Reflexões sobre práxis investigativa cogestora em contexto de emergência sanitária

Adriana Coser Gutiérrez Gastão Wagner de Sousa Campos Bruna Jandoso Marcela Silva da Cunha Mauricio Pereira de Mattos Rafaela de Oliveira Lopes da Silva Sobre os autores

Resumo

O artigo trata do interesse do campo científico em sistematizar a práxis investigativa cogestora em cenário de emergência sanitária a partir da análise de uma pesquisa de abordagem qualitativa multicêntrica, valendo-se do referencial da pesquisa-apoio e da análise da hermenêutica critica. Como resultados, identificou-se que a elaboração de um guia-mapa contribuiu como documento norteador, com o objetivo de organizar diferentes técnicas para a preparação e formação dos pesquisadores de campo, também como instrumento de análise dos dados. A formação de pesquisadores para o referencial teórico da pesquisa-apoio, assim como a cogestão e a implicação deles nas diferentes etapas da pesquisa, mostrou-se como diferencial para produção de sujeitos e coletivos com a práxis investigativa, permitindo a troca dialógica dentre coordenadores e pesquisadores e o compartilhamento regular dos resultados. Conclui-se que a forma como a metodologia foi proposta possibilitou a ampliação da capacidade reflexiva e de compreensão sobre a realidade, contribuindo para a formação de pesquisadores como sujeitos ativos e críticos no processo de coleta, análise e discussão dos dados, incentivando a atuação sensível e atenta ao mesmo tempo em que buscou identificar as particularidades de cada contexto.

Palavras-chave:
Pesquisa qualitativa; Pandemia; Hermenêutica

Introdução

O contexto da pandemia de COVID-19 despertou o interesse do campo científico pela busca de inovar, aprofundar e sistematizar estratégias de investigação de grandes desastres sanitários em cenários desafiadores. Durante a pandemia, foi possível constatar que o contexto se apresentou oportuno para reflexões, não apenas sobre novas práticas instituídas nos serviços, mas sobre modos de pesquisar em contexto de emergência sanitária.

Para Deslandes e Coutinho11 Deslandes S, Coutinho T. Pesquisa social em ambientes digitais em tempos de COVID-19: notas teórico-metodológicas. Cad Saude Publica 2020; 36(11):e00223120., as medidas sanitárias de distanciamento social adotadas em função desse cenário trouxeram impasses para a pesquisa social e seu futuro, impulsionando o maior uso de ambientes digitais. Entrevistas virtuais, questionários eletrônicos e websurveys foram muito utilizados durante o período22 Boni RBD. Websurveys nos tempos de COVID-19. Cad Saude Publica 2020; 36(7):e00155820., e as pesquisas qualitativas, que não se valeram desses recursos, enfrentaram dificuldades em função do cenário epidemiológico imprevisto.

Apesar da necessidade de cumprimento do isolamento social, alguns estudos optaram por realizar pesquisas qualitativas com coleta de dados presencial. Em virtude dos objetivos e das escolhas metodológicas, esse foi o caso da investigação multicêntrica “Estratégias de abordagem dos aspectos subjetivos e sociais na atenção primária no contexto da pandemia”, conduzida por um grupo de pesquisadores da Unicamp, da Fiocruz e do Instituto de Saúde de São Paulo.

Minayo33 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006. afirma que o ato de pesquisar, sobretudo no campo da saúde, configura-se como práxis social específica, processo em que os fenômenos sociais investigados têm os próprios pesquisadores operando como agentes. Dessa forma, a ideia de cientificidade da pesquisa social se caracteriza por alta abstração, e vai na contramão dos modelos e das normas comumente observadas em uma lógica positivista de ciência. Isso não significa que o fazer e pensar ciência, quando diz respeito aos fenômenos sociais, não deva partir de certos princípios. Nesse sentido, alerta para o fato de que o objeto das ciências sociais é histórico, marcado por especificidades, provisoriedade e dinamismo.

O caráter complexo da realidade social, segundo a autora, requer o uso de metodologia apropriada, buscando-se uma reconstrução teórica que compreenda seu significado. Sendo assim, uma das possíveis direções do labor científico é a de elaboração de teorias, princípios e métodos adequados ao objeto singular investigado. A outra direção diz respeito à invenção e à ratificação de estratégias investigativas especiais, o que permite caminhar por direções variadas.

O presente artigo não se propõe a apresentar um novo referencial teórico, mas sim contribuir para a reflexão acerca da práxis investigativa cogestora em contexto de emergência sanitária, valendo-se do referencial da pesquisa-apoio44 Furlan PG, Campos GWS. Pesquisa-apoio: pesquisa participante e o método Paideia de apoio institucional. Interface (Botucatu) 2014; 18(Supl. 1):885-894., que valoriza o componente da escuta dialógica dos sujeitos e considera a implicação dos pesquisadores, neste caso diante do intenso convívio com o fenômeno da pandemia. Outro aspecto da pesquisa-apoio é o fomento à gestão compartilhada da maior parte possível do processo de práxis investigativa.

