A utilização do fluxograma analisador para descrever os movimentos de redes vivas de um usuário com demência

Análisis con diagrama del flujo para describir los movimientos de las redes vivas de un usuario con demencia

Fernanda Maria do Vale Martins Lopes Tiago Braga do Espírito Santo Célia Pereira Caldas Esther Mourão Nicoli Sobre os autores

Resumo

A demência é um problema de Saúde Pública emergente, consequente ao envelhecimento populacional e à transição epidemiológica. Assim sendo, a pesquisa teve como objetivo analisar as redes vivas tecidas por um usuário com demência e sua família no percurso em busca de Atenção à Saúde e cuidado, por meio das conexões existenciais que vão estabelecendo em sua trajetória sob a ótica de uma equipe-guia. Para tal, aplicou-se a metodologia qualitativa de abordagem cartográfica com base nas técnicas de grupo focal, no fluxograma analisador e no diário de campo. A análise dos resultados possibilitou identificar a visita domiciliar como instrumento de tecnologia leve no movimento de redes vivas, e a necessidade de Educação Permanente para garantir a integralidade do cuidado dos usuários com síndromes demenciais. Conclui-se que há necessidade de melhor articular tecnologias do cuidado para tornar as ações mais efetivas.

Palavras-chave
Idoso; Demência; Redes comunitárias; Atenção à saúde; Educação continuada

Resumen

La demencia es un problema de salud pública emergente, consecuencia del envejecimiento poblacional y de la transición epidemiológica. Por esa razón, la investigación tuvo el objetivo de analizar las redes vivas tejidas por un usuario con demencia y su familia, en la jornada de la búsqueda de atención de la salud y el cuidado, desde el punto de vista de un equipo guía. Para ello, se aplicó la metodología cualitativa de abordaje cartográfico, a partir de las técnicas de grupo focal, diagrama de flujo analizador y diario de campo. El análisis de los resultados posibilitó la identificación de la visita a domicilio como instrumento de tecnología leve en el movimiento de redes vivas y la necesidad de educación permanente para asegurar la integralidad del cuidado de los usuarios con síndromes demenciales. Se concluyó que existe la necesidad de articular mejor las tecnologías del cuidado para que las acciones sean más efectivas.

Palabras clave
Anciano, demencia; Redes comunitarias; Atención a la salud; Educación continuada; Salud mental

Introdução

O Brasil experimenta um célere processo de transição demográfica e epidemiológica11 Brasil. Ministério da Saúde. Orientações técnicas para a implementação da linha de cuidado para atenção integral à saúde da pessoa idosa no Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.. Projeta-se que, em pouco mais de duas décadas, os idosos correspondam a cerca de um terço da população nacional11 Brasil. Ministério da Saúde. Orientações técnicas para a implementação da linha de cuidado para atenção integral à saúde da pessoa idosa no Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.. As mudanças oriundas desses processos favoreceram o aumento da prevalência de doenças crônicas não transmissíveis, como as demências11 Brasil. Ministério da Saúde. Orientações técnicas para a implementação da linha de cuidado para atenção integral à saúde da pessoa idosa no Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2017..

As demências são condições crônicas e de Saúde Mental que mais crescem em número e importância, tornando-se um problema de Saúde Pública22 Silveira AG, Silva DA. Burden of family members in caring for senile dementia patients: an integrative review. Res Soc Dev. 2020; 9(6):e179963671. doi: 10.33448/rsd-v9i6.3671.
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. Sua prevalência aumenta com a idade, afetando um em cada cinco idosos (>80 anos)22 Silveira AG, Silva DA. Burden of family members in caring for senile dementia patients: an integrative review. Res Soc Dev. 2020; 9(6):e179963671. doi: 10.33448/rsd-v9i6.3671.
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, e impõe um pesado fardo sobre usuários, familiares e sociedade33 Choi M, Kim W, Moon JY, Shin J. The impact of the implementation of a national policy on dementia on healthcare costs in older patients with dementia in Korea: a quasi-experimental difference-in-difference study. Lancet Reg Health West Pac. 2024; 44:101010. doi: 10.1016/j.lanwpc.2024.101010.
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. Com o envelhecimento populacional, é necessária a qualificação dos profissionais de saúde do idoso, além de políticas públicas que promovam um envelhecimento saudável, focando em autonomia e independência44 Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional de humanização. Brasília: Ministério da Saúde; 2010..

