Ciência, saúde e ditadura militar no Brasil: o Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE) do CNPq (1973-1987)

Science, health and the military dictatorship in Brazil: the Integrated Endemic Disease Program (PIDE) of CNPq (1973-1987)

Simone Petraglia Kropf Nara Azevedo Sobre os autores

Resumo

Este artigo analisa o Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE), criado em 1973 no Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), para financiar pesquisas sobre doenças consideradas estratégicas aos planos de desenvolvimento econômico do regime militar (1964-1985). O PIDE é reconhecido como marco na história da parasitologia brasileira. Sua formulação ocorreu em um período de violenta repressão da ditadura ao campo acadêmico e, ao mesmo tempo, de significativos investimentos governamentais em ciência e tecnologia. O artigo examina as circunstâncias de sua criação e implementação e analisa os sentidos que assumiu para os planejadores da área de C&T e para os cientistas que o coordenaram. Argumenta-se que o PIDE foi um exemplo de como a comunidade científica soube utilizar os recursos financeiros e institucionais da política científica e tecnológica da década de 1970 para fazer avançar a tradição de pesquisa em doenças parasitárias e inovar sua agenda. Pretende-se contribuir para a historiografia que vem refletindo, a partir de casos históricos específicos, sobre o caráter paradoxal de um regime que, em seu projeto de modernização autoritária, simultaneamente perseguiu cientistas e apoiou a ciência.

Key words:
PIDE; CNPq; Endemic parasitic diseases; Military dictatorship; Science

Abstract

This article analyzes the Integrated Endemic Disease Program (PIDE), which was established in 1973 by the National Council for Scientific and Technological Development CNPq, financed by the Brazilian Funding Authority for Studies and Projects FINEP. The program was established to finance research on diseases considered strategic to the economic development plans of the military regime (1964-1985). Acknowledged to be a landmark program in the history of Brazilian parasitology, PIDE was set up during a period when the dictatorship was both violently repressing scholars and investing heavily in science and technology (S&T). The article examines the context in which the program was implemented and analyzes what it signified for planners in the S&T field and for the scientists who coordinated it. The contention is that PIDE was an example of how the scientific community managed to use financial and institutional resources available under the S&T policy in the 1970s to advance research on parasitic diseases and update its agenda. This analysis contributes to recent historiography that, based on specific historical cases, reflects on the paradoxical nature of a regime that, in its authoritarian modernization project, simultaneously persecuted scientists and supported science.

Key words:
PIDE; CNPq; Endemic parasitic diseases; Military dictatorship; Science

Introdução

Em 1972, o general Emílio Garrastazu Médici inaugurou a obra que simbolizava o projeto de “Brasil grande” da ditadura civil-militar (1964-1985). Inacabada, a rodovia Transamazônica rasgava florestas para promover a integração nacional, uma das principais diretrizes do I Plano Nacional de Desenvolvimento (1972-1974). Naquele ano, um grupo de cientistas foi convidado a se reunir, na Academia Brasileira de Ciências (ABC), com representantes do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), para discutir o apoio à pesquisa sobre as endemias que prejudicavam os projetos de desenvolvimento do regime militar. Dali sairiam as primeiras ideias para um programa que, instituído em 1973, se tornaria um divisor de águas na pesquisa sobre as doenças parasitárias endêmicas no Brasil e um marco do planejamento para a área de ciência e tecnologia em saúde.

A historiografia sobre a ditadura militar vem se adensando nas últimas décadas. Dentre as muitas temáticas abordadas, a relação entre o regime e a comunidade acadêmica tem sido objeto de muitos debates, especialmente a partir do trabalho de Rodrigo Patto Sá Motta11 Motta RPS. As universidades e o regime militar. Cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar; 2014.. Focalizando as universidades com base em extenso e diversificado conjunto de fontes documentais, o autor analisou as ambiguidades e o caráter paradoxal de um regime que, em seu projeto de modernização autoritária, impôs dura repressão ao campo intelectual e, ao mesmo tempo, implementou políticas que fortaleceram o ensino superior e a pesquisa científica. Ressaltando a complexidade desse processo histórico, Motta propôs o conceito de acomodação para caracterizar atitudes, comportamentos e práticas que fugiram à tradicional díade “resistência” versus “adesão”, entendidas estas como posicionamentos publicamente explicitados de confronto ou colaboração com o regime.

Os historiadores das ciências, nos últimos anos, têm examinado a relação entre a atividade científica e a ditadura militar em campos do conhecimento específicos, como a física e as ciências biomédicas, vertente de pesquisa que merece ser expandida22 Santos DGE. Massacre de Manguinhos: a ciência brasileira e o regime militar (1964-1970). São Paulo: Hucitec; 2020.

3 Freire-Junior O. Sobre a relação entre regimes políticos e desenvolvimento científico: apontamentos para um estudo sobre a história da C&T durante o regime militar brasileiro. Fênix R Hist EstCult 2007; 4(3):1-10.

4 Hochman G. Vigiar e, depois de 1964, punir: sobre Samuel Pessoa e o Departamento Vermelho da USP. Cien Cult 2014; 66(4):26-31.

5 Figueiroa SFM, Freire-Junior O, Videira AP. Ciência, desenvolvimento, democracia e liberdade: estudos em história da ciência no Brasil na segunda metade do século XX. R Bras Hist Ci 2023; 16(2):399-401.
-66 Tolmasquim AT. O Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas durante a ditadura civil-militar: resistências e acomodações. Rev Bras Ens Fis 2024; 46:e20230285.. Com a perspectiva de contribuir para essa historiografia, o presente artigo analisa o Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE), criado pelo CNPq em 1973.

No momento de formulação do PIDE, a repressão e os expurgos promovidos pela ditadura tinham atingido importantes instituições de ensino e pesquisa no campo biomédico. Já em 1964, o Departamento de Parasitologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que reunia importante grupo de pesquisadores sob a liderança do médico comunista Samuel Pessoa, passou a ser alvo de perseguições e demissões44 Hochman G. Vigiar e, depois de 1964, punir: sobre Samuel Pessoa e o Departamento Vermelho da USP. Cien Cult 2014; 66(4):26-31.. Em 1970, dez pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz tiveram seus direitos políticos cassados e foram compulsoriamente aposentados pelo Ato Institucional nº 5, episódio que ficou conhecido como “Massacre de Manguinhos”. Alguns deles foram obrigados a deixar o país22 Santos DGE. Massacre de Manguinhos: a ciência brasileira e o regime militar (1964-1970). São Paulo: Hucitec; 2020.. Ao mesmo tempo, o início da década de 1970 foi o momento de estruturação de um sistema e uma política nacional de ciência e tecnologia que, aprofundando um processo em curso desde o pós-guerra (expresso, por exemplo, na criação do CNPq em 1951), trariam significativos investimentos a essas áreas, consideradas estratégicas ao projeto político e econômico dos militares.

