Desigualdades sociais no diagnóstico do câncer do colo do útero no Brasil: um estudo de base hospitalar

Social inequalities in the diagnosis of cervical cancer in Brazil: a hospital-based study

Nayara Priscila Dantas de Oliveira Marianna de Camargo Cancela Luís Felipe Leite Martins Janete Lima de Castro Karina Cardoso Meira Dyego Leandro Bezerra de Souza Sobre os autores

Resumo

O estudo visa analisar a prevalência de estadiamento avançado ao diagnóstico do câncer do colo do útero e sua associação com indicadores individuais e contextuais socioeconômicos e de oferta de serviços de saúde no Brasil. Estudo transversal, realizado com casos de câncer do colo do útero em mulheres de 18 a 99 anos, no período de 2006 a 2015, extraídos do Integrador de Registros Hospitalares de Câncer. Variáveis contextuais foram coletadas no Atlas do Desenvolvimento Humano, no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde e no Sistema de Informações Ambulatoriais. Usou-se o modelo de regressão de Poisson multinível com intercepto aleatório. A prevalência de diagnóstico em estádio avançado foi de 48,4%, apresentando associação com idades mais avançadas (RP 1,06; IC 1,01-1,10), raça/cor da pele preta, parda e indígena (RP 1,04; IC 1,01-1,07), menores níveis de escolaridade (RP 1,28; IC 1,16-1,40), ausência de parceiro conjugal (RP 1,10; IC 1,07-1,13), encaminhamento do tipo público ao serviço de saúde (RP 1,07; IC 1,03-1,11) e menor taxa de realização de exame citopatológico (RP 1,08; IC 1,01-1,14). Os resultados reforçam a necessidade de melhorias no programa nacional de prevenção do câncer do colo do útero em áreas com baixa cobertura da citologia oncótica.

Key words:
Health status disparities; Cervical cancer; Hospital records; Advanced stage diagnosis

Abstract

The scope of this study is to analyze the prevalence of advanced stage diagnosis of cervical cancer and its association with individual and contextual socioeconomic and healthcare service indicators in Brazil. A cross-sectional study was conducted using cervical cancer cases in women aged 18 to 99 years, from 2006 to 2015, extracted from the Hospital Cancer Registry (HCR) Integrator. Contextual variables were collected from the Atlas of Human Development in Brazil; the National Registry of Health Institutions (NRHI); and the Outpatient Information System. Multilevel Poisson Regression with random intercept was used. The prevalence of advanced stage diagnosis was 48.4%, revealing an association with older age groups (PR 1.06; CI 1.01-1.10), black, brown, and indigenous race/skin color (PR 1.04; CI 1.01-1.07), lower levels of schooling (PR 1.28; CI 1.16-1.40), no marital partner (PR 1.10; CI 1.07-1.13), public referral to the health service (PR 1.07; CI 1.03-1.11), and lower rates of cytological examination (PR 1.08; CI 1.01-1.14). The results reinforce the need for improvements in the national cervical cancer prevention program in areas with low coverage of oncotic cytology.

Key words:
Health status disparities; Cervical cancer; Hospital records; Advanced stage diagnosis

Introdução

O câncer do colo do útero é uma doença de grande impacto socioeconômico e epidemiológico, sendo a quarta neoplasia mais incidente e a terceira com maior mortalidade na população feminina mundial11 Sung H, Ferlay J, Siegel RL, Laversanne M, Soerjomataram I, Jemal A, Bray F. Global cancer statistics 2020: Globocan estimates of incidence and mortality worldwide for 36 cancers in 185 countries. CA Cancer J Clin 2021; 71(2):209-249. A evolução temporal da incidência e mortalidade por essa doença apresenta disparidades entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento. Isso acontece pelo fato de ser uma neoplasia maligna fortemente associada às dificuldades de acesso aos serviços de saúde e por ser uma doença altamente evitável por meio medidas de controle com alta efetividade e eficácia22 Santamaria-Ulloa C, Valverde-Manzanare C. Inequality in the incidence of cervical cancer: Costa Rica 1980-2010. Front Oncol 2019, 8:664..

Nos países de renda média e baixa, o câncer do colo do útero se apresenta em segundo lugar no ranking de incidência e mortalidade entre as mulheres, depois do câncer de mama. Aproximadamente 121 mil novos casos de câncer do colo do útero são estimados para o ano de 2030 no mundo11 Sung H, Ferlay J, Siegel RL, Laversanne M, Soerjomataram I, Jemal A, Bray F. Global cancer statistics 2020: Globocan estimates of incidence and mortality worldwide for 36 cancers in 185 countries. CA Cancer J Clin 2021; 71(2):209-249,33 Bray F, Ferlay J, Soerjomataram I, Siegel LR, Torre LA, Jemal A. Global cancer statistics 2018: GLOBOCAN estimates of incidence and mortality worldwide for 36 cancers in 185 countries. Hoboken 2018; 68(6):394-424.. No Brasil, o número de casos novos a cada ano do triênio 2023-2025 será de 17.010 (risco estimado de 15,38 casos a cada 100 mil mulheres), com variações de magnitude entre as regiões do país44 Instituto Nacional do Câncer (INCA). Estimativa 2023: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2022.. As regiões com maiores índices de desenvolvimento humano (IDH) concentram 70% da incidência total de câncer do Brasil, sendo o câncer do colo do útero o terceiro mais incidente no Centro-Oeste (16,66 casos por 100 mil), o quarto na região Sul (14,55 casos por 100 mil) e o quinto no Sudeste (12,93 casos por 100 mil). Nas regiões com menores níveis de desenvolvimento, como o Norte (20,48 casos por 100 mil) e Nordeste (17,59 casos por 100 mil), o câncer do colo do útero é o segundo tipo mais incidente na população feminina44 Instituto Nacional do Câncer (INCA). Estimativa 2023: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2022..

Além de ser um fator prognóstico, o estadiamento ao diagnóstico do câncer é um indicador da capacidade de oferta e acesso às tecnologias de diagnóstico pelos sistemas de saúde55 Cancela MC, Chapuis F, Curado MP. Abstracting stage in population-based cancer registries: the example of oral cavity and oropharynx cancers. Cancer Epidemiol 2010, 34(4):501-506..

