Resumo
O estudo tem o objetivo de explicitar o discurso do sujeito coletivo de homens adultos e idosos acerca da experiência da COVID longa. Pesquisa qualitativa, derivada de um observatório clínico-virtual multicêntrico nacional envolvendo 92 homens adultos, entre 2022 e 2023 no Brasil. Utilizou-se o software IRaMuTeQ (processamento dos dados) a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (análise) e referenciais socioantropológicos da experiência da doença (interpretação). Os resultados apontaram: a experiência da COVID longa foi marcada pelo prolongamento de sintomas respiratórios característicos da COVID-19; manifestação sintomatológica sistêmica no corpo físico-psíquico; acometimento de complicações clínicas severas. A experiência da doença COVID-19 longa se constituiu atravessada por relações de gênero e masculinidades, noções de saúde-doença construídas, imaginários acerca da capacidade da doença no contexto da vacinação, caráter sistêmico configurador de eventos sindrômicos compreendidos como sequelas deixadas pela doença, fazendo ressoar o sentido de incapacidade e da estigmatização.
Palavras-chave:
COVID-19; Acontecimentos que mudam a vida; Estatísticas de sequelas e incapacidade; Saúde do homem
Abstract
The study aims to explain the discourse of the collective subject of adult and elderly men about the experience of long COVID. Qualitative research, derived from a national multicenter clinical-virtual observatory involving 92 adult men, between 2022 and 2023 in Brazil. IRaMuTeQ software was used (data processing), the Collective Subject Discourse technique (analysis) and socio-anthropological references of the disease experience (interpretation). The results showed that the long COVID experience was marked by the prolongation of respiratory symptoms characteristic of COVID-19; systemic symptomatology in the physical-psychic body; and severe clinical complications. The experience of the long COVID-19 disease was shaped by gender relations and masculinities, constructed notions of health-disease, imaginaries about the capacity of the disease in the context of vaccination, the systemic character of syndromic events understood as sequelae left by the disease, resonating the sense of incapacity and stigmatization.
Key words:
COVID-19; Life change events; Statistics on sequelae and disability; Men’s health
Resumen
El estudio tiene como objetivo explicar el discurso del sujeto colectivo de hombres adultos y ancianos sobre la experiencia de COVID-19 largo. Investigación cualitativa, derivada de un observatorio clínico-virtual multicéntrico nacional que involucró a 92 hombres adultos, entre 2022 y 2023 en Brasil. Se utilizó el software IRaMuTeQ (procesamiento de datos), la técnica del Discurso del Sujeto Colectivo (análisis) y referencias socioantropológicas de la experiencia de la enfermedad (interpretación). Los resultados mostraron que la experiencia de la COVID larga estuvo marcada por síntomas respiratorios prolongados característicos de la COVID-19; manifestaciones sintomatológicas sistémicas en el cuerpo físico-psíquico; y complicaciones clínicas graves. La vivencia de la enfermedad COVID-19 larga fue moldeada por relaciones de género y masculinidades, nociones construidas de salud-enfermedad, imaginarios sobre la capacidad de la enfermedad en el contexto de la vacunación, el carácter sistémico de los eventos sindrómicos entendidos como secuelas dejadas por la enfermedad, resonando el sentido de incapacidad y estigmatización.
Palabras clave:
COVID-19; Eventos que cambian la vida; Estadísticas de secuelas e invalidez; Salud de los hombres
Introdução
Por definição, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera COVID longa, ou síndrome pós-COVID, uma condição que pode afetar pessoas com histórico de COVID-19, mesmo após três meses da exposição e do início dos sintomas, que podem variar sua persistência em até dois meses, sem relação com outras situações clínicas11 Akbarialiabad H, Taghrir MH, Abdollahi A, Ghahramani N, Kumar M, Paydar S, Razani B, Mwangi J, Asadi-Pooya AA, Malekmakan L, Bastani B. Long COVID, a comprehensive systematic scoping review. Infection 2021; 49(6):1163-1186.,22 World Health Organization (WHO). A clinical case definition of post COVID-19 condition by a Delphi consensus [Internet]. 2021. [cited 2023 ago 2018]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/WHO-2019-nCoV-Post_COVID-19_condition-Clinical_case_definition-2021.1
https://www.who.int/publications/i/item/... . Quanto à sua caracterização, os indivíduos podem experimentar a persistência de sintomas como fadiga, falta de ar, disfunção cognitiva e outras repercussões sistêmicas11 Akbarialiabad H, Taghrir MH, Abdollahi A, Ghahramani N, Kumar M, Paydar S, Razani B, Mwangi J, Asadi-Pooya AA, Malekmakan L, Bastani B. Long COVID, a comprehensive systematic scoping review. Infection 2021; 49(6):1163-1186.,33 Yong SJ. Long COVID or post-COVID-19 syndrome: putative pathophysiology, risk factors, and treatments. Infect Dis (Auckl) 2021; 53(10):737-754.. O termo “COVID longa” se caracteriza por uma patologia multissistêmica debilitante aos que a experimentam com duração mínima da doença de quatro semanas, que vai exigir cuidado interdisciplinar44 Ziauddeen N, Gurdasani D, O'Hara ME, Hastie C, Roderick P, Yao G, Alwan NA. Characteristics and impact of Long COVID: Findings from an online survey. PLoS One 2022; 17(3): e0264331..
A literatura revela um curso flutuante da doença, com mudanças na intensidade dos sintomas, mas sem desaparecerem por completo. Cerca de 72,8% dos participantes de um estudo apresentaram sintomas diariamente, sendo a exaustão, por exemplo, muito autorrelatada, com melhoria em repouso em 35,3% dos casos. No Reino Unido, 17,7% dos casos confirmados e assintomáticos não hospitalizados apresentaram COVID-19 longa por 12 semanas após a testagem positiva55 Ayoubkhani D, Gaughan C. Technical article: updated estimates of the prevalence of post-acute symptoms among people with coronavirus (COVID-19) in the UK? [Internet]. 2021. [cited 2023 jun 11]. Available from: https://www.ons.gov.uk/peoplepopulationandcommunity/healthandsocialcare/conditionsanddiseases/articles/technicalarticleupdatedestimatesoftheprevalenceofpostacutesymptomsamongpeoplewithcoronaviruscovid19intheuk/26april2020to1august2021
https://www.ons.gov.uk/peoplepopulationa... . Estudo realizado no Brasil apontou que houve maior prevalência de COVID longa entre os indivíduos mais jovens que tiveram experiências de internações mais longas, e, em unidades de terapia intensiva, observou-se piora na qualidade de vida, com pior percepção do estado de saúde, impactos na mobilidade, atividades habituais, saúde mental e dor66 Oliveira JF, Ávila RE, Oliveira NR, Sampaio NCS, Botelho M, Gonçalves FA, Neto CJF, de Almeida Milagres AC, Gomes TCC, Pereira TL, Souza RP, Molina I. Persistent symptoms, quality of life, and risk factors in long COVID: a cross-sectional study of hospitalized patients in Brazil. Int J Infect Dis 2022; 122:1044-1051..