A fim de contribuir para essas reflexões, será apresentada parte dos resultados e processos da pesquisa qualitativa multicêntrica citada anteriormente, em que se buscou reafirmar o ato de pesquisar enquanto artesanato, a análise da práxis científica e dos sujeitos sociais a partir de seu processo histórico e cultural33 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006.

4 Furlan PG, Campos GWS. Pesquisa-apoio: pesquisa participante e o método Paideia de apoio institucional. Interface (Botucatu) 2014; 18(Supl. 1):885-894.

5 Deslandes S. O projeto de pesquisa como exerci´cio cienti´fico e artesanato intelectual. In: Minayo MCS, organizadora. Pesquisa social. Petrópolis: Vozes; 2007. p.31-59.

6 Onocko-Campos R, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica 2008; 42(6):1090-1096.

7 Onocko-Campos R, Furtado JP. Narrativas: apontando alguns caminhos para sua utilização na pesquisa qualitativa em saúde. In: Onocko-Campos, Furtado JP, Passos E, Benevides R, organizadores. Pesquisa avalitativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 321-333.

8 Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas: Editora da Unicamp; 2011.
-99 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman; 2005.. Compreende-se, desse modo, a necessidade de uma análise crítico hermenêutica do referencial metodológico da pesquisa, identificando conceitos e técnicas utilizadas nesse processo.

Metodologia

A opção de se associar ao referencial da hermenêutica crítica1010 Ricoeur P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1990., também chamado de crítica dialético-hermenêutica, possibilita, para além de designar interpretação e compreensão das obras humanas, transpor a reflexão metadiscursiva, fundada na linguagem referente à própria realidade, propondo-se a fundamentar uma interpretação emancipadora dos fatos, valendo-se do movimento da crítica como elemento reconstrutivo dos discursos e de seu sentido prático. Compreendemos que a hermenêutica crítica se baseia em um distanciamento que, a partir dos interesses práticos de reconstrução da vida social, explora dialeticamente os valores negados ou ocultos nos processos de comunicação que geram os discursos interpretados1111 Habermas J. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L± 1987.

12 Apel KO. La transformación de la filosofía (I/II). Rio de Janeiro : Taurus; 1985.
-1313 Ayres JRDCM. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Cien Saude Colet 2005; 10(3):549-560..

Como modo de contribuir para a metodologia da pesquisa, foi elaborado um guia-mapa1414 Campos GWS. Guia mapa. 2020 (não publicado). que serviu como documento norteador, com o objetivo de organizar diferentes técnicas para a preparação e formação dos pesquisadores de campo e também como instrumento de análise dos dados gerados pela pesquisa.

Em relação à produção dos dados empíricos, a pesquisa utilizou algumas estratégias de coleta, como observação participante, diário de campo, entrevistas em profundidade e levantamento e análise de documentos oficiais. E como estratégia de análise, foram elaboradas narrativas66 Onocko-Campos R, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica 2008; 42(6):1090-1096., grades interpretativas e análise de contexto, ou seja, técnicas amplamente consolidadas.

A pesquisa que subsidiou o presente estudo foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp, CAAE 40699120.2.0000.5404, e dos três municípios coparticipantes.

Os três campos e os vários sujeitos da pesquisa

A pesquisa previa intenso trabalho de campo para observação participante e entrevistas em profundidade com usuários e trabalhadores de unidades de atenção primária à saúde (APS) nas cidades de Campinas (SP), Rio de Janeiro e São Paulo. A escolha por esses municípios se deu em função da localidade das instituições de vinculação dos pesquisadores.

A investigação ocorreu em 12 Unidades Básicas de Saúde (UBS), sendo quatro UBS em cada uma das cidades, localizadas em bairros e favelas caracterizadas pela alta vulnerabilidade social, locais onde a urbanização ocorreu sem planejamento e com condições precárias de saneamento básico. Esses municípios apresentaram historicamente diferentes construções e experiências de implantação do SUS1515 Campos AR. Antecedentes da implementação do SUS - Sistema Único de Saúde - em Campinas - SP [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2015.

16 Soranz D, Pinto LF, Penna GO. Eixos e a Reforma dos Cuidados em Atenção Primária em Saúde (RCAPS) na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1327-1338.
-1717 Guedes JS, Santos RMB, Di Lorenzo RAV. A implantação do Programa de Saúde da Família (PSF) no Estado de São Paulo (1995-2002). Saude Soc 2011; 20(4):875-883. e de manejo da pandemia, demandando uma análise do contexto da APS e das normativas do processo de trabalho na emergência sanitária. Dessa forma, criou-se um grupo multicêntrico com 21 participantes, incluindo os 12 pesquisadores dos territórios desses serviços.

Destaca-se que no município do Rio de Janeiro, à exceção dos demais, a ampliação da APS é mais recente, a partir de 2009, e mais presente nas favelas com a característica de territórios conflagrados pela violência urbana. Campinas apresenta o modelo de gestão da APS pela administração direta, com servidores estatutários. Em São Paulo e no Rio a gestão da APS é predominante realizada pelas organizações sociais de saúde.