O processo de diagnóstico do câncer do colo do útero está associado a fatores individuais e contextuais que evidenciam as desigualdades em saúde vivenciadas pela população66 Jones M, Lee M, Olgivie G, Murray MCM, Money D, Collins R, Albert A, Mitchell-Foster S. Identifying barriers to treatment for women with cervical dysplasia in rural Northern British Columbia. J Obstet Gynaecol Can 2018; 40(11):1401-1408.. Apesar da elevada taxa de realização do exame citopatológico (66,5% a 76,8%) para o controle do câncer do colo do útero, as prevalências de diagnóstico em estadiamento avançado da doença ainda são elevadas no Brasil, chegando ao valor de 46,0%77 Madeiro A, Rufino AC. Pap test coverage and factors associated with non-performing among Brazilian women aged 18-39. J Health Biol Sci 2022; 10(1):1-9,88 Junior NLR, Silva GA. Temporal trend and associated factors to advanced stage at diagnosis of cervical cancer: analysis of data from hospital based cancer registries in Brazil, 2000-2012. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(2):e2017285..

A literatura atual dispõe de considerável discussão sobre os preditores do diagnóstico em estádio avançado do câncer do colo do útero99 Berraho M, Obtel M, Bendahhou K, Zidouh A, Errihani H, Benider A, Nejjari C. Sociodemographic factors and delay in the diagnosis of cervical cancer in Morocco. Pan Afr Med J 2012; 12:14.

10 Ibrahim A, Rasch V, Pukkala E, Aro AR. Predictors of cervical cancer being at an advanced stage at diagnosis in Sudan. Int J Womens Health 2011; 3:385-389.
-1111 Thuler LCS, Aguiar SS, Bergmann A. Determinants of late stage diagnosis of cervical cancer in Brazil. Rev Bras Ginecol Obstet 2014; 36(6):237-243.. Entretanto, nenhum desses estudos analisou de forma específica a relação entre os diferentes níveis hierárquicos na determinação social do diagnóstico em estadiamento avançado por tal doença nas mais distintas regiões do Brasil.

A discussão sobre os fatores associados ao diagnóstico em estádio avançado do câncer do colo do útero, considerando os diferentes níveis hierárquicos dos determinantes sociais da saúde, possibilita a compreensão dessa doença crônica em nível individual e populacional. Essa discussão é essencial no fomento de potenciais políticas públicas que visem a promoção do diagnóstico precoce e a melhoria do acesso aos serviços de saúde de atenção oncológica no Brasil.

O objetivo deste estudo é analisar a prevalência de diagnóstico em estadiamento avançado de câncer do colo do útero e determinar sua associação com indicadores individuais e contextuais socioeconômicos e de oferta de serviços de saúde no Brasil.

Materiais e métodos

Desenho do estudo e participantes

Estudo observacional do tipo transversal. Foram incluídos os casos analíticos de neoplasia maligna do colo do útero (C53)1212 World Health Organization (WHO). CID-10: International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems. 10ª Review. Geneva: WHO; 1997. em mulheres com idade entre 18 e 99 anos, diagnosticadas no período de 2006 a 2015, e atendidas em unidades hospitalares de assistência oncológica. Foram excluídos do estudo os casos de carcinoma in situ, os casos com ausência de dados sobre o estadiamento tumoral e aqueles com ausência de dados sobre a idade e o local de residência da paciente na ocasião do diagnóstico.

Variáveis e fontes de dados do estudo

O desfecho analisado no estudo foi o estadiamento clínico tumoral avançado. O estadiamento foi classificado a partir do Sistema TNM de Classificação de Tumores Malignos1313 Sobin LH, Gospodarowicz MK, Wittekind C. TNM Classification of Malignant Tumours. New York: John Wiley & Sons; 2009. e do Sistema de Estadiamento FIGO (International Federation of Gynecology and Obstetrics)1414 Matsuo K, Machida H, Mandelbaum RS, Konishi I, Mikami M. Validation of the 2018 FIGO cervical cancer staging system. Gynecol Oncol 2019; 152(1):87-93.. O estadiamento FIGO foi convertido para o estadiamento TNM do tumor primário de acordo com as regras de classificação clínica para tumores ginecológicos1414 Matsuo K, Machida H, Mandelbaum RS, Konishi I, Mikami M. Validation of the 2018 FIGO cervical cancer staging system. Gynecol Oncol 2019; 152(1):87-93.. Os dados foram dicotomizados em estádio avançado (TNM III e IV) e precoce (TNM I e II)88 Junior NLR, Silva GA. Temporal trend and associated factors to advanced stage at diagnosis of cervical cancer: analysis of data from hospital based cancer registries in Brazil, 2000-2012. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(2):e2017285.,1111 Thuler LCS, Aguiar SS, Bergmann A. Determinants of late stage diagnosis of cervical cancer in Brazil. Rev Bras Ginecol Obstet 2014; 36(6):237-243..

Os dados sobre estadiamento clínico do tumor primário e condições socioeconômicas individuais foram coletados do Integrador de Registros Hospitalares de Câncer (RHC)1515 Instituto Nacional do Câncer (INCA). Integrador Registro Hospitalar de Câncer RHC [Internet]. [acessado 2019 dez 2]. Disponível em: https://irhc.inca.gov.br/RHCNet/
https://irhc.inca.gov.br/RHCNet...
. Os RHC reúnem informações padronizadas acerca das características sociodemográficas dos pacientes oncológicos, características clínicas do tumor e atividade assistencial hospitalar1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Ciência e Tecnologia, Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. Information integration of Brazilian cancer registries. Rev Saude Publica 2007; 41(5):865-868.,1717 Instituto Nacional do Câncer (INCA). Registros hospitalares de câncer - planejamento e gestão. Rio de Janeiro: INCA; 2010.. As informações do RHC são oriundas de provedores de saúde dos 27 estados brasileiros, considerados unidades hospitalares de atenção oncológica1818 Santos-Silva I, Stavola BLD, Junior NLR, Nogueira MC, Aquino EML, Bustamante-Teixeira MT, Silva GA. Ethnoracial and social trends in breast cancer staging at diagnosis in Brazil, 2001-14: a case only analysis. Lancet Glob Health 2019; 7(6):784-797..

