redução das transferências limita a possibilidade de combater as desigualdades regionais de acesso aos serviços, pois os recursos escassos são aplicados prioritariamente na manutenção dos serviços já existentes e, consequentemente, as localidades com infraestrutura de saúde menos desenvolvidas ficam com um horizonte de difícil expansão da oferta de serviços2828 Vieira FS, Benevides RPS. Crise econômica, austeridade fiscal e saúde: que lições podem ser aprendidas? Brasília: IPEA; 2016..
No tocante ao piso de gastos determinado pela EC nº 29/2000, é notório que, nos dois primeiros anos abarcados deste estudo, ainda havia um processo de adaptação à norma por uma parcela substancial de municípios. Vencida esta etapa, os achados reforçam o entendimento de que a instituição da EC nº 29/2000 ampliou a alocação de recursos no SUS ao aumentar o comprometimento orçamentário dos municípios e estados com a saúde2929 Piola SF, França JRM, Nunes A. Os efeitos da emenda constitucional 29 na alocação regional dos gastos públicos no sistema único de saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(2):411-421..
Características por tamanho populacional
Os municípios de menor porte podem se beneficiar dos critérios estabelecidos para os repasses de recursos federais via Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e, provavelmente por isso, vêm aumentando os gastos em saúde principalmente com os recursos não-próprios22 Lima LD. Connections between fiscal federalism and the funding of the Brazilian health care policy. Cien Saude Colet 2007; 12(2):511-522.. Como observado nesses municípios menores, um maior aumento das receitas não-próprias pode significar, em consequência, um maior aumento das despesas em saúde oriundas dessas fontes não-próprias. Isso indica que uma parcela importante das transferências está sendo destinada à área da saúde. Portanto, o processo de aumento da dependência fiscal geral, além de ser mais intenso nos municípios menores, atinge também o financiamento da saúde nessas localidades.
Do mesmo modo, o crescimento das despesas próprias é associado com o crescimento das receitas próprias. Em adição, essa situação pode ser mais bem compreendida considerando-se a exigência, pela EC nº 29/2000, de que os municípios apliquem em serviços e ações de saúde um montante mínimo de suas receitas próprias. Nesse sentido, os municípios menores, comparados aos de maior porte, tiveram um aumento mais significativo da aplicação de recursos próprios para financiar os serviços e as ações de saúde pois o crescimento dessas receitas também foi maior nesses municípios.
Embora tanto as despesas financiadas por fontes próprias quanto por fontes não-próprias tenham crescido, o aumento desta foi maior (170% vs. 101,2%), corroborando assim a maior intensificação da dependência para custeio da saúde.
Características por renda
Era de se esperar que os maiores gastos per capita em serviços e ações de saúde incorridos pelos municípios mais ricos estivessem associados à maior disponibilidade de recursos próprios, arrecadados localmente, dada a maior atividade econômica desses municípios. Haveria, porém, para além disso, algo que explique a maior alocação percentual de seus recursos próprios na área da saúde?
Podem-se considerar algumas hipóteses para explicar esse panorama: os municípios com maior renda média domiciliar podem ter uma maior demanda por serviços de saúde especializados, de alta densidade tecnológica e alto custo ou a administração dos serviços de saúde nesses municípios pode ter um custo maior. Como discutido por Musgrove et al.3030 Musgrove P, Zeramdini R, Carrin G. Basic patterns in national health expenditure. Bull World Health Organ 2002; 80(2):134-142., após constatar relação diretamente proporcional entre renda per capita e despesa em saúde em 191 países, ambas as explicações são plausíveis e podem ser complementares, já que os inputs em saúde (por exemplo, a mão-de-obra) foram associados a um custo maior de acordo com a renda, embora seja reconhecido que, quanto à primeira hipótese, estabelecer e investigar o nível ideal de demanda por gasto e serviços de saúde seja uma tarefa especialmente complexa por depender de diversas características da população em análise3030 Musgrove P, Zeramdini R, Carrin G. Basic patterns in national health expenditure. Bull World Health Organ 2002; 80(2):134-142..
É possível também que a demanda por outros serviços públicos não relacionados diretamente à saúde nos municípios de menor renda imponha, de modo mais importante do que nos municípios mais ricos, um limite aos gastos com serviços de saúde, de tal forma que nos municípios de maior renda domiciliar haja uma margem maior para destinação à saúde.
O maior crescimento da despesa financiada com recursos próprios nos municípios de maior renda sugere uma ampliação das desigualdades econômicas entre os grupos de municípios: enquanto os municípios mais ricos mantêm e expandem a autossuficiência financeira, os municípios mais pobres a reduzem. Embora a regressão não tenha considerado a variação anual diferente entre os grupos, a variação percentual total indicou que, em valores proporcionais, as despesas financiadas com recursos não-próprios em saúde tiveram crescimento progressivamente maior no grupo de municípios de menor renda em comparação com os grupos de maior renda (Tabela 1). Por isso, se, em todos os municípios, houve aumento da dependência fiscal, nos municípios de menor renda esse aumento foi mais importante para o custeio da saúde. Assim, não apenas a parcela de transferências que financia as despesas em saúde sempre foi maior nos grupos de municípios mais pobres, como também foi nestes grupos que ela mais se ampliou. Acrescente-se que o aumento das despesas pagas com recursos próprios não foi tão grande nos municípios de menor renda quanto nos municípios de maior renda.
