Fatores associados à notificação de violência entre adolescentes brasileiros, uma análise do SINAN

Deborah Carvalho Malta Regina Tomie Ivata Bernal Nádia Machado de Vasconcelos Isabela Cristina Vieira Silva Maria Luiza Sady Prates Isabella Vitral Pinto Cheila Marina de Lima Sobre os autores

Resumo

O objetivo do estudo é analisar a evolução da notificação das violências praticadas contra os adolescentes entre 2015 e 2022, bem como a associação entre as características da vítima, da agressão e dos agressores da violência contra adolescentes em 2022. Para isso, utilizaram-se os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Foram notificadas cerca de 400.000 violências contra adolescentes. Houve aumento de notificações, exceto nos anos da pandemia (2020 e 2021). As vítimas mais frequentes foram as meninas; o principal local de ocorrência foi a residência; a violência física foi o tipo mais comum. A análise de correspondência mostrou associação entre vítimas do sexo feminino, residência como local de ocorrência, violência psicológica e ameaça; entre as vítimas do sexo masculino, violência em via pública, praticada por desconhecidos, utilização de objetos cortantes. O SINAN torna-se um instrumento vital por permitir visibilidade ao tema. A prevenção da violência juvenil requer uma abordagem intersetorial.

Palavras-chave:
Adolescente; Notificação; Delitos sexuais; Consumo de bebidas alcoólicas; Pandemias

Introdução

As crianças e os adolescentes formam um grupo de alta vulnerabilidade social, por isso a violência contra eles é uma preocupação mundial da saúde pública11 World Health Organization (WHO). Global status report on preventing violence against children 2020: executive summary. Geneva: WHO; 2020.. A violência contra as crianças e os adolescentes foi definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como todas as formas de maus-tratos emocionais e/ou físicos, abuso sexual, negligência ou tratamento negligente, comercial ou outras formas de exploração, com possibilidade de resultar em danos potenciais ou reais à saúde das crianças, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder22 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. World report on violence and health. Geneva: WHO; 2002..

A violência interpessoal está entre as principais causas de morte em adolescentes e jovens em todo o mundo33 World Health Organization (WHO). Adolescent and young adult health [Internet]. [cited 2023 abr 28]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/adolescents-health-risks-and-solutions
https://www.who.int/news-room/fact-sheet...
. A OMS estima que a cada ano ocorram cerca de 176.000 homicídios de jovens entre os 15 e os 29 anos de idade, o que torna a morte violenta a terceira principal causa de morte de pessoas nessa faixa etária44 World Health Organization (WHO). Youth violence [Internet]. [cited 2023 out 13]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/youth-violence
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. A maioria das vítimas de homicídio juvenil são do sexo masculino, e a maioria dos perpetradores também são do sexo masculino44 World Health Organization (WHO). Youth violence [Internet]. [cited 2023 out 13]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/youth-violence
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. No Brasil, em 2019, cerca da metade dos 22 mil óbitos por homicídios ocorreram em jovens com idade entre 10 e 24 anos, sendo as taxas de homicídio 11 vezes mais elevadas no sexo masculino do que no feminino55 Malta DC, Minayo MCS, Cardoso LSM, Veloso GA, Teixeira RA, Pinto IV, Naghavi M. Mortality among Brazilian adolescents and young adults between 1990 to 2019: an analysis of the Global Burden of Disease study. Cien Saude Colet 2021; 26(9):4069-4086..