O sistema de RHC brasileiro reúne informações sobre os casos de câncer atendidos nas unidades de saúde do país, que em maioria (90%) estão credenciadas ao sistema público de saúde1717 Instituto Nacional do Câncer (INCA). Registros hospitalares de câncer - planejamento e gestão. Rio de Janeiro: INCA; 2010.. No período estudado, 184 municípios brasileiros apresentaram uma ou mais unidades de saúde cadastradas no RHC, com 273 unidades hospitalares vinculadas ao RHC1515 Instituto Nacional do Câncer (INCA). Integrador Registro Hospitalar de Câncer RHC [Internet]. [acessado 2019 dez 2]. Disponível em: https://irhc.inca.gov.br/RHCNet/
https://irhc.inca.gov.br/RHCNet...
.

Os dados do RHC do estado de São Paulo não foram incluídos nas análises inferenciais do estudo em decorrência do processo de coleta de dados diferenciado. A inclusão do RHC desse estado não permitiria a comparabilidade dos dados, a julgar pela ausência de informações individuais sobre as condições socioeconômicas dos casos de câncer.

O banco de dados individuais foi associado a bancos com dados agregados por unidades da federação (UF). Do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, disponibilizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)1919 Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil [Internet]. 2013. [acessado 2020 jan 15]. Disponível em: http://atlasbrasil.org.br/2013
http://atlasbrasil.org.br/2013...
foram extraídas informações sobre o contexto sociopolítico com base no ano de 2010. Os dados de oferta de serviços de saúde foram coletados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES)2020 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde [Internet]. 2020. [acessado 2020 jan 15]. Disponível em: http://cnes.datasus.gov.br/
http://cnes.datasus.gov.br...
e no Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA/SUS)2121 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA/SUS) [Internet]. 2020. [acessado 2020 jan 15]. Disponível em: http://sia.datasus.gov.br/principal/index.php
http://sia.datasus.gov.br/principal/inde...
. Indicadores específicos para os anos de 2008 e 2013 foram calculados usando como denominador os dados do Censo Demográfico de 2010, contagens de população e estimativas populacionais por UF, sexo e idade2222 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [Internet]. [acessado 2020 jan 15]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/
https://www.ibge.gov.br...
: “Densidade de médicos especialistas em oncologia” (número de médicos especialistas em oncologia por 1.000.00 de habitantes), “Densidade de médicos ginecologistas” (número de médicos ginecologistas por 100.000 mulheres), “Proporção de exames citopatológicos” (Proporção do número de exames cervico-vaginais realizados na população feminina em idade de rastreio).

As variáveis independentes do estudo foram eleitas com base no modelo teórico conceitual dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS) desenvolvido pela Comissão dos Determinantes Sociais da Saúde (CDSS) da Organização Mundial da Saúde (OMS). O modelo aborda três componentes básicos dos DSS: contexto sociopolítico, determinantes estruturais (posição socioeconômica) e determinantes intermediários da saúde2323 Solar O, Irwin A. A conceptual framework for action on the social determinants of health. Social determinants of health discussion paper 2 (policy and practice). Geneva: WHO; 2010..

As variáveis relacionadas às condições contextuais socioeconômicas dos estados brasileiros (índice de Gini e índice de desenvolvimento humano - IDH) foram inseridas no contexto sociopolítico. Nos determinantes estruturais, foram agrupadas as variáveis individuais relacionadas à posição socioeconômica das mulheres com câncer de colo do útero (escolaridade, raça/cor da pele, estado conjugal e tipo de acesso aos serviços de saúde). As variáveis raça/cor da pele e estado conjugal foram categorizadas, considerando raça/cor branca e amarela e raças negra, parda e indígena, e estado conjugal com parceiro (casado e união consensual) e sem parceiro (solteira, divorciada e viúva). Nos determinantes intermediários foram alocados os fatores biológicos em conjunto com indicadores contextuais locais relacionados à oferta e ao acesso aos serviços de saúde (densidade de profissionais médicos e taxa de disponibilidade de serviços de saúde).

Análise estatística

A análise descritiva espacial dos dados foi realizada pelo software TerraView 4.0.0.2424 Monteiro AMV, Câmara G, Souza RCM. Software TerraView Version 5.0.0. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais INEP [Internet]. [acessado 2020 jun 19]. Disponível em: http://www.dpi.inpe.br/terralib5/wiki/doku.php
http://www.dpi.inpe.br/terralib5/wiki/do...
, para a distribuição territorial da proporção de diagnóstico em estádio avançado para câncer do colo do útero entre os estados brasileiros. Os mecanismos de dados faltantes do banco oriundo do RHC foram analisados previamente2525 Oliveira NPD, Cancela MC, Martins LFL, Meira KC, Castro JL, Souza DLB. Completeness of cervical cancer staging information in Brazil: a national hospital-based study. Cancer Epidemiol 2022; 79:102191., evidenciando um padrão de perda não aleatório dos dados. Fato que possibilita a análise de caso completo e corrige possíveis vieses das informações que foram excluídas neste estudo.

Para verificar a associação da variável dependente com todas as variáveis independentes do estudo, foi realizado o teste de qui-quadrado de Pearson. Como estratégia de análise multivariada, foi adotado o modelo de regressão de Poisson multinível, com um intercepto aleatório, definido de acordo com os resultados do teste likelihood ratio (LR).

O modelo multinível foi analisado pelo modelo vazio inicial, seguido da inserção das variáveis do nível individual e, posteriormente, das variáveis de nível contextual. Mantiveram-se no modelo as variáveis com significância estatística, de acordo com teste de Wald (α = 0,05), e as que apresentam plausibilidade teórica. Para o modelo final, foi possível identificar o declínio da variância em comparação ao modelo vazio inicial, além da manutenção da significância a partir dos resultados dos testes LR.

