Suicídio de mulheres no Brasil: necessária discussão sob a perspectiva de gênero

Eder Samuel Oliveira Dantas Karina Cardoso Meira Juliana Bredemeier Karla Patrícia Cardoso Amorim Sobre os autores

Resumo

O suicídio de mulheres constitui um problema de saúde pública e há escassez de literatura científica que discorra sobre a temática. Neste ensaio teórico, buscou-se discutir o suicídio de mulheres no Brasil, sob a perspectiva de gênero. Para isso, adotou-se a concepção que gênero extrapola o conceito de sexo, tendo em vista que as diferenças entre as pessoas são produzidas pela cultura e arranjos pelos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em realizações da vida humana. Este texto foi organizado de modo a sinalizar alguns modelos explicativos do suicídio de mulheres, discutindo as desigualdades de gênero e abordando a questão da interseccionalidade a partir de uma visão protetiva. Ademais, acredita-se que o tema abordado é de extrema complexidade, tendo em vista que ainda resistem estigmas e preconceitos referente a este. Assim, urge visibilizar questões estruturais que cercam o suicídio em mulheres, como a violência e as desigualdades de gênero.

Palavras-chave:
Suicídio; Mulheres; Gênero e Saúde; Saúde Mental

Introdução

O suicídio é considerado o ato humano de infligir a morte a si mesmo, de maneira deliberada e consciente do desfecho fatal11 Durkheim E. O suicídio: um estudo sociológico. 1ª ed. São Paulo: Edipro; 2017.. Constitui-se em um dos mais antigos temas relacionados à forma como os indivíduos são afetados pelas sociedades e coletividades nas quais vivem, e a concepção deste tema muda de acordo com o tempo histórico. Na antiguidade, em determinadas civilizações como a Maia e Grega, era um ato permitido; na perspectiva religiosa era condenável, especialmente a partir do século XVIII nas religiões de origem judaico-cristãs. Com o advento da modernidade, no século XIX, este evento passou a ser visto como fenômeno social, a partir dos estudos de Émile Durkheim; na pós-modernidade, consolidou-se uma visão do suicídio como agravo à saúde, causado por múltiplos fatores, dentre eles, questões psicológicas, sociais, econômicas, biológicas, políticas, filosóficas, históricas e culturais22 Ribeiro JM, Moreira MR. Uma abordagem sobre o suicídio de adolescentes e jovens no Brasil. Cien Saude Colet 2018; 23(9):2821-2834.,33 World Health Organization (WHO). Preventing suicide: a global imperative [Internet]. Geneva: WHO; 2014 [acesso 2022 set 15]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789241564779..

Na atualidade, o comportamento suicida é classificado em fatal (o suicídio consumado) e não fatal, que se manifesta sob a forma de ideação e tentativa suicida. Na ideação, há pensamentos de morte autoprovocada que podem se tornar mais graves quando acompanhados de um plano para fazê-lo. A tentativa de suicídio envolve atos intencionais que podem chegar ou não à morte autoinfligida, e constitui importante fator de risco para o suicídio consumado33 World Health Organization (WHO). Preventing suicide: a global imperative [Internet]. Geneva: WHO; 2014 [acesso 2022 set 15]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789241564779..

Para a Organização Mundial da Saúde, o suicídio configura-se como importante e grave problema de saúde pública; estima-se que seja a causa de óbito de 703.000 pessoas anualmente no mundo44 World Health Organization (WHO). Suicide worldwide in 2019: global health estimates [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [acesso 2022 set 15]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240026643., representando taxa global média de nove óbitos por 100.000 habitantes. A maior carga desse agravo à saúde (77% de todos os óbitos) é observada em países de baixa e média renda, com maiores taxas de mortalidade entre os homens, com exceção de Sri Lanka, El Salvador, Cuba, Equador e China, que apresentam taxas mais altas entre mulheres ou equivalentes de suicídio entre homens e mulheres55 Barrigon ML, Cegla-Schvartzman F. Sex, Gender, and Suicidal Behavior. Curr Top Behav Neurosci 2020; 46:89-115..

No Brasil, os coeficientes de suicídios masculinos foram 3,8 vezes maiores do que os femininos (10,7 óbitos por 100 mil homens e 2,9 óbitos por 100 mil mulheres), no período de 2010 a 2019, resultados semelhantes aos observados na maioria dos países do mundo66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Mortalidade por suicídio e notificações de lesões autoprovocadas no Brasil. Boletim Epidemiológico [Internet] 2021 [acesso 2022 set 12]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/setembro/20/boletim_epidemiologico_svs_33_final.pdf.
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. No entanto, é importante destacar que, no Brasil, a tendência temporal dos suicídios femininos apresentou-se ascendente em variadas faixas etárias estudadas (15 a ~60 anos), no período de 1997 a 201577 Rodrigues CD, Rorigues HM, Konstatyner TCRO. Trends in suicide rates in Brazil from 1997 to 2015. Braz J Psychiatry 2019; 41(5):380-388.. na maioria dos estados da região Nordeste, no recorte histórico de 1996 a 201888 Dantas ESO, Farias YMF, Rezende EB, Silva GWS, Silva PG, Meira KC. Estimates of suicide mortality in women residents in northeast brazilian states 1996 to 2018. Cien Saude Colet 2021; 26(10):4795-4804..