Por cada jovem morto pela violência, outros mais sofrem lesões que requerem tratamento hospitalar. Globalmente, estima-se que uma em cada duas crianças e jovens de 2 a 17 anos sofrem algum tipo de violência todos os anos66 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Países estão falhando em prevenir violência contra crianças, alertam agências [Internet]. 2020. [cited 2020 jun 18]. Available from: https://www.paho.org/pt/noticias/18-6-2020-paises-estao-falhando-em-prevenir-violencia-contra-criancas-alertam-agencias
https://www.paho.org/pt/noticias/18-6-20...
. A violência emocional afeta um terço das crianças, e aproximadamente 120 milhões de meninas já sofreram algum tipo de contato sexual forçado antes dos 20 anos66 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Países estão falhando em prevenir violência contra crianças, alertam agências [Internet]. 2020. [cited 2020 jun 18]. Available from: https://www.paho.org/pt/noticias/18-6-2020-paises-estao-falhando-em-prevenir-violencia-contra-criancas-alertam-agencias
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. Estudos apontam que crianças e adolescentes são expostos à violência nas suas residências, nas vias públicas, nas escolas77 Malta DC, Bernal RTI, Pugedo FSF, Lima CM, Mascarenhas MDM, Jorge AO, Melo EM. Violence against adolescents in Brazilian capitals based on a survey conducted at emergency services. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2899-2908.,88 Leite FMC, Ferrari B, Fiorotti KF, Pedroso MRO, Venturin B, Letourneau N, Tavares FL. Analysis of reported cases of sexual violence in Espírito Santo, southeastern Brazil 2011-2018. BMC Public Health 2023; 23(1):914., com finalidade de dominação, exploração e opressão99 Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

O homicídio juvenil e a violência não fatal não só contribuem enormemente para a carga global de mortes prematuras, lesões e incapacidades como têm um impacto grave, muitas vezes ao longo da vida, no desenvolvimento psicológico e social de uma pessoa, além de afetar as famílias, os amigos e as comunidades das vítimas44 World Health Organization (WHO). Youth violence [Internet]. [cited 2023 out 13]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/youth-violence
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,1010 Pan American Health Organization (PAHO). Plan of action for women's, children's, and adolescents' health 2018-2030. Washington: PAHO; 2018.,1111 Melo RA, Roque EMST, Freitas LA, Carlos DM, Aragão AS, Ferriani MGC. Protection network in the assistance to children, adolescents and their families in situation of violence. Rev Gaucha Enferm 2020; 41:e20190380.. A violência juvenil aumenta os custos dos serviços de saúde, assistência social e justiça criminal, além de aumentar o absenteísmo e reduzir a produtividade44 World Health Organization (WHO). Youth violence [Internet]. [cited 2023 out 13]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/youth-violence
https://www.who.int/news-room/fact-sheet...
,77 Malta DC, Bernal RTI, Pugedo FSF, Lima CM, Mascarenhas MDM, Jorge AO, Melo EM. Violence against adolescents in Brazilian capitals based on a survey conducted at emergency services. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2899-2908.,1212 World Health Organization (WHO). Global status report on road safety 2023. Geneva: WHO; 2023. .

Considerando a importância de valorizar os adolescentes como presente e futuro de uma nação, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) incluíram esse grupo em várias metas, entre as quais: igualdade de gênero, erradicação da pobreza e promoção da paz e da justiça1313 United Nations (UN). Transforming our world: the 2030 agenda for sustainable development. New York: UN; 2015.. Dessa forma, torna-se essencial monitorar a ocorrência de violência contra esse grupo, especialmente pensando no compromisso de acabar com todas as formas de violência contra meninas e mulheres e de reduzir as taxas de mortalidade por homicídios.

Desde 2011, é possível monitorar a violência interpessoal por meio das notificações compulsórias no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), implementado pelo Ministério da Saúde1414 Malta DC, Reis AAC, Jaime PC, Morais Neto OL, Silva MMA, Akerman M. Brazil's Unified Health System and the National Health Promotion Policy: prospects, results, progress and challenges in times of crisis. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1799-1809. . Destaca-se a possibilidade de monitorar, nessa base de dados, os fatores associados à agressão, além de avaliar informações sobre os agressores, que não estão disponíveis em outras bases de dados.

Estudos de abrangência nacional sobre as notificações de violência contra adolescentes ainda são escassos. Pelo nosso conhecimento, este é o primeiro estudo que analisa uma série histórica do SINAN e as ocorrências entre adolescentes. Espera-se que estas informações possam orientar melhor o desenho de políticas públicas para alcance das metas da Agenda 2030.