A Estratégia Saúde da Família (ESF) é uma política brasileira essencial para a organização da Atenção Básica à Saúde nos municípios, sendo a principal porta de entrada para o atendimento de idosos com demência55 Sorial N, Schuster T, Bronskill SE, Godard-Sebillotte C, Etches J, Vedel I. Interprofessional primary care and acute care hospital use by people with dementia: a population-based study. Ann Fam Med. 2022; 20(6):512-8. doi: 10.1370/afm.2881.
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. Apesar de seus fundamentos éticos, sociais, culturais e seu propósito de promover saúde e qualidade de vida, na prática, os usuários frequentemente encontram dificuldades nos encaminhamentos, buscando recursos de forma autônoma devido ao desconhecimento ou à dificuldade de acesso aos serviços da ESF66 Universidade Federal do Maranhão. Redes de Atenção à Saúde: a atenção à saúde organizada em redes. São Luís: UFMA; 2016..

Na busca por múltiplos modos de satisfazer suas necessidades de saúde77 Tofani LFN, Furtado LAC, Guimarães CF, Feliciano DCGC, Silva GR, Bragagnolo LM, et al. Caos, organização e criatividade: revisão integrativa sobre as Redes de Atenção à Saúde. Cienc Saude Colet. 2021; 26(10):4769-82. doi: 10.1590/1413-812320212610.26102020.
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, os usuários criam redes vivas, constituindo um protagonismo transformador88 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64.. Essas redes são formadas por conexões existenciais que ultrapassam as redes formais e instituições. Informais e dinâmicas, essas redes têm um funcionamento compreensível que pode melhorar a Atenção à Saúde88 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64., razão pela qual este estudo estabelece como questão: “Qual é o percurso que uma pessoa com demência, usuária do Sistema Único de Saúde (SUS), faz em busca de cuidado na perspectiva da equipe de saúde de uma clínica da família?”

Para sua resposta foi traçado o objetivo de observar e registrar as redes vivas tecidas por um usuário com demência e sua família no percurso em busca de Atenção à Saúde e cuidado, por meio das conexões existenciais que vão estabelecendo em sua trajetória sob a ótica de uma equipe-guia.

Metodologia

Foi realizado um percurso metodológico qualitativo, de abordagem cartográfica, baseado na esquizoanálise de Deleuze, Guattari99 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2a ed. São Paulo: Editora 34; 2011. e Baremblitt1010 Baremblitt GF. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. 6a ed. Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012., correntes da análise institucional fundamentada em ações dos profissionais que direcionam as estratégias de cuidado pelas realidades práticas singulares99 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2a ed. São Paulo: Editora 34; 2011.,1010 Baremblitt GF. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. 6a ed. Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012.. Destaca-se, nessa corrente, a implicação no pensamento coletivo e na singularidade das redes de relações formadas pelas contradições entre o instituído e o instituinte99 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2a ed. São Paulo: Editora 34; 2011.,1010 Baremblitt GF. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. 6a ed. Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012.. Na abordagem cartográfica, as narrativas dos encontros sobre a produção do cuidado são mais valorizadas que a síntese dos discursos, pois permitem a expressão das intensidades1111 Blasco MB, Merhy EE, Pla M. Devenir cartógrafa. Athenea Dig. 2016; 16(3):229-43.,1212 Deleuze G. Conversações: 1972–1990. Rio de Janeiro: Editora 34; 1998..

A escolha cartográfica justifica-se pela capacidade de acessar o plano relacional da micropolítica do trabalho em saúde, em que a pesquisadora afeta e é afetada pelo campo de pesquisa em interferência recíproca, tendo em vista a implicação na intensa produção de encontros e afetos1313 Slomp H Jr, Merhy EE, Rocha MM, Baduy RS, Seixas CT, Bortoletto MSS, et al. Contribuições para uma política de escritura em saúde: o diário cartográfico como ferramenta de pesquisa. Athenea Digital. 2020; 20(3):e2617.. Na perspectiva da análise institucional, essa abordagem foi realizada com profissionais de uma equipe de saúde (equipe-guia). Inspirado pelo conceito de usuário-guia1414 Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, Bortoletto MSS, Slomp H Jr, Merhy EE. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170627. doi: 10.1590/Interface.170627.
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, o estudo compreende a equipe como orientadora do processo investigativo, tendo a pesquisadora o acompanhado no processo de produção do cuidado de uma usuária, identificando modos e linhas de cuidado visíveis e invisíveis. O encontro pesquisadora-equipe-guia, em sua prática cotidiana e reflexiva, conduz os caminhos do estudo e os dados produzidos, dentre eles, as afetações da pesquisadora registradas no diário de campo.