Para determinar o efeito dose-resposta entre as variáveis categóricas ordinais do estudo e as variáveis dependentes, foi efetuado o teste de tendência (p trend) para as variáveis que compõem o modelo multinível final2626 Patino CM, Ferreira JC. Teste de tendência: avaliando os efeitos dose-resposta em estudos de associação. J Bras Pneumol 2016; 42(4):240-240.. Toda a análise foi realizada utilizando o software Stata 15.1.2727 Stata Corp, Stata Statistical Software: Release 15, StataCorp LLC, College Station, TX, 2017.

O uso de dados secundários de acesso público sem possibilidade de identificar os indivíduos torna dispensável o parecer de um comitê de ética em pesquisa, de acordo com a Resolução 580/20182828 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Resolução nº 580, de 22 de março de 2018. Diário Oficial da União 2018; 23 mar..

Resultados

No período avaliado foram registrados nos RHC brasileiros 125.356 casos de neoplasia maligna do colo do útero em mulheres de 18 a 99 anos de idade. O fluxograma apresentado na Figura 1 resume o processo de elegibilidade dos casos nas etapas de análise dos dados do estudo.

Figura 1
Fluxograma com a descrição do processo de seleção dos casos analíticos de câncer do colo do útero no período de 2006 a 2015 do Integrador dos Registros Hospitalares de Câncer.

A proporção de diagnóstico em estadiamento avançado do câncer do colo do útero foi de 48,41% (IC 48,03-48,79) (Figura 2). As maiores proporções de diagnóstico em estadiamento avançado se concentram na região Nordeste, com ênfase aos estados do Rio Grande do Norte (65,2%), Pernambuco (62,5%) e Alagoas (62,4%), e nas regiões Norte e Centro-Oeste, onde Tocantins (60,7%) e Mato Grasso (59,2%) se destacam, respectivamente. Os estados da região Sul do país figuram com taxas de estadiamento avançado mais altas do que a média nacional. No Rio Grande do Sul, 54,6% dos casos de câncer do colo do útero são diagnosticados em estádios avançados. Na região Norte, Acre (54,3%) e Amazônia (53,8%) apresentam as maiores prevalências de diagnóstico avançado deste tipo de câncer.

Figura 2
Distribuição espacial da proporção de diagnóstico em estadiamento avançado nos casos de câncer do colo do útero no Brasil, no período de 2006 a 2015, por UF (n = 65.685).

A Tabela 1 apresenta as prevalências e RP não ajustadas para o estadiamento avançado do câncer do colo do útero no Brasil. O diagnóstico em estádio avançado apresentou associação estatisticamente significante com todas as variáveis individuais (idade, raça/cor, escolaridade, estado conjugal e origem do encaminhamento) e com variáveis contextuais de oferta de serviços de saúde (densidade de médicos especialistas em oncologia e taxa de realização de exames citopatológicos).

Tabela 1
Prevalência e razões de prevalência não ajustadas para estadiamento tardio do câncer do colo do útero, segundo características individuais e variáveis contextuais, no Brasil, segundo UF de residência, exceto SP (n = 54.344).

Na análise multinível dos dados (Tabela 2), o estadiamento avançado do câncer do colo do útero foi associado a variáveis individuais e contextuais de oferta de serviços de saúde, apresentando associação com: idade mais avançada (70 anos e mais: RP 1,06; IC 1,01-1,10), quando comparada a faixas etárias mais jovens; raça/cor da pele preta, parda e indígena (RP 1,04; IC 1,01-1,07), comparada à raça/cor da pele branca; menores níveis de escolaridade (nenhuma e fundamental incompleto: RP 1,28; IC 1,26-1,40) em comparação com o nível superior de educação; não ter parceiro conjugal (RP 1,10; IC 1,07-1,13), quando comparado a ter parceiro fixo; e à origem do encaminhamento do tipo público (RP 1,07;IC 1,03-1,11), em comparação com o serviço oncológico privado de saúde. No nível 2, agregado por UF, o estadiamento avançado apresentou associação com a baixa proporção de exame citopatológico cervico-vaginal (RP 1,08; IC 1,01-1,14), quando comparado às UF com elevadas proporções de realização do exame.

Tabela 2
Análise multinível entre as variáveis individuais, contextuais e o estadiamento tardio ao diagnóstico do câncer do colo do útero em mulheres de 18 a 99 anos de idade no período de 2006 a 2015, no Brasil, segundo UF de residência, exceto SP (n = 54.344).

Discussão

Os resultados do estudo mostram que o diagnóstico em estadiamento avançado do câncer do colo do útero no período estudado apresentou prevalência de 48,4%, sendo mais expressivo nas UF das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste do Brasil. O estadiamento avançado ao diagnóstico do câncer apresentou associação com fatores individuais e contextuais de acesso aos serviços de saúde.