O objetivo do estudo é analisar a evolução da notificação das violências praticadas contra os adolescentes entre 2015 e 2022, e a associação entre as características da vítima, da agressão e dos agressores da violência contra adolescentes em 2022.

Métodos

Trata-se de um levantamento epidemiológico do tipo recuperação de série histórica, realizado em dados do SINAN de 2015 a 2022, com análise de correspondência apenas nas notificações do último ano.

O SINAN é constituído por notificações que constam na lista nacional de doenças de notificação compulsória (Portaria de Consolidação nº 4, de 28 de Setembro de 2017). Essa notificação é feita por profissionais de saúde ou responsáveis pelos estabelecimentos de saúde, públicos ou privados, mediante preenchimento da Ficha de Notificação Individual (FNI). As secretarias municipais de saúde são responsáveis pelo recolhimento das fichas, pela digitalização e pela consolidação dos dados. A partir de então, os dados são encaminhados de forma ascendente e concentrados no Ministério da Saúde, que disponibiliza publicamente os dados no sítio eletrônico do DataSUS1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Viva: Vigilância de violências e acidentes: 2013 e 2014. Brasília: MS; 2017..

Para o presente estudo, foram selecionadas as notificações de violência interpessoal contra indivíduos de 10 a 19 anos, conforme definição de adolescência pela OMS, de 2015 a 2022. As seguintes variáveis foram selecionadas na FNI: sexo (masculino e feminino), faixa etária (10-14 anos e 15-19 anos); raça/cor da pele (branca, negra ou outras); local de ocorrência (residência, habitação coletiva, escola, local de prática esportiva, via pública, bar ou similar, comércio/serviço, indústria/construção, outro); tipo de violência (física, sexual - assédio sexual ou estupro -, psicológica, tortura, negligência); meio de agressão (força corporal/espancamento, objeto perfurocortante, objeto contundente, ameaça); provável agressor (pai mãe, padrasto, madrasta; namorado, cônjuge; conhecido e desconhecido); consumo de álcool pelo provável agressor (sim ou não).

Primeiramente, realizou-se uma análise da série histórica de 2015 a 2022, com a construção das séries temporais do período para o total e segundo sexo, faixa etária, raça/cor da pele, local de ocorrência, tipo de violência e agressor.

Em um segundo momento, para verificar possíveis associações entre as variáveis investigadas, foi empregada a técnica de análise de correspondência (AC) nos dados de 2022. A técnica de AC mostrou-se adequada para a análise, pois permite lidar com grande quantidade de variáveis qualitativas, constituídas de grande número de categorias77 Malta DC, Bernal RTI, Pugedo FSF, Lima CM, Mascarenhas MDM, Jorge AO, Melo EM. Violence against adolescents in Brazilian capitals based on a survey conducted at emergency services. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2899-2908.,1616 Souza AC, Bastos RR, Vieira MT. Análise de correspondência simples e múltipla para dados amostrais complexos. In: Anais eletrônicos do Simpósio Nacional de Probabilidade e Estatística. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2010.. A AC constitui uma fase exploratória dos dados e faz uso de tabelas de contingência, também denominadas de tabelas cruzadas, compostas por variável linha e variável coluna. Neste estudo, as categorias das variáveis faixa etária e sexo compõem a variável demográfica, e as categorias das variáveis relacionadas às notificações compõem a variável agressão. Dessa maneira, a tabela é composta por duas variáveis qualitativas: demográfica e agressão. Na coluna encontram-se as características demográficas - faixa etária e sexo - e na linha as características relacionadas à agressão, totalizando 16 categorias da variável agressão e quatro categorias demográficas. Para verificar a dependência entre suas linhas e colunas, a técnica utiliza o teste de independência qui-quadrado como medida de associação, sendo H0 a independência entre as duas variáveis e H1 a dependência entre elas. Caso a hipote H0 seja rejeitada, significa que as categorias das variáveis podem ser reduzidas em novas dimensões. A escolha do número de dimensões depende do percentual de variação explicada por cada dimensão. A AC sintetiza a estrutura de variabilidade dos dados em termos de dimensões, sendo o número delas menor do que o de variáveis11 World Health Organization (WHO). Global status report on preventing violence against children 2020: executive summary. Geneva: WHO; 2020.. A AC é equivalente à análise fatorial, porém os resultados são apresentados de forma gráfica, em que as menores distâncias entre as categorias linha e coluna representam as mais fortes associações, enquanto as maiores distâncias representam dissociações1616 Souza AC, Bastos RR, Vieira MT. Análise de correspondência simples e múltipla para dados amostrais complexos. In: Anais eletrônicos do Simpósio Nacional de Probabilidade e Estatística. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2010.. A análise foi feira no programa SPSS, versão 25.0.