Limitações
Para interpretar bem os dados produzidos, deve-se considerar que apenas os dados fornecidos pelos municípios foram computados. Portanto, a análise da evolução dos recursos estaduais ou nacionais que foram transferidos e de suas implicações teve que ser feita de forma indireta, baseando-se no que foi informado pelas secretarias municipais de saúde por meio do SIOPS. Além disso, é necessário chamar a atenção para a impossibilidade de se extrair conclusões específicas sobre os municípios isoladamente, visto que os indicadores foram calculados em média, homogeneizando um conjunto bastante heterogêneo de 5.560 municípios.
Considerações finais
Os resultados apresentados refletem a permanência de velhos problemas: desde a criação do SUS em um período significativamente anterior ao deste estudo, persiste a insuficiência de dispositivos constitucionais ou legais que garantam a sua sustentabilidade financeira e a distribuição equitativa dos recursos. O que se tem visto, ao longo de mais de 30 anos, é a adoção de dispositivos coerentes com as opções de política macroeconômica de busca por superávits fiscais, pondo empecilhos ao financiamento do SUS em moldes adequados ao atendimento das necessidades de saúde de toda a população.
O federalismo fiscal vigente se caracteriza pela descentralização apenas no que concerne às despesas, não no que toca à arrecadação, evidenciando uma situação de dependência fiscal. Neste estudo, evidenciou-se que a dependência cresceu no período analisado, especialmente após a crise de 2015, haja vista o aumento da participação das receitas não-próprias nos orçamentos.
Se o subfinanciamento do SUS não foi superado, houve, entretanto, um crescimento real dos gastos em saúde pela esfera municipal de 2004 a 2014 da ordem de 156,3%, sustentado pelo aumento de receitas no mesmo período.
Para além dos problemas crônicos que foram agudizados pela recessão, surgiram novos desafios, uma vez que as respostas dadas à crise iniciada em 2014 - como a adoção do teto de gastos - possivelmente provocaram o efeito detectado neste estudo: a diminuição da participação da União nas transferências em saúde para os municípios, causando uma maior pressão no orçamento dos estados associada à aceleração do aumento da dependência dos municípios a outras esferas de governo por queda de arrecadação própria.
Essa é uma situação desafiadora para estados e municípios, uma vez que já se encontram em situação de insuficiência de recursos para cobrir as despesas assumidas, incluindo o endividamento, também histórico, junto à União99 Contarato PC, Lima LD, Leal RM. Crise e federalismo: tendências e padrões regionais das receitas e despesas em saúde dos estados brasileiros. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4415-4426.. Ressalte-se que essa situação é especialmente ameaçadora para o financiamento da saúde nos municípios de menor renda, que são mais dependentes das transferências.
O entendimento de que a austeridade é a única solução para o equilíbrio das contas e a retomada do crescimento não é um consenso entre economistas e líderes políticos. De fato, se alguns insistem na sua adoção, outros têm argumentado que se trata de uma estratégia falha, incapaz de gerar superávits ou crescimento econômico sustentável. Como sugerem os resultados deste estudo, as medidas de austeridade fiscal - sendo o principal exemplo a EC nº 95/2016 - são deletérias especialmente para os municípios de menor renda domiciliar e de menor porte populacional, haja vista a maior dependência fiscal no financiamento da saúde nesses grupos. Como estes municípios já eram e se tornaram mais dependentes no decorrer do período, estiveram também mais suscetíveis aos impactos negativos de restrições orçamentárias que afetaram as transferências de recursos.
Quanto à categorização por porte populacional, ressalta-se o papel fundamental que a EC nº 29/2000 tem cumprido para os municípios de menor porte na estabilização dos gastos municipais em saúde, mesmo com seus limites operacionais. Entretanto, o aumento da proporção de receitas não-próprias nos financiamentos dos serviços e ações de saúde alerta para intensificação da dependência fiscal dos municípios em relação às duas outras esferas de governo, estando os gastos próprios resguardados devido à emenda que estabelece um piso orçamentário para os gastos em saúde.
Enfim, este estudo, ao analisar as tendências temporais em período de 16 anos, evidencia um contínuo processo de aumento da dependência fiscal dos municípios, intensificado após a crise de 2015.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
27 Maio 2022 - Data do Fascículo
Jun 2022
Histórico
- Recebido
23 Jul 2021 - Aceito
03 Dez 2021 - Publicado
05 Dez 2021