O percentual de mulheres com câncer do colo do útero em estadiamento III ou IV ao diagnóstico no Brasil e em todas as suas UF apresentou maior magnitude do que a observada em países de alta renda, como Estados Unidos (29,8%)2929 Fedewa SA, Cokkinides V, Virgo KS, Bandi P, Saslow D, Ward EM. Association of insurance status and age with cervical cancer stage at diagnosis: National Cancer Database, 2000-2007. Am J Public Health 2012; 102(9):1782-1789 e Inglaterra (23,8%)3030 Ferrante JM, Gonzalez EC, Roetzheim RG, Pal N, Woodard L. Clinical and demographic predictors of late-stage cervical cancer. Arch Fam Med 2000; 9(5):439-445.. No entanto, mostrou valores semelhantes ao observado em países de baixa renda que não têm programa de rastreamento e linha de cuidado para o câncer do colo do útero universal e gratuito, como Índia (50,4%)99 Berraho M, Obtel M, Bendahhou K, Zidouh A, Errihani H, Benider A, Nejjari C. Sociodemographic factors and delay in the diagnosis of cervical cancer in Morocco. Pan Afr Med J 2012; 12:14. e Marrocos (54,5%)1010 Ibrahim A, Rasch V, Pukkala E, Aro AR. Predictors of cervical cancer being at an advanced stage at diagnosis in Sudan. Int J Womens Health 2011; 3:385-389.. A prevalência de estadiamento em estágio avançado ao diagnóstico no Brasil tem mantido valores acima de 46,0%, no presente estudo e em pesquisas realizadas nos recortes históricos de 2000 a 2009 (46,5%) e de 2000 a 2012 (46,7%)88 Junior NLR, Silva GA. Temporal trend and associated factors to advanced stage at diagnosis of cervical cancer: analysis of data from hospital based cancer registries in Brazil, 2000-2012. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(2):e2017285.,1111 Thuler LCS, Aguiar SS, Bergmann A. Determinants of late stage diagnosis of cervical cancer in Brazil. Rev Bras Ginecol Obstet 2014; 36(6):237-243.. O diagnóstico em estágio avançado da doença está associado a pior prognóstico, com reduzidas possibilidades efetivas de tratamento e cura3131 Singh GK, Daus GP, Allender M, Ramey CT, Martin EK, Perry C, Reyes AAL, Vedamuthu IP. Social determinants of health in the United States: addressing major health inequality trends for the nation, 1935-2016. Int J MCH AIDS 2017; 6(2):139-164.,3232 Kurani SS, McCoy RG, Lampman MA, Doubeni CA, Rutten LJF, Inselman JW, Giblon RE, Bunkers KS, Stroebel RJ, Rushlow D, Chawla SS, Shah ND. Association of neighborhood measures of social determinants of health with breast, cervical, and colorectal cancer screening rates in the US Midwest. JAMA Netw Open 2020, 23(3): e200618..

O sistema de saúde brasileiro apresenta fragilidades na prevenção e no controle do câncer. No período de 2000 a 2012 houve aumento de 1,10% ao ano (IC 0,80-1,50) do estadiamento III ou IV nos casos de câncer do colo do útero88 Junior NLR, Silva GA. Temporal trend and associated factors to advanced stage at diagnosis of cervical cancer: analysis of data from hospital based cancer registries in Brazil, 2000-2012. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(2):e2017285.. Advoga-se que essa realidade esteja associada às características do nosso programa de rastreamento, que é oportunístico, e assim muitas mulheres fazem mais exames do que o recomendado, enquanto as mulheres com maior risco para a doença nunca o realizam (negras, com idade acima de 50 anos, baixa escolaridade e residentes nas regiões Norte e Nordeste)3333 Theme-Filha MM, Leal MC, Oliveira EFV, Esteves-Pereira AP, Gama SGN. Regional and social inequalities in the performance of Pap test and screening mammography and their correlation with lifestyle: Brazilian National Health Survey, 2013. Int J Equity Health 2016; 15(1):136,3434 Viacava F, Bellido JG. Health, access to services and sources of payment, according to household surveys. Cien Saude Colet 2016; 21(2):351-370.. Adiciona-se a tal cenário problemas associados a coleta, armazenamento e leitura dos exames, altas taxas de lâminas rejeitadas3535 Costa RF, Longatto-Filho A, Pinheiro C, Zeferino LC, Fregnani JH. Historical analysis of the Brazilian Cervical Cancer Screening Program from 2006 to 2013: a time for reflection. PLoS One 2015; 10(9):0138945.,3636 Dias MBK, Tomazelli JG, Assis M. Cervix cancer screening in Brazil: analysis of Siscolo data from 2002 to 2006. Epidemiol Serv Saude 2010; 19(3):293-306., índice de positividade inferior ao recomendado e alterações citopatológicas muito abaixo do que é esperado para um país com alta taxa de incidência e mortalidade pela doença3535 Costa RF, Longatto-Filho A, Pinheiro C, Zeferino LC, Fregnani JH. Historical analysis of the Brazilian Cervical Cancer Screening Program from 2006 to 2013: a time for reflection. PLoS One 2015; 10(9):0138945.. Como resultado, os programas de rastreio do câncer do colo do útero apresentam cobertura desigual nesses países, com qualidade heterogênea e baixa eficácia3737 Chrysostomou AC, Stylianou DC, Constantinidou A, Kostrikis LG. Cervical Cancer Screening Programs in Europe: the transition towards HPV vaccination and population-based HPV testing. Viruses 2018; 10(12):729..

O acesso aos serviços de saúde é fator determinante para o diagnóstico do câncer do colo do útero em tempo oportuno. Os resultados deste estudo mostram associação do diagnóstico em estadiamento avançado com o acesso público aos serviços de saúde, por meio do baixo acesso aos exames citopatológicos cervico-vaginais.

O processo de colonização e exploração do Brasil gerou desigualdades interterritoriais, com atividades produtivas e complexos econômicos centralizados nas regiões Sul e Sudeste e no litoral da região Nordeste3838 Araújo TB. Tendências do desenvolvimento regional recente no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2013.,3939 Granato L, Batista IR. Heterogeneidade estrutural nas relações internacionais da América Latina: um olhar através dos paradigmas de integração regional. Cad Prolam/USP 2017; 16(31):5-29.. Desigualdades que também são refletidas nas condições de saúde de diferentes populações, no nível de exposição aos fatores de risco e proteção, nas causas de adoecimento e morte e no acesso diferenciado aos recursos e serviços disponíveis no sistema de saúde4040 Travassos C, Oliveira EXG, Viacava F. Desigualdades geográficas e sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil: 1998 e 2003. Cien Saude Colet 2006; 11(4):975-986.,4141 Barreto ML. Desigualdades em saúde: uma perspectiva global. Cien Saude Colet 2017; 22(7):2097-2108..