Uma pesquisa virtual realizada em vários países que abordou casos suspeitos e confirmados de COVID-19 encontrou uma gama de 205 sintomas nos entrevistados, que tiveram uma duração da doença superior a seis meses, porém é uma sintomatologia inespecífica, que dificulta a definição concreta do termo “COVID longa” e que no período de maior prevalência dificultou o delineamento do manejo clínico dos infectados77 Davis HE, Assaf GS, McCorkell L, Wei H, Low RJ, Re'em Y, Redfield S, Austin JP, Akrami A. Characterizing long COVID in an international cohort: 7 months of symptoms and their impact. EClinicalMedicine 2021; 38:101019., o que faz necessário este estudo, pois a lacuna em relação aos cuidados não farmacológicos que podem ser implementados nas mais diversas síndromes relacionadas aos sintomas prolongados ainda não foi preenchida. No entanto, para uma minoria de participantes que tiveram envolvimento multissistêmico desde o início, muitos sintomas tendem a se tornar mais comuns com o tempo, o que gera um problema, pois tornar um sintoma como algo comum impacta seriamente na qualidade de vida dos atingidos e no bem-estar geral44 Ziauddeen N, Gurdasani D, O'Hara ME, Hastie C, Roderick P, Yao G, Alwan NA. Characteristics and impact of Long COVID: Findings from an online survey. PLoS One 2022; 17(3): e0264331..
Além disso, apreende-se diante da perspectiva socioantropológica que a experiência de adoecimento se refere à maneira como os indivíduos lidam ou se posicionam frente à doença, assim, as atitudes diante dos respectivos problemas gerados pela doença se situam na dimensão social e refletem o universo de práticas, valores e crenças culturalmente compartilhados, de modo que a enfermidade assume sentido no interior das diferentes relações e interações entre indivíduos e instituições88 Rabelo MC. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999..
Nessa perspectiva, compreende-se que a masculinidade está inserida em uma estrutura relacional de gênero e aponta para uma configuração de práticas, estabelecida nas diversas esferas de socialização que demarcam lugares e/ou posições nas quais homens e mulheres se inserem nas relações sociais, com reflexos nas respectivas experiências sociais, corporais e subjetivas99 Connell R. The Social Organization of Masculinity. In: Mccann CR, Kim S, editors. Feminist Local and a Global Theory Perspectives Reader. Thousand Oaks: Sage Publications; 2005.. Dessa forma, ao longo do processo saúde-doença, os sujeitos evocam, assimilam e empreendem determinados comportamentos e crenças que se articulam com a própria construção e demonstração de gênero1010 Courtenay WH. Constructions of masculinity and their influence on men's well-being: a theory of gender and health. Soc Sci Med 2000; 50(10):1385-1401..
O estudo apresenta conteúdo inédito na área de pesquisa, uma vez que a experiência de COVID-19 longa em adultos e idosos não foi relatada em outras pesquisas, especialmente quanto à relação do tema e à concepção socioantropológica do sujeito do discurso.
Diante desses pressupostos, a pergunta que guiou o estudo foi: como homens relataram a experiência da COVID longa? Com o objetivo de explicitar o discurso do sujeito coletivo de homens adultos e idosos acerca da experiência da COVID longa.
Método
Estudo qualitativo1111 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006., survey online, que integrou uma pesquisa matriz intitulada: “‘COVID Longa’: observatório clínico virtual dos sintomas prolongados, sequelas pós-COVID-19, repercussões na saúde e práticas de cuidado vivenciadas por homens adultos residentes no Brasil”. Como forma de estruturar o desenho do protocolo de pesquisa e a descrição do estudo, foram adotadas as recomendações do Revised Standards for Quality Improvement Reporting Excellence - SQUIRE 2.0, possibilitando sua reprodução e a melhoria dos cuidados em saúde face ao surgimento de novos conhecimentos1212 Ogrinc G, Davies L, Goodman D, Batalden P, Davidoff F, Stevens D. SQUIRE 2.0 (Standards for QUality Improvement Reporting Excellence): revised publication guidelines from a detailed consensus process. BMJ Qual Saf 2016; 25(12):986-992..
A equipe foi composta por graduandos em enfermagem e fisioterapia, por pesquisadores das áreas de enfermagem, medicina, odontologia, fisioterapia e educação física, com formação nos níveis de mestrado e doutorado, com experiência no método e no tema de investigação, sem vínculos com os participantes.
O público-alvo foi composto pela população masculina adulta e idosa, contaminada pela COVID-19, rastreada em bancos de dados de pesquisas anteriores realizadas pelo Grupo de Estudos Cuidados e Masculinidades da Universidade Federal da Bahia, assim como em sites de domínio público, comunidades virtuais e em grupos de Facebook e Instagram. Como critério de inclusão: brasileiros ou estrangeiros residentes legalmente no Brasil. Foram excluídos homens com baixo letramento digital ou que estavam viajando no período da coleta e/ou que não completassem/enviassem as respostas. A técnica de saturação teórica foi empregada a fim de alcançar a densidade teórico/empírica dos dados, mediante a análise de ocorrências, convergências e complementaridades1313 Patias ND, Von Hohendorff J. Critérios de qualidade para artigos de pesquisa qualitativa. Psicol Estud 2019; 24:e43536..