Além da tendência crescente de óbitos por suicídio em mulheres, é importante mencionar o “paradoxo do suicídio”, conceito utilizado para denominar o fato de que homens morrem mais por suicídio, enquanto as mulheres apresentam mais ideação e tentativas, e, portanto, são mais afetadas pelo comportamento suicida no geral99 Beautrais AL. Women and suicidal behavior.Crisis 2006; 27(4):153-156.,1010 Meneghel SN, Gutierrez DMD, Silva RM, Grubits S, Hesler LZ, Ceccon RF. Suicídio de idosos sob a perspectiva de gênero. Cien Saude Colet 2012; 17(8):983-992.. Neste sentido, 68% das 338,569 notificações de tentativas de suicídios no Brasil, no período de 2010 a 2018, ocorreram em mulheres1111 Meira KC, Dantas ESO, Jesus JC. Suicídio: uma questão de gênero [Internet]. 2021 [acesso 2022 set 25]. Disponível em: https://demografiaufrn.net/2021/03/22/suicidio-uma-questao-de-genero/.
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A constância nos dados permite deduzir que estas diferenças na expressão do fenômeno do suicídio entre homens e mulheres não se deve ao acaso, tampouco parecem decorrentes apenas de particularidades biológicas. Ao contrário, as diferenças se relacionam com a construção social dos papéis de gênero na sociedade patriarcal, que promove assimetrias nas relações de poder e resulta na subordinação e opressão das mulheres pelos homens1212 Zanello V. Saúde Mental, Gênero e Dispositivos: Cultura e Processos de Subjetivação. 1ª ed. Curitiba: Appris; 2018.,1313 Segato RL. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-Cadernos Ces 2012; 18:1-5.. Nessa ótica, evidencia-se a necessidade de explorar esse fenômeno sob a égide do gênero, tendo em vista que diferenças e desigualdades determinam o modo de vida das pessoas e, também podem influenciar no surgimento do comportamento suicida.

A importância de discutir o suicídio sob essa perspectiva reside, sobretudo, na urgência de visibilizar temática historicamente estigmatizada. Esta discussão está pautada no entendimento de que gênero extrapola o conceito de sexo (masculino, feminino), adotado na epidemiologia. A noção de gênero em voga considera que as diferenças entre os sujeitos são produzidas pela cultura, configurando, assim, um conjunto de arranjos pelos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em realizações da vida humana e assimetrias de poder entre homens e mulheres1414 Saffioti HIB. Gênero, patriarcado, violência. 2ª ed. São Paulo: Editora Perseu Abramo; 2004..

Este texto, de cunho ensaístico, busca colaborar de maneira teórica e reflexiva sobre a temática do suicídio de mulheres, já que há escassez na literatura (inter)nacional de estudos que a abordem de maneira robusta99 Beautrais AL. Women and suicidal behavior.Crisis 2006; 27(4):153-156.,1515 Dantas ESO, Silva GWS, Guimarães J. Aspectos psicossociais do suicídio em mulheres do sertão do Rio Grande do Norte, Brasil. Cad Saude Colet 2022; 30(2):215-223.,1616 Meneghel ST, Moura R, Hesler LZ, Gutierrez DMD. Tentativa de suicídio em mulheres idosas - uma perspectiva de gênero. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1721-1730.. Logo, objetiva-se discutir o suicídio de mulheres no Brasil sob a perspectiva de gênero.

Para isso, este texto está organizado da seguinte forma: (1) apresentação de modelos explicativos para o suicídio de mulheres; (2) discussão sobre as desigualdades de gênero que pautam o sofrimento psíquico e o comportamento suicida em mulheres; (3) considerações sobre o suicídio de mulheres e a interseccionalidade.

Suicídio de mulheres a partir de modelos explicativos

Ao longo do tempo, a maioria dos estudiosos do suicídio relacionaram esse tema ao universo masculino, denotando ao ato suicida determinados adjetivos que permeiam a vida de homens e reforçam a masculinidade hegemônica: força, coragem, virilidade, personalidade explosiva e impulsividade, entre outros adjetivos. Assim, de maneira machista, durante muito tempo, compreendeu-se que os menores números de suicídio de mulheres seriam justificados por fragilidade física, maior sensibilidade e menor coragem para realização de tentativas de suicídio por meios agressivos99 Beautrais AL. Women and suicidal behavior.Crisis 2006; 27(4):153-156.,1515 Dantas ESO, Silva GWS, Guimarães J. Aspectos psicossociais do suicídio em mulheres do sertão do Rio Grande do Norte, Brasil. Cad Saude Colet 2022; 30(2):215-223..