Quando a pesquisa iniciou a fase empírica, o cenário epidemiológico do Brasil não era favorável à entrada nos territórios. Assim, priorizou-se que todos os pesquisadores fossem vacinados contra a COVID-19, assim como o fornecimento de equipamento de proteção individual, como jaleco, máscaras e álcool em gel. Ainda assim, o contexto determinou mudanças no cronograma planejado e atraso para entrada nas UBS, sendo possível somente no final de julho de 2021. Somam-se eventuais adoecimentos dos entrevistados e pesquisadores por COVID-19, além do cenário de violência observado em algumas localidades do município do Rio de Janeiro, retardando as primeiras observações em duas unidades.

Para a composição da equipe de pesquisadores de campo, valorizou-se a experiência prévia com APS, saúde coletiva e práticas em pesquisa, no sentido de formar um grupo de pesquisadores-apoiadores com aproximação e conhecimento do campo. A implicação1818 Lourau R. Uma técnica de análise de implicações: B. Malinowski, Diário de etnógrafo (1914-1918). In: Altoé S, organizador. Analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 259-283. dos pesquisadores no campo da pesquisa - também sujeitos no enfrentamento à pandemia - trouxe a possibilidade para os entrevistados de discorrer sobre determinados temas com pares, de falar e ser ouvido por outros trabalhadores inseridos na rede da APS e afetados pelos mesmos problemas vivenciados naquele cenário, o que possibilitou maior qualidade no processo de elaboração, análise e interpretação das narrativas.

Além disso, antes do início da fase empírica, foram realizados encontros a distância, em modalidade síncrona, para a formação dos pesquisadores em metodologias científicas, no Método Paideia1919 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2015. - referencial teórico do estudo - e em pesquisa-apoio, bem como para a construção coletiva da condução das entrevistas e da observação participante. A formação contou com a participação dos autores e de especialistas dos referenciais utilizados pela pesquisa, com afinidades com as ferramentas metodológicas definidas, como a construção e análise de narrativas.

Na referida pesquisa multicêntrica, buscou-se identificar a relação de usuários e trabalhadores da APS com a saúde e com o SUS durante a pandemia, a partir do olhar e compreensão desses indivíduos. Para tanto, foram entrevistados 50 trabalhadores e 47 usuários. Os critérios de inclusão foram: ser profissional da APS com pelo menos um ano de atuação nos territórios; e usuários maiores de idade adscritos das UBS definidas que apresentavam aspectos psicossociais e de impactos na atenção em saúde, como sofrimento psíquico com ou sem diagnóstico definido, dificuldade para o autocuidado e uso intensificado de medicação. No caso dos usuários, priorizou-se ainda as mulheres líderes de família, ativistas, pessoas com vínculos precários de trabalho e renda, e pessoas que se identificam como negros, com deficiência e LGBTQIAP+, conforme o Quadro 1.

Quadro 1
Distribuição dos entrevistados por campo de pesquisa, categorias profissionais e usuários.

A seleção inicial dos participantes foi feita durante a observação participante, por indicação dos gestores das unidades e de informantes-chave que também contribuíram para a definição do contexto, compartilhando informações sobre os territórios e os modos de organização das unidades. No segundo momento, a partir da técnica de amostragem do tipo bola de neve2020 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas 2014; 22(44):203-220., os gerentes indicaram trabalhadores, e estes, os usuários, de acordo com o perfil pré-definido.

As caraterísticas desta pesquisa, e o grande volume de informações e de material empírico levantados, tanto na observação participante como nas 97 entrevistas em profundidade, configuraram uma linha de base importante para análises, um terreno fértil para a produção de futuras pesquisas.

Resultados e discussão

Partiu-se do referencial de pesquisa-apoio, que visa a construção do conhecimento por parte de todos os envolvidos - desfazendo a dicotomia sujeito-objeto presente em muitos estudos -, em que pesquisadores e participantes têm uma postura ativa frente à investigação. A pesquisa-apoio opera ainda com a tríplice finalidade de: ampliar a compreensão sobre algum tema, realizar uma análise institucional2121 Lourau R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes; 2014. e das relações de poder e proporcionar que as pessoas se pensem como agentes singulares dessa rede social, fomentando a autonomia e o protagonismo dos sujeitos.

Ao longo da investigação, foram feitas reuniões semanais das coordenações regionais de cada campo com os pesquisadores para o acompanhamento e avaliação do estudo, supervisão, apoio, suporte, discussões e construções compartilhadas a respeito de diferentes aspectos, como produção de dados, abordagem nas entrevistas, utilização dos instrumentos de pesquisa e análise. E uma vez por mês foram promovidos encontros com as equipes dos três campos de pesquisa para tomada de decisões metodológicas em relação ao estudo e compartilhamento do processo de coleta e análise dos dados, identificando diferenças e similaridades de cada contexto. Essas reuniões ocorreram na modalidade virtual, mas sem prejuízos aos seus objetivos. Sobre esse aspecto, é importante ressaltar que o uso da tecnologia facilitou os espaços de troca e a construção coletiva entre três campos localizados em cidades distintas, otimizando o tempo e o custo.