O protocolo de pesquisa foi elaborado por intermédio de reuniões periódicas científicas, que ocorreram para levantar dados na literatura e nas redes sociais digitais (netnografia)1414 Adade DR, Barros DF, Costa ADSM. A netnografia e a análise de discurso mediada por computador (ADMC) como alternativas metodológicas para investigação de fenômenos da administração. Soc Contab Gest 2017; 13(1):86.,1515 Kozinets RV. Netnography: doing ethnographic research online. Thousand Oaks: Sage Publications; 2010.. Os dados levantados possibilitaram a estruturação e a criação do instrumento de coleta de dados, considerando o conceito de síndrome pós-COVID1616 Nalbandian A, Sehgal K, Gupta A, Madhavan MV, McGroder C, Stevens JS, Cook JR, Nordvig AS, Shalev D, Sehrawat TS, Ahluwalia N, Bikdeli B, Dietz D, Der-Nigoghossian C, Liyanage-Don N, Rosner GF, Bernstein EJ, Mohan S, Beckley AA, Seres DS, Choueiri TK, Uriel N, Ausiello JC, Accili D, Freedberg DE, Baldwin M, Schwartz A, Brodie D, Garcia CK, Elkind MSV, Connors JM, Bilezikian JP, Landry DW, Wan EY. Post-acute COVID-19 syndrome. Nat Med 2021; 27(4):601-615.,1919 Joncew CC, Cendon BV, Ameno N. Websurveys como método de pesquisa. Info Info 2014; 19(3):192. à luz dos domínios da escala de status funcional pós-COVID-19, de modo a contemplar distintos grupos/dimensões de sintomas prolongados e/ou sequelas pós-COVID-19, já evidenciados na literatura1717 Klok FA, Boon GJAM, Barco S, Endres M, Miranda Geelhoed JJ, Knauss S, Rezek SA, Spruit MA, Vehreschild J, Siegerink B. The post-COVID-19 functional status scale: a tool to measure functional status over time after COVID-19. Eur Respir J 2020; 56(1):10-12.,1818 Machado FVC, Meys R, Delbressine JM, Vaes AW, Goërtz YMJ, van Herck M, Houben-Wilke S, Boon GJAM, Barco S, Burtin C, van 't Hul A, Posthuma R, Franssen FME, Spies Y, Vijlbrief H, Pitta F, Rezek SA, Janssen DJA, Siegerink B, Klok FA, Spruit MA. Construct validity of the Post-COVID-19 Functional Status Scale in adult subjects with COVID-19. Health Qual Life Outcomes 2021; 19(1):40. e nos autorrelatos manifestados nas redes sociais consultadas, a saber:
1) conhecendo a vivência dos sintomas prolongados e/ou das sequelas pós-COVID-19; 2) sintomas prolongados e/ou sequelas mentais; 3) saúde física e equilíbrio bioenergético; 4) cérebro e osteomusculares; 5) visuais, auditivas, vocais e bucais; 6) respiratórias e cardiovasculares; 7) gastrointestinais, nutricionais, hepáticas e metabólicas; 8) renais e geniturinárias; 9) sexuais e reprodutivas; 10) dermatológicas; 11) vasculares, termorregulatórias e imunológicas; 12) impactos laborais e socioeconômicos; 13) situação da saúde atual e da qualidade de vida; 14) complicações clínicas; 15) estratégias de enfrentamento/coping; e 16) dados sociodemográficos, da situação de saúde doença, de vacinação, da dinâmica social, de identidade sexual e de gênero.
Para a mensuração quantitativa, uma escala de intensidade foi utilizada para cada bloco de sintomas, com variável de leve a muito severa, e de muito pior a muito melhor. Ao final, uma questão aberta foi inserida para o participante descrever informações adicionais que sentisse desejo. O instrumento foi alojado na plataforma do Google Forms e, para a garantia da segurança dos dados, somente um pesquisador teve acesso ao banco, que de forma imediata transferiu para pastas zipadas identificadas por códigos, em computador próprio. Para a coleta de dados, empregou-se a web survey - pesquisa virtual -, técnica que utiliza um formulário com perguntas sensíveis à pesquisa, enviado à população-alvo por meios digitais, o que reduz as dificuldades impostas pela distância, com baixo orçamento e curto prazo1919 Joncew CC, Cendon BV, Ameno N. Websurveys como método de pesquisa. Info Info 2014; 19(3):192.
20 Balanzá-Martínez V, Atienza-Carbonell B, Kapc zinski F, De Boni RB. Lifestyle behaviours during the COVID-19 - time to connect. Acta Psychiatr Scand 2020; 141(5):399-400.-2121 Fang H, Xian R, Ma Z, Lu M, Hu Y. Comparison of the differences between web-based and traditional questionnaire surveys in pediatrics: comparative survey study. J Med Internet Res 2021; 23(8): e30861..
Os dados foram organizados em bloco de notas e codificados por meio de segmentos de texto com auxílio do software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ), que fez gerar a análise de similitude, que depende das demarcações referentes aos segmentos textuais que serão lidos de forma lexicográfica, em que a compreensão dos dados da análise se sustenta na teoria dos grafos, determinando a relação entre objetos e fator de estudo por meio de um modelo matemático de palavras que, com base nas recorrências, distingue as partes comuns e as especificidades, variando apenas quanto à função das variáveis descritas. Para tal, gera uma árvore interconectada que demarca a posição centro-lateral das palavras no corpus textual, bem como a visualização da origem e da conexão semântica2222 Salviati ME. Manual do Aplicativo Iramuteq (versão 0.7 Alpha 2 e R Versão 3.2.3) [Internet]. 2017. [acessado 2023 ago 18]. Disponível em: http://www.iramuteq.org/documentation/html
http://www.iramuteq.org/documentation/ht... ,2323 Souza MAR, Wall ML, Thuler ACMC, Lowen IM V, Peres AM. The use of IRAMUTEQ software for data analysis in qualitative research. Rev Esc Enferm USP 2018; 52:e03353..
Em razão de o estudo ter gerado um volume expressivo de dados (megadados)2424 Davidson E, Edwards R, Jamieson L, Weller S. Big data, qualitative style: a breadth-and-depth method for working with large amounts of secondary qualitative data. Qual Quant 2019; 53(1):363-376., oriundos inicialmente, de informações individuais e, posteriormente, aglutinados, a fim de representar uma coletividade (sujeito que fala)2525 Lefevre F, Lefevre AMC. O sujeito coletivo que fala. Interface (Botucatu) 2006; 10(20):517-524., utilizou-se a análise metodológica baseada na técnica do discurso do sujeito coletivo (DSC)2626 Lefevre F, Lefevre AMC, Marques MC da C. Discurso do sujeito coletivo, complexidade e auto-organização. Cien Saude Colet 2009; 14(4):1193-1204., guiada pela sua estrutura constituinte de ideia central (seleção dos conteúdos relevantes encontrados); por expressões-chave (valorização da dimensão sintagmática); discurso síntese/DSC (depoimento coletivo propriamente dito); e ancoragem (subjetividades latentes das manifestações). Foram adotados critérios de validação interna da pesquisa, ancorada na literatura, a fim de garantir a qualidade e a fidedignidade dos dados gerados2727 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cien Saude Colet 2012; 17(3):621-626.. A redação do manuscrito seguiu rigorosamente os critérios do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ), versão traduzida para o português2828 Souza VRS, Marziale MHP, Silva GTR, Nascimento PL. Tradução e validação para a língua portuguesa e avaliação do guia COREQ. Acta Paul Enferm 2021; 34:eAPE02631., no que diz respeito ao cumprimento da descrição do estudo qualitativo.
Os dados foram submetidos a um enquadramento teórico, sob o referencial socioantropológico do processo saúde-doença, interpretação que utiliza o discurso narrativo como veículo para a ruptura de novos paradigmas existentes, nas compreensões das condições humanas que serão validadas, para o desenho de um processo de reconstrução da experiência sobre o ato de ficar doente com a persistência dos incômodos, o que gera um redesenho dos valores humanos no contexto dos determinantes e condicionantes sociais em saúde2929 Nunes ED, Castellanos MEP, Barros NF. A experiência com a doença: da entrevista à narrativa. Physis 2010; 20(4):1341-1356..