O diário de campo, de herança etnográfica, contribui significativamente para a coleta de dados em pesquisas de saúde, registrando múltiplas racionalidades no mundo social1313 Slomp H Jr, Merhy EE, Rocha MM, Baduy RS, Seixas CT, Bortoletto MSS, et al. Contribuições para uma política de escritura em saúde: o diário cartográfico como ferramenta de pesquisa. Athenea Digital. 2020; 20(3):e2617.. Esse registro inclui fatos objetivos e a narrativa da relação entre pesquisador e mundo pesquisado, interferindo nas organizações desse mundo e elaborando uma narrativa das afecções das interações entre observador e observado1313 Slomp H Jr, Merhy EE, Rocha MM, Baduy RS, Seixas CT, Bortoletto MSS, et al. Contribuições para uma política de escritura em saúde: o diário cartográfico como ferramenta de pesquisa. Athenea Digital. 2020; 20(3):e2617.. Assim, a ferramenta visa registrar o percurso cartográfico sob a perspectiva da pesquisadora, tornando-se um documento que auxilia na formação de planos discursivos1313 Slomp H Jr, Merhy EE, Rocha MM, Baduy RS, Seixas CT, Bortoletto MSS, et al. Contribuições para uma política de escritura em saúde: o diário cartográfico como ferramenta de pesquisa. Athenea Digital. 2020; 20(3):e2617..

O processo cartográfico visou identificar problemas, conflitos, tensões e potências, bem como as interações entre sujeitos envolvidos no cuidado, mapeando cada situação cotidiana. Esse processo foi materializado pela elaboração coletiva do Fluxograma Analisador (FA) por meio de um grupo focal. Tal grupo, formado por uma equipe-guia, objetivou o recolhimento das narrativas dos trabalhadores acerca da produção do cuidado de uma usuária, identificando nós críticos e potências dos encontros produtores ou não do cuidado.

A pesquisadora principal, enfermeira e doutoranda em Enfermagem, conduziu o grupo estando, à época, na gerência da unidade cenário do estudo. Destaca-se que esse lugar na equipe foi objeto de reflexão, uma vez que a cartografia, por sua característica micropolítica e relacional, é um processo de interferência no mundo pesquisado, abdicando do lugar de isenção do pesquisador e analisando-o criticamente1313 Slomp H Jr, Merhy EE, Rocha MM, Baduy RS, Seixas CT, Bortoletto MSS, et al. Contribuições para uma política de escritura em saúde: o diário cartográfico como ferramenta de pesquisa. Athenea Digital. 2020; 20(3):e2617.. A cartografia não apenas coleta dados, os produz em ato, recolhendo os que aparecem e fazendo emergir outros por meio da pesquisa em um espaço de investigação e interferência1313 Slomp H Jr, Merhy EE, Rocha MM, Baduy RS, Seixas CT, Bortoletto MSS, et al. Contribuições para uma política de escritura em saúde: o diário cartográfico como ferramenta de pesquisa. Athenea Digital. 2020; 20(3):e2617..

Nesse sentido, estar como gestora da unidade pode proporcionar, no processo de investigação, reflexões sobre esse lugar hierárquico que foram elaboradas coletivamente no decorrer da realização dos grupos, não se apresentando como um impeditivo para o desenvolvimento do processo investigativo1515 Lourenço LV, Coelho KSC, Merhy EE. Prácticas de educación permanente en atención primaria a la salud para el abordaje de personas usuarias con tuberculosis. Salud Colect. 2023; 19:e4542. doi: 10.18294/sc.2023.4542.
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. Ademais, o fato de ser membro da equipe facilitou a aproximação com os trabalhadores, usuária atendida, território e rotina dos serviços de saúde por meio da rede de relações já constituída1515 Lourenço LV, Coelho KSC, Merhy EE. Prácticas de educación permanente en atención primaria a la salud para el abordaje de personas usuarias con tuberculosis. Salud Colect. 2023; 19:e4542. doi: 10.18294/sc.2023.4542.
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.