Este estudo fez uso de dados que provêm de bases secundárias de domínio público, portanto não houve necessidade de aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

Resultados

Foram analisadas 400.000 notificações de 2015 a 2022 e para a AC foram analisadas 57.145 notificações (39.993 para o sexo feminino e 17.152 para o masculino) de 2022.

Houve tendência de aumento anual das notificações, com queda nos anos de pandemia (56.892 notificações em 2019, 42.794 em 2020 e 48.099 em 2021). Em 2022, houve retorno do crescimento, com 57.145 notificações, número que superou as notificações de 2019 (56.892). Em todos os anos, as notificações foram mais elevadas entre as meninas. No início do período, as notificações foram mais frequentes para adolescentes entre 15 e 19 anos, mas durante a pandemia cresceram as notificações de violência contra adolescentes entre 10 e 14 anos, e em 2022 a proporção foi semelhante em ambas as faixas etárias: 10 a 14 anos (49,5%) e 15 a 19 anos (50,5%). Em todos os anos as notificações foram mais frequentes na residência e na raça/cor negra. O tipo de violência com maior notificação foi a física (Figura 1).

Figura 1
Evolução das notificações de violência contra adolescentes brasileiros de 10 a 19 anos, segundo sexo, faixa etária, raça/cor da pele, local de ocorrência, tipo de violência e agressores. SINAN, 2015 a 2022.

Em 2022, os tipos de violência mais frequentes foram físicas (50,3%), sexuais (35,1%) e psicológicas (23,5%) (Tabela 1). A violência sexual em 2022 foi cerca de 13 vezes mais frequente entre meninas (18.651/46,6%) do que no sexo masculino (1.414 ocorrências/8,2%); a violência física predominou no sexo masculino (10795 /62,9%) (Tabela 1).

Tabela 1
Número absoluto (N) e frequência relativa (%) de notificações de violência contra adolescentes brasileiros de 10 a 19 anos segundo variáveis explicativas, por sexo. SINAN, 2022.

Os agressores mais frequentes foram pai (15,7%), mãe (15,9%), namorado (6,2%) e cônjuge (4,4%), conhecido (20,2%), desconhecido (13,2%). O uso do álcool foi referido pelos agressores em 19,4% dos casos notificados em 2022 (Tabela 1).

Na AC, duas dimensões foram suficientes para explicar 100% da variabilidade dos dados, sendo que a primeira explica 96,6% e a segunda 3,4% (p-valor < 0,01) (Tabela 2). A dimensão 1 é explicada pelo tipo de violência (39,4%), ocorrência de violência sexual (23,8%), local de ocorrência (16,6%), meio de agressão (10,9%), provável agressor (8,1%), idade (48,5%) e sexo (51,5%). Na dimensão 2, a suspeita de uso de álcool pelo provável agressor (32,5%) foi a variável que mais contribuiu, seguida de local de ocorrência (29,7%), meio de agressão (19,9%), provável agressor (13,7%), idade (51,5%) e sexo (48,5%) (Tabela 3).