Nesse escopo, a pesquisa qualitativa permeia critérios de qualidade universais condizentes com a realidade da prática baseada em evidência, o que fortalece a discussão socioantropológica da saúde e preserva o rigor científico nesse tipo de pesquisa3030 Dantas ESO, Amorim KPC. Aspectos teórico-metodológicos em pesquisa qualitativa em saúde. Cien Saude Colet 2023; 28(5):1589-1590..
Por envolver seres humanos, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, parecer 4.087.611/2020, e todas as diretrizes das resoluções 466/2012 e 674/2022, do Ofício Circular 2/2021 e da Lei Geral de Proteção de Dados foram empregadas. Para ter suas informações na pesquisa, os participantes aceitaram participar, após leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, na modalidade imagética, mesmo ciente dos riscos. Cuidados com o anonimato foram adotados, como a criação de codinomes (H1, H2...).
Resultados
Participaram 92 homens adultos e idosos entre 20 e 81 anos de idade, média de 37 anos, residentes nas cinco regiões do país, com maior concentração nas regiões Nordeste e Sudeste. Residiam, na sua maioria, com parceiros(a), cisgêneros, heterossexuais, brancos, solteiros, tendo estudado mais de nove anos. Referiram trabalhar, exercendo a ocupação de funcionário público, acumulando renda mensal que variou de R$ 483 a R$ 20 mil.
Utilizavam os sistemas público e privado de saúde, sem doença crônica diagnosticada anteriormente, contudo manifestaram condições especiais de saúde: sedentarismo, obesidade, tabagismo e etilismo, respectivamente. A maioria apontou ter se vacinado para COVID-19 com ao menos três doses e não ter apresentado reinfecção pelo vírus causador da doença, no entanto 20 participantes relataram pelo menos uma reinfecção e dez disseram ter tido duas vezes. Em razão da vivência de sintomas prolongados e/ou sequelas pós-COVID-19, os homens mencionaram requerer recursos para o enfrentamento da enfermidade: auxílio emergencial do governo, saque de reserva em poupança bancária, empréstimo bancário, auxílio-doença do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), Bolsa Família e auxílio pandemia do governo estadual/municipal.
A análise dos dados permitiu derivar o DSC, organizado em um discurso-síntese, composto por três ideias centrais, suas expressões chaves e as respectivas ancoragens de sustentação teórico explicativa.
Discurso-síntese 1: homens experienciando a COVID longa
Este discurso-síntese representa a coletividade dos homens investigados acerca da experiência da COVID-19 a partir da manifestação de sintomas prolongados. A seguir, são apresentadas as Ideias Centrais que dão sustentação ao DSC através das dimensões paradigmáticas das práticas discursivas individuais.
Ideia central 1A: vivenciando o prolongamento de sintomas respiratórios característicos da COVID-19
O DSC dos homens apontou a autoexpressão da persistência e da diversidade de sintomas respiratórios, que caracterizam o quadro clínico observado na COVID-19, consubstanciando um depoimento-síntese. Os homens, apesar de informarem estar vacinados, manifestaram estranhamento diante do reaparecimento e da exacerbação desses sintomas, como crises respiratórias, comprometimento da função imune e da capacidade pulmonar, repercutindo em cansaço, ancorando-se na percepção de que se tratava de um evento sindrômico pós-COVID-19 (Quadro 1).
Ideia central 1B: manifestando sintomatologia sistêmica no corpo físico e psíquico
O conjunto de artifícios dos depoimentos individuais, com dimensões coletivas articuladas e socialmente compartilhadas, trouxe uma perspectiva semiótica da sinergia corpo e mente que foi atingida pelos sintomas longos, o que gerou uma narrativa verossímil do conjunto de artifícios (Quadro 2) do sujeito discursivo que fala e por ela é falado.
Ideia central 1C: tendo complicações clínicas severas
A complexidade inerente às relações intrapartes e/ou interpartes do discurso empírico fez com que surgisse o metadiscurso teórico-científico presente no painel de discursos coletivos (Quadro 3) carregados de códigos narrativos referentes às sistemáticas e vertentes patológicas sistêmicas complexas que prejudicaram os diversos sistemas orgânicos do corpo humano.
No que concerne à análise de similitude, o corpus textual se dividiu em três textos e 24 segmentos de texto, o nível de aproveitamento foi de 71,99%. As palavras com recorrência foram “mais” (11), “passar” (8), “ir” (7), “estar” (7), “realizar” (7), “como” (6), “dor” (6), “ter” (6), “apresentar”, “minha”, “sentir”, “não” e “também”, com cinco recorrências (Figura 1).
Análise lexicográfica de Similitude das expressões recorrentes nas falas de homens que experienciaram a COVID-19 longa. Salvador, Bahia, Brasil, 2023.
Discussão
Nossos achados indicaram a percepção masculina sobre a vivência do prolongamento dos sintomas da COVID-19, ressaltando os elementos figurativos iniciais do acometimento da COVID-19 longa. Tal experiência aponta para a necessidade de reflexão dos aspectos relacionais de gênero existentes na experiência da doença, que repercutem na relação dos homens com a percepção de saúde e doença, nas noções acerca das manifestações corporais, nos sentidos masculinos atribuídos à diversidade e à persistência dos sintomas no corpo físico. Além disso, chama atenção para o imaginário construído sobre a vacina enquanto agente de proteção imunológico, afetado pela reinfecção e a exacerbação de sintomas, assim como para as noções de vulnerabilidade/invulnerabilidade masculina e o modo como os homens constroem a noção de síndrome e/ou sequelas ao vivenciarem sintomas sistêmicos e danos irreversíveis à condição de saúde.
Durante a pandemia, os homens foram mais infectados, devido ao processo de cuidado deficitário, à socialização e à exposição presentes nas questões das masculinidades hegemônicas, o que pode ter contribuído para o abalo da invulnerabilidade persistente nesse grupo social, pois a partir do momento que homens começaram a experienciar situações que até então não os atingiam, suas percepções de saúde e doença sofreram mudanças, em consequência, estranhamentos3131 Medrado B, Lyra J, Nascimento M, Beiras A, Corrêa AC de P, Alvarenga EC, Lima MLC. Men, masculinity and the new coronavirus: Sharing gender issues in the first phase of the pandemic. Cien Saude Colet 2021; 26(1):179-183..
Em uma interface social, aponta-se que a pandemia impactou negativamente a produção e o rendimento do trabalho para homens. A interface social levou à preocupação familiar com o crescimento de gastos, com efeitos na organização do trabalho e na dinâmica de cuidado3232 Candido MR, Marques D, Oliveira VE, Biroli F. As ciências sociais na pandemia da COVID-19: rotinas de trabalho e desigualdades. Sociol Antropol 2021; 11(Esp.):31-65.. Nesse sentido, é imperativo pensar que as relações humanas foram fragilizadas, e o escopo social fragmentado, com os homens expostos à insegurança, o que evidencia o quão essencial é analisar a problemática de maneira interdisciplinar, diante das contribuições substanciais apontadas pelo campo das ciências sociais e da saúde coletiva.