Nessa direção, quando o sociólogo Émile Durkheim desenvolveu o clássico trabalho sobre suicídio no século XIX, afirmou que o fenômeno se apresenta diferente entre os sexos, porque a mulher teria uma vida mental menos desenvolvida, menos aspirações, ambições e necessidades pessoais. Destarte, o autor advoga que as mulheres que seguissem o script da feminilidade hegemônica, ligadas à família e socialmente subordinadas aos homens, teriam menor risco de suicídio11 Durkheim E. O suicídio: um estudo sociológico. 1ª ed. São Paulo: Edipro; 2017..

Contrariando a teoria durkheimiana, há evidências de que a redução da desigualdade de gênero é um fator determinante de proteção às mulheres a todos os tipos de violência, incluindo as autodirigidas. Neste sentido, estudo desenvolvido em 33 países em desenvolvimento constatou que as taxas de suicídio de mulheres eram mais baixas em países com estruturas sociais que priorizam a igualdade entre os gêneros1717 Rudmin FW, Ferrada-Noli M, Skolbekken JA. Questions of culture, age and gender in the epidemiology of suicide. Scand J Psychol 2003; 44(4):373-381..

A partir do século XX, a psiquiatria passou a dominar as narrativas sobre o suicídio, destacando o papel do indivíduo e da individualidade em detrimento do meio sociocultural, econômico e político. Assim, passou a ser avaliado sob a ótica biomédica, e a partir de transtornos mentais e suas sintomatologias, com destaque para a depressão, o transtorno afetivo bipolar, a esquizofrenia, o uso nocivo/abusivo de álcool e outras drogas e os transtornos de personalidade33 World Health Organization (WHO). Preventing suicide: a global imperative [Internet]. Geneva: WHO; 2014 [acesso 2022 set 15]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789241564779.,1818 Minayo MCS, Figueiredo AEB, Mangas RMN. O comportamento suicida de idosos institucionalizados: histórias de vida. Physis 2017; 27(4):981-1002.,1919 Botega NJ. Comportamento suicida: epidemiologia. Psicol USP 2014; 25(3):231-236..

Nessa visão psiquiátrica sobre o suicídio, dominante até a atualidade, os marcadores sociais presentes na vida de mulheres são menorizados, incluindo a violência de gênero, tão frequente na vida feminina, qual seja, a violência doméstica, sexual, patrimonial, dentre outras. Contrapondo esse modelo hegemônico, destacamos, ainda, que mesmo na presença de um transtorno mental, é preciso enxergar além das sintomatologias circunscritas a psicopatologia, pois o sofrimento humano, presente em pessoas com transtornos mentais, é envolto também por estigma, preconceito, abandono e diversas exclusões sociais1212 Zanello V. Saúde Mental, Gênero e Dispositivos: Cultura e Processos de Subjetivação. 1ª ed. Curitiba: Appris; 2018.,1616 Meneghel ST, Moura R, Hesler LZ, Gutierrez DMD. Tentativa de suicídio em mulheres idosas - uma perspectiva de gênero. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1721-1730.,2020 Baére F, Zanello V. O gênero no comportamento suicida: uma leitura epidemiológica dos dados do Distrito Federal. Estud Psicol 2018; 23(2):168-178..

No campo da neurobiologia, pesquisas realizadas, especialmente nas últimas décadas, têm tentado demarcar a relação entre biomarcadores e comportamento suicida2121 Berardelli I, Serafini G, Cortese N, Fiaschè F, O'Connor RC, Pompili M. The Involvement of Hypothalamus-Pituitary-Adrenal (HPA) Axis in Suicide Risk. Brain Sci 2020; 10(9):653.

22 Gross JA, Turecki G. Suicide and the polyamine system. CNS Neurol Disord Drug Targets 2013; 12(7):980-988.
-2323 Allen L, Dwivedi Y. MicroRNA mediators of early life stress vulnerability to depression and suicidal behavior. Mol Psychiatry 2020; 25(2):308-320.. Há consenso nesses estudos sobre a capacidade do estresse ambiental de alterar importantes mecanismos fisiológicos, como os do sistema poliamina e do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal, os quais podem contribuir para a ocorrência de transtornos mentais e o aumento do risco de suicídio.

A resposta fisiológica ao estresse, de que trata a neurobiologia, é um processo frequente na vida das mulheres, geralmente de início precoce. É comum que estejam expostas a múltiplas violências (sexual, física, psicológica, patrimonial e moral), isso pode influenciar negativamente as respostas cerebrais, que provavelmente estarão mal adaptadas à vida adulta e/ou velhice1010 Meneghel SN, Gutierrez DMD, Silva RM, Grubits S, Hesler LZ, Ceccon RF. Suicídio de idosos sob a perspectiva de gênero. Cien Saude Colet 2012; 17(8):983-992.,1414 Saffioti HIB. Gênero, patriarcado, violência. 2ª ed. São Paulo: Editora Perseu Abramo; 2004..

Adicionalmente, na psicologia acredita-se que as pessoas buscam o autoextermínio, por não encontrarem outra solução possível para escapar de uma dor psicológica insuportável. Shneidman2424 Schneidman E. Definition of suicide. Northvale: J. Aronson; 1994. considera que o suicídio é o resultado da confluência da tríade: dor, perturbação e pressão (psicológicas), que atingindo a insuportabilidade, não deixaria opções de escape aos indivíduos.

