Resumos
A relação com o corpo e com a alimentação tem sido impactada pelo ambiente obesogênico, tema escasso na literatura que afeta mulheres e necessita de métodos de investigação em profundidade. O objetivo deste estudo foi acessar e explorar o reconhecimento da relação com o corpo e a alimentação de mulheres participantes de uma intervenção educativa para a consciência alimentar por meio do mapa corporal narrado, uma metodologia visual. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, conduzida com 19 mulheres brasileiras, que construíram o mapa corporal individualmente, analisado considerando representações visuais e narrativas. Formas de autodenominação foram reconhecidas por temas que demonstraram como aspectos da identidade definiram ou intensificaram a relação com o corpo e a alimentação. Este estudo contribuiu com uma estratégia para programas educativos de alimentação e nutrição para o fortalecimento da saúde de mulheres.
Palavras-chave
Pesquisa qualitativa; Comportamento alimentar; Mulheres; Métodos visuais; Mapa corporal
La relación con el cuerpo y con la alimentación se ha visto impactada por el ambiente obesogénico, tema escaso en la literatura, que afecta a las mujeres y necesita métodos en profundidad. El objetivo de este estudio fue tener acceso y explorar el reconocimiento de la relación con el cuerpo y alimentación de mujeres participantes de una intervención educativa para la conciencia alimentaria por medio del mapa corporal narrado, metodología visual. Se trata de una investigación cualitativa, realizada con diecinueve mujeres brasileñas que construyeron el mapa corporal individualmente, analizado en consideración a representaciones visuales y narrativas. Formas de autodeterminación se reconocieron por temas que demostraron cómo aspectos de la identidad definieron o intensificaron la relación con el cuerpo y con la alimentación. Este estudio contribuyó con una estrategia para programas educativos de alimentación y nutrición para el fortalecimiento de la salud de las mujeres.
Palabras clave
Investigación cualitativa; Comportamiento alimentario; Mujeres; Métodos visuales; Mapa corporal
Introdução
A relação com o corpo e com a alimentação de uma pessoa ocorre como um produto do contato entre os sentidos e as estruturas corporais, considerando os estímulos providos pelo ambiente11 Longhurst R, Johnston L, Ho E. A visceral approach: cooking “at home” with migrant women in Hamilton, New Zealand. Trans Inst Br Geogr. 2009; 34(3):333-45.. A alimentação é reconhecida por construir e modular a identidade cultural de acordo com os significados das experiências produzidas no contato com o alimento22 Rose G. Researching with visual materials: a brief survey. In: Rose G, organizadora. Visual methodologies: an introduction to researching with visual materials. 4th ed. London: SAGE Publications; 2016. p.1-23.,33 Santos LAS. Reflexões sobre a tríade corpo, comer e comida. In: Santos LAS, organizadora. O corpo, o comer e a comida um estudo sobre as práticas corporais alimentares cotidianas a partir da cidade de Salvador - Bahia. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia; 2008. p. 21-45.. Apesar da relevância do tema, este tem sido pouco explorado, sobretudo na perspectiva do envolvimento da alimentação na construção simbólica e cultural do corpo33 Santos LAS. Reflexões sobre a tríade corpo, comer e comida. In: Santos LAS, organizadora. O corpo, o comer e a comida um estudo sobre as práticas corporais alimentares cotidianas a partir da cidade de Salvador - Bahia. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia; 2008. p. 21-45..
O excesso de estímulos alimentares e o acesso facilitado ao consumo de alimentos de baixa qualidade nutricional caracterizam sinteticamente o denominado ambiente obesogênico44 Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the lancet commission report. Lancet. 2019; 393(10173):791-846., o qual prejudica mecanismos de regulação das necessidades nutricionais, como a fome e a saciedade44 Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the lancet commission report. Lancet. 2019; 393(10173):791-846.. Tomadas de decisões desprovidas de tempo e atenção são afetadas pela rapidez e baixa capacidade reflexiva, o que pode levar a um consumo alimentar excessivo55 Provencher V, Jacob R. Impact of perceived healthiness of food on food choices and intake. Curr Obes Rep. 2016; 5(1):65-71.. Nesse cenário, padrões de consumo e valores relacionados ao corpo vão sendo disseminados sob a égide da modernização, do hedonismo, do individualismo e da idealização de um corpo socialmente aceito33 Santos LAS. Reflexões sobre a tríade corpo, comer e comida. In: Santos LAS, organizadora. O corpo, o comer e a comida um estudo sobre as práticas corporais alimentares cotidianas a partir da cidade de Salvador - Bahia. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia; 2008. p. 21-45.,66 Quittkat HL, Hartmann AS, Düsing R, Buhlmann U, Vocks S. Body dissatisfaction, importance of appearance, and body appreciation in men and women over the lifespan. Front Psychiatry. 2019; 10:1-12., especialmente para as mulheres66 Quittkat HL, Hartmann AS, Düsing R, Buhlmann U, Vocks S. Body dissatisfaction, importance of appearance, and body appreciation in men and women over the lifespan. Front Psychiatry. 2019; 10:1-12..