Uma pesquisadora auxiliar ficou responsável pela observação da dinâmica coletiva e do registro dos dados que emergiram, bem como de suas impressões que foram, também, apontadas no diário de campo.

O Fluxograma Analisador (FA), construído coletivamente no Grupo Focal, é uma ferramenta qualitativa para analisar modelos de Atenção à Saúde, representando graficamente as etapas do trabalho com três símbolos: elipse (entrada/saída), losango (decisão) e retângulo (intervenção/ação). Durante sua construção, as narrativas coletadas geram novas reflexões, retornando ao fluxograma como parte do processo e resultado da pesquisa1616 Merhy EE, Campos RTO. Agir em Saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 2002.. Ao identificar potências e pontos de reflexão no trabalho da equipe, o FA permite melhor percepção da micropolítica institucional na prática assistencial, além de auxiliar no planejamento e na reorganização do trabalho1616 Merhy EE, Campos RTO. Agir em Saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 2002..

O estudo foi realizado em uma Clínica da Família (CF) localizada em um território que possui mais de vinte mil cidadãos cadastrados1717 Rio de Janeiro. Secretaria de Saúde. Dados SUS [Internet]. Rio de Janeiro: Secretaria de Saúde; 2024 [citado 15 Fev 2024]. Disponível em: https://www.saude.rj.gov.br/informacao-sus/dados-sus/2020/06/atencao-primaria-e-gestor-ab-bfa-sisab-prefaps
https://www.saude.rj.gov.br/informacao-s...
, organizados em cinco equipes de Saúde da Família, cada uma com responsabilidade sanitária por cerca de 4 mil usuários em quatro microáreas. Os dados foram produzidos por uma das equipes da clínica, escolhida por se apresentar completa com relação às categorias profissionais, contando com 12 pessoas: médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, cinco ACS, dentista, auxiliar de saúde bucal, farmacêutico e psicólogo.

O território da equipe estudada possui mais de 3 mil pessoas cadastradas1717 Rio de Janeiro. Secretaria de Saúde. Dados SUS [Internet]. Rio de Janeiro: Secretaria de Saúde; 2024 [citado 15 Fev 2024]. Disponível em: https://www.saude.rj.gov.br/informacao-sus/dados-sus/2020/06/atencao-primaria-e-gestor-ab-bfa-sisab-prefaps
https://www.saude.rj.gov.br/informacao-s...
, incluindo duas comunidades com alta vulnerabilidade social, dominadas pelo tráfico de drogas. A maioria da população é jovem e beneficiária dos programas de transferência de renda do governo.

Após aceitarem a participação na pesquisa, os trabalhadores dessa equipe foram convidados para o grupo focal. Nele, foi orientada, ao grupo de profissionais, uma reflexão sobre os caminhos percorridos pelo usuário idoso com demência pelas redes de Atenção à Saúde. Em um segundo momento, foram realizadas as seguintes perguntas disparadoras: “Um usuário idoso com diagnóstico de demência se muda para sua área de abrangência. Como ele consegue atendimento e se insere no serviço de saúde?” e “Quais os caminhos percorridos por ele pelas redes de Atenção à Saúde?”.

Foi indicado que as respostas fossem orientadas pela escolha de um caso real e complexo acompanhado pela equipe. Ao passo que as questões iam sendo discutidas e refletidas, a equipe elaborava esquematicamente os fluxos do usuário em uma folha, de forma coletiva. O grupo focal foi gravado em áudio e posteriormente transcrito, tendo a duração aproximada de 60 minutos. As anotações realizadas no diário de campo, o produto da construção coletiva dos trabalhadores e a gravação do encontro somaram-se à análise dos documentos institucionais, compondo, assim, o corpus documental do estudo. O grupo focal foi realizado na própria CF mencionada, em horário reservado, de modo que não houvesse prejuízo ao fluxo de atendimentos. Participaram do grupo focal os 12 membros da equipe supracitados.