Nosso objetivo é examinar como a formulação e a trajetória do PIDE se deram em consonância com as diretrizes dessa política de C&T. Argumentamos que se os interesses do regime na ciência e na tecnologia em saúde proporcionaram expressivos recursos financeiros e institucionais para a pesquisa sobre doenças parasitárias, a comunidade científica soube utilizar tais recursos para viabilizar suas demandas e atividades profissionais e avançar a agenda de pesquisa da área. Nesse sentido, o Programa pode ser visto como exemplo da natureza paradoxal do regime e dos “jogos de acomodação” que, como indica Motta, marcaram a sua relação com a comunidade acadêmica.

É importante deixar claro que tal perspectiva não significa, em absoluto, “relativizar” a natureza e os efeitos terríveis do regime militar instaurado em 1964. Em diálogo com a produção historiográfica na área, a análise das dinâmicas e interesses que presidiram o PIDE busca justamente explicitar a complexidade da relação entre ciência e política naquela conjuntura dramática da história brasileira.

Planejamento para a ciência, a tecnologia e a saúde na ditadura

As estratégias de desenvolvimento do regime militar foram desenhadas em planos elaborados pelo Ministério do Planejamento. Um marco nesse sentido foi o Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED), de 1967, que previa a aceleração do crescimento para um período de três anos. As áreas consideradas prioritárias seriam atendidas pelo investimento público em grandes projetos de infraestrutura econômica (siderurgia, petroquímica, geração de energia, construção naval, comunicações) e de infraestrutura social (educação, saúde, saneamento, habitação), visando à “elevação da produtividade do fator humano e como condição de progresso social”77 Brasil. Ministério do Planejamento e Coordenação Geral. Diretrizes de governo. Planejamento Estratégico de Desenvolvimento. Brasília: Ministério do Planejamento e Coordenação Geral; 1967. (p.55). Na política de saúde, as prioridades incluíam as doenças infecciosas e parasitárias, visando à ampliação territorial das campanhas sanitárias do Ministério da Saúde (MS), tidas como estratégicas para os interesses econômicos especialmente nas frentes de expansão e modernização agrícolas e de integração nacional.

O PED tratou a ciência e a tecnologia como instrumentos-chave de aceleração do desenvolvimento econômico e social. Entre outros objetivos, a política científica deveria apoiar pesquisas voltadas a capacitar o país para a adaptação e a produção de tecnologia, de modo a reduzir a dependência externa. A ação governamental deveria ser coordenada por meio de um plano básico de pesquisa científica e tecnológica que reunisse programas e projetos prioritários a serem financiados, além de contemplar o apoio às instituições nacionais de pesquisa e o incentivo à formação de pesquisadores. Para tanto, era necessário o fortalecimento dos mecanismos financeiros junto ao CNPq e ao Fundo de Desenvolvimento Técnico-Científico (FUNTEC), bem como a criação de um fundo específico para dar sustentação à política estatal para a área88 Guimarães E, Ford E. Ciência e tecnologia nos Planos de Desenvolvimento: 1956-1973. Pesq Plan Econ 1975; 5(2):385-432. (p.410-411).

As principais orientações do PED seriam adotadas pelos planos nacionais de desenvolvimento subsequentes, aproveitando o crescimento alcançado no “milagre econômico” (1969-1973). O I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND), proposto para o período de 1972 a 1974, elaborou uma política de C&T cujas metas e ações programadas foram sistematizadas no I Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (I PBDCT, 1973-1974). Medidas complementares tomadas pelo Ministério do Planejamento contribuíram para dotar a política de um aparato institucional centralizado e integrador das ações88 Guimarães E, Ford E. Ciência e tecnologia nos Planos de Desenvolvimento: 1956-1973. Pesq Plan Econ 1975; 5(2):385-432..

Ação decisiva nesse sentido foi a implementação do Sistema Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (SNDCT), por meio do Decreto nº 70.553, de 17/05/1972. As ações e programas do SNDCT seriam financiadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Instituído em 1969 e administrado a partir de 1971 pela então criada Finep, o fundo foi definido como principal instrumento de fomento à atividade científica. Seu conselho diretor era presidido pelo Ministro do Planejamento e integrado pelos presidentes do CNPq, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e por representantes de vários ministérios e entidades públicas ou privadas vinculadas ao setor científico e tecnológico88 Guimarães E, Ford E. Ciência e tecnologia nos Planos de Desenvolvimento: 1956-1973. Pesq Plan Econ 1975; 5(2):385-432.. Outra medida importante foi a reformulação do CNPq. Em 1972, a agência foi designada “órgão central” do SNDCT. Em 1974, ano em que assumiu a denominação de Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (mantendo a sigla), seu papel de coordenação foi ampliado. Vinculado diretamente à então criada Secretaria de Planejamento da Presidência da República/SEPLAN, o CNPq assumiu papel-chave na formulação e implementação da política de C&T, abrangendo o acompanhamento e a execução financeira e técnico-científica das ações definidas no PBDCT99 Forjaz MCS. Cientistas e militares no desenvolvimento do CNPq (1950-1985). BIB 1989; 28:71-99..

A formulação do PIDE em 1972 e sua implementação a partir de 1973 estiveram diretamente referidas às diretrizes traçadas no I PBDCT (1973-1974)1010 Brasil. Presidência da República. I PBDCT. Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 1973/1974. Brasília: IBGE; 1973.. Os projetos na área de saúde, alocados nos programas setoriais prioritários relativos ao setor de “tecnologia aplicada ao desenvolvimento social” (p.106), estavam referidos às metas globais de “aceleração do crescimento industrial e agrícola” do país e da “batalha da integração nacional” (p.6), com foco no Nordeste e na Amazônia, previstas desde o PED. A expectativa de articulação entre investimentos em pesquisa e fortalecimento da capacidade de ação do Ministério da Saúde estava expressa, por exemplo, no “programa de modernização, reaparelhamento e ampliação dos institutos e laboratórios”, no âmbito do qual previa-se a implantação de um “sistema nacional de vigilância epidemiológica”1010 Brasil. Presidência da República. I PBDCT. Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 1973/1974. Brasília: IBGE; 1973. (p.106,108). A ideia seria centralizar, em nível ministerial, “as atividades de diagnóstico, estabelecimento de padrões de referência e de normas técnicas, assistência para a difusão de tecnologia avançada e demais atividades para atuar como suporte às investigações epidemiológicas e às campanhas profiláticas”1010 Brasil. Presidência da República. I PBDCT. Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 1973/1974. Brasília: IBGE; 1973. (p.108).