A própria organização do SUS reproduz essas desigualdades. Os serviços e equipamentos de média e alta complexidade se concentraram nas capitais e metrópoles, notadamente localizadas no eixo Centro-Sul do país. Esse padrão de distribuição e fragmentação da oferta resulta em iniquidades geográficas de acesso aos serviços de saúde no país4040 Travassos C, Oliveira EXG, Viacava F. Desigualdades geográficas e sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil: 1998 e 2003. Cien Saude Colet 2006; 11(4):975-986.,4141 Barreto ML. Desigualdades em saúde: uma perspectiva global. Cien Saude Colet 2017; 22(7):2097-2108., o que contribui para os maiores percentuais de diagnóstico de câncer em estágio avançado nas mulheres residentes nas regiões Norte e Nordeste, em comparação com as moradoras do Sul e Sudeste88 Junior NLR, Silva GA. Temporal trend and associated factors to advanced stage at diagnosis of cervical cancer: analysis of data from hospital based cancer registries in Brazil, 2000-2012. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(2):e2017285.,1111 Thuler LCS, Aguiar SS, Bergmann A. Determinants of late stage diagnosis of cervical cancer in Brazil. Rev Bras Ginecol Obstet 2014; 36(6):237-243.. Bem como contribui para a manutenção de tendência temporal ascendente, o aumento do risco de morte por câncer do colo do útero nos quinquênios dos anos 2000, com altas taxas de mortalidade nos estados Norte e Nordeste do Brasil, apresentando coeficientes semelhantes aos de países que não têm sistema de saúde universal e gratuito4242 Meira KC, Silva GWS, Santos J, Guimarães RM, Souza DLB, Ribeiro GPC, Dantas ESO, Carvalho JBL, Jomar RT, Simões TC. Analysis of the effects of the age-period-birth cohort on cervical cancer mortality in the Brazilian Northeast. PLos One 2020; 15(2):e0226258,4343 Meira KC, Magnago C, Mendonça AB, Duarte FSS, Freita PHO, Santos J, Souza DLB, Simões TC. Inequalities in temporal effects on cervical cancer mortality in states in different geographic regions of Brazil: an ecological study. Int J Environ Res Public Health 2022; 5; 19(9):5591..

É importante destacar que, no presente estudo, os estados da região Norte apresentam valores inferiores aos observados no Nordeste do país para as taxas de diagnóstico em estadiamento avançado do câncer do colo do útero. Resultados que podem sugerir dificuldade de acesso aos serviços de saúde e a possível ausência de notificação de tais dados aos RHC dessas localidades. Essas disparidades geográficas observadas implicam dificuldades significativas para a população feminina que vive nessas regiões, resultando em migração de longas distâncias para obter atendimento oncológico especializado4444 Rocha-Brischiliari SC, Andrade L, Nihei OK, Brischiliari A, Hortelan MS, Carvalho MDB, Pelloso SM. Spatial distribution of breast cancer mortality: socioeconomic disparities and access to treatment in the state of Parana, Brazil. Plos One 2018; 13(10):e0205253..

No presente estudo, o diagnóstico em estádio avançado esteve associado a variáveis individuais (idade, raça/cor da pele, escolaridade estado civil, tipo de encaminhamento aos serviços de saúde) e contextual (taxa de realização de citologia oncótica).

As mulheres com idade a partir de 50 anos mostraram maior chance de diagnóstico do câncer do colo uterino em estadiamento avançado, assim como as que viviam sem companheiro, resultados semelhantes aos apresentados por estudos brasileiros88 Junior NLR, Silva GA. Temporal trend and associated factors to advanced stage at diagnosis of cervical cancer: analysis of data from hospital based cancer registries in Brazil, 2000-2012. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(2):e2017285.,1111 Thuler LCS, Aguiar SS, Bergmann A. Determinants of late stage diagnosis of cervical cancer in Brazil. Rev Bras Ginecol Obstet 2014; 36(6):237-243. e internacionais99 Berraho M, Obtel M, Bendahhou K, Zidouh A, Errihani H, Benider A, Nejjari C. Sociodemographic factors and delay in the diagnosis of cervical cancer in Morocco. Pan Afr Med J 2012; 12:14.,1010 Ibrahim A, Rasch V, Pukkala E, Aro AR. Predictors of cervical cancer being at an advanced stage at diagnosis in Sudan. Int J Womens Health 2011; 3:385-389.,2929 Fedewa SA, Cokkinides V, Virgo KS, Bandi P, Saslow D, Ward EM. Association of insurance status and age with cervical cancer stage at diagnosis: National Cancer Database, 2000-2007. Am J Public Health 2012; 102(9):1782-1789,3030 Ferrante JM, Gonzalez EC, Roetzheim RG, Pal N, Woodard L. Clinical and demographic predictors of late-stage cervical cancer. Arch Fam Med 2000; 9(5):439-445.. A cobertura do rastreamento do câncer do colo do útero apresenta gradiente negativo com o avançar da idade, pois há uma menor procura por atendimento ginecológico após o período reprodutivo4545 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde Brasileiro. Pesquisa Nacional de Saúde PNS 2013 [Internet]. [acessado 2020 ago 19]. Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/pns-pesquisa-nacional-de-saude-2013/
https://datasus.saude.gov.br/pns-pesquis...
. Além disso, nas mulheres idosas ocorre um processo de história natural diferenciada devido à redução das células de zona de transformação (menor período pré-invasivo) e a alterações no sistema imunológico1111 Thuler LCS, Aguiar SS, Bergmann A. Determinants of late stage diagnosis of cervical cancer in Brazil. Rev Bras Ginecol Obstet 2014; 36(6):237-243.,2929 Fedewa SA, Cokkinides V, Virgo KS, Bandi P, Saslow D, Ward EM. Association of insurance status and age with cervical cancer stage at diagnosis: National Cancer Database, 2000-2007. Am J Public Health 2012; 102(9):1782-1789,4646 Hu B, Tao N, Zeng F, Zhao M, Qiu L, Chen W, Tan Y, Wei Y, Wu X, Wu X. A risk evaluation model of cervical cancer based on etiology and human leukocyte antigen allele susceptibility. Int J Infect Dis 2014; 28:8-12..