Tabela 2
Análise de correspondência nas notificações de violência contra adolescentes brasileiros de 10 a 19 anos. SINAN, 2022.
Tabela 3
Características relacionadas à agressão entre adolescentes e as variáveis demográficas que compõem cada dimensão. SINAN, 2022.

A partir da observação das proximidades das variáveis no gráfico da AC, verifica-se que as associações foram: A) vítimas do sexo feminino, violência ocorrida na residência, violência psicológica e meio de agressão por meio de ameaça; B) vítimas do sexo masculino, ocorrências em via pública, praticadas por desconhecidos, utilizando objetos cortantes ou contundentes; C) vítimas com idade entre 15 e 19 anos, violência física e tortura, uso de força corporal, ocorrência no comércio e consumo de álcool pelo agressor; D) vítimas entre 10 e 14 anos, violência sexual/ estupro, agressor padrasto (Figura 2).

Figura 2
Gráfico biplot da análise de correspondência. SINAN, 2022.

Discussão

O presente estudo analisou as notificações do SINAN para violência contra adolescentes entre 2015 e 2022. Este pesquisa analisa pela primeira vez uma ampla série de dados do SINAN ao longo do tempo, apontando a oportunidade de explorar esses dados. A portaria 104 de 2011 instituiu a obrigatoriedade de notificação imediata ao SINAN dos casos confirmados e suspeitos de violência contra grupos vulneráveis1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme o disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005), a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelece fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. Diário Oficial da União 2011; 25 jan.. Entretanto, o aumento do número de notificações ao longo do tempo deve ser interpretado de forma cuidadosa, uma vez que reflete a implantação da vigilância. Quando a vigilância de violências está bem implantada, os serviços tendem a notificar mais, e o aumento do número de notificações não necessariamente reflete taxas mais elevadas de violências naquelas localidades77 Malta DC, Bernal RTI, Pugedo FSF, Lima CM, Mascarenhas MDM, Jorge AO, Melo EM. Violence against adolescents in Brazilian capitals based on a survey conducted at emergency services. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2899-2908.. Estudo recente comparando as prevalências de violência contra mulheres identificadas na Pesquisa Nacional de Saude com as notificações encontradas no SINAN, por exemplo, apontou grande subnotificação dos casos de violência contra mulher, em especial em estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde persistem vazios assistenciais e a vigilância ainda não está bem implantada1818 Vasconcelos NM, Bernal RTI, Souza JB, Bordoni PHC, Stein C, Coll CVN, Murray J, Malta DC. Underreporting of violence against women: an analysis of two data sources. Cien Saude Colet 2024; 29(10):e07732023..

O estudo atual apontou alguns dados que merecem destaque: a queda da notificação durante a pandemia, a maior notificação de violência contra adolescentes do sexo feminino e o crescimento da notificação entre 10 e 14 anos, igualando-se às proporções entre 15 e 19 anos. Tais dados se referem a violências não letais e estão em consonância com dados coletados na PNS 2019 e na PENSE 2019 que apontam que as mulheres e meninas são as vítimas mais frequentes de violência, em especial sexual77 Malta DC, Bernal RTI, Pugedo FSF, Lima CM, Mascarenhas MDM, Jorge AO, Melo EM. Violence against adolescents in Brazilian capitals based on a survey conducted at emergency services. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2899-2908.,1818 Vasconcelos NM, Bernal RTI, Souza JB, Bordoni PHC, Stein C, Coll CVN, Murray J, Malta DC. Underreporting of violence against women: an analysis of two data sources. Cien Saude Colet 2024; 29(10):e07732023.,1919 Vasconcelos NM, Andrade FMD, Gomes CS, Pinto IV, Malta DC. Prevalence and factors associated with intimate partner violence against adult women in Brazil: National Survey of Health, 2019. Rev Bras Epidemiol 2021; 24(Supl. 2):e210020.,2020 Torres LAM, Reis ICCV, Barbosa KGN. Estupro na primeira macrorregião do estado de Alagoas: resultados da pesquisa DVEAL, 2016-2018. Scientia Med 2023; 33(1):e44043.. Esses dados diferem, entretanto, das análises referentes à mortalidade, na qual aparecem vítimas do sexo masculino liderando as taxas de mortalidade de violências físicas e comunitárias77 Malta DC, Bernal RTI, Pugedo FSF, Lima CM, Mascarenhas MDM, Jorge AO, Melo EM. Violence against adolescents in Brazilian capitals based on a survey conducted at emergency services. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2899-2908.,2121 Minayo MCS. Laços perigosos entre machismo e violência. Cien Saude Colet 2005; 10(1):18-34.,2222 Minayo MCS, Constantino P. An ecosysthemic vision of homicide. Cienc Saude Colet 2012; 17(12): 3269-3278. .