O “programa especial de combate à esquistossomose” e o “programa especial de combate à doença de Chagas”, que comporiam o PIDE, foram mencionados como os dois projetos da área de saúde sob a responsabilidade do CNPq1010 Brasil. Presidência da República. I PBDCT. Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 1973/1974. Brasília: IBGE; 1973. (p.107). Ressaltando a necessidade de estudos nas várias regiões do país com vistas a dimensionar a importância socioeconômica das endemias e “fundamentar medidas de caráter prático” visando ao seu controle pelo MS, o I PBDCT registrou que o CNPq, o Ministério do Planejamento, o BNDE e um grupo de pesquisadores já haviam proposto “um plano coordenado de pesquisas”, que envolveria várias instituições sob a coordenação geral do Conselho1010 Brasil. Presidência da República. I PBDCT. Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 1973/1974. Brasília: IBGE; 1973. (p.112).

Como veremos a seguir, formulado em conformidade com as diretrizes da política científica e tecnológica do início da década de 1970, o PIDE constitui um caso a lançar luz sobre a dinâmica das relações - de convergência, mas também de tensão - entre pesquisadores, instituições e setores da burocracia das agências estatais de C&T naquela conjuntura histórica específica do regime militar.

Cientistas e planejadores à mesa: desenhando um programa de pesquisa sobre as doenças endêmicas no Brasil

O estudo das doenças parasitárias endêmicas e o debate sobre sua importância como questão nacional estão na origem da institucionalização das ciências biomédicas e da saúde pública no Brasil, cujo marco foi a criação dos institutos Oswaldo Cruz e Butantan em 19001111 Kropf SP. Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação (1909-1962). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.. Ao longo de distintas conjunturas sociais e políticas, essa agenda se expandiu mediante a formação de núcleos de pesquisa nas várias regiões do país e na criação de estruturas e políticas estatais específicas. No contexto dos debates sobre a relação entre saúde e desenvolvimento no pós-Segunda Guerra Mundial, o Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu), criado em 1956 no âmbito do Departamento Nacional de Endemias Rurais do Ministério da Saúde, impulsionou a pesquisa na área com vistas a subsidiar ações e programas de prevenção e controle em âmbito nacional1111 Kropf SP. Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação (1909-1962). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.. A política de ciência e tecnologia formulada no início da década de 1970, associada, como vimos, aos planos nacionais de desenvolvimento, trouxe condições financeiras e operacionais para conferir novo ímpeto a esse processo.

A primeira reunião para discutir uma ação dirigida de apoio à pesquisa em doenças endêmicas aconteceu em 6 e 7 de junho de 1972, na sede da Academia Brasileira de Ciências (ABC), no Rio de Janeiro. Estavam presentes os pesquisadores Aluízio Prata (Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia), José Rodrigues Coura e Antônio de Oliveira Lima (ambos, na época, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro), Naftale Katz (Centro de Pesquisas René Rachou/Fundação Oswaldo Cruz, Belo Horizonte), Benjamin Gilbert (Instituto de Pesquisas da Marinha, Rio de Janeiro) e Fernando Dias de Ávila Pires (Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro). Participaram também Manoel da Frota Moreira (diretor do Departamento Técnico-Científico do CNPq), Firmino Torres de Castro (então diretor do Setor de Biologia e Ciências Médicas do CNPq), José Walter Bautista Vidal (Secretário de Ciência e Tecnologia da Bahia, representando a Finep), Amílcar Figueira Ferrari e Hélio França (representando o FUNTEC/BNDE)1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo].,1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]..

A reunião resultou no documento “Esquistossomose: base para um plano nacional de pesquisas”. Em reunião similar, em dezembro, elaborou-se o “Plano de pesquisas em doença de Chagas”. Em abril de 1973, o então presidente do CNPq, Arthur Mascarenhas Façanha (ex-diretor do Instituto Militar de Engenharia e, vale lembrar, general de Brigada do Exército), enviou os dois documentos ao Ministério do Planejamento. A aprovação do financiamento foi ágil. Em junho, a Finep repassou ao CNPq recursos do FNDCT para dar início ao “Plano Integrado de Pesquisas em Esquistossomose e Doença de Chagas”, que, em 1975, incluiria pesquisas sobre leishmaniose e malária e passaria a denominar-se Programa Integrado de Doenças Endêmicas1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo].,1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]..

A primeira “comissão de coordenação” do Plano, designada pelo presidente do CNPq em 1973, foi composta por vários dos que haviam participado das reuniões na ABC: Aluízio Prata, Antonio de Oliveira Lima, Benjamin Gilbert, José Rodrigues Coura, Firmino Torres de Castro e Manoel da Frota Moreira1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo].. A eles se juntariam, em 1975, Guilherme Rodrigues da Silva (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), Marcelo de Vasconcellos Coelho (Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais, reitor da universidade na época), Zigman Brener (Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais e Centro de Pesquisas René Rachou/Fiocruz) e Wladimir Lobato Paraense (na época diretor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília)1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo].. O Grupo Coordenador, como ficaria conhecido, permaneceria o mesmo até 1985, à exceção de Paraense, substituído em 1980 por Amaury Domingues Coutinho (Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/Fiocruz, Recife). A gestão administrativa ficou a cargo do CNPq1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo].,1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]..

A iniciativa da reunião de 1972 partiu do físico e engenheiro baiano, professor da UFBA, José Walter Bautista Vidal (1934-2013). Engajado no fomento à pesquisa científica e tecnológica sobre temas de interesse ao desenvolvimento do Nordeste, Vidal tinha sido nomeado, em 1970, para a Secretaria de Ciência e Tecnologia da Bahia (a primeira do país), assumindo, a partir de então, posições-chave na política nacional de C&T do país, como assessor do Ministério do Planejamento, da Finep e do BNDE. Em depoimento, ele contou que havia começado a pensar em um programa sobre doenças endêmicas por volta de 1969, em conversas com pesquisadores da área, sobretudo do Núcleo de Pesquisas da Bahia (criado em 1957 em Salvador por meio de convênio entre o Instituto Oswaldo Cruz, o INERu e a Fundação Gonçalo Moniz, e que em 1970 seria incorporado à Fiocruz, como Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz)1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo].. Em 1969, ocorrera em Salvador o II Simpósio sobre Esquistossomose, promovido pela Diretoria de Saúde Pública da Marinha e pela Clínica de Doenças Tropicais da Faculdade de Medicina da UFBA, da qual Aluízio Prata, diretor da Fundação Gonçalo Moniz, era catedrático1414 Prata AR. Aluízio Rosa Prata. Entrevista de história oral concedida ao projeto História da pesquisa em Doença de Chagas, 2000. Rio de Janeiro: Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz; 2021.. Aquela era uma doença prioritária na agenda do INERu, que havia criado, em 1964, o Projeto Piloto de Combate à Esquistossomose (PPCE), para apoiar grupos de pesquisa em vários estados com vistas a subsidiar um programa de controle em larga escala1515 Chaves BS. Um INERu cada vez mais IMERu: parasitologia, esquistossomose e instituições nas dinâmicas da política autoritária da década de 1960. Contraponto R Dep Hist Prog Pos-Grad Hist Br UFPI 2021; 10(1):477-499..