Com a finalidade de melhor organizar o desenho da pesquisa, foi elaborado um documento denominado guia-mapa, no intuito de sistematizar e integrar os objetivos e estratégias analíticas para apoio à equipe de pesquisadores. Esse material também serviu como roteiro para as entrevistas, sugerindo temas sensíveis ao contexto, tais como luto, perda e incertezas sobre as práticas de cuidado em saúde. O guia foi elaborado com base no referencial teórico e indicava possíveis categorias de análise a serem utilizadas na interpretação das narrativas produzidas.

Compreendemos que esse documento se aproxima da proposta de mapa conceitual pelo princípio teórico da aprendizagem significativa2222 Ausubel D, Novak J, Hanesian H. Educational psychology: a cognitive view. New York: Holt, Rinehart & Winston; 1987., que considera a necessidade de conhecer as ideias prévias e a estrutura de significados dos sujeitos com o propósito de estabelecer aprendizagens inter-relacionadas. Na medida em que o novo conhecimento é construído, os conceitos preexistentes experimentam uma diferenciação progressiva, e quando dois ou mais conceitos se relacionam de forma significativa, acontece uma reconciliação integradora2323 Ruiz-Moreno L, Sonzogno MC, Batista SHDS, Batista NA. Mapa conceitual: ensaiando critérios de análise. Cienc Educ (Bauru); 13(3):453-463..

Esse guia apresentou-se como recurso importante para a elaboração dos núcleos argumentativos que ordenaram a produção e interpretação das narrativas a partir das entrevistas em profundidade, processos que serão descritos adiante, objetivando ampliar a capacidade interpretativa e analítica dos pesquisadores sobre o material empírico.

Dessa forma, o guia-mapa representou uma alternativa complementar para a sistematização e apropriação por parte dos pesquisadores do desenho da pesquisa, integrando objetivos, referenciais metodológicos e teóricos de modo dialógico entre o pesquisador, compreendido como apoiador, e o sujeito pesquisado. Facilitou a construção de espaços para acolhimento e escuta dos momentos difíceis que profissionais e usuários vivenciaram durante a pandemia, produzindo uma dimensão vinculatória e terapêutica, conforme pode ser observado nos seguintes trechos das narrativas:

Em dez anos que eu estou aqui, você é a primeira que sentou pra fazer pesquisa e quis escutar não só os funcionários, mas quer conversar também com os moradores. Isso já é um ganho imenso.

Ah, eu que agradeço, foi maravilhoso, muito bom, me fez muito bem falar, eu tava precisando conversar. Espero que ajude a sua pesquisa assim como me ajudou.

Havia a expectativa de que o pesquisador, nesse caso identificado como pesquisador-apoiador, pudesse realizar escuta e observação qualificada dos sujeitos da pesquisa e de seu contexto a partir dos modelos de atenção e gestão do SUS e da APS, possibilitando a realização de ofertas e intervenções, projetos institucionais e comunitários, sendo estes um dos diferenciais dessa proposta. No entanto, em função do cenário epidemiológico instável em que foi conduzida a pesquisa e da identificação de uma nova variante do vírus, não foi possível fazer ofertas a partir dos temas emergentes das narrativas, a fim de aumentar a capacidade de análise e intervenção de trabalhadores e usuários sob os aspectos sociais e subjetivos vivenciados na pandemia.

Por outro lado, foi possível observar que o contexto crítico de incerteza sobre os “modos de andar a vida”2424 Canguilhem G. O normal e o patológico. Barueri: Editora Forense Universitária; 2009. vivenciado pelos trabalhadores e usuários demandava mudança de práticas, de postura e novas escolhas diante de impasses no cotidiano. Pôde-se evidenciar que na ausência de espaços coletivos (reuniões de equipe, grupos de usuários etc.), a escuta do pesquisador-apoiador se tornou a própria oferta. Temas como perdas, insegurança, luto, violência institucional e urbana e assédio moral emergiram durante as entrevistas. A adoção de entrevistas em profundidade centradas no livre discurso parece ter facilitado a emergência de temas relativos à experiência cotidiana, construindo a possibilidade de diálogo sobre as vivências e reflexões em meio à pandemia, caracterizando uma espécie de efeito colateral positivo de intervenção. Um exemplo foi o relato de uma agente comunitária de saúde sobre o falecimento de sua mãe no interior da unidade de saúde na qual atuava.

Tá sendo bem difícil a pandemia, porque tem alguns que são incrédulos, que não levam a sério. Morreu muita gente aqui e eu como moradora posso dizer: tá sendo um caos, na verdade. Logo no início da pandemia, em abril de 2020, todos pegaram o coronavírus lá em casa, eu, meu filho, que na época tinha dois anos, minha irmã, meu pai, o único assintomático, além da minha mãe, que veio a falecer aqui na UBS. Então foi e está sendo muito difícil.