As diferenças culturais de gênero indicam a sociedade patriarcal e a cultura que incentiva meninos a serem violentos, usarem brincadeiras de armas de fogo, espadas, incentivando a competição e as disputas, enquanto as meninas brincam com bonecas, cuidando da casa e preparando os alimentos77 Malta DC, Bernal RTI, Pugedo FSF, Lima CM, Mascarenhas MDM, Jorge AO, Melo EM. Violence against adolescents in Brazilian capitals based on a survey conducted at emergency services. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2899-2908.,2121 Minayo MCS. Laços perigosos entre machismo e violência. Cien Saude Colet 2005; 10(1):18-34.

22 Minayo MCS, Constantino P. An ecosysthemic vision of homicide. Cienc Saude Colet 2012; 17(12): 3269-3278.
-2323 Robin M, Schupak T, Bonnardel L, Polge C, Couture MB, Bellone L, Shadili G, Essadek A, Corcos M. Clinical stakes of sexual abuse in adolescent psychiatry. Int J Environ Res Public Health 2023; 20(2):1071.. O estímulo e a maior liberdade dada aos meninos também lhes conferem maior exposição aos riscos de mortes violentas e acidentais em todas as faixas etárias77 Malta DC, Bernal RTI, Pugedo FSF, Lima CM, Mascarenhas MDM, Jorge AO, Melo EM. Violence against adolescents in Brazilian capitals based on a survey conducted at emergency services. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2899-2908.,2121 Minayo MCS. Laços perigosos entre machismo e violência. Cien Saude Colet 2005; 10(1):18-34.,2222 Minayo MCS, Constantino P. An ecosysthemic vision of homicide. Cienc Saude Colet 2012; 17(12): 3269-3278.. Dessa forma, este estudo comprova que a notificação ocorre mais frequentemente para as violências não letais, domésticas, que são mais frequentes entre meninas e adolescentes mais novos.

O estudo apontou diversas situações de envolvimento de violência entre adolescentes. Em particular a violência sofrida pelas meninas, sendo a principal a violência psicológica. Diversos estudos têm destacado os abusos sofridos pelas meninas desde a infância e as consequências futuras na saúde mental, com maior número de suicídios e internações na adolescência, abusos de substâncias psicoativas, automutilação, transtornos de humor, transtornos comportamentais (incluindo transtornos alimentares), sintomas dissociativos, sintomas de transtorno de estresse pós-traumático e somatizações2323 Robin M, Schupak T, Bonnardel L, Polge C, Couture MB, Bellone L, Shadili G, Essadek A, Corcos M. Clinical stakes of sexual abuse in adolescent psychiatry. Int J Environ Res Public Health 2023; 20(2):1071..

