Resumos
O estudo objetivou mapear as estratégias utilizadas para o trabalho colaborativo em equipes de Saúde da Família (eSF) inseridas na Atenção Primária à Saúde (APS), em um município do norte de Minas. Trata-se de um estudo qualitativo, com a proposta metodológica da Cartografia. Os dados foram produzidos em quatro eSF por meio de observação participante, questionário de identificação, diário cartográfico, entrevista semiestruturada individual e grupo focal. A análise do discurso e o rastreio cartográfico possibilitaram a construção de duas categorias temáticas e um mapa cartográfico. Alcançou-se que as estratégias, consideradas linhas de fuga, permitem transformações existenciais no trabalho em equipe, pois originam nascentes em solos cristalizados, pensamentos problematizadores, subjetividade e interações disciplinares. Concluiu-se que as linhas duras não devem ser eliminadas do trabalho em equipe, pois coexistem nessa realidade, e o que importa é como são vivenciadas nas relações.
Palavras-chave
Atenção primária à saúde; Equipe de saúde da família; Cartografia
El objetivo del estudio fue mapear las estrategias utilizadas para el trabajo colaborativo en equipos de Salud de la Familia (eSF), inseridas en la Atención Primaria de la Salud, en un municipio del Norte de Minas Gerais. Se trata de un estudio cualitativo, con la propuesta metodológica de la Cartografía. Los datos se produjeron en cuatro eSF, por medio de observación participativa, cuestionario de identificación, diario cartográfico, entrevista semiestructurada individual y grupo focal. El análisis del discurso y el rastreo cartográfico posibilitaron la construcción de dos categorías temáticas y un mapa cartográfico. Se vio que las estrategias, consideradas líneas de fuga, permiten transformaciones en el trabajo en equipo, puesto que originan manantiales en suelos cristalizados, pensamientos problematizadores, subjetividad e interacciones disciplinarias. Se concluyó que las líneas duras no deben eliminarse del trabajo en equipo, puesto que coexisten en esta realidad y lo que importa es cómo se experimentan en las relaciones.
Palabras clave
Atención primaria de la salud; Equipo de salud de la familia; Cartografía
Introdução
A medicina preventiva, instituída nos currículos das faculdades pela lei da Reforma Universitária em 1968, foi uma das bases do movimento sanitário no Brasil, cuja finalidade foi conciliar a produção dos conhecimentos e o modo de organizar as práticas sanitárias11 Osmo A, Schraiber LB. O campo da Saúde Coletiva no Brasil: definições e debates em sua constituição. Saude Soc. 2015; 24 Supl 1:205-18.. Diante disso, iniciou-se a construção de projetos que almejavam transformações na prática médica. Como desdobramento, foi incorporado, pela primeira vez, nos planejamentos curriculares de ensino de Graduação, o trabalho em equipe multiprofissional22 Peduzzi M, Oliveira MAC, Silva JAM, Agreli HLF, Miranda Neto MV. Trabalho em equipe, prática e educação interprofissional. Clínica médica: atuação da clínica médica. Barueri: Manole; 2016.
Transcorridos os anos, tornou-se vital o trabalho em equipe. Isso porque, pela Constituição Brasileira de 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) emergiu, oferecendo assistência integral, gratuita, universal e propondo uma nova abordagem do processo saúde-doença-cuidado33 Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990.. Uma mudança que abrangeu múltiplos fatores, que interferem na saúde do sujeito e ratificam a necessidade da readequação do trabalho em equipe, não mais como significado da junção de diversas disciplinas. Ora, disponibilizar o acesso a diferentes profissionais de saúde não é condição suficiente para garantir o cuidado integral44 Guimarães BEB, Branco ABAC. Trabalho em equipe na Atenção Básica à Saúde: pesquisa bibliográfica. Rev Psicol Saude. 2020; 12(1):143-55.. O trabalho em equipe pauta-se, fundamentalmente, na interação disciplinar, a qual possibilita que os saberes integrem uns aos outros a fim de criar uma visão holística, coletiva e de acordo com os princípios do SUS55 Maeyama MA, Dolny LL, Knoll RK, organizadores. Atenção Básica à Saúde: aproximando teoria e prática. Itajaí: UNIVALI; 2018..
Propondo atender aos seus princípios, o SUS é sistematizado em Redes de Atenção à Saúde (RAS), contemplando os serviços de atenção primária, secundária e terciária66 Assunção NG, Martins LM. O trabalho em equipe multiprofissional na residência: a perspectiva dos residentes multiprofissionais. Rev APS. 2019; 22(4):920-38.. A Estratégia Saúde da Família (ESF) é a entrada prioritária nas RAS e objetiva superar o modelo fragmentado por meio de uma atenção longitudinal no território onde as pessoas trabalham, vivem e se relacionam. Para tal, uma equipe deve assumir a responsabilidade sanitária, o que configura uma assistência alicerçada no trabalho em equipe77 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017..