Estudos pregressos identificaram que o corpo desempenha papel fundamental na produção das experiências com o mundo77 McCorquodale L, DeLuca S. You want me to draw what? Body mapping in qualitative research as canadian socio-political commentary. Forum Qual Sozialforsch. 2020; 21(2):1-28. doi: 10.17169/fqs-21.2.3242.
https://doi.org/10.17169/fqs-21.2.3242... , o que marca a experiência a partir do corpo (embodied)(e(e)Termo utilizado pela literatura internacional.), como a experiência que é produzida no contato do corpo com o alimento. A alimentação faz uma mediação entre essas experiências33 Santos LAS. Reflexões sobre a tríade corpo, comer e comida. In: Santos LAS, organizadora. O corpo, o comer e a comida um estudo sobre as práticas corporais alimentares cotidianas a partir da cidade de Salvador - Bahia. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia; 2008. p. 21-45., paralelamente ao reconhecimento das necessidades corporais que dependem do nível de consciência e autoconhecimento88 Craig AD. How do you feel? Interoception: the sense of the physiological condition of the body. Nat Rev Neurosci. 2002; 3(8):655-66. e que são fundamentais para a regulação de estados corporais99 Herbert BM, Pollatos O. The body in the mind: on the relationship between interoception and embodiment. Top Cogn Sci. 2012; 4(4):692-704.. A consciência participa ativamente da relação da pessoa com o mundo, coordenando tomadas de decisões e comportamentos a partir da combinação de informações recebidas por essa relação1010 Pereira A Jr. Triple-aspect monism: a conceptual framework for the science of human consciousness. In: Pereira A Jr, Lehmann D, editores. The unity of mind, brain and world. New York: Cambridge University Press; 2013. p. 299-337.. Já a experiência a partir do corpo, pode modular tomadas de decisões e comportamentos; mediar a relação com as normas sociais; e direcionar desejos e atitudes alimentares11 Longhurst R, Johnston L, Ho E. A visceral approach: cooking “at home” with migrant women in Hamilton, New Zealand. Trans Inst Br Geogr. 2009; 34(3):333-45.,1111 Hayes-Conroy A. Feeling slow food: visceral fieldwork and empathetic research relations in the alternative food movement. Geoforum. 2010; 41(5):734-42..
Métodos que acessem a relação simbólica com o corpo e com a alimentação para aprofundar a consciência alimentar são ainda escassos na literatura e podem ser estratégicos para programas educativos1212 Hsu T, Forestell CA. Mindfulness, mood, and food: the mediating role of positive affect. Appetite. 2021; 158:105001.. Abordagens que utilizem métodos criativo-reflexivos1313 Futch VA, Fine M. Mapping as a method: history and theoretical commitments. Qual Res Psychol. 2014; 11(1):42-59. e que exercitem a consciência alimentar55 Provencher V, Jacob R. Impact of perceived healthiness of food on food choices and intake. Curr Obes Rep. 2016; 5(1):65-71.,1010 Pereira A Jr. Triple-aspect monism: a conceptual framework for the science of human consciousness. In: Pereira A Jr, Lehmann D, editores. The unity of mind, brain and world. New York: Cambridge University Press; 2013. p. 299-337. são alternativas potentes para este fim. Reconhecendo a dificuldade em captar pela comunicação verbal os significados da relação simbólica com o corpo e com a alimentação, estes podem ser representados por meio de palavras, objetos e imagens1414 Figueiredo MD, Silva AO. Expressões alimentares em mulheres com obesidade: facetas simbólicas do complexo do comer. Plur Saude Ment. 2020; 9(2):28-33.. É o que se propõe o mapa corporal narrado1515 Gastaldo D, Magalhães L, Carrasco C, Davy C. Body-map storytelling as research: methodological considerations for telling the stories of undocumented workers through body mapping [Internet]. Toronto: University of Toronto; 2012 [10 Ago 2023]. Disponível em: http://www.migrationhealth.ca/undocumented-workers-ontario/body-mapping
http://www.migrationhealth.ca/undocument... , metodologia visual de pesquisa qualitativa que busca comunicar como as experiências são percebidas e vivenciadas pelas pessoas por meio da representação do corpo. Essa metodologia vem sendo aplicada em diversos contextos de pesquisa1616 Gastaldo D, Rivas-Quarneti N, Magalhães L. Body-map storytelling as a health research methodology: blurred lines creating clear pictures. Forum Qual Soc Res. 2018; 19(2):1-26. doi: 10.17169/fqs-19.2.2858.
https://doi.org/10.17169/fqs-19.2.2858... , porém, seu uso ainda é escasso no campo da alimentação e nutrição. Neste artigo, utilizaremos a expressão “experiência a partir do corpo” em referência às experiências produzidas a partir da representação do corpo.
No cenário de excessos de estímulos alimentares que vulnerabilizam a saúde humana ao impactar a relação com o corpo e com a alimentação, identifica-se a importância do reconhecimento pela pessoa das necessidades corporais para o equilíbrio de tomadas de decisões e comportamentos alimentares, especialmente de mulheres. O objetivo do estudo foi acessar e explorar o reconhecimento da relação com o corpo e com a alimentação de mulheres como uma síntese de uma intervenção educativa para a consciência alimentar por meio do mapa corporal narrado. Buscamos responder à seguinte questão de pesquisa: “Como é reconhecida a relação com o corpo e com a alimentação na perspectiva das vivências propostas em uma intervenção educativa para a consciência alimentar?”.
Métodos
Contexto
O estudo foi desenvolvido e aplicado como parte do Programa de Educação Alimentar e Nutricional com Exercícios Sensoriais e Cognitivos (PESC), intervenção para a promoção da consciência de mulheres sobre os estímulos promovidos pelo ambiente obesogênico para o consumo alimentar1717 Palazzo CC, Leghi BE, Pereira A Jr, Diez-Garcia RW. Educational intervention for food consciousness: a randomized study protocol. Nutrition Health. 2022; 28(1):123-9.. A abordagem da consciência foi fundamentada na teoria do Monismo de Triplo Aspecto (MTA)1010 Pereira A Jr. Triple-aspect monism: a conceptual framework for the science of human consciousness. In: Pereira A Jr, Lehmann D, editores. The unity of mind, brain and world. New York: Cambridge University Press; 2013. p. 299-337.. O PESC consistiu em seis encontros – dois avaliativos e quatro oficinas – com temas representativos dos estímulos promovidos pelo contexto evidenciado: desejo alimentar (oficina 1); prazer alimentar (oficina 2); sinais corporais de fome e de saciedade (oficina 3); e registro de experiências alimentares no corpo (oficina 4). Em protocolo específico1717 Palazzo CC, Leghi BE, Pereira A Jr, Diez-Garcia RW. Educational intervention for food consciousness: a randomized study protocol. Nutrition Health. 2022; 28(1):123-9., está publicado o desenvolvimento e aplicação do PESC.