Do ponto de vista crítico e complementar, as ciências humanas apontam para uma lógica que situa o suicídio também como forma de expressão e comunicação. Porém, para compreender o comportamento suicida como forma de comunicação, é preciso resgatar a construção da feminilidade hegemônica na sociedade patriarcal como marcada por relações de poder, em que os homens impõem e demarcam as performances do que seria feminino e masculino2525 Tedeschi LA. Os desafios da Escrita feminina na história das mulheres. Raído 2016; 10(21):153-164.. Nesta perspectiva, o silêncio foi considerado atributo feminino e, neste espaço de silêncio e silenciamento essa identidade foi pautada ao longo do tempo2626 Marquetti FC. O suicídio e sua essência transgressora. Psicol USP 2014; 25(3):237-245.,2727 Marquetti FR, Marquetti FC. Suicídio e feminilidades. Cad Pagu 2017; 49:e174921..

Em suma, para compreensão do suicídio em mulheres, é necessário pensar que essa questão é complexa e não pode ser reduzida a explicações simplistas com base em um único modelo explicativo. Acreditamos que é necessário considerar os inúmeros fatores de modo interligado. Nessa lógica, faz-se necessário igualmente considerar as transformações morais e sociopolíticas dos papéis de gênero na sociedade.

Desigualdades de gênero que pautam o sofrimento psíquico e o comportamento suicida

Gênero é um conceito relacional, que envolve relações desiguais de poder, essa desigualdade atribui maior ou menor prestígio, de acordo com o sexo biológico. Assim, aos homens heterossexuais e cisgênero vêm sendo historicamente conferido maior poder em relação às mulheres e aos corpos feminizados1212 Zanello V. Saúde Mental, Gênero e Dispositivos: Cultura e Processos de Subjetivação. 1ª ed. Curitiba: Appris; 2018.

13 Segato RL. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-Cadernos Ces 2012; 18:1-5.
-1414 Saffioti HIB. Gênero, patriarcado, violência. 2ª ed. São Paulo: Editora Perseu Abramo; 2004..

Nessa perspectiva, a desigualdade de gênero seria fruto da posição de subordinação das mulheres no patriarcado, pois configura-se como sistema de dominação masculina e que tem como raízes a divisão sexual do trabalho, a manutenção das principais atividades femininas no ambiente doméstico, no cerceamento dos direitos sexuais e reprodutivos e nos costumes machistas que impõem obediência e silenciamento até diante de situações violentas2828 Sousa LPD, Guedes DR. A desigual divisão sexual do trabalho: um olhar sobre a última década. Estud Ava 2016; 30(87):123-139.. Ou seja, as desigualdades de gênero vulneram as mulheres.

A vulnerabilidade é uma condição ontológica de qualquer ser humano, tendo em vista a possibilidade de sermos feridos, todavia, não é definida no plano ontológico, mas no plano ético, como apelo a uma relação não violenta entre o eu e o outro2929 Neves MCP. Sentidos da Vulnerabilidade: característica, condição, princípio. In: Barchifontaine CP, Zoboli ELCP, editores. Bioética, vulnerabilidade e saúde. 1ª ed. Aparecida: Ideias & Letras; 2007.. Nesse construto, haverá pessoas com probabilidade maiores de serem feridas, as quais consequentemente poderão ser mais facilmente vulneradas. A vulneração, neste âmbito, é o ato ou efeito de vulnerar; ou seja, de ferir e impedir que o outro ser humano possa desenvolver as suas potencialidades (capabilities); sendo o ferido, o atingido, considerado o vulnerado3030 Schramm FR. Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev Bioetica 2008; 16(1):11-23.. Neste ensaio, estabelecemos que o suicídio de mulheres possui uma relação íntima com as vulnerações de gênero sofridas e impostas na sociedade.

No campo da saúde pública, as questões de gênero costumam ser associadas ao suicídio após o óbito ter ocorrido, especialmente, pela ótica dos dados epidemiológicos que apresentam as taxas de tentativas e óbitos por suicídio diferenciando os sexos. Entretanto, alguns autores indicam que tanto a ideação quanto a tentativa e a própria morte por suicídio são gendradas, ou seja, o gênero está presente em todas as fases do comportamento suicida2020 Baére F, Zanello V. O gênero no comportamento suicida: uma leitura epidemiológica dos dados do Distrito Federal. Estud Psicol 2018; 23(2):168-178.,3131 Jaworski K. The gender-ing of suicide. Austr Fem Stud 2010; 25(63):47-61..