A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2017 preconiza que a equipe de Saúde da Família (eSF) tem a competência de estabelecer vínculos, prover atenção contínua e organizada à população adscrita. É de conformação multiprofissional: médico, enfermeiro, técnico e/ou auxiliar de enfermagem e agente comunitário de saúde (ACS). Pode vir a agregar, também, o agente de combate a endemias e a equipe de Saúde Bucal, formada pelo cirurgião-dentista, auxiliar em saúde bucal e/ou técnico em saúde bucal. Além disso, se oportuno, as eSF podem contar com o apoio matricial de profissionais especialistas: fonoaudiólogos, fisioterapeutas, professores formados em arte, psicólogos, nutricionistas, entre outros77 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017..
Percebe-se que a eSF atuante possui em si uma variabilidade de saberes, evidenciando a necessidade de articulação e colaboração. Um estudo no campo da ESF salientou que o trabalho colaborativo em equipe se configura como uma parceria ativa e contínua entre os membros e, ainda que possuam conhecimentos técnicos científicos e culturas diferentes, trabalham em conjunto para fornecer cuidado em saúde88 Morgan S, Pullon S, McKinlay E. Observation of interprofessional collaborative practice in primary care teams: an integrative literature review. Int J Nur Stud. 2015; 52(7):1217-30.. Corroborando com esse achado, outra literatura aponta que o trabalho colaborativo é intrínseco ao reconhecimento da interdependência e da complementaridade entre agir instrumental e agir comunicativo. Todavia, o agir instrumental sobrepõe como resposta no cotidiano da eSF99 Peduzzi M, Agreli HLF, Silva JAM, Sousa HS. Trabalho em equipe: uma revisão ao conceito e a seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trab Educ Saude. 2020; 18 Supl 1:e0024678..
O agir comunicativo possui equivalente valor ao instrumental, mas sua execução é de maior complexidade devido à relação existente entre a equipe, justamente por essa relação ser perpassada por aspectos contínuos, diversos e transitórios que incluem o que vai além do clínico, como a cultura, a arte, a educação, a política e outros1010 Wagner CS, Roessner D, Bobb K, Kleinb T, Keyton BJ, Rafols I, et al. Approaches to understanding and measuring interdisciplinary scientific research (IDR): a review of the literature. J Informetrics. 2011; 5(1):14-26.. Nesse âmbito, a aposta para o trabalho colaborativo encontra-se nas relações que ocorrem na dimensão da micropolítica, no trabalho vivo em ato, mas que não deixa, também, de fazer limite com as linhas lineares da macropolítica por meio do capitalismo, da mecanização e da biologização1111 Silva MRF, Pedrosa JIS, Alencar OM, Marinho MNASB, Pereira TM, Pontes RJS, et al. Cartografia da produção do cuidado na estratégia saúde da família. Res Soc Develop. 2021; 10(8):e57410817552..
Compreende-se que a força das relações só pode ser convertida ao trabalho colaborativo quando a equipe se deixa afetar pela realidade do território vivo. A proposta metodológica da Cartografia vem privilegiar os territórios de produção local mediante os fluxos resultantes e as relações que se cruzam e entrecruzam nesse cotidiano1111 Silva MRF, Pedrosa JIS, Alencar OM, Marinho MNASB, Pereira TM, Pontes RJS, et al. Cartografia da produção do cuidado na estratégia saúde da família. Res Soc Develop. 2021; 10(8):e57410817552.. Por isso, provocou-nos adentrar na multiplicidade e investigar o mapeamento das estratégias utilizadas para o trabalho colaborativo em eSF.
Caminho metodológico
Trata-se de um estudo de análise qualitativa fundamentado no método cartográfico. A Cartografia estrutura-se no campo teórico da esquizoanálise, que permite o exercício de pesquisas-intervenção1212 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34; 1995. (Coleção TRANS).. É um método que propõe acompanhar processos da realidade, os quais implicam constantes produções de subjetividades. Desta forma, a Cartografia não delimita a realidade de forma imutável e hierarquizada, mas pensa-a de forma complexa, por meio do pressuposto do rizoma1313 Romagnoli RC. A cartografia e a relação pesquisa e vida. Rev Psicol Soc. 2009; 21(2):166-73.. Pensar com base na imagem botânica do rizoma, o caule, é entender que a realidade está em incessante transformação e é atravessada por múltiplas variáveis, ou seja, a realidade é uma rede móvel de caules que produz mapas vivos, sem uma estrutura centralizada, com diversas entradas e saídas1414 Filho KP, Teti MM. A cartografia como método para as ciências humanas e sociais. Barbarói. 2013; (38):45-59, 2013.
O campo do estudo foi em Unidades de Saúde da Família (USF) e a produção dos dados aconteceu com quatro eSF de um município do norte de Minas, e teve participação de quarenta e dois profissionais. O município continha 136 equipes, incluindo as rurais, e a escolha e o sorteio foram realizados inicialmente de quatro, levando em consideração: a probabilidade de adesão das equipes sorteadas, devido ao município fazer parceria com as instituições de ensino e incentivar, cotidianamente, as pesquisas de campo na USF; e a análise da experiência de quase dois anos ou mais dos pesquisadores e dos orientadores do estudo, pois as eSF são territórios férteis em produzir dados compatíveis com o tema. Com o desdobrar das etapas da pesquisa não foram necessários novos sorteios, porque com as quatro equipes alcançamos os objetivos do estudo. O critério de inclusão foi: toda a eSF mediante interesse e disponibilidade em participar da pesquisa. Já o critério de exclusão foi: eSF em que o pesquisador estava inserido.