Abordagens qualitativa e teórica
Trata-se de um estudo de corte transversal, que aplicou um método qualitativo de pesquisa – o mapa corporal narrado1515 Gastaldo D, Magalhães L, Carrasco C, Davy C. Body-map storytelling as research: methodological considerations for telling the stories of undocumented workers through body mapping [Internet]. Toronto: University of Toronto; 2012 [10 Ago 2023]. Disponível em: http://www.migrationhealth.ca/undocumented-workers-ontario/body-mapping
http://www.migrationhealth.ca/undocument... – na quarta oficina do PESC1717 Palazzo CC, Leghi BE, Pereira A Jr, Diez-Garcia RW. Educational intervention for food consciousness: a randomized study protocol. Nutrition Health. 2022; 28(1):123-9.. A construção do mapa corporal é baseada no mapeamento de experiências a partir da representação do corpo por meio de processos artísticos, utilizando representações visuais (como texto, pintura e desenhos)1818 Klein M, Milner RJ. The use of body-mapping in interpretative phenomenological analyses: a methodological discussion. Int J Soc Res Methodol. 2019; 22(5):533-43.. Para atribuir significados às experiências e aos símbolos construídos no mapa corporal1515 Gastaldo D, Magalhães L, Carrasco C, Davy C. Body-map storytelling as research: methodological considerations for telling the stories of undocumented workers through body mapping [Internet]. Toronto: University of Toronto; 2012 [10 Ago 2023]. Disponível em: http://www.migrationhealth.ca/undocumented-workers-ontario/body-mapping
http://www.migrationhealth.ca/undocument... , é necessária a produção de narrativas por seu construtor. Na quarta oficina do PESC, as participantes registraram no mapa corporal as experiências resultantes das elaborações decorrentes das oficinas anteriores, de forma a representar individualmente a identidade alimentar e a relação com a alimentação. O referencial teórico do MTA1010 Pereira A Jr. Triple-aspect monism: a conceptual framework for the science of human consciousness. In: Pereira A Jr, Lehmann D, editores. The unity of mind, brain and world. New York: Cambridge University Press; 2013. p. 299-337. considera a consciência como o reconhecimento da pessoa a uma experiência vivida no mundo e percebida pelo que produz no corpo, como sensações (por exemplo, estados corporais como fome e sede); conteúdos emocionais, cognitivos ou perceptivos; e a avaliação de um evento.
A relação entre o mapa corporal narrado e o referencial teórico do MTA se dá devido ao fato de o primeiro permitir o reconhecimento das experiências vivenciadas a partir do corpo1515 Gastaldo D, Magalhães L, Carrasco C, Davy C. Body-map storytelling as research: methodological considerations for telling the stories of undocumented workers through body mapping [Internet]. Toronto: University of Toronto; 2012 [10 Ago 2023]. Disponível em: http://www.migrationhealth.ca/undocumented-workers-ontario/body-mapping
http://www.migrationhealth.ca/undocument... , condição considerada fundamental pelo MTA para a sensibilização da pessoa na sua interação com o mundo e a atualização para processos conscientes1010 Pereira A Jr. Triple-aspect monism: a conceptual framework for the science of human consciousness. In: Pereira A Jr, Lehmann D, editores. The unity of mind, brain and world. New York: Cambridge University Press; 2013. p. 299-337.. Previamente1919 Leghi BE, Palazzo CC, Magalhães L, Diez-Garcia RW. Using body-map storytelling for accessing insights in an educational intervention for food consciousness. Int J Qual Methods. 2022, 21:1-15., o mapa corporal narrado demonstrou capacidade para acessar a consciência por ter sido um meio de expressão e reflexão de experiências alimentares.
Reflexividade e posicionamento dos pesquisadores
Somos parte de um grupo de pesquisa formado por mulheres que estudam as interfaces teórico-metodológicas das ciências sociais com as biológicas no campo da alimentação e nutrição. Neste estudo, a subjetividade da relação de mulheres com a alimentação e com o corpo foi abordada por meio de narrativas, produzidas a partir de uma metodologia visual.
Participantes
Como parte do PESC, o recrutamento das participantes consistiu nas seguintes etapas1717 Palazzo CC, Leghi BE, Pereira A Jr, Diez-Garcia RW. Educational intervention for food consciousness: a randomized study protocol. Nutrition Health. 2022; 28(1):123-9.: divulgação da pesquisa em mídias sociais, site e e-mail vinculados à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP); entrevista das interessadas, por telefone, em que foram aplicados os critérios de elegibilidade; e esclarecimento dos procedimentos do estudo. De setembro de 2019 a novembro de 2020, 19 mulheres foram selecionadas a partir dos seguintes critérios1717 Palazzo CC, Leghi BE, Pereira A Jr, Diez-Garcia RW. Educational intervention for food consciousness: a randomized study protocol. Nutrition Health. 2022; 28(1):123-9.: mulheres com dificuldade no manejo do peso corporal (ganho de peso maior que 5% no último ano); que relataram desejo por aprimorar a relação com a alimentação; com idade entre 20 a 59 anos2020 World Health Organization. Women and health: today’s evidence tomorrow’s agenda [Internet]. Geneva: WHO; 2009 [citado 10 Ago 2023]. Disponível em: https://iris.who.int/handle/10665/44168
https://iris.who.int/handle/10665/44168... ; e com valores do Índice de Massa Corporal (IMC) entre 18,5 a 34,9 kg/m² (classificação de eutrofia a obesidade grau I)2121 World Health Organization. Obesity: preventing and managing the global epidemic [Internet]. Geneva: WHO; 2000 [citado 10 Ago 2023]. Disponível em: https://iris.who.int/handle/10665/42330
https://iris.who.int/handle/10665/42330... . Foram excluídas as mulheres em uso de cigarro, gestantes, portadoras de restrições alimentares (doença celíaca e diabetes), em uso de medicamentos psicotrópicos e profissionais ou estudantes da área de Nutrição.