O processo utilizado para a elaboração das categorias alinhou-se com os pressupostos da metodologia do FA que identifica, no seu processo de construção coletiva, os pontos de reflexão, seus encaminhamentos e entraves. Eles são elaborados e ressignificados pelo grupo de pesquisadores, fazendo emergir as categorias de análise.

O caso escolhido pela equipe foi uma mulher de 76 anos, solteira e moradora do território. Seu filho exercia o papel de principal cuidador, mas recebia apoio de uma rede comunitária formada por vizinhos que se organizavam para ajudar nos cuidados. O diagnóstico principal era de Alzheimer, tendo como comorbidades: hipertensão, diabetes e déficit motor. Nesse estudo, será utilizado o pseudônimo de Aparecida para a usuária.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, recebendo o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética n. 3637820.8.3001.5279.

Resultados

Os resultados são apresentados na forma de narrativas oriundas dos encontros estabelecidos entre os profissionais, familiares e a usuária pelas redes de atenção representadas por um FA construído pela equipe sobre a trajetória da usuária. As narrativas incluem informações obtidas no grupo focal e registradas em diário de campo, além de informações obtidas no prontuário.

No grupo focal, houve maior participação do médico, do enfermeiro e de uma ACS enquanto os demais observavam na maior parte do tempo. Por esse motivo, apesar de os ACS estarem em maior número, isso não foi um viés para a pesquisa.

Fluxograma analisador

Figura 1
Fluxograma do caminho do usuário com diagnóstico de demência. Rio de Janeiro, 2023.

A - Primeira entrada

A usuária Aparecida acessou o serviço por seu cadastramento durante uma visita domiciliar (VD) realizada pela ACS, que relatou ter observado a organização da residência e Aparecida estava acompanhada de seu filho (38 anos) que, embora não morasse com a mãe, oferecia suporte e estava muito interessado no cadastramento e no acompanhamento pelo SUS (informações obtidas pelo grupo focal).

Aparecida apresentava fala confusa. Indicou que morava em outro município e que seu filho era muito pequeno para resolver essas coisas de saúde. O filho relatou que a mãe possuía o diagnóstico de Alzheimer há cinco anos e contava com a ajuda de parentes, vizinhos e amigos para o cuidado, pois era filho único. A ACS demonstrou muito interesse e levou o caso para discussão em equipe, destacando a organização e a articulação familiar para os cuidados (informações obtidas pelo grupo focal).

Em consulta ao prontuário eletrônico, foi verificado que a ACS não descreveu com detalhes o atendimento e a experiência vivenciada na casa de Aparecida. No entanto, durante o grupo focal, a VD foi detalhadamente apresentada por ela (informações obtidas com base no diário de campo).

B - Segunda entrada

Dois dias após o cadastramento, Aparecida chegou à CF acompanhada por uma vizinha, relatando visão turva e dor de cabeça. Foi encaminhada para a sala de observação, onde recebeu atendimento médico, sendo diagnosticada com aumento da pressão arterial, enjoo e vômito, e medicada para urgência hipertensiva (informações obtidas pelo grupo focal).

A vizinha relatou que a comunidade onde elas residiam era muito organizada e cuidava muito bem de todos os idosos, com uma rede de apoio que incluía outras vizinhas fornecendo, diariamente, refeições e limpeza. A mobilização resultou em uma escala na qual três pessoas se revezavam para acompanhar e cuidar diariamente de Aparecida (informações obtidas pelo grupo focal).

Uma ONG da comunidade forneceu uma cadeira de rodas, fraldas e providenciava a compra de alimentos. Essa ONG era organizada pelos moradores do território que atuavam de forma voluntária, recebendo doações de bairros adjacentes. Todas as doações eram cadastradas pelos voluntários e organizadas para o envio às famílias conforme a necessidade. O Centro de Referência da Assistência Social (Cras) acompanhava o caso para agilizar benefícios sociais. Esse acompanhamento era feito com o presidente da associação (informações obtidas pelo grupo focal).

Uma terapeuta ocupacional, moradora do território, realizava, diariamente, atendimentos de estimulação cognitiva, e uma educadora física conduzia atividades coletivas na praça principal da comunidade. Ambas de forma voluntária. Aparecida era buscada em casa para as atividades. A vizinha relatou que Aparecida era muito bem cuidada e o filho auxiliava sempre como podia, principalmente na compra de medicamentos (informações obtidas pelo grupo focal).