Os dados foram produzidos no período de agosto a dezembro de 2021. O ponto de partida ocorreu por intermédio do contato telefônico com a chefia imediata das eSF sorteadas, enfermeiro(a). Por conseguinte, houve visita às equipes em seu local de atuação para observação participante, registrada no diário cartográfico, e aplicação do questionário de identificação do entrevistado, caracterizando: sexo, idade, escolaridade, ocupação e profissão, tempo de formado, tempo de atuação na ocupação e/ou profissão e o tempo de trabalho no serviço atual. Em seguida, foram realizadas quarenta e duas entrevistas semiestruturadas individualizadas, com duração entre dez minutos e uma hora, e quatro grupos focais de aproximadamente quarenta minutos.
As entrevistas e os grupos tiveram roteiro com questões norteadoras. Das entrevistas: “O que é trabalho em equipe?”; “Como desempenha as suas funções no trabalho?”; “Quais são os fatores facilitadores e dificultadores no trabalho em equipe?”; “Quais foram as estratégias utilizadas para lidar com os fatores dificultadores?”; “Qual é a relação do trabalho em equipe e a assistência prestada?”; “As ações da sua equipe vão além das atribuições preconizadas?” Se sim, descreva como isso acontece.”; “Você se sente afetado trabalhando em equipe?”; “A interação disciplinar acontece?”. Já as dos grupos focais foram: “Para trabalharmos colaborativamente em equipe, precisamos do quê?”; “Como são as relações da equipe?”
Visando manter a fidedignidade das falas, as entrevistas e os grupos foram registrados por meio de áudios com o uso de um gravador digital e, em seguida, transcritas para análise e interpretação. Utilizou-se o método de amostras por saturação teórica para estabelecer a amostra final1515 Falqueto JMZ, Hoffman VE, Farias JS. Saturação teórica em pesquisas qualitativas: relato de uma experiência de aplicação em estudo na área de administração. Rev Cienc Admin. 2018; 1(3):40-53.. Posteriormente às transcrições, realizou-se a análise do discurso que, por sua vez, viabilizou ir além do conteúdo literal dos discursos, sendo possível interrogar sentidos1616 Bosi MLM, Macedo MA. Anotações sobre a análise crítica de discurso em pesquisas qualitativas no campo da saúde. Rev Bras Saude Mater Infant. 2014; 14(4):423-32..
No primeiro momento da análise, foram realizadas leituras minuciosas para compreender os efeitos de sentido, o que estava sendo abordado dentro das falas, somando-se à sensibilidade da técnica de observação que abrangeu gesto, ambiente e frase dita. A identificação das falas na discussão deu-se pela categoria profissional e pela numeração em ordem crescente das entrevistas realizadas.
O segundo momento, para interpretação, valeu-se dos preceitos fundamentais de plano de formas, plano de forças e agenciamentos que podem ser cartografados dentro do rizoma. O plano de formas, produzido pelas linhas duras, é composto pelos aspectos definidos, instituídos e binários. O plano das forças está associado à parte formada por linhas flexíveis que atingem a forma e a contornam temporariamente. As modulações produzidas por essa linha dão origem aos agenciamentos, que se apresentam de maneira dinâmica, em constantes mudanças e produzem o novo. Emergem, como consequência dos agenciamentos, as linhas de fuga por meio de processos ativos que se concluem em transformações1717 Escóssia L, Tedesco S. O coletivo de forças como plano de experiência cartográfica. In: Passos E, Kastrup V, Escóssia L. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2012. p. 92-108..
A pesquisa foi realizada após anuência da coordenadora municipal de Saúde da Família (SF) e dos participantes, por meio da aquiescência e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida como trabalho de conclusão da Residência Multiprofissional em Saúde da Família (RMSF), a qual foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob Parecer n. 4.838.707 e seguiu os pressupostos da Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde1818 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, 12 de Dezembro de 2012. Aprova normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília: Ministério da Saúde; 2012..
Resultados e discussão
Caracterização dos territórios e participantes
Conforme as observações de campo, registradas no diário cartográfico, foi possível retomar inúmeras vivências. No percurso, até a chegada aos territórios, os pesquisadores experimentaram direções singulares e opostas da cidade. Nos primeiros acessos, a observação realçou a recepção simbólica e também física, o interesse da equipe em participar da pesquisa, a ambiência e a relação da equipe dentro do ambiente de trabalho. Foram vinte e três encontros efetivados e seis não realizados devido à especificidade de cada eSF, sobretudo tempo comprometido, agenda cheia e “im-previstos” do SF. Tais fatos contribuíram para que os pesquisadores pudessem compreender a rotina de trabalho em cada equipe.