Indicadores de gênero, cor, etnia e biológicos não foram incluídos neste estudo, considerando a consciência alimentar como objeto do PESC e o mapa corporal narrado como meio para acessá-la, enquanto uma experiência individual. Como indicadores sociais, foram considerados dados de perfil socioeconômico como idade, estado civil, escolaridade e renda per capita. O recorte deste estudo foi conhecer como os estímulos para o consumo alimentar, considerando as características do ambiente alimentar que vive a sociedade, são vivenciados e processados internamente pelas mulheres.
Todas as mulheres assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e as providências relacionadas a confidencialidade e aspectos éticos foram asseguradas2222 Guillemin M, Drew S. Questions of process in participant-generated visual methodologies. Vis Stud. 2010; 25(2):175-88..
Dados gerados
Foram coletados dados do perfil socioeconômico (idade, estado civil, escolaridade e renda per capita)2323 Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Critério Brasil [Internet]. São Paulo: ABEP; 2021 [citado 10 Ago 2023]. Disponível em: https://www.abep.org/criterio-brasil
https://www.abep.org/criterio-brasil... e antropométricos (peso e estatura) para cálculo do IMC (kg/m²). O peso foi aferido utilizando uma balança digital (Wiso®); e a estatura, por um estadiômetro portátil (Cescorf®).
O mapa corporal narrado foi aplicado de forma adaptada em comparação à aplicação tradicional1515 Gastaldo D, Magalhães L, Carrasco C, Davy C. Body-map storytelling as research: methodological considerations for telling the stories of undocumented workers through body mapping [Internet]. Toronto: University of Toronto; 2012 [10 Ago 2023]. Disponível em: http://www.migrationhealth.ca/undocumented-workers-ontario/body-mapping
http://www.migrationhealth.ca/undocument... , protocolo que pode ser encontrado na íntegra1919 Leghi BE, Palazzo CC, Magalhães L, Diez-Garcia RW. Using body-map storytelling for accessing insights in an educational intervention for food consciousness. Int J Qual Methods. 2022, 21:1-15.. A aplicação do mapa corporal teve duração de duas horas e foi realizada em pequenos grupos de até seis participantes, porém, sua construção foi individual. Quatro pesquisadores foram treinados para a aplicação no que tange à orientação das participantes sobre a atividade, ao encorajamento às reflexões no processo e à observação de sua construção para a análise dos dados. A aplicação do mapa corporal foi realizada em local amplo e reservado, conferindo espaço adequado para o seu desenvolvimento.
Inicialmente, as participantes realizaram um exercício de relaxamento para a conexão com o corpo, receberam orientações sobre a atividade, esclareceram dúvidas e assinaram o TCLE. A partir do primeiro exercício de construção do mapa corporal – referente à representação do corpo e identidade alimentar –, desenvolveram mapas baseados em sua identidade corporal e no reconhecimento de sua relação com a alimentação. Partindo da representação da silhueta do corpo, em tamanho dimensionado de uma folha A3 (297 mm por 420 mm), as participantes foram convidadas a desenhar o próprio corpo na posição que as representasse, decorar o contorno desse corpo e atribuir um nome fantasia como título do mapa corporal, considerando sua relação com a alimentação. Na sequência, foram orientadas a adicionar características físicas de seus corpos que representassem as suas relações com a alimentação.
Tomando como ponto de partida a representação do corpo, essas questões foram inicialmente representadas visualmente por processos artísticos (como desenhos, pinturas e textos), utilizando kits idênticos de materiais de arte. Na sequência, essas questões foram narradas por gravação de áudio de celulares pessoais e enviadas para uma conversa particular com o pesquisador principal no aplicativo de mensagem WhatsApp. Essas narrativas deram significado ao contexto representado no mapa corporal, bem como às representações construídas visualmente, e foram contabilizadas em minutos para média aritmética de forma a caracterizar as narrativas das participantes.
Análise dos dados
A organização e o processamento dos dados foram realizados logo após a aplicação dos 19 mapas corporais, que também foram fotografados e os áudios gravados, transcritos. Utilizando um software de análise de dados qualitativos – a saber, Atlas. ti, versão 9.0; scientific software development GmbH, Berlim, Alemanha –, as imagens dos mapas corporais fotografados foram inseridas neste software e nomeadas de representações visuais, enquanto as transcrições foram nomeadas de representações narrativas. Para cada participante foi criado um documento com os significados das representações visuais fornecidos pelas narrativas das participantes, processo que foi considerado como um primeiro passo de análise pela familiaridade aos dados. Considerando que são tipos de comunicações diferentes, as representações visuais e narrativas foram analisadas utilizando técnicas distintas, porém, de forma integrada.
A análise das representações visuais foi inspirada na semiologia, que se propõe a acessar os símbolos das imagens a partir de seus significados para compreender os padrões de comunicação88 Craig AD. How do you feel? Interoception: the sense of the physiological condition of the body. Nat Rev Neurosci. 2002; 3(8):655-66.,2424 Rose G. Semiology: laying bare the prejudices beneath the smooth surface of the visible. In: Rose G, organizadora. Visual methodologies: an introduction to researching with visual materials. 4a ed. London: SAGE publications; 2016. p. 106-46.. A análise de conteúdo, na modalidade temática reflexiva2525 Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol. 2006; 3(2):77-101.,2626 Braun V, Clarke V. Reflecting on reflexive thematic analysis. Qual Res Sport Exerc Heal. 2019; 11(4):589-97., foi utilizada para as representações narrativas para compreender os padrões de significados a partir da construção de temas. A tabela 1 apresenta um resumo de como as análises foram realizadas. As análises foram performadas por dois pesquisadores envolvidos no estudo que compararam, discutiram e sintetizaram todos os processos das análises.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Hospital das Clínicas da FMRP-USP, em conjunto com a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), número do certificado 09850919.6.0000.5440.