Após duas horas na CF, Aparecida foi liberada com a prescrição de medicamentos e uma consulta médica agendada. A técnica de enfermagem informou a ACS do território sobre a rede de apoio criada pela usuária e pelos familiares (informações obtidas pelo grupo focal).

Na sequência, a ACS foi ao território e fez um levantamento de todas as possibilidades de apoio para outros casos semelhantes, inclusive com o presidente da associação de moradores. Ele se mostrou muito receptivo, referindo-se com carinho e dedicação ao cuidado de Aparecida, reforçando que ela foi uma pessoa muito importante na comunidade, muito solidária, tendo ajudado a todos (informações obtidas pelo grupo focal).

Somos, assim, apresentados às redes vivas que apoiam a criação de outras redes, de forma compartilhada, entre profissionais de saúde e usuários moradores do território (informações obtidas no diário de campo).

C - Decisão e direcionamentos

No dia agendado, Aparecida compareceu à consulta médica com sua vizinha, responsável pelos cuidados. A médica a examinou e prescreveu exames laboratoriais, de imagem e iniciou o tratamento para hipertensão. Durante o grupo focal a médica verbalizou a dificuldade de abordagem do idoso com demência, tendo encaminhado Aparecida para a neurologia via Sistema de Regulação (SISREG), decidindo manter a prescrição do neurologista anterior da rede privada, que a havia tratado três anos antes (informações obtidas pelo grupo focal e no diário de campo).

Em consulta ao SISREG, foi observada a inserção feita pela médica, com todos os exames cuidadosamente descritos para que não fossem recusados pelo regulador de vagas. A classificação no sistema estava com o código amarelo, indicando necessidade de agendamento prioritário em até 90 dias (informações obtidas no diário de campo).

D - Discussão e direcionamentos

O caso foi novamente discutido na reunião de equipe, em que o enfermeiro destacou a necessidade de realizar uma avaliação multidimensional, testes cognitivos e funcionais para identificar síndromes geriátricas. A equipe, surpresa com o conhecimento do enfermeiro, solicitou uma ação de Educação Permanente para aprimorar os conhecimentos de todos na área da Gerontologia (informações obtidas com o grupo focal).

Ele orientou a leitura prévia dos manuais da linha de cuidados da saúde do idoso da Atenção Básica para posterior discussão. Em um segundo encontro, seriam discutidas as síndromes geriátricas, a capacidade funcional e o Alzheimer (informações obtidas pelo grupo focal).

A equipe concordou que a Educação Permanente e a discussão de casos são essenciais para uma assistência qualificada ao idoso com demência, decidindo que todos os idosos deveriam ser avaliados para rastrear sinais e sintomas que comprometiam sua independência e sua autonomia (informações obtidas no diário de campo).

E - Decisão e direcionamentos

A equipe agendou uma visita domiciliar realizada pelo enfermeiro e pela médica da equipe. Nessa visita, foi feita uma análise global da idosa, com a avaliação funcional por meio de testes e verificações do comprometimento da autonomia e da independência nas atividades da vida diária. Os testes indicaram comprometimento da cognição e sintomas de depressão, além de risco de quedas e necessidade de treinamento de um cuidador. Foi elaborado um plano terapêutico singular com acompanhamento semanal e avaliação da rede de suporte da usuária, considerando todos (profissionais ou não) que auxiliavam em seus cuidados (informações obtidas pelo grupo focal).

O caso mobilizou desdobramentos e serviu como tema de discussão em um encontro de Educação Permanente da unidade, sugerindo maior articulação com a associação de moradores para cadastrar casos complexos necessitados de auxílio. Destaca-se, também, a criação de um grupo no whatsapp® com todos os voluntários que compunham a rede de apoio e alguns profissionais da ESF, principalmente os da equipe de referência (informações obtidas pelo grupo focal).

A consulta ao prontuário revelou registros insuficientes, não refletindo a complexidade do caso, evidenciando que o instrumento não favorece o registro de casos complexos, pois não se adéqua a um atendimento multidimensional para a atenção ao idoso.