Vidal procurou José Pelúcio Ferreira, presidente da Finep, para convencê-lo da importância de um programa de pesquisas de longo prazo e abrangência nacional sobre as endemias1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]. (p.24). Como lembra Manoel da Frota Moreira, o fomento a estudos voltados à solução de problemas nacionais era bastante discutido no CNPq na época. A ideia de “planos integrados” inspirava-se, segundo ele, naquilo que nos Estados Unidos era chamado de mission-oriented research1616 Moreira MF. Manuel da Frota Moreira. Depoimento, 1977. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV; 2010.. Ao recordar-se da reunião na ABC, Vidal contou que os pesquisadores reagiram inicialmente “com desconfiança” e a reunião chegou a ficar “até um pouco tensa”. Em sua interpretação, “as pessoas não estavam acostumadas a trabalhar em conjunto”, de “forma integrada”1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]. (p.25). Entretanto, é plausível atribuir a suposta desconfiança, em alguma medida, ao clima de tensão no campo acadêmico decorrente da violenta repressão do governo Médici. A articulação entre cientistas e planejadores exigiu, segundo Vidal, “todo um processo de convencimento”1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]. (p.25). A despeito de eventuais reservas, Aluízio Prata, que assumiria a liderança do Grupo Coordenador do PIDE, registrou o entusiasmo dos planejadores: “Pelúcio se interessou pelo programa [...]. ‘Um programa desses pra dar certo tem que ... durante uns 10 anos!’ [...] Me agradou ver o Pelúcio falar isso”1414 Prata AR. Aluízio Rosa Prata. Entrevista de história oral concedida ao projeto História da pesquisa em Doença de Chagas, 2000. Rio de Janeiro: Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz; 2021. (p.192). Segundo Prata, a escolha do CNPq para abrigar o Programa se deu pela “experiência muito boa” da comunidade científica com a agência1414 Prata AR. Aluízio Rosa Prata. Entrevista de história oral concedida ao projeto História da pesquisa em Doença de Chagas, 2000. Rio de Janeiro: Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz; 2021. (p.187).

O mineiro Aluízio Rosa Prata (1920-2002) foi um nome decisivo na história do PIDE. Catedrático de Clínica de Doenças Tropicais da UFBA e diretor da Fundação Gonçalo Moniz entre 1961 e 1972, ano em que se transferiu para a Universidade de Brasília, ele tinha consolidada carreira no campo da parasitologia e da medicina tropical, com pesquisas sobre clínica e terapêutica da doença de Chagas e da esquistossomose. Além do reconhecimento acadêmico nacional e internacional, Prata dispunha de outra credencial estratégica naquele momento: era capitão de corveta da Marinha, atuando por muitos anos no Hospital Naval de Salvador, onde havia criado um centro de estudos. Segundo relatou em depoimento, a Marinha “se orgulhava” dele, como exemplo de militar que tinha alcançado prestígio acadêmico1414 Prata AR. Aluízio Rosa Prata. Entrevista de história oral concedida ao projeto História da pesquisa em Doença de Chagas, 2000. Rio de Janeiro: Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz; 2021. (p.55).

Como lembram vários pesquisadores que participaram do PIDE, o prestígio de Prata junto aos militares era um elemento importante naquele contexto de repressão aos meios acadêmicos. Outros membros do Grupo Coordenador também tinham, em distintas situações, alguma relação com o mundo militar. Benjamin Gilbert era pesquisador do Instituto de Pesquisas da Marinha. Marcello de Vasconcellos Coelho, então reitor da UFMG, era concunhado do General Antonio Carlos da Silva Muricy, chefe do Estado-Maior do Exército, sendo conhecido por seu empenho em preservar a universidade das pressões e perseguições da ditadura. É plausível imaginar que, além do amplo reconhecimento acadêmico que lhes distinguia como pesquisadores na área, essas conexões tenham contribuído, em alguma medida, para a autonomia com que o Grupo Coordenador conduziria o Programa, com liberdade, inclusive, para garantir a participação de pesquisadores com conhecida filiação de esquerda. Zigman Brener, por exemplo, membro do Grupo Coordenador e responsável por importantes projetos financiados pelo PIDE, era militante do Partido Comunista Brasileiro e monitorado pelos órgãos de informação da ditadura1717 Klein L, Azevedo N, Kropf SP, Hamilton W. Inovando a tradição: Zigman Brener e a parasitologia no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003..

Pesquisa básica e aplicada para o combate às endemias

Em setembro de 1973, cerca de três meses após a edição do I PBDCT, foram aprovados os primeiros projetos para início do PIDE, com vigência para o biênio 1973-1975. No auge do “milagre econômico”, eram elevadas as expectativas e os recursos destinados pelo regime militar à comunidade de pesquisa em doenças endêmicas. Nesse cenário, os planejadores da política de C&T concederam ampla autonomia aos pesquisadores que assumiram a coordenação científica do Programa. Caberiam a eles a seleção e aprovação dos projetos, submetidos pelos pesquisadores individualmente por demanda livre, a alocação dos recursos do FNDCT repassados ao CNPq pela Finep, a realização de visitas periódicas para acompanhamento dos projetos, a proposição de medidas para sua execução, a consolidação dos relatórios para a prestação de contas e a orientação técnica nas negociações do CNPq junto à Finep visando à renovação do financiamento a cada biênio. Zigman Brener sintetizou “a filosofia básica” do processo: “qualquer projeto que tivesse mérito científico, quer na área básica quer na aplicada, e que contribuísse para aumentar conhecimentos científicos, era aceito”1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]. (p.28).

Os planejadores, por sua vez, ainda que reconhecessem a importância das pesquisas de natureza básica, esperavam conhecimentos que pudessem se traduzir em medidas práticas para viabilizar o controle das endemias, em conexão com a agenda do Ministério da Saúde e de outros ministérios, como os do Interior e da Educação e os “Ministérios Militares”. Ao final de cada biênio, ao reivindicar a continuidade do financiamento, os cientistas buscavam convencê-los de que estavam cumprindo tal objetivo.

Nos relatórios de acompanhamento e de avaliação apresentados pelo CNPq à Finep, a relevância social e econômica das ações de vigilância, controle, prevenção e tratamento das endemias era o argumento central a justificar a importância do Programa. Muitas vezes ela era reiterada mediante situações concretas alusivas às prioridades estabelecidas pelos planos de desenvolvimento. Nos relatórios de 19791818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo].,1919 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 2º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, cx. 7 [datilo]., por exemplo, os pesquisadores mencionaram o “impacto assustador” da expansão da doença de Chagas em municípios do vale do médio São Francisco e dos seus afluentes em virtude da introdução do Triatoma infestans, inclusive em “agrovilas recém-construídas pela Codevasf [Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco]”, apesar da “alta qualidade das residências”1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo]. (p.7). Era um exemplo da disseminação da doença na esteira das migrações que levavam pessoas provenientes de áreas endêmicas a se deslocar para áreas indenes.