As quatro equipes estão localizadas em territórios que portam características destoantes e impactantes no processo de trabalho. Entre as mais expressivas, questões de vulnerabilidade social, número excedente de usuários adscritos, condições socioeconômicas favoráveis e comunidade orientada sobre o processo de trabalho da equipe. Duas equipes são compartilhadas na mesma USF e as outras duas são únicas em espaço físico. Dessas, duas aderem ao Programa Saúde na Hora1919 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 930, de 15 de Maio de 2019. Institui o Programa Saúde na Hora que dispõe sobre o horário estendido de funcionamento das Unidades de Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde; 2019. e duas são polos dos Programas de Residências Multiprofissional e Médica em Saúde da Família, e Multiprofissional em Saúde Mental. Sobre o número de membros em cada equipe, tem-se: cinco, doze, doze e treze.
Quanto à caracterização das quarenta e uma pessoas, são: quatro enfermeiros, três cirurgiões dentistas, três médicos, dois psicólogos, quatro técnicos em enfermagem, três auxiliares em saúde bucal, um assistente administrativo, três zeladores e dezoito ACS. Do total, sete são do sexo masculino e trinta e cinco, do sexo feminino, com faixa etária entre 23 anos e 72 anos. No tempo de atuação foi observada uma variação de cinco meses a treze anos, estando a maioria atuando há três anos. Estar na eSF há três anos ou mais demonstrou ser um fator favorável para a colaboração entre os profissionais, já que o tempo de convivência viabiliza construir vínculos com os colegas e com a comunidade, bem como robustez da orientação no processo de trabalho.
Em relação à titulação, todos possuem Ensino Médio completo; vinte e seis, Ensino Superior; cinco, especialidade na modalidade lato sensu; cinco, especialização na modalidade Residência em Saúde da Família; e quatro estão atualmente em curso. Observou-se, ainda, que duas profissionais apresentam Mestrado na área da Saúde.
Pelo acompanhamento da realidade viva das quatro eSF foi possível construir duas categorias temáticas: o cruzamento das linhas duras e flexíveis em eSF e linhas de fuga como estratégias para o trabalho colaborativo. Após as categorias, é apresentado, na Figura 1, o mapa cartográfico que propicia a compreensão holística do objeto em estudo.
O cruzamento das linhas duras e flexíveis em eSF
A cada pergunta feita às equipes, houve uma resposta-invenção, produção que só aconteceu nos encontros, já denotando um dos pontos interventivos da pesquisa. A discussão é iniciada com falas que se somam a uma possível caracterização do trabalho colaborativo em equipe, falas que fogem das definições formatadas, haja vista que produzem problematizações e implicações.
Trabalho em equipe não é um dom, é uma coisa que a gente aprende, né?!
(MÉDICO1)
Tem que ser todo mundo cooperando [...] Não é porque eu tenho aquela função eu não posso orientar, informar e colaborar com minha equipe.
(ACS6)
É aquele trabalho como se fosse uma corrente. É um trabalho de união, de força, de colaboração [...] Não existe nenhum trabalho sem tropeço [...] Eu me sinto um gominho dessa corrente.
(ACS13)
Contra o modelo de trabalho em equipe hierarquizado historicamente, há, nos diálogos, múltiplos aspectos que diluem a consistência hegemônica2020 Peduzzi M, Agreli HLF, Silva JAM, Souza HS. Trabalho em equipe: uma revisita ao conceito e a seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trab Educ Saude. 2020; 18 Supl 1:e0024678.. O cuidado integral, realizado por muitos de maneira cooperativa e entrelaçada como uma corrente, demonstra o atravessamento na forma prevista do que pode vir a ser o trabalho colaborativo em equipe e possibilita identificar a existência das linhas flexíveis, demandas da ESF e a tecnologia leve que compõe o plano de forças. A existência das linhas flexíveis oportuniza modificações, impulsos e desvios no plano de forma. No plano de forma, propriedade daquilo que é fixo, esperado e sem dinamicidade, há as linhas duras, aqui as demandas da ESF. Evidencia-se o efeito duplo das demandas da ESF, ora como linha dura, ora como linha flexível2121 Costa LB, Amorim ASL. Uma introdução à teoria das linhas para a cartografia. Blumenau. 2019; 14(3):912-33.
A eSF tem a função primordial de responder às demandas existentes no seu território e, para isso, deve conhecê-lo em profundidade. A territorialização, atributo básico de todos da equipe, viabiliza um panorama social, cultural, epidemiológico, sanitário e socioeconômico que guia a construção das ações a serem executadas. Logo, a desterritorialização e, consequentemente, a reterritorialização são práticas que devem ser habituais da eSF, considerando que o território é movente77 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017.. A implicação com o território vivo, percebido nas falas, demonstra o movimento da equipe que afeta e se afeta com as demandas do seu território quando reconhecem os tropeços, o cuidado em sua multiplicidade e quando fazem da aprendizagem em conjunto uma possibilidade de força. E é essa força que incide, na linha dura, demandas da ESF que se apresentaram por meio das normas, da necessidade de assistência a todos os ciclos de vida, dos fluxos instituídos e do trabalho natural, como se fosse um dom.