Resultados
A média de idade das participantes foi de 37 anos, 47% eram solteiras, 79% tinham nível superior completo de escolaridade e a classificação econômica foi compatível com classe baixa (58%)2323 Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Critério Brasil [Internet]. São Paulo: ABEP; 2021 [citado 10 Ago 2023]. Disponível em: https://www.abep.org/criterio-brasil
https://www.abep.org/criterio-brasil... . Quanto à atividade física, 74% a praticavam com regularidade. Sobre o perfil antropométrico de acordo com a classificação do IMC2121 World Health Organization. Obesity: preventing and managing the global epidemic [Internet]. Geneva: WHO; 2000 [citado 10 Ago 2023]. Disponível em: https://iris.who.int/handle/10665/42330
https://iris.who.int/handle/10665/42330... , duas mulheres apresentaram eutrofia (mediana de IMC = 22,35 kg/m²); 12, sobrepeso (mediana de IMC = 27,2 kg/m²); e cinco, obesidade grau I (mediana de IMC = 31,2 kg/m²). O tempo dos áudios teve média de 11 minutos por participante.
A tabela 2 apresenta os resultados da análise de acordo com os temas, subtemas e códigos gerados pelos padrões de significados comunicados pelos dados, considerando os exercícios de construção do mapa corporal: a identidade alimentar e o reconhecimento da relação com a alimentação no corpo. Estes resultados estão apresentados pelo nível de complexidade – do menos ao mais complexo – e representaram o reconhecimento da relação com o corpo e com a alimentação a partir de formas de autodenominação.
Formas de autodenominação sobre a relação com o corpo e com a alimentação das participantes de acordo com os elementos mapeados no mapa corporal narrado
As narrativas das participantes, conforme apresentado a seguir, estão identificadas com o nome fantasia, entre parêntesis, em referência ao nome que cada participante auto atribuiu para representar o seu mapa corporal.
Tema 1 – Identidade
Para o primeiro tema – identidade –, as participantes utilizaram o nome para expressar o reconhecimento de valores pessoais e características corporais (exemplos: qualidades; como se veem a partir da forma corporal; e referências e relações que as inspiraram e as identificaram). A postura corporal demonstrou como as participantes se identificaram com as experiências de vida (exemplos: maneiras de se posicionar, dinâmica adotada na vida, atividades realizadas e valorização de qualidades). Em particular, a cor escolhida para o contorno do corpo foi uma forma de expressão marcante para comunicar um significado (figura 1).
O mapa corporal de Violeta representa o tema 1 – identidade – a partir dos códigos e das respectivas narrativas (vide tabela 2, letras de “a” até “d”): a) Desejo por mudança: “Eu acho que as cores roxa e violeta representam transformação e vontade de mudar”. b) Em pé e de frente: autoanálise corporal: “Eu fiz o contorno em pé para ficar mais fácil de preencher o desenho”. c) Valores de vida expressos por cores vibrantes: “Eu coloquei glitter em volta porque eu acho que meu estado de espírito hoje é um pouquinho mais querendo representar transformação e desejo por mudança, então eu coloquei um pouquinho de brilho roxinho pra mostrar essa ideia”. d) Características da aparência, estrutura e formato corporal: “Eu fiz o contorno do corpo um pouquinho assimétrico, a parte superior um pouquinho mais larga porque eu tenho ombros mais largos, e a perna um pouquinho menor porque eu tenho a perninha um pouco mais curta. Os elementos que eu coloquei foram cabelos, olhos, sobrancelha, cílios e um blushzinho, porque de vez em quando eu sou meio vaidosa, eu gosto de maquiagem, essas coisas, mais pra me identificar mesmo”. (Violeta)
Tema 2 – Relação pessoa-mundo
Tal tema representou formas de as mulheres se relacionarem com o mundo, considerando a experiência com o corpo e a alimentação. Essa relação pôde se direcionar para a pessoa, como narrado pela participante cujo título do mapa corporal foi “De repente corpo largo, ombros caídos”:
Eu não desenhei nada no rosto quando era pra eu desenhar o meu corpo. Eu não fiz boca, eu só desenhei os olhos, como se fosse isso que tava representando mesmo, o que eu vejo eu quero comer. Eu não tenho boca, porque talvez eu não me sinta feliz pra desenhar um sorriso.
(De repente corpo largo, ombros caídos)
Ela deu sentido à sua experiência com a alimentação pela relação subjetiva com o corpo de insatisfação, representada pelo desejo alimentar e pela expressão corporal – não ter a boca – para expressar tristeza e descontentamento. A relação das mulheres também pôde se direcionar para o mundo:
Eu fiz meu corpo em pé, mais ereto, tem um chão de apoio pra não flutuar e eu fiz nessa posição por ser mais ativa, porque eu acredito que tenho objetivos, vou atrás deles, não apenas corporal. Então eu fiz nessa posição mais enérgica.
(Eth, corpo e saúde)
A participante que intitulou o seu mapa corporal de “Eth, corpo e saúde” deu sentido à escolha da postura corporal pela forma com que se movimenta na vida, isto é, pela sua experiência no mundo: atenta e sustentada pela realidade, contexto representado pela experiência com o corpo e o chão de apoio.
Tema 3 – Temporalidade
O reconhecimento da relação com o corpo e com a alimentação também foi marcado pelo período da vida. O passado, marcado por lembranças, foi exemplificado pela narrativa da participante: “Eu escolhi Margarida [título do mapa corporal] porque, como a representação é sobre mim, eu me lembrei que a minha mãe me chamava de ‘margarida’ quando eu era criança”.
O subtema presente revelou a visão das participantes sobre elas mesmas: “O eu por eu [título do mapa corporal] é como eu me vejo, não é como eu acho que as pessoas me veem e nem como eu gostaria de ser vista.” (Tica).
Já o subtema futuro foi marcado por idealizações de como a pessoa deveria ser: “Escolhi a posição do corpo em pé, ereta, porque é pra exemplificar como eu me vejo: uma pessoa que precisa ter postura, precisa tá reta e precisa ser mais séria assim diante de algumas situações.” (Cristal).