Eles comentaram também a “invasão” por caramujos, hospedeiros intermediários do parasito causador da esquistossomose, no sistema de irrigação da empresa e em outras áreas de irrigação, podendo se “estender às grandes represas”1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo]. (p.8). A eles preocupava ainda a dificuldade de combater os caramujos “em áreas extensas semi-inundadas tais como canaviais, arrozais e plantações de banana e mamão em charcos drenados frequentemente”1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo]. (p.3). Enfatizavam, desse modo, os prejuízos trazidos pelas endemias aos trabalhadores agrícolas. No caso da leishmaniose, de grande prevalência em áreas de penetração de matas e florestas, os cientistas alertavam para sua gravidade como obstáculo a “qualquer exploração racional dos recursos do Amazonas que envolva a conservação da floresta considerada essencial”, aos “exercícios militares” no estado, bem como ao “desenvolvimento de atividades agrícolas ou colonização ao longo das rodovias transamazônicas”1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo]. (p.9). A região amazônica, assinalavam eles, sofria igualmente os efeitos da malária1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo]..

A prioridade conferida às regiões norte e nordeste se expressava em outros programas do CNPq, como o do Trópico Úmido e o do Trópico Semi-Árido, instituídos, respectivamente, em 1972 e 1974, mediante articulação com a Sudam e a Sudene. A atuação dos cientistas nessas regiões, que remontava ao movimento sanitarista das primeiras décadas do século XX1111 Kropf SP. Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação (1909-1962). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009., tornava-se estratégica ao governo militar, inclusive em termos da chamada “doutrina de segurança nacional”. O Plano de Irrigação do Nordeste, previsto no I PND, mobilizava, com recursos do Programa de Integração Nacional (criado pelo governo Médici em 1970), diversas agências governamentais, como a Codevasf, a Sudene e o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), para financiamento a projetos voltados à modernização das técnicas de exploração agrícola e ao desenvolvimento da agroindústria. A região Norte, por sua vez, recebia vultosos investimentos no âmbito do “programa de colonização” na região da Transamazônica e de outras rodovias, bem como em projetos visando à integração nacional e à expansão da fronteira agrícola.

Entretanto, ao salientar a dimensão aplicada das pesquisas financiadas pelo PIDE, o Grupo Coordenador enfatizava a necessidade de fomento à investigação básica. Reiterava que o combate às doenças endêmicas em escala nacional, objetivo que unia planejadores e cientistas, exigia a geração de novos conhecimentos sobre os organismos que as causavam e as transmitiam1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo].,1919 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 2º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, cx. 7 [datilo]..

O PIDE foi decisivo para viabilizar e estimular pesquisas sobre as características biológicas, bioquímicas, moleculares e genéticas dos parasitos, em termos de sua estrutura, fisiologia, metabolismo e outros tantos aspectos necessários ao melhor entendimento da interação com seus hospedeiros1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo].,1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo].,1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo].,1919 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 2º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, cx. 7 [datilo].. A caracterização de diferentes cepas desses patógenos abria novas frentes de investigação, como o estudo dos distintos graus de patogenicidade, resistência a quimioterápicos, indução de imunidade e distribuição geográfica. Para isso, era necessário recorrer não apenas a novas metodologias e expertises, mas dispor de recursos financeiros e logísticos para prover a infraestrutura necessária a laboratórios que dependiam de insumos e equipamentos caros e importados, como microscópios eletrônicos. A cada biênio, a coordenação do PIDE empenhava-se em demonstrar que o investimento nessa modernização valia a pena1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo].,1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo].,1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo].,1919 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 2º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, cx. 7 [datilo]..

As pesquisas em imunologia (visando, por exemplo, à purificação de antígenos) eram importantes para a realização de amplos inquéritos de prevalência das endemias, como o que foi iniciado para a doença de Chagas em 1975, essenciais para o planejamento e a execução de campanhas de controle em nível nacional, implementadas pela Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM/MS). Tais inquéritos sorológicos exigiam, por exemplo, reagentes padronizados e métodos de execução mais rápidos, seguros e econômicos, que permitissem o diagnóstico em larga escala1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo].,1919 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 2º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, cx. 7 [datilo]..

Além de subsidiar a vigilância, o avanço nos conhecimentos sobre os parasitos era importante, salientavam os pesquisadores, para melhor compreender a patogenia das doenças em suas distintas formas clínicas. Esse era um objetivo comum aos estudos de laboratório e às pesquisas aplicadas de campo. O acesso ao financiamento continuado viabilizava a realização de estudos longitudinais, para acompanhamento da evolução das endemias em regiões específicas, permitindo caracterizá-las em termos de morbidade e mortalidade e, consequentemente, dimensionar sua importância médico-social, com vistas ao planejamento racional das medidas de controle1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo].,1919 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 2º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, cx. 7 [datilo]..

O apoio à pesquisa básica era igualmente fundamental, ressaltavam os cientistas, para a terapêutica1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo].,1919 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 2º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, cx. 7 [datilo].. Essa era uma agenda de pesquisa que vinha mobilizando a comunidade científica na área desde a década anterior e que foi tratada como prioritária pelo regime militar. Em 1971, criou-se a Central de Medicamentos (CEME), órgão da presidência da República destinado a coordenar a produção e a distribuição de medicamentos dos laboratórios farmacêuticos públicos. A articulação entre pesquisas financiadas pelo PIDE e programas da CEME era um exemplo da dimensão integrada que se pretendia conferir ao Programa, conectando-o às ações governamentais na área. Os investimentos eram voltados à busca de drogas mais eficazes e com menos efeitos colaterais, bem como ao estabelecimento de critérios de cura mais confiáveis e de esquemas terapêuticos adequados a campanhas de tratamento em massa no país. A resistência de algumas cepas aos quimioterápicos em uso, como no caso da malária, era mais um elemento a ser considerado. Pretendia-se, ainda, criar condições para a avaliação de drogas que viessem a ser apresentadas pela indústria farmacêutica.

Esses eram avanços não apenas científicos, mas econômicos1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo].,1919 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 2º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, cx. 7 [datilo].. Mais uma vez os argumentos dos cientistas convergiam com uma das principais diretrizes da política de C&T e dos planos nacionais de desenvolvimento: o fortalecimento da capacidade nacional de inovação tecnológica e a capacitação do setor industrial para a incorporação de tecnologias produzidas no exterior. Ao relatarem os resultados de pesquisas na área de bioquímica de parasitos para estabelecer alternativas terapêuticas,visando tanto à elaboração de novos compostos, quanto ao aprimoramento de produtos já comercializados, os pesquisadores ressaltavam que a superação da “dependência total de medicamentos importados” exigia recursos que iam além da ciência: “será necessária a colaboração da indústria nacional”1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo]. (p.5).