A gente está aqui para somar forças para poder fazer o bem maior para a população.
(ACS8)
O trabalho em equipe tem objetivo de promover cuidado. E que não é prestado só por um profissional. [...] Nenhuma equipe ela é, ela se transforma a cada dia.
(DENTISTA1)
A equipe é igual uma engrenagem, uma parte depende da outra.
(ACS13)
Conforme anunciado, a eSF está em constante transformação porque é constituída, também, pelo plano das formas. As linhas duras não devem pressupor sentido ruim, visto que o que importa é como são vivenciadas nas relações, isto é, apreender se elas se mantêm, se produzem vida e se mudam2222 Samudio JLP, Martins ACFD, Brant LC, Sampaio C. Cartografia do cuidado em saúde mental no encontro entre agente comunitário de saúde e usuário. Physis. 2016; 27(2):277-95.. Um exemplo dessa mudança, enfocado nos encontros, é a pandemia causada pelo vírus SARS-COV-2, que trouxe a necessidade de uma readequação, ou seja, um aprendizado. Esse aprendizado teve incidência, sobretudo, nas demandas da ESF, pois um novo modo de arquitetar o cuidado se fez necessário. Mesmo com as direções instituídas pelos órgãos federal, estadual e municipal, cada equipe teve de construir, em conjunto, estratégias de enfrentamento de acordo com a realidade do seu território.
Construir em conjunto pode ser representado pela simbolização dos autores Merhy e Franco2323 Merhy EE, Franco TB. O trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. (Dicionário da Educação Profissional em Saúde)., quando salientam a tecnologia leve, linha flexível, como uma caixa de ferramentas de cada profissional, na qual cada uma é imprescindível para completar a do outro. Evidencia-se, com as falas, a relevância do sentimento de pertencimento na equipe, tal como em uma oficina, onde todos dependem da troca, do empréstimo de ferramentas para fazer a corrente engrenar.
Tendo a ideia de que cada profissional tem sua caixa, foi possível inferir a existência de variadas posturas profissionais envolvidas no trabalho colaborativo em equipe:
Tem um diferencial que é quando o profissional quer entender, está disponível, quer aprender.
(ENFERMEIRO2)
O trabalho em equipe nunca vai ter fim. Porque a gente nunca vai ser o mesmo. Vamos estar sempre tendo que criar novas habilidades para lidar com aquilo e ir mudando.
(ACS9)
Tem muita coisa que a gente tem que esforçar do nosso lado para as coisas resolverem.
(ZELALADOR2)
A postura profissional porta a particularidade de ser dinâmica e foi percebida como uma linha flexível que incide, com maior potência, no trabalho objetivo, considerado aqui como uma linha dura por meio do pensamento previsto e contável. Ao mesmo tempo em que há uma dependência entre as caixas de ferramentas, é preciso que cada profissional esteja comprometido minimamente com a própria caixa. Dito de outro modo, é imprescindível a parte que cabe a cada um. Dessa maneira, a postura profissional referida nos discursos e observada nos grupos é aquela que viabiliza impactos nas interações, movimento no trabalho em equipe que não é fixo, e rastreia, fora da circularidade, um além que vá auxiliar na “des-construção” de habilidades2424 Lira ES, Matos IB, Ferla AA. Movimentos do desejo no trabalho em saúde: cartografia do cotidiano. Porto Alegre: Rede Unida; 2020. (Série Vivências em Educação na Saúde)..
O efeito gerado pela linha flexível, postura do profissional, foi visto como duplo: positivo, segundo destacado, e negativo, quando há ausência de implicação pelo trabalho, causando morosidade no serviço, descontentamento pessoal e da equipe. O efeito negativo da linha flexível, postura do profissional, impacta subjetivamente o sujeito, o território e o andamento colaborativo da equipe. O que pode advir desse impacto são os conflitos.
Dificulta quando tem falta de interesse, quando há vista grossa no trabalho e falta de disposição.
(ACS5)
Nunca tive problema com paciente, mas equipe é difícil porque tem conflito, se não tiver conflito não é normal.
(ACS4)
Temos que ver se estamos tendo esse conflito para agredir ou para corrigir, para ofender ou para resolver, a gente tem que saber qual é a nossa intenção.
(PSICÓLOGO2)
Nas falas, o conflito é analisado de forma dupla: como uma linha dura, aprisionando a vida; como uma linha flexível, potencializando a vida. Como aprisionamento, realça o estresse, prejudica a organização psíquica, favorece as inimizades e as competições. As competições, expressivas nas entrelinhas durante todas as etapas da pesquisa, podem ser exemplificadas pelas comparações de produtividade, pelas relações verticais e pelo uso demasiado de alguns profissionais pelos instrumentos tecnológicos. Já o conflito, como potencializador, produz movimento reflexivo, impulsiona mudanças inventivas e fortalece o trabalho concatenado. Os conflitos, em suas duas vias, são frequentes e necessários na rotina de trabalho da eSF, mas devem ser articulados com a compreensão ativa da intenção2525 Almeida PJS. O conflito no processo de trabalho da equipe de emergência [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2009., como inferiram os discursos.