Discussão

A visita domiciliar ao idoso com demência como instrumento de tecnologia leve no movimento de redes vivas

A ESF é crucial na redução da morbimortalidade no Brasil, controlando agravos e acompanhando doenças crônicas como síndromes demenciais, além de realizar ações de promoção e de prevenção à saúde por meio das VDs, principalmente aquelas feitas pelos ACS1818 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017.. Segundo a PNAB, é uma atribuição dos ACS realizar VDs e atualizar o cadastramento de todas as pessoas de sua microárea, proporcionando momentos para a inclusão do usuário e da família no sistema de saúde, mas também identificando e registrando as dificuldades e os dilemas daquele núcleo familiar, iniciando-se a construção de vínculos1818 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017..

A VD, portanto, é um instrumento potente que permite ao profissional se aproximar do mundo real do usuário1818 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017.. Entretanto, para que isso aconteça de forma efetiva e se crie vínculo entre as partes, é necessário que o profissional reconheça o usuário como o protagonista na construção da sua rede de cuidados1818 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017.. Na prática, é notório que o ACS é a categoria que mais se envolve na construção da rede viva traçada pelo usuário, provavelmente por ser morador do território e já conhecer as dificuldades e potencialidades que o local oferece1818 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017..

Os usuários dos serviços de saúde, na busca pela produção do cuidado, procuram diferentes modos de atender a suas necessidades e/ou seus problemas de saúde para além dos serviços disponíveis, criando redes vivas por si próprios88 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64.. As redes vivas são, desse modo, configuradas pelas conexões existenciais que ultrapassam as redes formais e as instituições com a interpenetração das redes informais e dinâmicas88 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64.. Tal compreensão pode contribuir para uma Atenção à Saúde mais qualificada e próxima das necessidades dos usuários88 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64.. Esse movimento evidencia a atuação deles como protagonistas de seus projetos terapêuticos, independentemente do que é realizado ou não pelas equipes de saúde88 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64.. Esse fato é, por si só, transformador tanto para o usuário quanto para a equipe que se permite ser atravessada por esse agenciamento88 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64.. A construção de redes vivas permite a conexão dos vários serviços, organizações, vínculos e afetos existentes nos territórios, produzindo o encontro entre trabalhadores e usuários88 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64.. Assim, é possível a elaboração de projetos terapêuticos singulares mais qualificados que vão além da estruturação da rede física e do que está instituído88 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64..

No caso de Aparecida, a ACS, ao identificar e validar a rede viva, foi uma figura central e facilitadora do processo de ampliação da rede de apoio que, embora já existisse, não contemplava todas as necessidades de Atenção à Saúde. Os direcionamentos efetuados pela equipe, por sua vez, acompanharam a mobilização da ACS e foram além dos muros institucionais, pois, ao se depararem com a rede criada pela própria família e a comunidade, produziram nos profissionais um despertar quanto à complexidade do cuidado a esse tipo de usuário, trazendo o que já estava sendo mobilizado pelo território existencial para dentro da lógica da produção do cuidado instituído.

Ao considerarmos a produção do cuidado, deve-se resgatar a complexidade do campo e a confluência de intervenções que o compõem por meio das tecnologias de saúde utilizadas, a saber: as tecnologias duras, pautadas em procedimentos e instrumental/material; a tecnologia leve-dura, baseada no saber estruturado, epistemológico e sua aplicação; e a tecnologia leve, que valida o encontro, o acolhimento, o vínculo, a escuta sensível e a criatividade1919 Merhy EE. A perda da dimensão cuidadora na produção de saúde: uma discussão do modelo assistencial e da intervenção no seu modo de trabalhar a assistência. In: Campos CR, organizador. Sistema único de saúde em Belo Horizonte: reescrevendo o público. São Paulo: Xamã; 1998. p. 103-20..