Aqui, cabe discorrer brevemente sobre o conceito de implicação, oriundo do institucionalismo francês2525 Rodrigues HC. As subjetividades em revolta - institucionalismo francês e novas análises. Rio de Janeiro: Lamparina; 2020.. Analisar a implicação do pesquisador significa explicitar os desejos conscientes e inconscientes do sujeito frente ao objeto de conhecimento, sua vinculação afetiva, libidinal, seus pontos de interesse e de relação1818 Lourau R. Uma técnica de análise de implicações: B. Malinowski, Diário de etnógrafo (1914-1918). In: Altoé S, organizador. Analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 259-283.,2626 Monceau G. Implicação, sobreimplicação e implicação profissional. Fractal (Niteroi) 2008; 20(1):19-26. com a APS e o SUS. Portanto, a implicação ao campo de pesquisa significa a impossibilidade de uma posição de neutralidade científica do pesquisador - e de um grupo de pesquisa - frente ao estudo. Essa perspectiva reflexiva foi utilizada pelos pesquisadores em todas as etapas do processo, contribuindo para a formação de vínculo e a instauração de um espaço de acolhimento entre os participantes, abrindo um campo de diálogo protegido.

Na etapa de coleta de dados foram utilizadas diferentes estratégias, reconhecendo que no caso de pesquisas qualitativas o que muitas vezes denominamos como dados nem sempre se apresentam “tão dados”, ou seja, é necessário haver uma capacidade de reinterpretar a produção empírica. A exemplo de pesquisas que utilizam o método da cartografia que afirmam que os dados são colhidos, algo similar à colheita “de relatos que ela [a entrevista] cultiva”2727 Tedesco SH, Sade C, Caliman. A entrevista na pesquisa cartográfica: a experiência do dizer. In: Passos E, Kastrup V, Tedesco S, organizadores. Pistas do método da cartografia. Porto Alegre: Sulina; 2016..

Como mencionado anteriormente e considerando as características e premissas da pesquisa-apoio, as informações foram produzidas por meio de observação participante, diários de campo, levantamento de documentos oficiais e decorrentes das entrevistas em profundidade com profissionais e usuários, que em alguns casos foram realizadas em mais de uma sessão.

O número de entrevistados se justificou em função do conceito de saturação33 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006.

4 Furlan PG, Campos GWS. Pesquisa-apoio: pesquisa participante e o método Paideia de apoio institucional. Interface (Botucatu) 2014; 18(Supl. 1):885-894.

5 Deslandes S. O projeto de pesquisa como exerci´cio cienti´fico e artesanato intelectual. In: Minayo MCS, organizadora. Pesquisa social. Petrópolis: Vozes; 2007. p.31-59.

6 Onocko-Campos R, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica 2008; 42(6):1090-1096.

7 Onocko-Campos R, Furtado JP. Narrativas: apontando alguns caminhos para sua utilização na pesquisa qualitativa em saúde. In: Onocko-Campos, Furtado JP, Passos E, Benevides R, organizadores. Pesquisa avalitativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 321-333.

8 Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas: Editora da Unicamp; 2011.

9 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman; 2005.

10 Ricoeur P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1990.

11 Habermas J. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L± 1987.

12 Apel KO. La transformación de la filosofía (I/II). Rio de Janeiro : Taurus; 1985.

13 Ayres JRDCM. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Cien Saude Colet 2005; 10(3):549-560.

14 Campos GWS. Guia mapa. 2020 (não publicado).

15 Campos AR. Antecedentes da implementação do SUS - Sistema Único de Saúde - em Campinas - SP [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2015.

16 Soranz D, Pinto LF, Penna GO. Eixos e a Reforma dos Cuidados em Atenção Primária em Saúde (RCAPS) na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1327-1338.

17 Guedes JS, Santos RMB, Di Lorenzo RAV. A implantação do Programa de Saúde da Família (PSF) no Estado de São Paulo (1995-2002). Saude Soc 2011; 20(4):875-883.

18 Lourau R. Uma técnica de análise de implicações: B. Malinowski, Diário de etnógrafo (1914-1918). In: Altoé S, organizador. Analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 259-283.

19 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2015.

20 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas 2014; 22(44):203-220.

21 Lourau R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes; 2014.

22 Ausubel D, Novak J, Hanesian H. Educational psychology: a cognitive view. New York: Holt, Rinehart & Winston; 1987.

23 Ruiz-Moreno L, Sonzogno MC, Batista SHDS, Batista NA. Mapa conceitual: ensaiando critérios de análise. Cienc Educ (Bauru); 13(3):453-463.

24 Canguilhem G. O normal e o patológico. Barueri: Editora Forense Universitária; 2009.

25 Rodrigues HC. As subjetividades em revolta - institucionalismo francês e novas análises. Rio de Janeiro: Lamparina; 2020.

26 Monceau G. Implicação, sobreimplicação e implicação profissional. Fractal (Niteroi) 2008; 20(1):19-26.

27 Tedesco SH, Sade C, Caliman. A entrevista na pesquisa cartográfica: a experiência do dizer. In: Passos E, Kastrup V, Tedesco S, organizadores. Pistas do método da cartografia. Porto Alegre: Sulina; 2016.
-2828 Turato ER. Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórica-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis: Vozes; 2003.. No caso desta investigação qualitativa, os critérios adotados foram a repetição do discurso, os objetivos da pesquisa e a capacidade de suportar temas sensíveis, como luto, perda, choros e silêncios, tanto para o entrevistado como para o entrevistador.