Nesse fio condutor, desvela-se a violência de gênero como forte preditor para o surgimento do comportamento suicida99 Beautrais AL. Women and suicidal behavior.Crisis 2006; 27(4):153-156.,3232 Drevies K, Watts C, Yoshihama M, Kiss L, Schraiber LB. Violence against women is strongly associated with suicide attempts: evidence from the WHO multicountry study on women's health and domestic violence against women. Soc Sci Med 2011; 73:79-86.,3333 Minayo MCS, Cavalcante FG. Estudo compreensivo sobre suicídio de mulheres idosas de sete cidades brasileiras. Cad Saude Publica 2013; 29(12):2405-2415.. Enfatiza-se que, além das marcas explícitas da violência de gênero, que podem se expressar em ferimentos no corpo, há sofrimento psicossocial inerente a qualquer processo de violência. Isso está presente, inclusive, pelo fato de muitas mulheres internalizarem esse sofrimento e não conseguirem expô-lo, o que fragiliza as relações interpessoais e familiares, realimenta traumas e pode deixá-las com a sensação de não haver escapes possíveis além da morte autoprovocada3333 Minayo MCS, Cavalcante FG. Estudo compreensivo sobre suicídio de mulheres idosas de sete cidades brasileiras. Cad Saude Publica 2013; 29(12):2405-2415..

Importante indicativo dessa estreita relação entre comportamento suicida e violência está relacionado à presença de abuso sexual na infância. Esse tipo de violência subordina-as a um processo de sofrimento que pode perdurar durante muito tempo, além de aumentar significativamente as chances de desenvolvimento de transtornos mentais graves. Nessa lógica, o risco de ideação suicida e tentativa de suicídio aumenta com a extensão do abuso sexual vivido3434 Cruz MA, Gomes NP, Campos LM, Estrela FM, Whitaker COM, Lírio JGS. Repercussões do abuso sexual vivenciado na infância e adolescência: revisão integrativa. Cien Saude Colet 2021; 26(4):1369-1380..

No Brasil, as notificações de violência contra a mulher vêm crescendo ao passar dos anos. Em 2011, foram 75.033; em 2015, passaram para 162.575, representando aumento de 116,67%. As denúncias relatadas ao Ligue 180 - número de telefone para reportar a violência contra as mulheres - aumentaram 37,6%, em abril de 2020 em relação a 20193535 Beeston D. Older people and suicide. Stoke-on-Trent: Centre for Ageing and Mental Health, Stanfordshire University; 2006.,3636 Meira KC, Jomar RT, Santos J, Silva GWS, Dantas ESO, Resende EB, Rodrigues WTS, Silva CMFP, Simões TC. Efeitos temporais das estimativas de mortalidade corrigidas de homicídios femininos na Região Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(2):e00238319.. Justamente em 2020, a pandemia por COVID-19 foi decretada pela Organização Mundial da Saúde e diversas alterações no modo de vida das pessoas foram impostas, como isolamento social, trabalho e estudo no modelo home office, diminuição de emprego e renda, e adoecimento e morte de pessoas próximas3737 Fórum Brasileiro de Saúde Pública (FBSP). Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19 - Ed. 2 [Internet]. São Paulo: FBPS; 2020 [acesso 2022 set 12]. Disponível em: http://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/06/violencia-domestica-covid-19-ed02-v5.pdf..

Nessa pandemia, considerada sem precedentes na história atual, as mulheres foram as mais afetadas negativamente, não somente pelo aumento da violência doméstica, evidenciada pelo maior convívio com os principais agressores, mas pelo acúmulo de papéis de gênero que se sobrepuseram aos anteriormente instituídos. Geralmente, é sobre as mulheres que recaem as tarefas domésticas, o cuidado com filhos, a atenção a parentes doentes; somado a isso, no período pandêmico, as mulheres eram/são presença marcante em profissões que exigem a tarefa de cuidar de pessoas doentes, como a enfermagem e a fisioterapia3838 Dantas ESO. Saúde mental dos profissionais de saúde no Brasil no contexto da pandemia por Covid-19. Interface (Botucatu) 2021; 25(Supl. 1):e200203.,3939 Fornari LF, Lourenço RG, Oliveira RNG, Santos DLA, Menegatti MS, Fonseca RMGS. Domestic violence against women amidst the pandemic: coping strategies disseminated by digital media. Rev Bras Enferm 2021;74(Supl. 1):1-8..