Durante a produção dos dados, observou-se que o uso demasiado dos instrumentos tecnológicos (computadores), além de promover competição, está associado ao alcance das metas de produtividade. Tais metas foram referidas como estruturas organizacionais experimentadas, na maioria das vezes, em uma lógica circular, o que pode ser relacionado com a tecnologia dura. O uso concentrado dessa tecnologia é analisado como uma linha dura por portar uma característica materializada e estruturada, destacada por equipamentos e máquinas que comprometem a qualidade do trabalho vivo em ato2626 Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2014. (Saúde em Debate, 145)., como se observa a seguir:
Muita meta para o funcionário e aí as vezes você acaba trabalhando pela quantidade e não pela qualidade.
(ACS16)
A gente se sente sufocado.
(ACS8)
Eu sou igual àquele velho ditado, bombril [...] Eu absorvo muito e isso me desgasta.
(ASSISTENTE ADMINISTRATIVO1)
Nesse sentido, o uso concentrado da tecnologia dura afeta o andamento da colaboração entre a equipe e a assistência prestada por ela. Por isso, a troca de “inform-ação” entre a eSF, analisada como uma linha flexível, mostrou-se ser um forte recurso para dinamizar o trabalho contabilizado apenas por metas. O circuito da informação, notado nos discursos dos participantes em razão de suas ações cotidianas, ressaltou-se pelas escalas em sua variabilidade de funções, inclusive para uso dos computadores; nos murais informativos; no uso de tabelas, cronogramas e recursos digitais de transmissão, por exemplo, datashow e grupos no whatsapp.
Nos encontros, foi percebido que os profissionais articulavam as suas respostas-produções, em maior grau, aos pacientes, dando a entender a relação intrínseca entre equipe e paciente.
Trabalhando em equipe na APS a gente consegue abordar a demanda do paciente de diversos ângulos.
(DENTISTA2)
Todo mundo desempenhando funções diferentes e conectadas para atender bem o usuário, se a equipe não está funcionando de forma bem lubrificada, a assistência fica comprometida.
(MÉDICO2)
A gente tem que desenvolver certos vínculos profissionais que contribuem para o atendimento prestado.
(ENFERMEIRO3)
O paciente, linha flexível, foi associado como eixo importante para a interação da equipe, uma vez que impulsiona a comunicação horizontal dos profissionais a fim de fornecer um cuidado responsável. Na rotina da eSF, cada membro contribui assistencial e subjetivamente, dando contorno aos processos de interação que podem assumir diversos modos, como a colaboração interprofissional2727 Araújo EMD, JLACA Jr. Usuário, família e comunidade como parte da equipe de saúde na colaboração interprofissional. SANARE. 2016; 15(2):120-8.. Retratando a contribuição assistencial e subjetiva na realidade das equipes cartografadas, citam-se: o vínculo capaz de produzir estimulação e empoderamento, as comemorações de datas simbólicas, o compartilhamento de lanches, a ajuda proativa ao colega no desenvolvimento de uma tarefa, a cobertura de assistência a uma microárea descoberta por um membro de férias ou o atestado e a presença de um gerente e/ou coordenação da equipe por profissionais de nível superior.
A gerência da equipe foi analisada como uma linha flexível.
Enfermeira sempre nos incentiva com algo [...] saber da minha importância me ajuda a continuar.
(ACS11)
Profissionais de nível superior trazem harmonia para a equipe, a postura desses profissionais faz uma diferença muito grande.
(DENTISTA2)
Para ter um bom desenvolvimento precisa ter um bom líder, que direciona a equipe para um propósito.
(ZELADOR3)
O Ministério da Saúde credenciou a presença de gerentes de USF, a PNAB de 2017 versou suas atribuições e a Portaria n. 6/GM/MS, de 27 de setembro de 2018, apresentou seu financiamento1919 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 930, de 15 de Maio de 2019. Institui o Programa Saúde na Hora que dispõe sobre o horário estendido de funcionamento das Unidades de Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde; 2019.. A presença desse profissional na USF se dá associada à avaliação municipal de tal necessidade e, quando há o Programa Saúde na Hora, é requisito obrigatório. O profissional em questão possui o papel de garantir a gestão e a organização do processo de trabalho; participar do planejamento e da programação das ações das equipes e orientá-las, incluindo a organização de suas agendas; atuar na mediação de conflitos; estimular o vínculo entre os profissionais, favorecendo o trabalho em equipe, entre outros77 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017.. Os enunciados representaram os efeitos após a entrada dos gerentes em duas USF, que ocorreu em 2020. Já nas outras duas equipes foram analisados que a coordenação dos profissionais de nível superior possui função semelhante ao do gerente por ter em comum a gestão da equipe.