O recurso da observação participante2929 Mónico L, Alferes V, Parreira P, Castro PA. A observação participante enquanto metodologia de investigação qualitativa. CIAIQ 2017; 3:724-733. possibilitou que os pesquisadores vivenciassem a rotina dos serviços e seus territórios adscritos, mas com limitações do planejado, tendo em vista as novas configurações dos processos de trabalho colocadas pelo contexto de emergência sanitária. A imersão a partir dessas observações possibilitou ampliar a compreensão do fenômeno da pandemia nos territórios, enriquecendo a produção do material empírico.

A opção pelas entrevistas em profundidade estimulou os participantes ao livre discurso, com a intencionalidade de que emergisse a vivência subjetiva sobre a percepção do sujeito entrevistado com a pandemia de COVID-19, caracterizando assim o tema disparador. Ao longo da entrevista, o pesquisador, quando necessário, fez intervenções que promoviam a reflexão sobre os eixos temáticos definidos na pesquisa, como “relação com o SUS”, “compreensão de si e autocuidado”, “vínculo e afeto”, “mudanças ocorridas no contexto da pandemia” e “relações de poder”.

Durante a entrevistas, foram valorizados aspectos como apresentação pessoal, comportamento global, mudanças na postura corporal, gesticulações, mímica facial, riso e choro3030 Fontanella BJB, Campos CJG, Turato ER. Coleta de dados na pesquisa clínico-qualitativa: uso de entrevistas não-dirigidas de questões abertas por profissionais da saúde. Rev Latino Am Enferm 2006; 14(5):1-10., considerando a diversidade de expressões de linguagem, o que possibilitou valorizar os aspectos subjetivos, a fim de qualificar a análise e a interpretação das narrativas. O local das entrevistas foi escolhido pelos participantes, havendo a preocupação quanto ao ambiente para que fosse tranquilo, favorecendo um clima acolhedor para o livre discurso. Sendo a maior parte realizada nas UBS, mas também em praças, igrejas, residências e associação de moradores.

Tendo como referencial o apoio Paideia3131 Campos GWS, Figueiredo MD, Pereira Júnior N, Castro CP. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface (Botucatu) 2014; 18(Supl. 1):983-995., um dos objetivos do momento da entrevista era suscitar a capacidade crítica e reflexiva dos sujeitos, ampliando a compreensão sobre a realidade e fomentando a capacidade de intervenção no contexto da pandemia e, de forma mais abrangente, no SUS. As indagações trazidas durante a conversa, dentro do possível, pautavam-se na construção de um espaço de encontro dialógico, em que as percepções e opiniões dos participantes eram colocadas em análise no momento da entrevista, usando o encontro não apenas para coleta de dados, mas também como oportunidade para a produção de reflexões conjuntas e a construção de uma interpretação compartilhada. A Figura 1 demonstra o processo que envolveu a práxis de elaboração da pesquisa a partir do referencial Paideia.

Figura 1
Processo da práxis de elaboração da pesquisa a partir do referencial Paideia.

Buscando não reduzir as análises aos dados produzidos nas entrevistas, e com vistas a fornecer informações complementares para a compreensão do fenômeno pesquisado, os entrevistadores se apoiaram na elaboração de diários de campo, de modo a descrever e identificar modos de organização dos serviços, os territórios de atuação das UBS, os pontos de interesse das observações participantes e sobretudo as circunstâncias e impressões das entrevistas. Confrontar o que se fala com o que se vê, os discursos com as práticas, e também o trabalho de pesquisar com as implicações subjacentes que acompanham o ato de pesquisar, “é o momento de reflexão sobre e com o vivido, revelando o não dito e pressupondo a não neutralidade do pesquisador no processo de pesquisar”3232 Pezzato LM, L'abbate S. O uso de diários como ferramenta de intervenção da Análise Institucional: potencializando reflexões no cotidiano da Saúde Bucal Coletiva. Physis 2011; 21(4):1297-1314. (p. 1303).

Para Lourau1818 Lourau R. Uma técnica de análise de implicações: B. Malinowski, Diário de etnógrafo (1914-1918). In: Altoé S, organizador. Analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 259-283., uma das funções do diário de campo é servir como um dispositivo que provoca, a partir do exame de seus escritos, a análise da implicação do pesquisador. Nessa direção, observou-se que a implicação dos pesquisadores-apoiadores qualificou diferentes fases do estudo, como na caracterização dos campos, na análise de contexto e na discussão dos resultados, visto que as experiências do campo de atuação profissional reverberavam na práxis investigativa.

Para a construção das narrativas, inicialmente as entrevistas foram transcritas e associadas aos diários de campo produzidos pelo pesquisador. Na sequência, as narrativas foram validadas pelos próprios entrevistados a partir da leitura conjunta dos textos produzidos, sendo dada a oportunidade de os entrevistados alterarem algum trecho, caso desejassem, assim como pelo grupo de pesquisadores através de leitura coletiva, fazendo dessa etapa um momento hermenêutico, com efeitos de intervenção.