Tema 4 – Síntese: identidade e relação com o corpo e com a alimentação
A ordem de construção dos elementos mapeados (posição – contorno – nome) definiu o estilo do mapa corporal, isto é, sintetizou o aspecto marcante a ser comunicado por ele. Por exemplo, o estilo do mapa corporal que sintetizou a insatisfação teve um tom de expressão no mapa corporal para excessos, desproporções e assimetrias da forma corporal, caracterizados pela percepção de sofrimento com o corpo. Já o estilo direcionado para a identidade foi destacado visualmente por elementos da vivência pessoal e de personalidade. No estilo de transcendência, foram representadas cores vibrantes no desenho e sem a delimitação de contornos (exemplo: não há representação de mãos e pés), reproduzindo a ampliação para os sentidos da vida. O mapa corporal da figura 2 exemplifica o estilo reflexivo pela narrativa:
O meu desenho eu fiz os olhos fechados, como se fosse uma meditação, como se tivesse que pensar um pouco mais quando a gente fosse nos alimentar. Em qualquer momento.
(Fernanda)
A participante que intitulou o seu mapa corporal de Fernanda, representou a necessidade de conexão consigo mesmo por meio da postura, reproduzindo a forma de se relacionar com a alimentação. A figura 2 também demonstra representações corporais sobre a relação com a alimentação. A centralidade ocupada pela mente na regulação das funções corporais foi representada (figura 2, letra “e”). Manifestações a partir de órgãos (figura 2, letra “f”) remeteram à vitalidade alcançada pela manutenção das funções corporais pela alimentação e ao processo de entrada do alimento para dentro do corpo, como narrado pela participante Tica: “Circulei ali o pescoço, mais no sentido da garganta, né?! Por que é através dela que o alimento entra em contato de externamente pra internamente com o meu corpo, né?!” (Tica).
Os aspectos sensoriais manifestaram a força dos apelos sensoriais pelo desejo e prazer alimentares: “Eu como com os olhos. A primeira reação que eu tenho quando eu vejo um prato predileto é os olhos ficarem brilhantes [ênfase], aquela sensação de água na boca, né?! E eu tenho a sensação de prazer, né?!” (Margarida).
Apesar disso, algumas participantes focalizaram o momento em que a pessoa entra em contato com o alimento antes de começar a comer: “Os olhos, porque primeiro eu acredito que a gente come muito com os olhos, né?! Primeiro, atração, depois vem o olfato e depois, o paladar.” (Eth, corpo e saúde).
Outras participantes destacaram o contato com o alimento ocasionado, por exemplo, pelo paladar por meio do gosto (figura 2, letra “g”): “A boca, porque é o meio da qual a gente se alimenta.” (Alice).
As participantes também integraram a expectativa antes de comer à experiência de comer: “As mãos, preparo os alimentos e com elas levamos eles a boca.” (Maturidade).
Os aspectos antes de comer foram marcantes pela visão e pelo olfato; já os de contato, pelo paladar, tato e audição. Por fim, a relação subjetiva com o corpo identificou significados sobre o peso corporal: “Estar um pouquinho acima do peso, né?! Mostra que eu tenho tido uma boa relação com a comida, que eu tenho comido bastante.” (A liberdade).
Sobre o estado emocional sistêmico, uma participante afirmou: “Coloquei pra representar minha relação com a comida uma boca sorrindo. Porque eu me considero uma pessoa feliz. A comida pra mim é algo que me traz muita alegria, muita satisfação, muito prazer.” (Humana).
O mapa corporal de Fernanda representa o tema 4 – Síntese: identidade e relação com o corpo e com a alimentação – pelos códigos e respectivas narrativas (vide tabela 2, letras de “e” até “g”): (e) mente: "O cérebro que controla todas as funções, todos os órgãos, e que te manda a sensação de saciedade [...] e que tem tudo a ver com a sua relação com a comida, o que você pensa em relação à comida, suas emoções [...] por isso que eu fiz ele bem no centro e de glitter pra chamar mais atenção. (Fernanda)". (f) órgãos e saúde física: "O estômago eu também chamei atenção com as lantejoulas, porque ele é muito importante, tem tudo a ver com a alimentação, com a digestão e com as sensações de saciedade e de fome. (Fernanda)". (g) aspectos sensoriais: a narrativa foi exemplificada no texto.
Discussão
O mapa corporal narrado foi efetivo para acessar e representar o reconhecimento da relação de mulheres com o corpo e com a alimentação por formas de autodenominação, integrando experiências pessoais com as vivenciadas na intervenção, o PESC. Foram representadas nuances sobre desejos e necessidades; limitações; como as participantes se identificaram pela forma corporal, postura corporal e demandas alimentares; o que as inspiraram; e o que foi importante para elas no reconhecimento da relação com o corpo e com a alimentação, incluindo reflexões sobre o que foi aprendido nas oficinas. O mapa corporal permitiu acessar, portanto, a consciência de si e de sua interação com o mundo, representando essas dimensões no corpo por meio do mapa corporal narrado.
A escolaridade e a renda das participantes – representadas, respectivamente, por um alto nível e uma classe social de menor poder econômico – podem ter sido consequência dos meios utilizados para encontrar as voluntárias interessadas, no local em que o estudo foi realizado – FMRP-USP.