Com o aumento do número de casos e a elevação das taxas de morbidade hospitalar3333 Fabião J, Sassi B, Pedrollo EF, Gerchman F, Kramer CK, Leitão CB, Pinto LC. Why do men have worse COVID-19-related outcomes? A systematic review and meta-analysis with sex adjusted for age. Brazilian J Med Biol Res 2022; 55: e11711., o que fez colapsar o sistema de saúde brasileiro, os homens representaram cerca de três vezes mais internações em unidades de tratamento intensivo do que as mulheres3434 Peckham H, de Gruijter NM, Raine C, Radziszewska A, Ciurtin C, Wedderburn LR, Rosser EC, Webb K, Deakin CT. Male sex identified by global COVID-19 meta-analysis as a risk factor for death and ITU admission. Nat Commun 2020; 11(1):6317.. No Brasil, até o início de 2023, foram aproximadamente 37 milhões de casos da doença, sendo 52% homens3535 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Boletim Epidemiológico Especial - Doença pelo Novo Coronavírus - COVID-19 [Internet]. [acessado 2023 ago 18]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/COVID-19/2022/boletim-epidemiologico-no-146-boletim-coe-coronavirus/view
https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-... , com evidências de inúmeras sequelas pós-COVID-193636 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Desfechos de saúde e COVID-19 nas Américas: diferenças de sexo [Internet]. 2020. [acessado 2023 ago 18]. Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/53602
https://iris.paho.org/handle/10665.2/536... , o que vai ao encontro dos dados empíricos trazidos em nosso estudo.
Tais sequelas já são uma realidade nos serviços de saúde, pois os homens têm apresentado manifestações clínicas decorrentes dos sintomas prolongados da infecção3737 Augustin M, Schommers P, Stecher M, Dewald F, Gieselmann L, Gruell H, Horn C, Vanshylla K, Cristanziano VD, Osebold L, Roventa M, Riaz T, Tschernoster N, Altmueller J, Rose L, Salomon S, Priesner V, Luers JC, Albus C, Rosenkranz S, Gathof B, Fätkenheuer G, Hallek M, Klein F, Suárez I, Lehmann C. Post-COVID syndrome in non-hospitalised patients with COVID-19: a longitudinal prospective cohort study. Lancet Reg Heal Eur 2021; 6:100122., representando uma maior carga de sequelas após quatro semanas da exposição ao vírus, com prevalência em torno de 54% de síndrome pós-COVID-19, com alta readmissão e alterações respiratórias, que vêm exigindo cuidados em reabilitação3737 Augustin M, Schommers P, Stecher M, Dewald F, Gieselmann L, Gruell H, Horn C, Vanshylla K, Cristanziano VD, Osebold L, Roventa M, Riaz T, Tschernoster N, Altmueller J, Rose L, Salomon S, Priesner V, Luers JC, Albus C, Rosenkranz S, Gathof B, Fätkenheuer G, Hallek M, Klein F, Suárez I, Lehmann C. Post-COVID syndrome in non-hospitalised patients with COVID-19: a longitudinal prospective cohort study. Lancet Reg Heal Eur 2021; 6:100122.,3838 Ayoubkhani D, Khunti K, Nafilyan V, Maddox T, Humberstone B, Diamond I, Banerjee A. Post-COVID syndrome in individuals admitted to hospital with COVID-19: Retrospective cohort study. BMJ 2021; 372:n693., com associações entre variáveis que expõem a população masculina ao estigma e às repercussões de ordem mental e social3939 Sousa AR, Cerqueira SSB, Santana TS, Suto CSS, Almeida ES, Brito LS, Casado E, Carvalho ESS. Stigma experienced by men diagnosed with COVID-19. Rev Bras Enferm 2022; 75(Supl. 1):5-8..
A explicação dada à experiência da doença tem seguido caminhos narrativos singulares, que ainda precisam ser mais explorados entre o público masculino adulto e idoso. A narrativa tem sido útil para a compreensão da condição humana, e como uma possibilidade metodológica, tem se mostrado essencial para o conhecimento sociológico das doenças, ao interpretar as dimensões nucleares e os contextos sociais mais específicos da experiência elaborada pelas pessoas2929 Nunes ED, Castellanos MEP, Barros NF. A experiência com a doença: da entrevista à narrativa. Physis 2010; 20(4):1341-1356.. Nesse sentido, chama-se a atenção dos profissionais de saúde para o exercício da sensibilidade clínica e social junto aos homens, em direção ao encontro dos significados e das metáforas atribuídas às doenças4040 Sontag S. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal; 1984., bem como da maneira como se posicionam frente a elas e como buscam lidar em seu cotidiano, elaborando e reelaborando a(s) experiência(s)4141 Sousa AR, Cerqueira SSB, Silva Santana T, Suto CSS, Aparício EC, Carvalho ESS. Meanings and metaphors of COVID-19 in the experience of adult men who have had the disease. Rev Baiana Enferm 2022; 36:e43414.. Assim, recomenda-se que os profissionais de saúde considerem importante não só as manifestações clínicas, mas os componentes sociais do processo saúde-doença.
Dessa forma, o percurso narrativo da experiência da doença, especialmente em seu caráter crônico, tem sido útil para perceber, significar e conhecer as estratégias de convivência e de enfrentamento da condição no cotidiano e na interação socioafetiva4242 Caçador TGV, Gomes R. Narrative as a strategy for understanding the experience of chronic illness: A literature review. Cien Saude Colet 2020; 25(8):3261-3272.. Nas ciências sociais e humanas, a doença causada pela pandemia não tem conotação apenas de infeção ou morte, também ganha representatividade de construção social com a emergência de novas doenças sob as preocupações com a saúde pública, o debate midiático e as incertezas quanto ao risco da doença; por vezes, essas explicações detêm a explicação de padrões epistemológicos4343 Nunes ED. As ciências sociais e humanas e a pandemia de COVID-19. Cien Saude Colet 2022; 27(11):4071-4074..
Os principais resultados do nosso estudo também explicitaram a manifestação da sintomatologia sistêmica da COVID-19 longa nos homens, e mais além, permitem possibilitar caminhos explicativos da experiência da doença. Ao passo que homens começam a perceber as mudanças físicas, energéticas e psicoemocionais geradas pela doença, tornou-se possível reconhecer o surgimento de rupturas biográficas e até mesmo a deterioração da imagem e da identidade. Tal relação experienciada com a enfermidade e o conjunto de manifestações sintomatológicas expressa na COVID-19 longa pode ilustrar a maneira como a doença muda o sentido da percepção de si mesmo, da saúde-doença e do âmbito coletivo.