Assim, as narrativas compartilhadas podem ser concebidas como um processo de mediação entre o vivido e a possibilidade de inscrevê-lo no social, inserindo a experiência subjetiva em um campo político66 Onocko-Campos R, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica 2008; 42(6):1090-1096.. Nesse sentido, a narrativa tem seu valor no empreendimento da pesquisa porque opera como mediadora entre a experiência viva e o discurso, ligando a explicação à compreensão1010 Ricoeur P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1990..

As narrativas não são “dados”, necessitam da elaboração de um “olhar narrativizante” que estabeleça articulação entre os diversos fragmentos em circulação. No caso da nossa pesquisa, os fragmentos emergiram das observações e entrevistas, sejam elas em profundidade ou em conversas com informantes-chave, sempre em relação com as estruturas e com as demais relações sociais desses sujeitos.

Para Onocko-Campos e Furtado77 Onocko-Campos R, Furtado JP. Narrativas: apontando alguns caminhos para sua utilização na pesquisa qualitativa em saúde. In: Onocko-Campos, Furtado JP, Passos E, Benevides R, organizadores. Pesquisa avalitativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 321-333., as narrativas fora de seu esquema tradicionalmente vinculado a estudos etnográficos, nos quais tomam caráter mais descritivo e cronologicamente arranjado, podem contribuir na pesquisa qualitativa em saúde coletiva. Para tanto, devemos tomar as narrativas como dispositivo poroso de comunicação que incluam novos olhares, dentro de desenhos participativos.

As narrativas seriam úteis, assim, em pesquisas sobre os serviços de saúde, tal como na pesquisa aqui apresentada, para o campo da APS, auxiliando a responder perguntas relacionadas às tensões cotidianas e às mediações: entre o que se diz e o que se faz; entre eventos ocasionais e questões estruturais; entre os sujeitos individuais e coletivos. Trata-se de trazer para o mundo do texto as crenças e as práticas.

No Brasil emergem problemas cujas experiências precisam ser narradas pelos sujeitos afetados direta ou indiretamente, constituindo subsídios para a produção de conhecimento e do cuidado integral em saúde. A aids e a tuberculose, as violências, a privação de liberdade, a imigração, a situação de rua ou a experiência com a COVID-19 são exemplos, entre outros, de fenômenos sociais cujas narrativas oportunizam uma melhor compreensão e a construção de saberes e de práticas assistenciais no âmbito do SUS3333 Ceccon RF, Garcia Jr. CAS, Dallmann JMA, Portes VM. Narrativas em saúde coletiva: memória, método e discurso. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (p. 43).

Assim, as narrativas produzidas pela investigação subsidiaram a construção de duas grades interpretativas por município, uma para usuários e outra para profissionais. Considerando a proposta de Onocko-Campos3434 Onocko-Campos R. Fale com eles! O trabalho interpretativo e a produção de consenso na pesquisa qualitativa em saúde: inovações a partir de desenhos participativos. Physis 2011; 21(4):1269-1286., nas grades foram reunidos os principais argumentos identificados em cada narrativa, denominados de núcleos argumentativos, que nesse caso se articulou em categorias analíticas a partir dos objetivos da investigação, assim como aqueles temas não previstos mas que emergiram e foram compreendidos como correlatos aos objetivos. O Quadro 2 abaixo demonstra o modelo elaborado de grade interpretativa utilizada na investigação.

Quadro 2
Modelo de grade interpretativa utilizada com as narrativas.

Passada essa etapa, as duas grades interpretativas foram agrupadas, possibilitando a síntese analítica dos três municípios, destacando, entre outros aspectos, as magnitudes, os consensos, os dissensos e a experiência de cada cidade com a pandemia de COVID-19. A Figura 2 apresenta as etapas sequenciais de tratamento do material empírico, método que subsidiou a análise e interpretação dos resultados.

Figura 2
Etapas sequenciais de tratamento do material empírico.

A partir dessa sequência de etapas, foi possível a organização do material como texto síntese, assim denominado pelos autores, valendo-se da triangulação de métodos33 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006. em que se considerou a análise das grades interpretativas de usuários e trabalhadores e o contexto histórico, somado à análise dos diários de campo dos pesquisadores e à pesquisa documental.

Sobre a gestão da pesquisa

Outro elemento integrante dessa práxis investigativa foi a escolha do modo de fazer a gestão, optando por ser participativa e compartilhada entre toda a equipe de pesquisadores. Essa opção decorreu do referencial teórico de apoio Paideia1818 Lourau R. Uma técnica de análise de implicações: B. Malinowski, Diário de etnógrafo (1914-1918). In: Altoé S, organizador. Analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 259-283., cuja centralidade é a prática de cogestão, valorizando o fomento de espaços coletivos, o reconhecimento dos sujeitos implicados e o aumento do coeficiente de autonomia. Devido ao contexto pandêmico, o processo de cogestão não logrou construir espaços coletivos dialógicos com trabalhadores, gestores e usuários. Nessa situação particular, realizou-se cogestão de todas as etapas com a totalidade dos agentes envolvidos com a pesquisa: bolsistas, professores, mestrandos, doutorandos e voluntários vinculados ao SUS.