Embora exista pouca ou nenhuma evidência de aumento de mortes por suicídio durante a primeira fase da pandemia, as taxas de mortalidade e tentativas de suicídio aumentaram em vários cenários, nas fases subsequentes, em países como Canadá, Chile, Japão e Alemanha, dentre outros4040 Bellizzi S, Lorettu L, Nivoli A, Molek K. Suicide of women and girls during the COVID-19 pandemic. Int J Gynecol Obstetrics 2022; 157(3):742-743.. Em países asiáticos, cujas taxas de suicídio são expressivas na população feminina, foram observados alguns fatos importantes. No Japão, as taxas mensais de suicídio aumentaram 16% durante a segunda onda, de julho a outubro de 2020, com aumento maior entre mulheres (37%). Já a Coreia do Sul apresentou aumento de 43% de suicídios entre mulheres jovens ainda no primeiro semestre de 2020 em relação ao ano anterior4040 Bellizzi S, Lorettu L, Nivoli A, Molek K. Suicide of women and girls during the COVID-19 pandemic. Int J Gynecol Obstetrics 2022; 157(3):742-743.. No Brasil, houve elevação nas taxas de suicídio nos primeiros, terceiro e quarto trimestre de 2020 em relação ao mesmo período, no quadriênio de 2016 a 2019, representando, respectivamente, 14,07%, 10,88% e 13,45% de aumento4141 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Banco de dados do Sistema Único de Saúde - DATASUS. Informações de Saúde, Sistema de Informações sobre Mortalidade [Internet]. [acesso 2022 set 12]. Disponível em: http://www.datasus.gov.br/catalogo/sim.htm.
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A experiência internacional suscita a reflexão de que modo momentos desafiadores para a sociedade, como a pandemia por COVID-19, podem influenciar negativamente a vida e a morte de mulheres, tendo em vista os papéis de gênero impostos e as consequências biopsicossociais, como solidão, isolamento e tédio, medo e incertezas, marginalização, alterações na saúde mental, agravamento de problemas físicos, crise econômica e violência doméstica.

Nesse contexto, as respostas de saúde pública devem garantir que todas as mulheres que enfrentam situações de violência, sejam apoiadas, acolhidas e atendidas com base no princípio da integralidade, que leva em consideração as múltiplas dimensões e complexidades dos problemas das pessoas, com base em uma visão pluridimensional da saúde individual e coletiva, que pressupõe ações de promoção e prevenção à saúde humanizadas e democráticas.

Comportamento suicida de mulheres e a interseccionalidade

O Brasil é um país de extensão territorial continental, heterogêneo em aspectos culturais e socioeconômicos. No tocante às desigualdades de gênero, não atingem igualmente todas as mulheres, sendo algumas mais vulneradas do que outras, sendo, ainda mais marcantes em: mulheres negras, nas que vivem em situações de extrema pobreza, fora do mercado formal de trabalho e/ou em subempregos, e naquelas com identidades de gênero e dissidentes da cisnormatividade compulsória.

Pelo fato de não concebermos a mulher como categoria monolítica, o campo interseccional surge como importante questão a ser discutida. Akotirene4242 Akotirene K. Interseccionalidade. 1ª ed. São Paulo: Jandaíra; 2019. afirma que o campo da interseccionalidade tem o intuito de dar visibilidade e instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo, cisnormatividade e patriarcado. Neste sentido, as estruturas patriarcais, machistas e sexistas oprimem e vulnerabilizam, de modo distinto, mulheres de diferentes classes, raças, etnias, sexualidades e de expressões dissidentes de gênero.

A interseccionalidade surgiu da premissa crítica, construída, inicialmente, por mulheres negras norte-americanas que denunciaram um feminismo branco, de classe média e heterossexual, que não contemplava todas as mulheres. Assim, propõe uma análise da interação estrutural de dominação, que considera os efeitos políticos e legais e ajuda a desvelar as particularidades da opressão nos corpos e cotidianos de mulheres diversas, mas sem relativismos que deslocam as relações de poder, transformando-as em objeto de disputa discursiva4242 Akotirene K. Interseccionalidade. 1ª ed. São Paulo: Jandaíra; 2019..

Ao partir desse ponto, destaca-se que a vivência de mulheres negras, pobres e/ou do seguimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero, Queer, Intersexo, Assexuais, Pansexuais, Não-Binárias e + (LGBTQIAPN+) apresenta-se distinta, apesar dos inúmeros pontos que se entrecruzam em relação às exclusões e aos apagamentos. Ao considerar o suicídio na população negra, a Cartilha Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros4343 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros 2012 a 2016 [Internet]. 2019 [acesso 2022 set 18]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/obitos_suicidio_adolescentes_negros_2012_2016.pdf.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
, do Ministério da Saúde, aponta que o risco de suicídio na faixa etária de 10 a 29 anos foi 45% maior entre jovens que se declaram pretos e pardos do que entre brancos, no ano de 2016.

A teórica, filósofa e ativista negra Grada Kilomba argumenta que o racismo estrutural é um forte marcador de interpretação do suicídio de pessoas negras. A autora compreende o racismo como um modo de agenciamento de deterioração, precarização e assassinato do “eu”. “O suicídio pode [...] ser visto como um ato performático da própria existência imperceptível”4444 Kilomba G. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cobogó; 2019.(p.188).

Nessa perspectiva, é preciso entender o racismo como processo histórico e político que cria condições sociais, para que grupos racialmente identificados sejam discriminados sistematicamente4545 Navasconi PVP. A exceção que é a regra - Corpos condenados da terra. Rev Esp Acad 2021; 20:81-91.. Quando se trata de mulheres negras, o isolamento violento que desqualifica o “eu” as torna ainda mais isoladas e invisibilizadas. Por meio dessa égide do “não ser” que Kilomba faz a associação entre racismo, isolamento, apagamento e suicídio.