Nessa perspectiva de abalos multissistêmicos no corpo e na mente, as pessoas acometidas pela experiência do adoecimento, quando acolhidas, e tendo interpretação de suas demandas, para além das manifestações clínicas que apresentam, podem desenvolver melhor percepção sobre o adoecimento e maior adesão às intervenções propostas pelos profissionais de saúde4444 Favoreto CAO, Cabral CC. Narratives on the health-disease process: Experiences in health education operational groups. Interface (Botucatu) 2009; 13(28):7-18.. É notório que uma prática clínica restrita ao modelo biomédico centraliza o cuidado na infecção viral e pode não levar em consideração implicações de ordem emocional, como ansiedade, depressão e insegurança, e não ser capaz de atender necessidades em um âmbito biopsicossocioespiritual4545 Marco MA. Do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial: um projeto de educação permanente. Rev Bras Educ Med 2006; 30(1):60-72..
Para a promoção da saúde psicoemocional e o restabelecimento energético após o diagnóstico da doença e as consequências do período de isolamento social, faz-se necessária uma assistência interdisciplinar, pautada na racionalidade biopsicossocial4141 Sousa AR, Cerqueira SSB, Silva Santana T, Suto CSS, Aparício EC, Carvalho ESS. Meanings and metaphors of COVID-19 in the experience of adult men who have had the disease. Rev Baiana Enferm 2022; 36:e43414. e na compreensão ampliada da experiência do adoecimento e do sofrimento como questão subjetiva, cultural, social, ambiental e histórica, e não apenas das dimensões epidemiológicas, quantitativas e estatísticas4646 Canesqui AM. Considerations regarding the experience of illness and suffering. Cien Saude Colet 2018; 23(8):2466..
Uma das características do discurso é a capacidade de promover a integração dialógica das experiências do cuidar em face ao adoecimento. Nesse sentido, a determinação social perfaz sugestões propositais dentro da pandemia de COVID-19 que se implicam a COVID-19 longa, em especial na experiência relatada pelos indivíduos e demostrada pela incapacidade crítica frente às fake news, pela fragilização dos sistemas públicos em detrimento da saúde e em favor da manutenção da economia, com o enfraquecimento do poder de ajuda estatal, além do impositivo individualismo burguês e o impacto multifatorial percebido pela precarização das classes4747 Souza D de O. The COVID-19 pandemic beyond health sciences: Reflections on its social determination. Cien Saude Colet 2020; 25(Supl. 1):2469-2477..
Os homens manifestam suas incapacidades físicas por meio dos relatos constantes das perdas funcionais, que vão desde a incapacidade de realizar exercícios e sexo até manifestações sinestésicas de mente e corpo comprometendo os órgãos do sentido. Assim, tal aspecto corrobora outros achados que apontam manifestações neurocognitivas, musculares, articulares e de fadiga em pessoas com condições pós-COVID-194848 Abdel-Gawad M, Zaghloul MS, Abd-elsalam S, Hashem M, Lashen SA, Mahros AM, Mohammed AQ, Hassan AM, Bekhit AN, Mohammed W, Alboraie M. Post-COVID-19 syndrome clinical manifestations: a systematic review. Antiinflamm Antiallergy Agents Med Chem 2022; 21(2):115-120.,4949 Van Wambeke E, Bezler C, Kasprowicz AM, Charles AL, Andres E, Geny B. Two-years follow-up of symptoms and return to work in complex post-COVID-19 patients. J Clin Med 2023; 12(3):741.. Apesar do recorte de gênero não estabelecer quais sintomas são mais prevalentes nos sexos, entende-se que, para manifestações relacionadas a insônia, ansiedade, medo, incontinências e regulação de comorbidades, deve-se ter apoio domiciliar5050 Almas T, Malik J, Alsubai AK, Jawad Zaidi SM, Iqbal R, Khan K, Ali M, Ishaq U, Alsufyani M, Hadeed S, Alsufyani R, Ahmed R, Thakur T, Huang H, Antony M, Antony I, Bhullar A, Kotait F, Al-Ani L. Post-acute COVID-19 syndrome and its prolonged effects: an updated systematic review. Ann Med Surg (Lond) 2022; 80:103995..
Para a efetividade das ações, devem ser propostos modelos de suporte e cuidado à pessoa em nível ambulatorial e hospitalar, que observem a singularidade do indivíduo, entendam a dinâmica de vida e a complexidade de seus sintomas, não apenas como meio intuitivo do cuidado, mas transdisciplinar, para isso devendo permear os laços com os cuidadores familiares5151 Cavalcante TF, Lourenço CE, Ferreira JESM, Oliveira LR, Cruz Neto J, Amaro JP, Moreira RP. Models of support for caregivers and patients with the post-covid-19 condition: a scoping review. Int J Environ Res Public Health 2023; 20(3):2563.. Faz-se fundamental o fortalecimento do trabalho interprofissional, da gestão do trabalho, a ampliação do escopo da formação em saúde, com vistas ao campo da saúde coletiva e das ciências sociais e humanas, a fim de instrumentalizar o corpo clínico e social em saúde, bem como as trabalhadoras e os trabalhadores do campo da saúde, que dão sustentação ao Sistema Único de Saúde, bem como o sistema suplementar, que interage e presta cuidado e assistência à saúde da população acometida pelas sequelas pós-COVID-19.
Em nosso estudo, os homens relataram a presença de companheiro(a) como ponto positivo para enfrentamento da doença. Portanto, é necessário entender como essas pessoas podem se tornar agentes de cuidado guiadas por orientações da equipe multiprofissional. Nesse aspecto, a interdisciplinaridade na saúde coletiva é essencial em pandemias e crises sanitárias ao apoiar usuários nas práticas de saúde, contudo, expressa-se a preocupação com a hierarquização dos conhecimentos, um ponto desafiador5252 Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saude Debate 2022; 46(Esp. 6):9-24..
Em observância a essa perspectiva de integralidade do cuidado, a atuação da equipe de saúde, que pode ser composta por enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, assistentes sociais e demais profissionais da saúde, promove a articulação de diferentes saberes técnicos e o compartilhamento de responsabilidades na tomada de decisões, o que torna suas condutas relevantes diante da imprevisibilidade e urgência que caracteriza a crise sanitária e social oriunda da COVID-19 no Brasil, uma vez que a cronicidade se insere como elemento capaz de redefinir o repertório masculino, suas incapacidades e limitações, que passam a permear o universo desses sujeitos5353 Caneppele AH, Cucolo DF, Mininel VA, Meireles E, Silva JAM. Colaboração interprofissional em equipes da rede de urgência e emergência na pandemia da COVID-19. Esc Anna Nery 2020; 24(Esp.):e20200312..