O trabalho colaborativo na eSF soma-se a uma complexa gama de subjetividades, ora aprisionando em realidades estabelecidas, ora potencializando a vida, o novo e a invenção. Infere-se que não há definição fechada do que é esse trabalho, mas é possível apreender, com os discursos associados às literaturas, que o trabalho é perpassado por estratos duros, naturais e predeterminados (demandas da eSF, trabalho objetivo, conflito e tecnologia dura) que, na maioria das vezes, são afetados (demandas da eSF, tecnologias leves, postura do profissional, informação, gerência e conflito) e traçam modificações. Isto é, o cruzamento das linhas duras e flexíveis incita a interação dos membros, aspecto fundamental para o trabalho colaborativo.
Linhas de fuga como estratégias para o trabalho colaborativo
Seguindo a exposição do processo cartografado, o impulso das linhas flexíveis sob as linhas duras dá lugar aos agenciamentos. Ao serem analisados os agenciamentos, surgem as estratégias utilizadas para o trabalho colaborativo em eSF, como linhas de fuga, as quais viabilizam transformações existenciais da realidade. As narrativas a seguir apresentam indícios dessas transformações:
Ouvindo, a gente se posiciona melhor, tem uma postura diferente.
(ACS9)
Ninguém sabe do outro se ele não falar, então a comunicação é muito importante.
(ENFERMEIRO1)
A gente aprende a se comunicar com o outro, vai entendendo como o outro é, de que forma é melhor eu falar com ele, a gente aprende a ouvir.
(MÉDICO1)
As linhas de fuga, comunicação e escuta foram elencadas como estratégias diante das interpretações limitadas. Quando há lugar para o membro de uma equipe falar, comunicar-se, as relações tendem a se movimentar de maneira mais ativa. A comunicação, em sua diversidade de linguagens possíveis, compreende, para além da voz, o comportamento, o olhar e a posição de escuta. É uma escuta sensível até com o silêncio, que sai do próprio lugar e salta aos modos variados de perceber o outro1111 Silva MRF, Pedrosa JIS, Alencar OM, Marinho MNASB, Pereira TM, Pontes RJS, et al. Cartografia da produção do cuidado na estratégia saúde da família. Res Soc Develop. 2021; 10(8):e57410817552.. Essas duas estratégias foram analisadas de forma complementar, uma vez que uma não ocorre sem a outra.
A comunicação e a escuta produzem processos que realçam a subjetividade e são expressados e potencializados, sobretudo mediante as reuniões de equipe.
As reuniões de equipe têm que acontecer com uma certa frequência, um momento para pensar juntos.
(TÉCNICO EM ENFERMAGEM2)
Nós temos reuniões toda semana, é constante, momento que a gente coloca os pontos que precisam melhorar.
(ACS2)
Nesses momentos a gente tem voz, opinião, e que a equipe vai decidir qual melhor estratégia que será usada.
(ACS10)
A reunião foi analisada como uma linha de fuga, pois refere a vivência potente em produzir conhecimento. Por meio das falas, infere-se que a reunião de equipe é um encontro que deve ocorrer de maneira regular, pois impulsiona a produção de pensamentos, não aniquilando diferenças, mas trocas que favorecem o vínculo e o estímulo ao trabalho realizado. Na produção dos dados, foi percebido que não é viável um roteiro engessado, e sim uma reunião facilitada por ambiente, recursos didáticos, nichos de pautas, trocas entre os integrantes e avaliação dos efeitos pós-reunião. Isso porque sempre haverá pontuações a serem feitas e pontos que precisarão ser reelaborados. Corroborando esse achado, Dall’Agnol e Grando2828 Grando MK, Dall’agnol CM. Desafios do processo grupal em reuniões de equipe da estratégia de saúde da família. Esc Anna Nery. 2010; 14(3):504-10. afirmam que as reuniões, além de proporcionarem construção de planejamentos relacionados à assistência, propiciam o compartilhamento de ideias, a relação interpessoal, a fluidez do pensamento criativo e a avaliação do cotidiano da equipe.
Outra estratégia que contribui para o trabalho colaborativo, analisada como linha de fuga e ressaltada nas entrevistas individualizadas, é a Residência Multiprofissional e Médica em Saúde da Família. A identificação adveio dos profissionais que cursaram a Residência, dos que ainda estão em processo e dos profissionais, em sua maioria, que não a executam diretamente.
Eu aprendi a ser proativa e atribuo isso à Residência [...] capacidade técnica relacionada à gestão de equipe, relacionamento interpessoal. Na Residência comecei a sair da prática tradicional médica de atendimento para participar mais ativamente dessa parte assistencial. Eu sou outra profissional e pessoa depois da Residência.
(MÉDICO1)
Têm muita diferença quando faz Residência.
(DENTISTA3)
Eu acho que depois que a Residência entrou, melhorou bastante.