As mulheres brasileiras pretas, pardas e indígenas apresentaram maior chance do diagnóstico em estádio avançado de câncer do colo do útero. Em estudo realizado no período de 2000 a 2009, as mulheres pretas apresentaram 20,0% maior chance para esse desfecho em relação às brancas1111 Thuler LCS, Aguiar SS, Bergmann A. Determinants of late stage diagnosis of cervical cancer in Brazil. Rev Bras Ginecol Obstet 2014; 36(6):237-243.. Situação mais agravante foi observada entre as mulheres indígenas (OR 2,38; IC 1,06-5,33) no período de 2000 a 201288 Junior NLR, Silva GA. Temporal trend and associated factors to advanced stage at diagnosis of cervical cancer: analysis of data from hospital based cancer registries in Brazil, 2000-2012. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(2):e2017285.. Também houve maior probabilidade de diagnóstico em estadiamento III ou IV em mulheres de baixa escolaridade, corroborando os achados de outros estudos88 Junior NLR, Silva GA. Temporal trend and associated factors to advanced stage at diagnosis of cervical cancer: analysis of data from hospital based cancer registries in Brazil, 2000-2012. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(2):e2017285.,1111 Thuler LCS, Aguiar SS, Bergmann A. Determinants of late stage diagnosis of cervical cancer in Brazil. Rev Bras Ginecol Obstet 2014; 36(6):237-243.. Destaca-se que pode ocorrer interação entre as duas variáveis, nível de escolaridade e raça/cor da pele, já que as mulheres negras, pardas e indígenas apresentam menores níveis de escolaridade em relação às brancas.

Essas desigualdades se devem ao modo como as pessoas estão organizadas socialmente, dentro de uma estrutura hierarquizada por valores simbólicos e materiais, e na sociedade brasileira o racismo é o principal fator associado às desigualdades em saúde. Processo que naturaliza a violentação desses corpos desde o período colonial até os dias atuais, gerando milhares de mortes devido à negação do acesso à saúde, à educação, ao trabalho e à renda, culminando na manutenção de altas taxas de incidência e mortalidade por doenças evitáveis4747 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc 2016; 25(3):535-549..

As iniquidades observadas na população e no território brasileiro não estão sendo corrigidas pelo sistema de saúde. As políticas Nacional de Controle do Câncer do Colo do Útero (PNCC) e de Atenção Oncológica (PNAO) foram implementadas sem um estudo mais acurado das iniquidades inter-regionais, gerando equidade reversa4848 Instituto Nacional de Câncer (INCA). Programa Nacional de Controle do Câncer de Colo do Útero: histórico e ações [Internet]. [acessado 2021 maio 7]. Disponível em: http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/acoes_programas/site/home/nobrasil/programa_nacional_controle_cancer_colo_utero/historico_acoes
http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/...

49 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.439/GM/MS, de 8 de dezembro de 2005. Política Nacional de Atenção Oncológica: Promoção, Prevenção, Diagnóstico, Tratamento, Reabilitação e Cuidados Paliativos. Diário Oficial da União 2005; 9 dez1.
-5050 Victora CG, Vaughan JP, Barros FC, Silva AC, Tomasi E. Explaining trends in inequities: evidence from Brazilian child health studies. Lancet 2000; 356(9235):1093-1098.. Novas intervenções em saúde pública são, inicialmente, mais acessíveis e utilizadas por pessoas com situação econômica mais favorável, ampliando as desigualdades em saúde já existentes. Após um tempo, em geral quando o impacto da intervenção nos grupos mais ricos atinge seu limite, a política passa a ser gradativamente mais acessível pela população menos favorecida. O que explica em partes a menor cobertura do exame de rastreamento em mulheres negras, indígenas e de baixa escolaridade3333 Theme-Filha MM, Leal MC, Oliveira EFV, Esteves-Pereira AP, Gama SGN. Regional and social inequalities in the performance of Pap test and screening mammography and their correlation with lifestyle: Brazilian National Health Survey, 2013. Int J Equity Health 2016; 15(1):136,3434 Viacava F, Bellido JG. Health, access to services and sources of payment, according to household surveys. Cien Saude Colet 2016; 21(2):351-370.,4545 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde Brasileiro. Pesquisa Nacional de Saúde PNS 2013 [Internet]. [acessado 2020 ago 19]. Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/pns-pesquisa-nacional-de-saude-2013/
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No Brasil, a realização do exame citopatológico é recomendada para todas as mulheres com idade entre 25 e 64 anos, sendo efetuado anualmente e, após dois exames anuais inalterados, a cada três anos, mas não há um programa de rastreamento organizado5151 Instituto Sírio Libanês de Ensino e Pesquisa. Protocolos da Atenção Básica: Saúde das Mulheres. Brasília: MS; 2016.. No ano de 2013, a frequência de realização do exame citopatológico chegou a 71,7% entre os estados brasileiros, atingindo seu menor nível na faixa etária entre 25 e 34 anos. Dados apontam que a cobertura dos exames preventivos do câncer do colo do útero varia entre 89,4% e 93,4% na população feminina brasileira que tem acesso a serviços privados de saúde4545 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde Brasileiro. Pesquisa Nacional de Saúde PNS 2013 [Internet]. [acessado 2020 ago 19]. Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/pns-pesquisa-nacional-de-saude-2013/
https://datasus.saude.gov.br/pns-pesquis...
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A incorporação da vacina contra o papiloma vírus humano (HPV) é uma importante medida de saúde pública que poderá promover impacto nos resultados de saúde relacionados à incidência e mortalidade por câncer de colo do útero, tornando-se ferramenta de controle para este tipo oncológico5252 Faisal-Cury A, Levy RB, Tourinho MF, Grangeiro A, Eluf-Neto J. Vaccination coverage rates and predictors of HPV vaccination among eligible and non-eligible female adolescents at the Brazilian HPV vaccination public program. BMC Public Health 2020; 20(1):458.. No Brasil, o programa de vacinação contra o HPV teve início gradual em 20145353 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações. PNI Programa Nacional de Imunizações. Boletim Informativo - Vacinação Contra HPV. Brasília; 2016., com registros de iniquidades no acesso e baixa adesão5454 Moura LL, Codeço CT, Luz PM. Human papillomavirus (HPV) vaccination coverage in Brazil: spatial and age cohort heterogeneity. Rev Bras Epidemiol 2021; 24:e210001.,5555 Glehn MP, Nascimento LMD, Freire KMR, Minuzzi TTCS, Hott CE Maranhão AGK, Moraes C. Cobertura da vacinação contra papilomavírus humano no Nordeste do Brasil, 2013-2021: estudo descritivo. Epidemiol Serv Saude 2023; 32(2):2022790.. Estudos nacionais apontam uma cobertura vacinal de aproximadamente 48,9%, com maior adesão à primeira dose da vacina, em indivíduos mais jovens e do sexo feminino5252 Faisal-Cury A, Levy RB, Tourinho MF, Grangeiro A, Eluf-Neto J. Vaccination coverage rates and predictors of HPV vaccination among eligible and non-eligible female adolescents at the Brazilian HPV vaccination public program. BMC Public Health 2020; 20(1):458.,5454 Moura LL, Codeço CT, Luz PM. Human papillomavirus (HPV) vaccination coverage in Brazil: spatial and age cohort heterogeneity. Rev Bras Epidemiol 2021; 24:e210001.,5555 Glehn MP, Nascimento LMD, Freire KMR, Minuzzi TTCS, Hott CE Maranhão AGK, Moraes C. Cobertura da vacinação contra papilomavírus humano no Nordeste do Brasil, 2013-2021: estudo descritivo. Epidemiol Serv Saude 2023; 32(2):2022790.. A heterogeneidade da cobertura vacinal entre os estados brasileiros é um grande desafio, que pode estar diretamente ligada às políticas públicas estaduais distintas, que determinam a disponibilidade de vacinas para a população5454 Moura LL, Codeço CT, Luz PM. Human papillomavirus (HPV) vaccination coverage in Brazil: spatial and age cohort heterogeneity. Rev Bras Epidemiol 2021; 24:e210001..