Reitera-se que o cuidado com o paciente com condições pós-COVID-19 é um desafio para os profissionais de saúde, devido à continuidade, ao sinergismo e à multiplicidade dos sintomas, que podem emergir da relação biopsicossocial e dos aspectos espirituais, além da relação incerta entre as manifestações e a potencialização dos agravos já presentes no corpo antes da infecção. Além disso, alguns sintomas sistêmicos relacionados à infecção em si podem não ser avaliados e prejudicar o tratamento e a recuperação do paciente, o que torna necessário o trabalho em equipe, com a discussão de caso e a implementação de metas compartilhadas5454 Cruz Neto J, Cavalcante TF, Félix NDC. Post-COVID-19 metabolic syndrome: a new challenge for nursing care. Investig Educ Enferm 2023; 41(1):e01..
Em alguma medida, ao relatarem suas experiências com as sequelas e suas repercussões, os homens apontam para elementos que sinalizam a operação do estigma, com menção a descréditos, desconfiança e desqualificação. Assim como nessa situação, outras condições de caráter crônico vivenciadas por homens precipitam a estigmatização, como demonstrado em estudo entre sujeitos com doença renal crônica, em que as marcas da doença e do tratamento impactaram suas interações sociais e desencadearam rotulação, estereotipagem, perda de status e discriminação5555 Capistrano RL, Sousa AR, Araújo IFM, Almeida ES, Menezes HF, Silva RA, Silva RAR, Carvalho ESS. Estigma percebido por homens em tratamento hemodialítico. Acta Paul Enferm 2022; 35(12):128-139.. Da mesma forma, em meio à pandemia, o estigma foi associado ao descrédito social, levando a distorções da imagem e ao comprometimento pessoal, social e emocional, com traços de insensibilidade, falta de compaixão e medo5656 Paixão GPDN, Silva RS, Carneiro FNN, Lisbôa LNT. A pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) e suas repercussões na estigmatização e o preconceito. Rev Baiana Enferm 2020; 35:e36986..
Outro aspecto que desponta neste estudo diz respeito à repercussão de todo o processo de adoecimento crônico, que contrapõe, de alguma forma, a noção presente no imaginário masculino de invulnerabilidade, pois a experiência do adoecimento crônico, para os homens, encerrados na trama cultural, pode representar uma verdadeira ruptura biográfica, pois ao impor limitações na condição física, coloca em xeque um ideal de masculinidade hegemônica5757 Saldanha JHS, Lima MAG, Neves RF, Iriart JAB. Construção e desconstrução das identidades masculinas entre trabalhadores metalúrgicos acometidos de LER/DORT. Cad Saude Publica 2018; 34(5):e00208216..
A distinção discursiva de maior predominância frente à experiência das sequelas da COVID-19 longa para os homens diz respeito à percepção da modificação das condições corporais, expressas em suas capacidades físicas, comum em outras experiências de adoecimento nesse público, pois o ideal de masculinidade hegemônica se perfaz a partir do corpo, um corpo idealizado, que frente às inexoráveis sequelas, precisa reelaborar o próprio sentido sobre si5858 Araújo JS, Nascimento LC, Zago MMF. Hegemonias corporificadas: dilemas morais no adoecimento pelo câncer de próstata. Rev Esc Enferm USP 2019; 53:e03494.. Contudo, destaca-se que os corpos masculinos sofreram com a COVID-19, apresentando dificuldades e impossibilidades em todos os campos vitais, além disso, percebe-se a readaptação comprometida quanto à vida social, sexual e patrimonial, com repercussões deletérias5959 Sousa AR, Araújo IFM, Borges CCL, Oliveira JA, Almeida MS, Caribé W, Santos Júnior, FJN, Pereira A. Men's health in the COVID-19 pandemic: Brazilian panorama. Rev Baiana Enferm 2021; 35:e38683..
Embora os homens tenham experiências negativas com as sequelas da doença, quando comparados ao público feminino, essa população procurou menos os serviços de saúde sendo expostos ao maior risco da doença6060 Subramanian A, Nirantharakumar K, Hughes S, Myles P, Williams T, Gokhale KM, Taverner T, Chandan JS, Brown K, Simms-Williams N, Shah AD, Singh M, Kidy F, Okoth K, Hotham R, Bashir N, Cockburn N, Lee SI, Turner GM, Gkoutos GV, Aiyegbusi OL, McMullan C, Denniston AK, Sapey E, Lord JM, Wraith DC, Leggett E, Iles C, Marshall T, Price MJ, Marwaha S, Davies EH, Jackson LJ, Matthews KL, Camaradou J, Calvert M, Haroon S. Symptoms and risk factors for long COVID in non-hospitalized adults. Nat Med 2022; 28(8):1706-1714.,6161 Debski M, Tsampasian V, Haney S, Blakely K, Weston S, Ntatsaki E, Lim M, Madden S, Perperoglou A, Vassiliou VS. Post-COVID-19 syndrome risk factors and further use of health services in East England. PLoS Glob Public Heal 2022; 2(11):e0001188., contudo para as condições pós- COVID-19, esse achado permanece como importante lacuna científica, e serviços de reabilitação em saúde poderão fornecer uma gama de possibilidades para a comunidade, além da oportunidade de usufruir do potencial das tecnologias remotas em saúde6262 Greenhalgh T, Knight M, A'Court C, Buxton M, Husain L. Management of post-acute COVID-19 in primary care. BMJ 2020; 370:m3026..
Em consonância com os achados do nosso estudo, indivíduos apresentaram na fase pós- COVID-19 dificuldade de concentração, confusão mental, esquecimento, problemas de descoberta de palavras (ToT) e disfluência semântica (dizer ou escrever palavras incorretamente). Além disso, parte significativa não retornou ao trabalho devido à persistência dos sintomas, evidenciando a perda do emprego e dificuldades financeiras. Observou-se, ainda, limitações para realizar atividades diárias e dificuldade na relação com profissionais médicos, por exemplo devido à postura pouco humanizada durante os atendimentos, evidenciada com relação ao descrédito diante dos problemas de saúde autorrelatados6363 Gallegos M, Portillo N, Martino P, Cervigni M. Long COVID-19: rethinking mental health. Clinics 2022; 77:100067..
Entende-se que muitos homens poderão enfrentar variações sintomatológicas - formas contínuas e/ou intermitentes, com recidivas e de fases, e até mesmo o aparecimento de novos sintomas - clusters6464 Muniz VO, Santos FS, Sousa AR, Araújo PO, Coifman AHM, Carvalho ESS. Aplicabilidade da Teoria dos Sintomas Desagradáveis para a população de homens idosos com COVID-19 no Brasil. Esc Anna Nery 2023; 27:e20220245. com diferentes graus de gravidade, em que em alguns casos o afastamento se fará necessário. Com isso, toda a rede de suporte social deverá ser acionada, a exemplo dos empregadores, que devem se responsabilizar pela avaliação clínica, bem como pela licença-saúde, bem como pelo apoio psicoemocional.