(ACS15)
Os Programas de Residência provêm do vínculo educação e trabalho, em uma ação entre os Ministérios da Saúde e da Educação, sendo uma Pós-Graduação que se encaixa na modalidade lato sensu. Porta a característica de ser uma formação qualificada de profissionais capacitados para trabalhar com base nos princípios e nas diretrizes do SUS. A Residência em Saúde da Família (RSF), conforme denotado nas falas, tem a função de desenvolver uma educação de forma crítica e reflexiva, um ensino em serviço associado ao processo de descobrimento de caminhos. Tais caminhos são tanto singulares quanto coletivos, mas sempre subjetivos, já que ultrapassam os territórios marcados por práticas curativas e prescritivas, a compartimentalização da equipe e o “obturamento” da integralidade2929 Rodrigues DF, Costa CFS, Duarte PM, Silva PC. Residência multiprofissional em saúde da família e educação permanente em saúde: uma construção de vínculo entre a educação e o trabalho. Res Soc Dev. 2021; 10(5):e7410514491..
O impacto da RSF é multifacetado, haja vista que os membros da equipe, o ambiente físico, a comunidade e o solo são impulsionados à fertilidade por meio da construção daquilo que não é fixo, como o cuidado humano e acolhedor, a habilidade de gerenciamento, a organização da assistência compatível com os atributos do SF e a colaboração entre a equipe. Por isso, entende-se que a RSF, como processo educativo, não forma apenas o residente, mas toda a conjuntura complexa que comporta aquele serviço, sobretudo a equipe.
A RSF é bienal e por isso há alta rotatividade dos profissionais nas USF, representando que, além do processo de desenvolvimento durante os dois anos, é imprescindível que a educação continuada permaneça com ou sem Residência, como é observado nos discursos:
De forma a potencializar a ação, trazendo mais resolutividade ao serviço, a gente tem melhorado pela capacitação profissional.
(ENFERMEIRO1)
Aquela pessoa que tem habilidade capacita a que não tem, e também tem a questão de interesse.
(PSICÓLOGO1)
Nos discursos, a capacitação refere-se à Educação Permanente, analisada como uma linha de fuga presente em inúmeros contextos: quando há deficiência de conhecimento prático-teórico, incidência das demandas, reelaboração de fluxos e oficinas de produção de saúde. A Educação Permanente apresentou-se como uma expansão de um campo disciplinar único e também pela produção desejante do profissional de saúde. A expansão de um campo disciplinar quando a formação contínua é veículo para a transformação da realidade, por exemplo, a lógica das parcerias com instituições de Graduação, os PRS, o Mestrado e o Doutorado. Por sua vez, a produção desejante do profissional alicerça-se no anseio de vivificar o cuidado rotineiro por meio da disposição em aprender conjuntamente3030 Dias M, Brito S, Almeida M, Vieira M, Veloso F, Dias O, et al. A educação permanente em saúde no processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde. In: Santos ASF, Dionízio A, Rodrigues C, organizadores. Estudos originais no âmbito da Atenção Primária à Saúde do município de Montes Claros, Minas Gerais, Brasil. Goiânia: Editora Espaço Acadêmico; 2020. p. 203-15.. Esses dois pontos estão articulados com a equipe, pois a Política Nacional de Educação Permanente propõe que os processos de educação dos trabalhadores da saúde aconteçam pela problematização conjunta do processo de trabalho3131 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2009..
Considerações finais
O estudo mostrou-se inovador, pois se inferiu que o trabalho colaborativo é um processo mutável e perpassado por diversas variáveis, e tal análise só foi possível com a orientação das pistas vistas, sentidas e inventadas com os participantes. A produção dos dados só pôde ocorrer pela imersão dos pesquisadores na realidade viva das equipes, já que ao menor aspecto paralisante houve o ato de produzir questão, visando causar pequenos desvios, nascentes em solos cristalizados, pensamentos problematizadores e subjetividade. Dessa forma, reconhecer a importância das linhas duras foi essencial, uma vez que elas coexistem na realidade. Importa, pois, saber fazer com elas, e não as eliminar.
O tempo, fator crucial, proporcionou encontros com durações intensas, porém escasso em continuidade, trazendo limitações à acuidade do rastreio sem pressa; assim, faz-se necessário o desenvolvimento de novos estudos privilegiando um tempo hábil. Por fim, é certo que a Cartografia possibilitou acompanhar o processo das relações das eSF e visualizar as manifestações das forças como arranjos molventes, criativos e emancipatórios, presentes nas estratégias cartografadas.
Agradecimentos
Às quatro equipes de Saúde da Família, que foram terreno fértil para a produção de dados implicados; à Residência Multiprofissional em Saúde da Família, como programa padrão ouro; e aos encontros inéditos advindos da disposição dos pesquisadores por se afetarem sensoriamente.
- Martins JD, Santos MP, Rodrigues CAQ, Oliveira PSD, Sampaio CA. Cartografia das estratégias utilizadas para o trabalho colaborativo em equipes de saúde da família. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230342 https://doi.org/10.1590/interface.230342
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
10 Jun 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
21 Jul 2023 - Aceito
06 Fev 2024