A autonomia tecnológica era central também no campo da quimioprofilaxia, tendo em vista o controle vetorial das endemias mediante aplicação de pesticidas (inseticidas, no caso da doença de Chagas, leishmanioses e malária, e moluscicidas, no caso da esquistossomose). A superação da dependência de inseticidas importados, meta dos PBDCTs, era questão recorrente nos relatórios do PIDE. Eram muitos os argumentos: a busca de produtos mais duráveis, menos tóxicos e com técnicas de aplicação mais simples; o fato de que produtos tradicionalmente usados, como o BHC e o DDT, vinham tendo sua fabricação e uso restringidos nos países industrializados, em virtude dos danos ao meio ambiente e da resistência de algumas espécies de vetores (no caso dos anofelinos); a demora na importação pelo Ministério da Saúde; e as vantagens de um produto que pudesse ser utilizado tanto para a doença de Chagas quanto para a malária, possibilitando ganhos financeiros e operacionais às campanhas da SUCAM em áreas de coexistência das endemias. No caso dos moluscicidas, o fato de que certos produtos usados até então matavam os peixes aumentava a resistência da população ao seu uso, prejudicando os investimentos nos açudes previstos pela política de desenvolvimento agrícola especialmente em regiões do semiárido1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo].,1919 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 2º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, cx. 7 [datilo]..

A perspectiva de novos processos e produtos para o combate aos vetores exigia, além de pesquisas químicas, estudos sobre a história natural, a fisiologia, a genética e a ecologia das diferentes espécies, de modo a compreender sua interação com os ambientes silvestres e domésticos e as dinâmicas de transmissão em suas especificidades regionais. Esse era um aspecto que ganhava importância sobretudo considerando-se os processos migratórios, em consonância com a expansão das fronteiras agrícolas, e o desequilíbrio ambiental causado por essa expansão. Essa situação trazia, por exemplo, o risco de domiciliação de triatomíneos até então restritos ao ambiente silvestre. Compreender tais processos tornava-se decisivo para subsidiar o grande inquérito entomológico nacional, realizado em associação ao Inquérito Nacional de Prevalência da Doença de Chagas, conduzido pela SUCAM1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo].,1919 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 2º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, cx. 7 [datilo]..

Conhecimentos básicos sobre os parasitos eram necessários ainda para outro objetivo que desafiava a comunidade científica nacional e internacional: o desenvolvimento de vacinas contra doenças parasitárias. A imunização era tema de destaque na agenda do governo, ainda que com foco em vacinas contra doenças bacterianas e virais. No II PBDCT (1976-1979)2020 Brasil. Presidência da República. II PBDCT. Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Brasília: IBGE; 1976. havia um programa de “desenvolvimento de tecnologia e controle de imunizantes”, a cargo da Fiocruz (p.126). Vale lembrar que o Programa Nacional de Imunizações havia sido criado em 1973. Em 1979, os coordenadores do PIDE enfatizaram que somente através do conhecimento do mecanismo de defesa imunológica, a nível molecular, do Trypanosoma cruzi e do Schistosoma mansoni seria possível enfrentar esse desafio, que já mobilizava várias instituições do país: “A descontinuação dos auxílios aos projetos básicos nas áreas de bioquímica, ultraestrutura, cultivo e modificação do parasito e do mecanismo de defesa imunológica resultaria no abandono do único caminho provável de se obter vacinas contra estas doenças”1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo]. (p.10-11). Também nessa frente de pesquisa, o recurso a uma infraestrutura moderna de laboratórios era imprescindível. O PIDE vinha, justamente, proporcionar tais condições.

Se o valor das pesquisas fundamentais estava associado, ainda que não necessariamente no curto prazo, a desafios concretos no enfrentamento das endemias, a produção de conhecimentos básicos, diziam os cientistas, era potente e inovadora igualmente em terrenos que iam além da saúde em seu sentido estrito1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo].,1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo].,1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo].,1919 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 2º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, cx. 7 [datilo].. O estudo da morfologia e da estrutura genética e molecular dos tripanossomatídeos, especialmente do T. cruzi, passou a atrair jovens pesquisadores que viram nesses parasitos um excelente modelo experimental para a elucidação de fenômenos biológicos importantes, como os princípios e mecanismos da imunidade celular e humoral, a biologia das células eucarióticas, a expressão gênica do DNA mitocondrial e os processos de diferenciação celular1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo]. (p.16).

Vale ressaltar que a imunologia e a bioquímica ganhavam impulso na época a partir das novas técnicas e abordagens da engenharia genética e biologia molecular2121 Azevedo N. A biotecnologia em saúde na Fiocruz [tese]. Rio de Janeiro: IUPERJ; 2000.. A importância da genética na época pode ser vista, por exemplo, na criação, no CNPq, de um programa semelhante ao PIDE, o Programa Integrado de Genética, em 1975. Enaltecendo os resultados nessas áreas, a coordenação científica do PIDE destacou em 1979, como fazia reiteradamente em seus relatórios, que o uso do T. cruzi como modelo “colocou amplo setor da ciência brasileira em nível internacional”1919 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 2º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, cx. 7 [datilo]. (p.1).

Essencial nesse processo era a capacidade do PIDE de proporcionar a formação de jovens pesquisadores, por meio dos programas de pós-graduação, e sua incorporação aos grupos de pesquisa já existentes. Este foi outro terreno em que os interesses da comunidade científica convergiam com as diretrizes da política de C&T do país: a articulação entre o sistema de pesquisa científica e tecnológica e o sistema nacional de pós-graduação.

No relatório de 1979, o Grupo Coordenador destacou:

[...] a injeção de recursos pelo CNPq-Finep nas universidades e institutos de pesquisa provocou a aglutinação e a arregimentação de pesquisadores do melhor gabarito de que dispõe o país para o estudo das principais doenças parasitológicas endêmicas. Assim, em todas as regiões do país podemos encontrar agora núcleos de pesquisadores estudando problemas nacionais e objetivando a solução de doenças que afetam grande parte da população das áreas suburbanas e rurais1818 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico referente ao 1º. Semestre de 1979. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE/cx. 7 [datilo]. (p.76).

Solicitando, ao final de cada biênio, a continuidade do financiamento, os cientistas apresentavam aos planejadores os resultados de um processo que se retroalimentava num círculo virtuoso. Se as expectativas quanto às aplicações práticas da pesquisa sobre as doenças endêmicas haviam potencializado o desenvolvimento da pesquisa básica, o sucesso desta, por sua vez, ampliava a própria perspectiva de aplicação, na medida que expandia o universo dos que se envolviam com os “problemas nacionais” constitutivos dessa agenda.