Decorrerão, ainda, adaptação o retorno ao trabalho, como ajustes nas funções laborais, redefinição de carga horária de trabalho, implantação/implementação de políticas de reabilitação nas empresas/repartições. Em vários países, como os Estados Unidos, as populações acometidas pela COVID-19 apresentaram redução de sua jornada de trabalho em relação ao período anterior à doença, o que expõe uma problemática real de reivindicações de seguro relacionadas à COVID-19, quando associado a um acidente e/ou doença relacionada ao trabalho, fator prejudicial que afeta expressivamente a população que tinha menos de 60 anos, no auge da idade produtiva, o que pode ser um fator gerador de impactos na construção das masculinidades no que diz respeito aos atributos sociais do homem para o trabalho, homem provedor, homem que detém a posse, seja na relação com as parcerias afetivo-conjugais, seja nos demais vínculos sociais6565 Teixeira LR, Corrêa MJM, Mattos RCOC. Orientações sobre testes para COVID-19 e questões relacionadas à imunidade [Internet]. 2022. [acessado 2023 out 31]. Disponível em: https://observadoencasinfecciosastrabalho.ensp.fiocruz.br/orientacoes-sobre-testes-para-covid-19-e-questoes-relacionadas-a-imunidade/
https://observadoencasinfecciosastrabalh... .
Todavia, há que se ressaltar o desafio em saúde pública diante do cenário socioeconômico do Brasil, país que acumula disparidades históricas entre as diferentes regiões, o que pode contribuir para o enfraquecimento dos dispositivos de proteção da vida e da saúde no trabalho, revertendo-se em problemática ainda maior: trabalhadores afastados, sem assistência, insegurança financeira, empobrecimento e danos à concepção identitária e de significação de vida do sujeito. Desse modo, é imprescindível estabelecer medidas conjuntas para lidar com essa nova realidade, que exigirá perspectivas diferentes de se enxergar e agir, com vistas a valorizar o sujeito não somente pelo que ele produz, mas pelo que ele é6565 Teixeira LR, Corrêa MJM, Mattos RCOC. Orientações sobre testes para COVID-19 e questões relacionadas à imunidade [Internet]. 2022. [acessado 2023 out 31]. Disponível em: https://observadoencasinfecciosastrabalho.ensp.fiocruz.br/orientacoes-sobre-testes-para-covid-19-e-questoes-relacionadas-a-imunidade/
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As potencialidades e perspectivas apresentadas no presente estudo expõem o conflito com a COVID-19 para além de sua dimensão clínica e biomédica, mediante um levantamento de caráter social, com uma narrativa da relevância e funcionalidade da equipe multiprofissional. Destaca-se como cada indivíduo, tendo em vista suas características biopsicossociais, concebe suas sequelas da COVID-19 e observa seu processo de saúde-doença-cuidado. Assim, a formação do diálogo e o acolhimento em relação aos valores individuais de vida do indivíduo contribuem para a construção de novas narrativas no que diz respeito à inclusão de tais símbolos e subjetividades no processo de compreensão do adoecimento e da autonomia frente às abordagens terapêuticas, em contraste com o ofertado pela prática biomédica4444 Favoreto CAO, Cabral CC. Narratives on the health-disease process: Experiences in health education operational groups. Interface (Botucatu) 2009; 13(28):7-18..
Por fim, ressalta-se que as sequelas pós-COVID-19 repercutem em diversas áreas e no estado psicossocial e bem-estar geral, o que denota a relevância e urgência de identificar tais situações e intervir de forma efetiva. Diante disso, uma das tarefas essenciais da antropologia da saúde é compreender como a enfermidade, radicada na vivência subjetiva, constitui-se em realidade dotada de um significado reconhecido e legitimado socialmente. Logo, a estigmatização expressa diante ao relato saúde doença repercute negativamente e acaba por limitar a assistência e a autonomia do sujeito no enfrentamento da síndrome88 Rabelo MC. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999.,6666 Raquel CP, Ribeiro KG, Alencar NES, Souza DFO, Barreto ICHC, Andrade LOM. Os caminhos da ciência para enfrentar fake news sobre COVID-19. Saude Soc 2022; 31(4):e210601pt..
Considerações finais
O DSC dos homens que vivenciam a COVID-19 longa explicita as repercussões perceptíveis do adoecimento, mas desdobra-se de forma mais aprofundada, na amplitude das manifestações na saúde, de maneira integral, apontando para os aspectos da saúde mental que foram afetados, além de sinalizar para um desconforto que opera na ordem do simbólico diante da constatação de limitações que desafiam ao imaginário de invulnerabilidade masculina.
Além disso, o presente estudo contribui para a saúde coletiva ao vislumbrar o recorte de gênero e suas repercussões, que exigem reformulações de modelos de cuidado por parte dos profissionais da saúde para o público masculino e que busquem ponderar e observar as possíveis vivências de estigmas do processo doença-cuidado desse coletivo, bem como abalos psicoemocionais que venham a se chocar com a masculinidade hegemônica. Desse modo elaborando novas rotas para promoção e restauração da saúde dessa população. Além disso, ao considerar a dimensão biopsicossocioespiritual do sujeito em seu processo de adoecimento, corrobora a discussão sobre os modelos assistenciais da saúde que permeiam o campo da saúde coletiva, questionando a hegemonia da racionalidade biomédica. Assim, o reconhecimento da multicausalidade dos sintomas e dos desfechos associados à COVID-19 evidencia uma demanda por mais produções com abordagem interdisciplinar do tema.
Dessa forma, a COVID-19 longa, como experiência de adoecimento, modifica o lugar do homem no contexto social e coletivo, ou ao menos questiona a noção culturalmente reforçada de masculinidade e saúde, pois torna-o um sujeito cronicamente afetado por sequelas que modificam seu cotidiano. A experiência compartilhada apresenta elementos indispensáveis para a compreensão do adoecimento masculino, o que pode subsidiar o planejamento das práticas de cuidado, a assistência em saúde e a organização das ações e serviços no sentido de assegurar a reabilitação e a qualidade de vida desses sujeitos, ressignificando, a partir dela, o lugar dos homens no mundo.
O estudo tem como limitação o alcance dos participantes nos meios utilizados para a coleta de dados, o que reduziu a inserção daqueles com baixo letramento digital e inacessibilidade a smartphones; a realização de uma coleta única, que restingue o aprofundamento dos achados; a carência da investigação de outros grupos amostrais, como os profissionais de saúde, que particularizam a noção do objeto sob outra perspectiva. Portanto, novos estudos podem explorar dimensões distintas desse fenômeno, articulando diferentes métodos e técnicas de produção dos dados e lançar luz sobre outras nuances.
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