Além do acesso aos serviços, discute-se a questão da oferta e organização da rede de atenção à saúde no contexto brasileiro. Nos serviços públicos de saúde existe a dificuldade de referenciar as suspeitas clínicas; a execução de diversos exames é dificultada, em alguns casos pela falta de insumos, os resultados das análises citopatológicas são demorados; e, mesmo após a conclusão do diagnóstico do câncer, existe dificuldade para início e continuidade do tratamento oncológico5656 Lopes VAS, Ribeiro JM. Cervical cancer control limiting factors and facilitators: a literature review. Cien Saude Colet 2019; 24(9):3431-3442.,5757 Oliveira NPD, Guedes TSR, Holanda AM, Reis MA, Silva CP, Rocha e Silva BL, Almeida GCM, Souza DLB. Functional disability in women submitted to breast cancer treatment. Asian Pac J Cancer Prev 2017; 18(5):1207-1214.. Tais constatações na dinâmica da rede de atenção à saúde culminam na limitação do sistema público de saúde para detectar precocemente o câncer do colo do útero.

O indicador utilizado no presente estudo referente à proporção de exames citopatológicos cervico-vaginal contribui na avaliação da oferta de exames preventivos para o câncer do colo do útero no Brasil. Entretanto, o indicador não retrata a real cobertura populacional do exame. Vale salientar que este se refere à população feminina que tem acesso ao exame citopatológico exclusivamente pelo sistema público de saúde brasileiro5858 Instituto Nacional do Câncer (INCA). Ficha técnica de indicadores das ações de controle do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: INCA; 2014., o que pode ser considerado uma possível limitação do estudo. Cumpre ressaltar as limitações da análise do estadiamento avançado em decorrência dos registros incompletos oriundos das unidades hospitalares de assistência oncológica.

É importante destacar que o estadiamento do câncer do colo do útero ao diagnóstico disponibilizados nos RHC está relacionado ao acesso a exames complementares no momento do seu registro em prontuário e da experiência do médico responsável pelo atendimento do paciente1111 Thuler LCS, Aguiar SS, Bergmann A. Determinants of late stage diagnosis of cervical cancer in Brazil. Rev Bras Ginecol Obstet 2014; 36(6):237-243.. Portanto o percentual de doença com discriminação do estadiamento pode ser influenciado com a qualidade da assistência oncológica e do sistema de saúde local1111 Thuler LCS, Aguiar SS, Bergmann A. Determinants of late stage diagnosis of cervical cancer in Brazil. Rev Bras Ginecol Obstet 2014; 36(6):237-243.. Corroborando essa hipótese, estudo realizado com dados do RHC no mesmo período da presente pesquisa identificou prevalência de 32,4% de câncer do colo do útero com estadiamento não identificado e que esteve associado com encaminhamento pelo sistema público de saúde, moradoras de estados com baixa densidade de oncologistas e com menor percentual de exames citopatológicos2525 Oliveira NPD, Cancela MC, Martins LFL, Meira KC, Castro JL, Souza DLB. Completeness of cervical cancer staging information in Brazil: a national hospital-based study. Cancer Epidemiol 2022; 79:102191.. Em que pese as limitações das informações do RHC, destaca-se a exclusão dos dados oriundos do RHC de SP, que tem bons indicadores e uma proporção significativa de casos em estadiamento inicial (55%), entretanto a ausência dos dados sociodemográficos limitou o uso de tais dados no estudo. Além disso, o uso de informações oriundas dos sistemas de informação de saúde brasileiros é uma potencialidade do presente estudo, já que o Integrador do RHC é a fonte de dados secundários relacionados à assistência do câncer mais completa disponível no Brasil, o que o possibilita a execução de estudos epidemiológicos de base populacional a respeito da assistência oncológica hospitalar.

Considerações finais

Os resultados do presente estudo evidenciam a associação da oferta e do acesso aos sistemas de saúde com o diagnóstico em estadiamento avançado do câncer do colo do útero. Os fatores associados ao desfecho do estudo mostram a realidade do sistema de saúde no contexto da assistência oncológica. Isso aponta para a necessidade de reorientação de políticas públicas de saúde, que devem ser direcionadas para as mulheres com maior risco de desenvolvimento do câncer do colo do útero e em localidades com menor cobertura da citologia oncótica. A melhor organização e estruturação da rede de atenção oncológica nas regiões mais desassistidas proporcionará diagnósticos mais adequados e em tempo oportuno no sistema público de saúde brasileiro.

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  • Financiamento

    O estudo foi parcialmente financiado pela Coordenação Brasileira de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Código de Financiamento 001. Dyego Leandro Bezerra de Souza agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa de produtividade 315962/2023-2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2023
  • Aceito
    08 Ago 2023
  • Publicado
    10 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br