Cientistas e planejadores em descompasso: desafios ao PIDE na década de 1980

Em 1979, mesmo ano do relatório citado na seção anterior, o documento de avaliação do II PBDCT (1975-1978) destacou que o PIDE, ao envolver “praticamente todos os grupos ativos de pesquisa na área” e promover a integração da pesquisa com a pós-graduação, podia “sem dúvida” ser considerado “o principal programa de pesquisa desenvolvida no setor Saúde”2222 Brasil. Relatório de avaliação do II PBDCT - período 1975/1978. Volume II. Rio de Janeiro: Biblioteca do IBGE; 1979. (p.374). Entretanto, os planejadores manifestaram preocupação com a “quase exclusiva consideração dos aspectos biológicos envolvidos na questão saúde-doença”, chegando “ao nível mesmo das enzimas”. Reconheceram que eram significativos o “avanço científico” e as “potencialidades tecnológicas” trazidos pelas pesquisas, na medida que colocavam a produção científica brasileira “na mesma linha e no mesmo nível” da produção internacional. Entretanto, consideraram que tais pesquisas não cobriam “a ampla gama de problemas que cercam a questão de saúde na sociedade brasileira” (p.370).

Conforme a avaliação, tal descompasso feria a “integração programática” pressuposta na própria ideia de um sistema de C&T2020 Brasil. Presidência da República. II PBDCT. Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Brasília: IBGE; 1976. (p.123). Segundo os planejadores, a perspectiva de uma “visão abrangente” dos problemas de saúde, operacionalizada por meio da “pesquisa integrada”, era exatamente o que garantiria a existência de “instituições flexíveis”, nas quais, “mesmo garantindo-se a liberdade individual do pesquisador, se orientem todos os esforços essencialmente para o exame das moléstias que afligem a massa da população brasileira”2020 Brasil. Presidência da República. II PBDCT. Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Brasília: IBGE; 1976. (p.124).

Se os planejadores passaram a ter dúvidas quanto ao efetivo impacto do Programa, os cientistas reiteravam que estavam fazendo a sua parte e que caberia à política fazer a dela. Relatório enviado pelo CNPq à Finep em 19802323 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico final. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, caixa 4; 1980. afirmava que o PIDE era “talvez o programa mais bem-sucedido deste Conselho”, tendo gerado conhecimentos básicos e aplicados que tornavam o Brasil “praticamente independente para desenvolver um programa de controle dessas doenças em alto nível científico e tecnológico”. Sendo assim, a “bola” estava com o governo: “Resta agora uma decisão política [...] para aplicar esses conhecimentos em atividades práticas integradas para o controle das mencionadas doenças”2323 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa Integrado de Doenças Endêmicas. Relatório técnico final. Brasília: Centro de Memória/CNPq/PIDE, caixa 4; 1980. (p.1).

No início da década de 1980, a área de C&T sofreu os efeitos da crise econômica mundial provocada pelo segundo choque de preços do petróleo em 1979. Esgotava-se ali um ciclo de crescimento de quase uma década, rompendo-se a estratégia de desenvolvimento e a capacidade de investimento do Estado, principal agente desse processo. A nova fase da política de C&T brasileira seria marcada pela restrição de recursos, principalmente do FNDCT. Nesse cenário de escassez, a terceira edição do PBDCT (1980-1985) definiu um novo padrão de investimentos, com base na avaliação dos resultados alcançados até então, que, segundo os planejadores, evidenciavam uma concentração de recursos na pesquisa básica e em poucas instituições. A nova meta priorizaria a pesquisa aplicada e o desenvolvimento tecnológico, mantendo-se o apoio ao sistema de pós-graduação2424 Guimarães R. FNDCT: uma nova missão. In: Schwartzman S. Ciência e tecnologia no Brasil: política industrial, mercado de trabalho e instituições de apoio. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas; 1995. p. 257-287. (p.272).

Em tal conjuntura, houve ajustes significativos no formato e no funcionamento do PIDE. A partir de 1980, o Programa passou a estar subordinado a novas instâncias administrativas então criadas no CNPq sob a presidência de Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque (1980-1985), marcada por importantes reformulações da agência1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo].,1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo].. A mudança de maior impacto veio em 1982, quando a SEPLAN suspendeu o repasse de recursos da Finep e o PIDE passou a contar, majoritariamente, com o orçamento próprio do CNPq, negociando recursos ano a ano. Ao relatar a história do PIDE, Guilherme Rodrigues da Silva lembrou-se do “sofrimento” que o Grupo Coordenador passou a viver na véspera de cada reunião sobre questões orçamentárias: “Nós tentávamos convencê-los de que já havia conhecimento para passar à ação, e procurávamos demonstrar que o problema era uma questão de decisão política, enquanto a produção de conhecimento era um processo inacabado”1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]. (p.59). Lobato Paraense complementou: “Mas isso para um economista entender era um pouco difícil. Apesar de todo apoio, era o resultado prático que interessava”1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]. (p.58-59).

O novo cenário, consequentemente, trouxe desafios à autonomia que havia marcado a coordenação científica do PIDE. Até então, o CNPq se limitava à gestão administrativa necessária para a liberação da verba do FNDCT (em conformidade com os pareceres do Grupo Coordenador), à cobrança dos relatórios e das prestações de contas individuais e à organização e encaminhamento dessa documentação à Finep. Nas palavras de membros do Grupo Coordenador, “a participação da burocracia do CNPq era mínima. […] É possível afirmar-se que, rigorosamente, o PIDE era gerido pela própria comunidade científica”1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo]. (p.18).

Com as mudanças no cenário econômico e na dinâmica de funcionamento das agências de fomento, esse modelo de gestão passou a ser alvo de questionamentos. Em 1984, o próprio Grupo Coordenador encaminhou ao presidente do CNPq sugestões de modificações no PIDE, de modo a garantir sua continuidade e “atender alguns dos reclamos ditados pela conjuntura”1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo]. (p.20). Lynaldo Albuquerque solicitou então a Frederico Simões Barbosa, membro do Conselho Científico e Tecnológico, um parecer sobre o PIDE. Este e outros programas especiais do CNPq estavam sendo avaliados com vistas à sua adaptação às novas dinâmicas e formatos da área de fomento da agência1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo].,2525 Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE). Parecer do Professor Frederico Simões Barbosa ao CCTC/CNPq. Reunião do dia 14/12/1984. [Acervo Finep]..