O sexo feminino se associou a violências ocorridas na residência, mostrando que o lar não é um local seguro para as meninas, que sofrem com a dominação machista e a sociedade patriarcal desde novas2020 Torres LAM, Reis ICCV, Barbosa KGN. Estupro na primeira macrorregião do estado de Alagoas: resultados da pesquisa DVEAL, 2016-2018. Scientia Med 2023; 33(1):e44043.. Entre as vítimas mais jovens (10 a 14 anos), o estudo apontou associação com violência sexual, tendo o padrasto como agressor. Estudo com dados da PeNSE 2019 mostraram que, entre os escolares que relataram já ter sofrido estupro, mais da metade reportou que o primeiro episódio de tal violência ocorreu antes dos 13 anos2424 Vasconcelos NM, Andrade FMD, Pinto IV, Gomes CS, Souza MFM, Reinach S, Stein C, Andrade GN, Malta DC. Prevalence of sexual violence among schoolchildren in Brazil: data from the 2019 National School Health Survey. REME 2022; 26:e-1472..

Um estudo que analisou registros de violência sexual no Instituto Médico Legal no estado de Alagoas entre 2016 e 2018 mostrou que, entre as 380 vítimas analisadas, 86,1% eram crianças/adolescentes violentadas e a idade média de ocorrência foi de 14 anos, sendo que o estupro de vulneráveis foi perpetrado por agressor adulto conhecido2020 Torres LAM, Reis ICCV, Barbosa KGN. Estupro na primeira macrorregião do estado de Alagoas: resultados da pesquisa DVEAL, 2016-2018. Scientia Med 2023; 33(1):e44043.. A violência sexual contra adolescentes tão novos e por pessoa conhecida mostra o lado perverso desse agravo. Ele ocorre em um período de maior vulnerabilidade do adolescente, quando ainda não há maturidade para reagir à violência, além de maior dependência do seu agressor, o que pode dificultar sua denúncia e saída do ciclo de violência2525 Santos MJ, Mascarenhas MDM, Rodrigues MTP, Monteiro RA. Characterization of sexual violence against children and adolescents in school - Brazil, 2010-2014. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(2):e2017059.,2626 Santos MJ, Mascarenhas MDM, Malta DC, Lima CM, Silva MMA. Prevalence of sexual violence and associated factors among primary school students - Brazil, 2015. Cienc Saude Colet 2019; 24(2):535-544..

Os dados do SINAN destacam que as vítimas do sexo masculino sofrem violência em vias públicas, praticadas por desconhecidos, utilizando objetos cortantes. Essas ocorrências expressam hábitos de vida do sexo masculino que frequentam atividades festivas e aglomerações em espaços públicos de maior risco77 Malta DC, Bernal RTI, Pugedo FSF, Lima CM, Mascarenhas MDM, Jorge AO, Melo EM. Violence against adolescents in Brazilian capitals based on a survey conducted at emergency services. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2899-2908.,2121 Minayo MCS. Laços perigosos entre machismo e violência. Cien Saude Colet 2005; 10(1):18-34.. As vítimas com idade entre 15 e 19 anos mostraram-se associadas a violência física e tortura e ao uso de força corporal, e o local de ocorrência mais frequente foi o comércio. A associação entre sexo masculino e adolescentes mais velhos tem um potencial de aumento de riscos e sobremortalidade masculina, já apontado na literatura2727 Reichenheim ME, Souza ER, Moraes CL, Mello-Jorge MHP, Silva CMFP, Minayo MCS. Violence and injuries in Brazil: the effect, progress made, and challenges ahead. Lancet 2011; 377(9781):1962-1975..

O uso de álcool tem sido identificado em diversos estudos como potencializador de situações de violência e agressividade33 World Health Organization (WHO). Adolescent and young adult health [Internet]. [cited 2023 abr 28]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/adolescents-health-risks-and-solutions
https://www.who.int/news-room/fact-sheet...
,2828 Malta DC, Oliveira WA, Prates EJS, Mello FCM, Moutinho CS, Silva MAI. Bullying among Brazilian adolescents: evidence from the National Survey of School Health, Brazil, 2015 and 2019. Rev Lat Am Enferm 2022; 30(Esp.):e3679.,2929 Machado IE, Felisbino-Mendes MS, Malta DC, Velasquez-Melendez G, Freitas MIF, Andreazzi MAR. Parental supervision and alcohol use among Brazilian adolescents: analysis of data from National School-based Health Survey 2015. Rev Bras Epidemiol 2018; 21(Supl. 1):e180005.. Entre as políticas públicas preconizadas pela OMS, destacam-se a proibição da venda a menores de idade, a redução dos pontos de venda e a restrição de horários3030 World Health Organization (WHO). Global status report on alcohol and health and treatment of substance use disorders. Geneva: WHO; 2024..