Nesse cenário de isolamento e apagamento das identidades humanas podemos tratar também dos suicídios entre os povos indígenas. Estima-se que, entre os anos de 2011 e 2015, a taxa de suicídio na população indígena brasileira foi de 15,2/100 mil habitantes, ou seja, cerca de três vezes maior do que a população não indígena no mesmo período4646 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Perfil epidemiológico das tentativas e óbitos por suicídio no Brasil e a rede de atenção à saúde [Internet]. 2017 [acessado 2022 set 10]. Disponível em: http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2017/setembro/21/2017-025-Perfil-epidemiologico-das-tentativas-e-obitos-por-suicidio-no-Brasil-e-a-rede-de-atencao-a-saude.pdf.
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Apesar dos poucos estudos brasileiros sobre suicídio na população indígena, entende-se que as múltiplas violências sofridas ao longo da história, além da inefetividade de políticas públicas de proteção desses povos originários, podem influenciar essas mortes. Um dos pontos que merece destaque é a invasão de seus territórios, que teve início na colonização e persiste na atualidade. Há quem argumente a permanente invasão perpetrada, inclusive, pelo governo brasileiro, que possui estreita relação com o agronegócio e o garimpo ilegal em terras indígenas4747 Berenchtein Netto N. Educação, saberes psicológicos e morte voluntária: fundamentos para a compreensão da morte de si no Brasil colonial [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2012..

Para os povos indígenas, a terra significa muito mais do que o lugar onde se planta. Há, para eles, ligação sagrada com a terra, a ancestralidade e espiritualidade. Nessa lógica, quando se perde a terra, perde-se, também, parte da própria identidade, deteriorando-se os valores étnicos culturais desses povos. Além disso, as mulheres indígenas enfrentam questões que as vulnerabilizam ainda mais, como a violência doméstica atrelada à dificuldade de acessar órgãos protetores dos direitos da mulher. Podem, também, enfrentar conflitos, quando essas mulheres contrariam o modelo, as tradições, como na migração para áreas urbanas e escolha de um(a) parceiro(a) sem interferência familiar4848 Gil PA. Suicídio de indígenas em Roraima: cultura e intervenção. Rev Zona Impacto 2018; 2:145-173..

Como mencionado neste texto, a maioria das mortes por suicídio ocorre em países de baixa e média renda, como o Brasil. Na década de 2011-2020, houve crescimento da evidência sobre a relação entre a insegurança econômica, pobreza e o aumento de suicídios. Estudiosos norte-americanos descreveram elevação nas taxas de mortalidade nos últimos anos em populações de baixa e média renda. A determinação social para os suicídios, nesses casos, é destacada pela observação de um gradiente social nas conceituadas morte por desespero: quanto menos anos de estudo e menor nível econômico, maior o risco de morte4949 Case A, Deaton A. Rising morbidity and mortality in midlife among white non-Hispanic Americans in the 21st century. PNAS 2015; 112(49):15.078-15.083.,5050 Knapp EA, Bilal U, Dean LT, Lazo M, Celentano DD. Economic Insecurity and Deaths of Despair in US Counties. Am J Epidemiol 2019; 188(12):2.131-2.139..

No Brasil, estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz avaliou os suicídios no Brasil durante a pandemia por COVID-19, no ano de 2020, e revelou algumas faces da desigualdade socioeconômica entre as regiões e do gênero no país. Identificou-se queda geral de 13% nas taxas de suicídio na população geral brasileira, a despeito das taxas esperadas para o período. Por outro lado, nas regiões Norte e Nordeste, observou-se aumento dos suicídios, chegando a um patamar de aumento de 40% entre as mulheres com 60 anos ou mais da região Nordeste5151 Orellana JDY, Souza MLP. Excess suicides in Brazil: inequalities according to age groups and regions during the covid-19 pandemic. Int J Soc Psychiatry 2022; 68(5):997-1009..

Atreladas às questões já expostas, é consenso na área da suicidologia que o comportamento suicida advém do sofrimento humano, em várias expressões. Assim, reitera-se que esse sofrimento possui cunho histórico concreto e não surge unicamente como experiência particular ou de modo espontâneo na psiquê dos sujeitos, decorre, antes de tudo, das relações intersubjetivas com o outro e a realidade social, que são permeadas por questões de poder e dominação em sociedades patriarcais, racistas, sexistas e cisnormativas5252 Araújo TB. Suicídio LGBTQIA+: do sofrimento ético-político às políticas públicas de prevenção. Sex Polit Rev Bras Polit Publicas LGBTI+ 2019; 1(1):323-345..

A heterocisnormatividade age como dispositivo e operador material do poder que remete a técnicas, estratégias ou formas de subjugação utilizadas para penetrar e operar o controle sobre os corpos. Nesse ideal binário de gênero, as pessoas que não se encaixam dentro de normativas manipuladoras e prescritivas apresentam processo cíclico e sistemático de violência estrutural e institucional que permeia a “vida social - incluindo as diversas variáveis familiares, escolares e culturais - e, principalmente, a vida política”5353 Caravaca-Morera JA, Padilha MI. Necropolítica trans: diálogos sobre dispositivos de poder, morte e invisibilização na contemporaneidade. Texto Contexto Enferm 2018; 27(2):e3770017.(p.4).