Barbosa reconheceu “o papel do PIDE na produtividade científica brasileira”2525 Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE). Parecer do Professor Frederico Simões Barbosa ao CCTC/CNPq. Reunião do dia 14/12/1984. [Acervo Finep]. (p.4) e na pós-graduação, promovendo a “consolidação científica de grupos reconhecidos”. Entretanto, criticou a “ausência de representatividade institucional equilibrada”, o que em sua visão teria levado à concentração de recursos em algumas instituições. Além disso, a “ausência de divulgação ampla”, segundo ele, teria dificultado o “desenvolvimento de grupos emergentes, principalmente nas regiões menos desenvolvidas do país”2525 Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE). Parecer do Professor Frederico Simões Barbosa ao CCTC/CNPq. Reunião do dia 14/12/1984. [Acervo Finep].. Para Barbosa, a ênfase no “desenvolvimento científico per se” e a não renovação de sua coordenação científica dificultavam a adaptação do Programa às transformações da ciência e da tecnologia “no quadro de uma sociedade aberta, pluralista e democrática”2525 Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE). Parecer do Professor Frederico Simões Barbosa ao CCTC/CNPq. Reunião do dia 14/12/1984. [Acervo Finep]. (p.6). A continuidade do PIDE, concluiu, dependeria de sua capacidade de renovação, que deveria ser feita mediante a sistemática de avaliação que regia os Comitês Assessores do CNPq2525 Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE). Parecer do Professor Frederico Simões Barbosa ao CCTC/CNPq. Reunião do dia 14/12/1984. [Acervo Finep]..

Em 1985, com base nas recomendações do parecer (muitas das quais em conformidade com sugestões do próprio Grupo Coordenador), foram implementadas mudanças substantivas no PIDE. A coordenação científica foi integralmente substituída, em sua composição e atribuições. Estas ficaram divididas entre um Comitê Assessor de Doenças Endêmicas, composto por coordenadores das áreas temáticas de atuação do PIDE, com mandato de dois anos não renovável, e um Grupo de Assessoramento, formado por representantes das principais agências financiadoras (CNPq, Finep, CAPES, CEME), de associações e sociedades científicas e do próprio Comitê Assessor1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]. (p.46).

Esse novo formato do Programa, entretanto, não se concretizou como esperado1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]. (p.49). Com o início da Nova República, a criação do Ministério da Ciência e da Tecnologia levou a mudanças estruturais no CNPq. Encerrado o biênio 1984-1986, o PIDE passou por nova avaliação em 19871313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]., mas foi descontinuado em 1988. As pesquisas na área já vinham sendo financiadas por meio de outras ações de fomento do CNPq e de outras agências.

Conclusão

Ao longo de seis biênios (entre 1973 e 1986), o PIDE financiou 971 projetos, sendo 388 em pesquisa aplicada e 583 em pesquisa básica. O total de recursos investidos foi de U$ 18.663.448,11, sendo 51,40% destinados à pesquisa aplicada e 48,60% à pesquisa básica1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]. (p.66). As instituições com maior número de projetos apoiados foram a UnB, a UFMG, a USP, a Fiocruz e a UFRJ1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]. (p.129). Como relatou Brener, parte importante desses recursos foi usada para a montagem e/ou modernização de laboratórios, o que proporcionou um “salto qualitativo” para a pesquisa (p.96)1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo].. Do total, a maioria dos projetos (499) dizia respeito a pesquisas sobre doença de Chagas. As áreas do conhecimento com maior número de projetos financiados foram a imunologia (243), a epidemiologia (190), a parasitologia (139) e a patologia (133)1313 Mello DA. Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE): Análise do desempenho do programa. Brasília; 1987, [datilo]. (p.69). Em 1986, havia 28 cursos de pós-graduação no país (17 de doutorado) com linhas de pesquisa na área de doenças endêmicas, sendo 8 cursos na área das “ciências clínicas”, 16 na área de “ciências básicas”, e 4 em “saúde pública”1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo]. (p.10).

Num balanço sobre a experiência do PIDE feito em 1986, Aluízio Prata, Isaac Roitman, José Duarte de Araújo (Diretoria de Assuntos Científicos/CNPq) e Zigman Brener destacaram a “contribuição notável” que o Programa havia trazido às ciências básicas1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo]. (p.11). Isso podia ser atestado, segundo eles, pela densidade da produção acadêmica apresentada nos encontros anuais da Reunião de Pesquisa Básica em Doença de Chagas, realizada desde 1974 em Caxambu (com recursos do Programa), e publicada em periódicos internacionais prestigiados, bem como no protagonismo dessa comunidade nos fóruns internacionais, como no programa Tropical Diseases Research, criado pela OMS em 1975. Enfatizavam: “possibilitou nos dias de hoje uma massa crítica bastante considerável não só sob o ponto de vista quantitativo, mas sobretudo de alta qualidade, que conseguiu colocar o Brasil como país de ponta nos estudos de pesquisa básica em doença de Chagas”1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo]. (p.13). Além disso, assinalavam, justamente por atrair novos grupos para o estudo dos parasitos, o PIDE havia garantido a sobrevivência da “mais longa tradição de pesquisa científica em nosso país”1212 Prata AR, Roitman I, Araújo JD, Brener Z. O Programa Integrado de Doenças Endêmicas: 12 anos de experiência. [1986], [datilo]. (p.2), que desde o início do século XX se dedicava ao estudo dos problemas de saúde de importância nacional.

As circunstâncias que, no início da década de 1970, conferiram poder decisório aos planejadores para definir e implementar políticas para a área de C&T foram as que garantiram autonomia aos grupos científicos por eles convidados a participar desse processo. A trajetória do PIDE nos permitiu observar os sentidos e dinâmicas dessa negociação, mas também seus limites. Nos últimos anos do regime militar, a ampliação do papel dos pesquisadores na formulação e implementação dos mecanismos de fomento e o fortalecimento das instâncias colegiadas de representação da comunidade científica no CNPq colocaram em xeque aquele modelo inicial pelo qual o Programa tinha se estruturado.

De todo modo, o PIDE havia cumprido seu objetivo. A medida de seu sucesso foi não apenas a capacidade de gerar conhecimentos necessários a importantes ações de combate às endemias, como a primeira campanha nacional de controle da doença de Chagas, implementada a partir de 1980 pela SUCAM. Tal sucesso se deu também pelo avanço na fronteira do próprio conhecimento científico. Com o término do Programa, a renovação da parasitologia seguiu seu curso, sob os benfazejos ventos da democracia.

Ao analisarmos a relação entre o PIDE e a política científica e tecnológica da década de 1970, concluímos que o Programa pode ser visto como exemplo da dimensão paradoxal de um regime que, como indica Motta,11 Motta RPS. As universidades e o regime militar. Cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar; 2014. combinou dura repressão a cientistas e apoio à ciência. Ele nos permite, ainda, dimensionar os desafios postos aos pesquisadores que, pertencentes a uma comunidade que sofreu os efeitos dessa repressão, foram capazes de acomodar e garantir os interesses da área nessa dinâmica complexa, viabilizando as condições para a consolidação e inovação da tradição científica que a distinguia desde os tempos de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas.

Agradecimentos

Agradecemos a Thaís Mancilio da Silva e Bruno Sousa Lima pelo apoio na pesquisa de fontes e a Alexandre Correia, do Centro de Memória do CNPq (Brasília-DF), pelo apoio fundamental na disponibilização da documentação necessária à elaboração do artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Out 2024

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2024
  • Aceito
    13 Abr 2024
  • Publicado
    15 Abr 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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