Destaca-se ainda a redução da notificação durante a pandemia, o que também foi identificado em outros estudos3131 Souza LJ, Farias RCP. Viole^ncia dome´stica no contexto de isolamento social pela pandemia de covid-19. Serv Soc Soc 2022; 144:213-232.. Isso pode ser explicado pelo fechamento de equipamentos de saúde, pela sobrecarga de trabalho dos profissionais de saúde, mas também por uma menor procura de assistência, tanto pela dificuldade de se desvencilhar do agressor (usualmente alguém do lar) como por medo de contrair COVID-19 ao buscar atendimento em saúde.

Os atos de violência praticados contra crianças e adolescentes são obstáculos ao desenvolvimento desses indivíduos e constituem um grave problema de saúde pública. O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei nº 8.069/1990)3232 Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul. assegura queé dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação,dentre outros, tornando-se imprescindível avançar nas medidas de proteção.

Entre as fortalezas do estudo, o emprego da análise de correspondência possibilita analisar a associação entre diversas variáveis simultaneamente, aliada à representação gráfica, que facilita a compreensão e divulgação dos resultados.

Entre os limites do estudo, as notificações de violência são feitas em função dos casos atendidos, de forma que nossos achados podem não identificar o total de violências, não servindo para estimar prevalência/incidência populacional. A subnotificação das violências entre adolescentes pode ocorrer em função da omissão de informações por parte dos pais e familiares, da não procura pelos serviços por parte dos adolescentes, por medo, por não reconhecerem as violências praticadas, por não saberem de seus direitos e por não terem os meios de se defender, além do pouco preparo dos profissionais para identificar a violência e o medo de notificá-las.

Segundo a OMS33 World Health Organization (WHO). Adolescent and young adult health [Internet]. [cited 2023 abr 28]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/adolescents-health-risks-and-solutions
https://www.who.int/news-room/fact-sheet...
, a prevenção da violência juvenil requer uma abordagem abrangente que reconheça a forte correlação entre as taxas de violência juvenil e as desigualdades econômicas. Os setores mais empobrecidos da sociedade, marcados por disparidades significativas de riqueza, apresentam consistentemente as taxas mais elevadas de violência juvenil. Para alcançar ganhos sustentáveis na prevenção, é importante abordar a desigualdade de rendimentos, aumentar a mobilidade econômica e melhorar o acesso à educação, à proteção social e às oportunidades de emprego.

Conclusão

As violências contra adolescentes são um grave problema de saúde pública e acometem predominantemente as meninas. Adolescentes mais jovens, de 10 a 14 anos, sofrem violências nas residências, enquanto os de 15 a 19 anos e do sexo masculino as sofrem nas vias públicas, sendo o álcool fortemente associado às ocorrências. O SINAN torna-se um instrumento vital por permitir visibilidade ao tema. Por fim, a prevenção da violência juvenil requer uma abordagem abrangente, que aborde os determinantes sociais da violência, tais como a desigualdade de rendimentos, as rápidas mudanças demográficas e sociais e os baixos níveis de proteção social.

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  • Financiamento

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Bolsa Produtividade DCM. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - 30110 - NOTIVIVA - Notificação de Violências. Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente/MS - TED 67/2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2025
  • Data do Fascículo
    Jan 2025

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2023
  • Aceito
    10 Jul 2024
  • Publicado
    12 Jul 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br