A integração entre as formas de autodenominação às experiências no mundo foi marcada pela participação do corpo nos desdobramentos da relação com a alimentação. Percebemos que houve o encorajamento da representação somática1111 Hayes-Conroy A. Feeling slow food: visceral fieldwork and empathetic research relations in the alternative food movement. Geoforum. 2010; 41(5):734-42., que assume a participação central do corpo na elaboração dos sentidos envolvidos nas experiências e, portanto, na repercussão em comportamentos que envolvem sensações, emoções, humor e percepções2727 Anderson B. Becoming and being hopeful: towards a theory of affect. Environ Plan D Soc Space. 2006; 24(5):733-52.. Segundo o referencial teórico MTA1010 Pereira A Jr. Triple-aspect monism: a conceptual framework for the science of human consciousness. In: Pereira A Jr, Lehmann D, editores. The unity of mind, brain and world. New York: Cambridge University Press; 2013. p. 299-337., considera-se que a identificação dos significados das experiências vivenciadas no mundo pela pessoa produz a consciência, que sofre influência do contexto sociocultural2828 Carvalho MCVS, Luz MT. Práticas de saúde, sentidos e significados construídos: instrumentos teóricos para sua interpretação. Interface (Botucatu). 2009; 13(29):313-26. doi: 10.1590/S1414-32832009000200006.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200900... .
A importância da explicação dos significados da posição, do contorno e do nome se deu por permitir a construção da identidade das participantes. Os elementos mapeados no mapa corporal são reconhecidos por exercitar a delimitação entre o espaço público (mundo) e privado (pessoa)2929 Sweet EL, Escalante SO. Bringing bodies into planning: visceral methods, fear and gender violence. URBAN Stud. 2015; 52(10):1826-45.. Autores propõem que a pele é uma expressão do corpo de delimitação da relação com o mundo3030 Ferreira FR. A produção de sentidos sobre a imagem do corpo. Interface (Botucatu). 2008; 12(26):471-83. doi: 10.1590/S1414-32832008000300002.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200800... ,3131 Lupton D. Theoretical perspectives on food and eating. In: Lupton D, organizadora. Food, the body and the self. 2a ed. London: SAGE Publications; 1998. p. 6-36. e têm considerado a garganta como um meio de entrada dos alimentos para dentro do corpo3232 Counihan CM. The body as voice of desire and connection in Florence, Italy. In: Counihan CM, organizadora. The anthropology of food and body: gender, meaning, and power. Nova York: Taylor & Francis; 1999. p. 178-94., o que revela a intimidade da relação alimentação-corpo quando o alimento torna-se parte do corpo. Outros autores3333 Guiné RPF, Ferrão AC, Ferreira M, Correia P, Cardoso AP, Duarte J, et al. The motivations that define eating patterns in some Mediterranean countries. Nutr Food Sci. 2019; 49(6):1126-41. propõem que a alimentação manifesta a identidade das pessoas pelo conteúdo simbólico que ela adquire ao longo da vida. Sugerimos, portanto, que os elementos construídos no mapa corporal pelas participantes foram capazes de desempenhar tais funções, representando, por exemplo, como suas posturas expressaram como se veem no mundo; e como as experiências e a vivência no contexto de suas vidas despertaram desejos contínuos e insaciáveis associados à insatisfação com o corpo.
O papel de fatores individuais no processo de mudança do estilo de vida – em especial, na promoção de práticas alimentares voltadas para a saúde – foi explorado por outros estudos3434 Brennan L, Klassen K, Weng E, Chin S, Molenaar A, Reid M, et al. A social marketing perspective of young adults’ concepts of eating for health: is it a question of morality? Int J Behav Nutr Phys Act. 2020; 17(1):44.,3535 Morgan C, Wildt G, Prado RBR, Thanikachalam N, Virmond M, Riley R. Views and experiences of adults who are overweight and obese on the barriers and facilitators to weight loss in southeast Brazil: a qualitative study. Int J Qual Stud Health Well-being. 2020; 15(1):1-14.. A interferência de fatores como custo, tempo e publicidade no dilema das pessoas entre sucumbir a desejos e/ou a prazeres versus alinhar-se às práticas de saúde foi apontada por esses estudos. Em nosso estudo, foi observado esse mesmo dilema por meio do reconhecimento de como esses fatores entram na pessoa e como essa experiência é processada e internalizada por ela, quer seja entregando-se aos apelos e aos desejos, quer seja sofrendo as contradições destes com outros aspectos. A consciência55 Provencher V, Jacob R. Impact of perceived healthiness of food on food choices and intake. Curr Obes Rep. 2016; 5(1):65-71.,3636 Palazzo CC, Leghi BE, Diez-Garcia RW. Food consciousness intervention improves interoceptive sensitivity and expression of exteroception in women. Nutrients. 2022; 14(3):1-12. sobre as influências do contexto nas tomadas de decisões sobre a alimentação pode representar uma alternativa para intervenções educativas em alimentação e nutrição, especialmente na prevenção e no tratamento da obesidade.
O reconhecimento da relação das participantes com o corpo e alimentação pelo tema da temporalidade, outro achado deste estudo, indicou este reconhecimento de acordo com o período da vida, como a necessidade de mudanças por projeções futuras, conforme narrado por uma participante ao mencionar sobre sua postura. Alguns autores3737 Mantau A, Hattula S, Bornemann T. Individual determinants of emotional eating: a simultaneous investigation. Appetite. 2018; 130:93-103. definiram a orientação temporal como um influenciador para a saúde, por sinalizar o que é reconhecido e valorizado por uma determinada pessoa, aspectos também representados pelas participantes do nosso estudo. Esses autores3737 Mantau A, Hattula S, Bornemann T. Individual determinants of emotional eating: a simultaneous investigation. Appetite. 2018; 130:93-103. associaram projeções futuras a práticas de saúde, pela possibilidade de estas anteciparem consequências, e projeções presentes à busca por gratificação imediata. Sugerimos que a identificação de projeções relacionadas à alimentação, especialmente ao que é reconhecido e valorizado pela pessoa, pode auxiliar na promoção da saúde.