Nesse ínterim, as taxas de tentativa de suicídio entre pessoas transgênero são até 45% maiores do que na população cisgênera. Ainda assim, são ínfimos os estudos que abordam estatísticas fidedignas sobre o comportamento suicida entre minorias sexuais e de gênero. No Brasil, estudo com 154 participantes transexuais observou que 48,3% possuíam ideação suicida e 23,8% já tinham tentado suicídio, níveis extremamente mais elevados do que na população geral5454 Rafael RMR, Jalil EM, Luz PM, Castro CRV, Wilson EC, Monteiro L, Ramos M, Moreira RI, Veloso VG, Grinsztejn BGJ, Velasque LS. Prevalence and factors associated with suicidal behavior among trans women in Rio de Janeiro, Brazil. Plos One 2021; 16(10):e0259074.. Em outro estudo conduzido com transexuais em estado do Nordeste brasileiro, identificou-se prevalência de ideação suicida em 41,4% nessa população5555 Silva GWS, Meira KC, Azevedo DM, Sena RCF, Lins SLF, Dantas ESO, Miranda FAN. Fatores associados à ideação suicida entre travestis e transexuais assistidas por organizações não governamentais. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 3):4955-4966..

Enfatizamos que o grupo de pessoas LGBTQIAPN+ vivencia prevalências altas de discriminação e múltiplas violências ao longo da vida. Além disso, a violência governamental banaliza e ratifica esse sofrimento, já que o discurso de ódio e o pânico moral são bandeiras do governo Jair Bolsonaro, que é abertamente contrário a essência e o modo de ser/viver de pessoas LGBTQIAPN+5454 Rafael RMR, Jalil EM, Luz PM, Castro CRV, Wilson EC, Monteiro L, Ramos M, Moreira RI, Veloso VG, Grinsztejn BGJ, Velasque LS. Prevalence and factors associated with suicidal behavior among trans women in Rio de Janeiro, Brazil. Plos One 2021; 16(10):e0259074.,5656 Benevides BG, Nogueira SNB. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019/ANTRA/IBTE [Internet]. 2020 [acessado 2022 set 20]. Disponível em: https://antrabrasil.org/assassinatos.
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Por conseguinte, defendemos que aquelas mulheres mais vulneradas, precisam de uma maior proteção3030 Schramm FR. Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev Bioetica 2008; 16(1):11-23.. A proteção, aqui apontada, está inserida no âmbito da Bioética de Proteção (subconjunto da bioética de origem brasileira e latino-americana) e deve ser compreendida para além de uma perspectiva paternalista. Assim, a proteção deve ser vislumbrada por meio de um conjunto de ações que visem favorecer o desenvolvimento das potencialidades e capacidades de cada mulher.

Considerações finais

O presente texto apresentou necessária discussão sobre o suicídio de mulheres no Brasil, em perspectiva ampliada sobre questões de gênero. Deste modo, buscou-se elevar o conhecimento sobre temática historicamente estigmatizada e pouco presente na literatura científica. Embora tenhamos evidenciado as difíceis vivências femininas no país que são capazes de vulnerá-las a tal ponto de gerar e contribuir no surgimento do comportamento suicida, ainda há muito a se explorar sobre o tema em questão.

As explicações sobre o suicídio, a partir de modelos teóricos, ainda não são capazes de preencher lacunas que atravessam a vida de mulheres. A vida contemporânea é mutável e as relações sociais instituídas ainda são marcadas por questões que oprimem, silenciam e violentam as mulheres, e, por conseguinte, geram desigualdades e sofrimento de toda ordem.

Compreendemos que a prevenção do suicídio nesta população passa necessariamente por estratégias assertivas de proteção à integridade da mulher, que depende da capacidade institucional do Estado brasileiro, das políticas sociais afirmativas e das reiteradas tensões para mudança dos paradigmas sociais.

Complementarmente, as políticas públicas no Brasil precisam articular-se intersetorialmente, incluindo a saúde, o direito, a assistência social e os setores da sociedade civil, para que busquem compreender o sofrimento ético e político específico de mulheres negras, indígenas, pobres e LGBTQIAPN+. A partir disso, é mister buscar a redução do estigma e a mitigação de vulnerabilidades estruturais que, sem dúvida, podem colaborar na diminuição do comportamento suicida e ajudar o Brasil a se tornar um país com condições habitáveis para todas, sem distinção.

Espera-se que as reflexões do presente ensaio possam incitar um pensar crítico e um agir urgente dos diferentes atores sociais e instituições brasileiras, no intuito de impedir que as mulheres sejam submetidas a situações iníquas e sofrimentos evitáveis, as quais se repetem cotidianamente. Ademais, não se esgotam aqui as discussões sobre este tema; ao contrário, elas precisam ser aprofundadas por todas as pessoas interessadas na valorização da vida feminina no Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2022
  • Aceito
    20 Out 2022
  • Publicado
    22 Out 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br