A cogestão do coletivo de pesquisadores se deu através, inicialmente, da formação deles, reconhecendo-os como parte integrante da equipe de gestão ampliada da pesquisa e não somente como entrevistadores de campo. Para isso, priorizou-se que a formação fosse transversal ao longo de todo o desenvolvimento da investigação, a partir de conteúdos de metodologia científica de caráter qualitativo e organização de arranjos e dispositivos institucionais para a APS, segundo o referencial Paideia.

A construção coletiva de todas as fases do projeto imprimiu caráter singular ao estudo, haja vista que os pesquisadores de campo foram incorporados ao processo de construção metodológica, preparação para entrada no campo, participaram das análises das entrevistas, da elaboração das narrativas, análise, interpretação e finalização, bem como da divulgação científica. Esse modo de fazer pesquisa, baseado numa práxis em que o processo de execução segue de maneira concomitante à reflexão e à construção coletiva, desloca o lugar, muitas vezes passivo, de posições definidas dentro do estudo, tais como pesquisadores que vão a campo somente para a coleta de dados, outros que respondem pelas primeiras análises dos resultados, a coordenação que faz as sínteses e a consideração, ocasionando a fragmentação de toda a prática de investigativa. Pode-se afirmar que esses papéis foram intercambiáveis, e as diversas fases da pesquisa foram construídas e vivenciadas coletivamente.

Dessa forma, a cogestão desse coletivo nas distintas etapas decisórias e de produção de conhecimento que uma pesquisa qualitativa requer possibilitou maior apropriação e uma compreensão ampliada do estudo.

Considerações finais

Espera-se que esse artigo contribua para a reflexão sobre as pesquisas qualitativas no campo da saúde. A aposta na ida a campo, na coleta de dados presenciais e na gestão compartilhada em todas as fases do estudo se caracterizaram como grandes desafios, mas que possibilitaram o contato com os fenômenos sociais em sua gênese. Tais desafios ilustraram a necessidade de se considerar o dinamismo e a especificidade das pesquisas sociais no campo da saúde, assim como descrito por Minayo33 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006., além de serem características importantes da práxis investigativa e de formação dos pesquisadores.

Apesar de terem sido selecionados pesquisadores que já eram de alguma forma atuantes na rede de saúde pública, houve intensa preocupação com a formação e o acompanhamento do grupo. Nesse sentido, o modo cogestor de realizar a pesquisa mostrou-se potente para a produção de sujeitos e coletivos comprometidos com a práxis investigativa. Essa aposta na cogestão da pesquisa entre os campos dos três municípios permitiu a troca dialógica entre coordenadores e pesquisadores e o compartilhamento regular dos resultados. Houve ainda outros espaços coletivos, a fim de ampliar a capacidade de análise e intervenção, como uma oficina de elaboração de estratégias de divulgação científica.

As reuniões do grupo de pesquisa foram importantes para qualificar e validar aquilo que foi observado e coletado, para que a observação participante, o diário de campo e as entrevistas em profundidade não fossem apenas fontes de evidência empírica, avançando assim na construção teórica e na interpretação do campo social. Na mesma direção, o material denominado como guia-mapa mostrou-se uma alternativa complementar para a sistematização e apropriação do desenho do estudo por parte dos pesquisadores, dada sua capacidade de sistematizar e integrar objetivos, referenciais metodológicos e teóricos de modo dialógico entre o pesquisador e o sujeito pesquisado.

Numa perspectiva cogestora é possível reconhecer os sujeitos entrevistados como participantes e atores da práxis investigativa, tendo em vista a adesão positiva ao referencial metodológico proposto e o valor de uso que cada encontro produziu, apesar do contexto sensível da pandemia. As narrativas se apresentaram como objeto central de análise e interpretação, e nesse sentido os participantes do estudo compõem com os pesquisadores sujeitos ativos do processo de investigação.

Como limitação do estudo, destaca-se a ausência da fase de intervenção nas UBS, conforme inicialmente previsto. Parte dessa limitação ocorreu devido ao contexto sócio sanitário, a partir da rápida mudança dos protocolos e das recomendações de condutas no interior das unidades, que dificultaram o planejamento das intervenções junto aos gestores das UBS. Durante esse período, além da diminuição dos espaços de cogestão entre a equipe, houve mudanças no processo de trabalho, que, segundo os próprios entrevistados, sobrecarregou a equipe e impossibilitou o planejamento de outras ações. Em meio a esse cenário, os pesquisadores avaliaram que não seria viável propor intervenções, visto que demandariam recursos não disponíveis naquele momento.

Por fim, a forma como a metodologia foi proposta possibilitou a ampliação da capacidade reflexiva e de compreensão sobre a realidade, contribuindo para a formação de pesquisadores como sujeitos ativos e críticos no processo de coleta, análise e discussão dos dados, incentivando a atuação sensível e atenta ao mesmo tempo que buscou identificar as particularidades de cada contexto.

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  • Financiamento

    Open Society Foundations.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2023
  • Aceito
    30 Jan 2024
  • Publicado
    01 Fev 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br