As participantes também reconheceram aspectos-chave que sintetizaram suas relações com o corpo e com a alimentação; e demonstraram como um aspecto da identidade (como insatisfação com o corpo) intensificou a forma de se relacionar com a alimentação (representada, por exemplo, pela busca pelo desejo e prazer na alimentação) ou a definiu (representada, por exemplo, pela meditação como um símbolo de conexão consigo e consciência para a alimentação). É sugerido que a construção perceptiva e cognitiva de uma determinada pessoa está integrada às experiências corporais77 McCorquodale L, DeLuca S. You want me to draw what? Body mapping in qualitative research as canadian socio-political commentary. Forum Qual Sozialforsch. 2020; 21(2):1-28. doi: 10.17169/fqs-21.2.3242.
https://doi.org/10.17169/fqs-21.2.3242... ,3030 Ferreira FR. A produção de sentidos sobre a imagem do corpo. Interface (Botucatu). 2008; 12(26):471-83. doi: 10.1590/S1414-32832008000300002.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200800... ; e que a comunicação dessas experiências requer a construção de expressões a partir da representação do corpo, com o objetivo de sensibilizar e integrar as experiências corporais à identidade pessoal1313 Futch VA, Fine M. Mapping as a method: history and theoretical commitments. Qual Res Psychol. 2014; 11(1):42-59.. A forma como as participantes reconheceram, a partir da representação do corpo, entraram em contato, internalizaram e significaram as experiências alimentares que estão presentes no mundo parece indicar que a alimentação pode ser uma forma de expressão dessa relação com o corpo.
Os aspectos sensoriais e metabólicos no processo de escolha e consumo alimentares sob a perspectiva biológica são bem descritos na literatura3838 Boesveldt S, Graaf K. The differential role of smell and taste for eating behavior. Perception. 2017; 46(3/4):307-19.. No entanto, pouco se conhece sobre os aspectos sensoriais e metabólicos na perspectiva subjetiva e da experiência a partir do corpo33 Santos LAS. Reflexões sobre a tríade corpo, comer e comida. In: Santos LAS, organizadora. O corpo, o comer e a comida um estudo sobre as práticas corporais alimentares cotidianas a partir da cidade de Salvador - Bahia. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia; 2008. p. 21-45.,77 McCorquodale L, DeLuca S. You want me to draw what? Body mapping in qualitative research as canadian socio-political commentary. Forum Qual Sozialforsch. 2020; 21(2):1-28. doi: 10.17169/fqs-21.2.3242.
https://doi.org/10.17169/fqs-21.2.3242... . O presente estudo demonstrou o reconhecimento desses aspectos pelas participantes desde formas de detecção pelos sentidos – como um contato inicial com os alimentos, processado por órgãos – até a elaboração subjetiva da relação das participantes com o corpo e com a alimentação. Reforçamos a possibilidade da representação de aspectos conscientes1010 Pereira A Jr. Triple-aspect monism: a conceptual framework for the science of human consciousness. In: Pereira A Jr, Lehmann D, editores. The unity of mind, brain and world. New York: Cambridge University Press; 2013. p. 299-337. tendo em vista o reconhecimento de experiências na perspectiva de como a pessoa vivencia e reconhece os fenômenos construídos. O presente estudo demostrou que o mapa corporal narrado foi uma ferramenta eficiente para promover o reconhecimento da relação de mulheres com o corpo e com a alimentação e comunicar esta relação e, portanto, a consciência alimentar na perspectiva da intervenção educativa nos moldes do PESC1717 Palazzo CC, Leghi BE, Pereira A Jr, Diez-Garcia RW. Educational intervention for food consciousness: a randomized study protocol. Nutrition Health. 2022; 28(1):123-9..
Destacamos como limitações deste estudo a população com características sociodemográficas similares, o que pode não refletir a realidade de outros grupos populacionais, e não terem sido coletados dados de outros indicadores sociais para se compreender melhor o grupo estudado. A necessidade de outros estudos que se voltem para a análise dessa dimensão subjetiva em grupos sociais específicos pode esclarecer aspectos que aqui foram analisados na perspectiva individual. Estudos em outros contextos, bem como em diferentes regiões do país, podem ajudar a compreender como aspectos socioculturais participam da subjetividade na relação com a alimentação.
Conclusão
Este estudo pôde acessar e explorar o reconhecimento da relação com o corpo e com a alimentação de mulheres por meio de formas de autodenominação como uma síntese de uma intervenção educativa para a promoção da consciência alimentar. Por meio do mapa corporal narrado, aspectos da identidade, da relação da pessoa com o mundo e da temporalidade sintetizaram a identidade e a relação com o corpo e com a alimentação; e marcaram o reconhecimento consciente dessa relação. O mapa corporal narrado demonstrou ser uma ferramenta inovadora e eficaz para acessar e comunicar o envolvimento da alimentação na construção simbólica do corpo. Este estudo contribuiu com uma estratégia para programas educativos que buscam fortalecer a reflexão e saúde de mulheres sobre a forma como o ambiente obesogênico pode afetar a relação com o corpo e com a alimentação.
Agradecimentos
As autoras gostariam de agradecer a instituições que apoiaram a realização da pesquisa e pessoas que colaboraram com o estudo, mas que não preencheram os critérios de autoria: agradecemos a Dr. Alfredo Pereira Junior, Gabriela Batista Ribeiro Mendonça e Homero Munaretti, por suas contribuições; e a todas as mulheres que participaram do estudo. Também agradecemos ao Programa de Pós-Graduação em Clínica Médica da FMRP-USP, pelo suporte para a tradução do artigo para o inglês. Barbara Esteves Leghi agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa de estudo (número de concessão 168801/2018-3). Rosa Wanda Diez-Garcia e Lilian Magalhães agradecem ao CNPq pelas bolsas de produtividade (números de concessão 303194/ 2018-9 e 303037/2018-0).
Financiamento
Este estudo foi financiado em parte pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – código 001 –, a qual não esteve envolvida com nenhum procedimento ou desenvolvimento do estudo.- Leghi BE, Palazzo CC, Magalhães L, Diez-Garcia RW. O corpo fala? Mapa corporal da relação com a alimentação, narrado por mulheres em intervenção para a consciência alimentar. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230400 https://doi.org/10.1590/interface.230400
- (e)Termo utilizado pela literatura internacional.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Out 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
11 Ago 2023 - Aceito
05 Ago 2024