A construção compartilhada do plano de cuidado e o possível surgimento de conflitos dependem do uso dessas tecnologias e do reconhecimento e do respeito mútuo de atores contribuindo, assim, para melhorar o cuidado com o usuário1919 Merhy EE. A perda da dimensão cuidadora na produção de saúde: uma discussão do modelo assistencial e da intervenção no seu modo de trabalhar a assistência. In: Campos CR, organizador. Sistema único de saúde em Belo Horizonte: reescrevendo o público. São Paulo: Xamã; 1998. p. 103-20.. As tecnologias duras e leve-duras são necessárias; no entanto, a produção do cuidado ao idoso com demência só ocorre quando a tecnologia leve é a base do processo1919 Merhy EE. A perda da dimensão cuidadora na produção de saúde: uma discussão do modelo assistencial e da intervenção no seu modo de trabalhar a assistência. In: Campos CR, organizador. Sistema único de saúde em Belo Horizonte: reescrevendo o público. São Paulo: Xamã; 1998. p. 103-20.. O cuidado à Saúde da Família não pode prescindir dos elementos das tecnologias leves, pois são eles que favorecem uma comunicação dialógica e a integralidade do cuidado1616 Merhy EE, Campos RTO. Agir em Saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 2002..

Portanto, os achados deste estudo corroboram pesquisas anteriores que apontam a visita domiciliar como uma oportunidade diferenciada de cuidado, pois, ao entrar no ambiente em que o usuário reside, pode-se estabelecer relações por uma escuta qualificada, pelo vínculo e pelo acolhimento, favorecendo o empoderamento dessa família como protagonista do cuidado2020 Ferreira FP, Bansi LO, Paschoal SMP. Serviços de atenção ao idoso e estratégias de cuidado domiciliares e institucionais. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2014; 17(4):911-26. doi: 10.1590/1809-9823.2014.13053.
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Depreende-se, assim, que as VDs são as atividades externas à unidade realizadas pelas equipes que podem ser utilizadas como um instrumento potente para a incorporação das tecnologias leves no cuidado, proporcionando o aumento do protagonismo do usuário e o seu posicionamento como interlocutor válido de sua existência, ao possibilitar a validação de sua rede viva. Entende-se que esse cuidado deve ser multidisciplinar, incluindo os seus cuidadores (formais ou não), permitindo uma aproximação dos desafios que a dinâmica familiar proporciona2121 Quirino TRL, Jucá AL, Rocha LP, Cruz MSS, Vieira SG. A visita domiciliar como estratégia de cuidado em saúde: reflexões a partir dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica. Rev Sustinere. 2020; 8(1):253-73. doi: 10.12957/sustinere.2020.50869.
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Tal aproximação se torna importante pelo fato de as síndromes demenciais serem consideradas doenças degenerativas que afetam o grau de dependência do indivíduo, sendo o diagnóstico um momento impactante para a família, pois revela a necessidade do enfrentamento de uma reorganização familiar2222 Fernandes JSG, Siqueira MA. Revisão sobre a doença de Alzheimer: Diagnóstico, evolução e cuidados. Psicol Saude Doenças. 2017; 18(1):131-40. doi: 10.15309/17psd180111.
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. Ademais, o modo como o cuidado domiciliar é gerido tem impacto direto no conforto e na segurança do usuário, bem como no nível de estresse do cuidador2222 Fernandes JSG, Siqueira MA. Revisão sobre a doença de Alzheimer: Diagnóstico, evolução e cuidados. Psicol Saude Doenças. 2017; 18(1):131-40. doi: 10.15309/17psd180111.
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,2323 Ferreira FPC, Bansi LO, Paschoal SMP. Serviços de atenção ao idoso e estratégias de cuidado domiciliares e institucionais. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2014; 17(4):911-26. doi: 10.1590/1809-9823.2014.13053.
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A constituição de Redes de Atenção à Saúde (RAS) de forma regionalizada e integrada é vista desde a Constituição Federal de 19882424 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988.. No entanto, as ações propostas são pautadas em uma estrutura rígida e por uma racionalidade biomédica, que é insuficiente para dar conta das necessidades de saúde88 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64.. Assim, não é levada em consideração a possibilidade de o usuário traçar as suas próprias redes em um território não instituído88 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64.. E por essas redes vivas não serem consideradas, não dialogam com a rede instituída pelo fato de os profissionais de saúde não conhecerem esse usuário em sua integralidade e por não a acharem importante88 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64..

Considerar o usuário como condutor do seu processo de cuidado em saúde permitirá a valorização de suas ações em prol de uma RAS mais efetiva. A exemplo disso, temos a história de Aparecida, que traçou a sua rede de cuidados em conjunto com seu filho, produzindo um cuidado que foi sendo complementado e qualificado a cada relação com os profissionais que a auxiliavam. Interessante ressaltar que, mesmo com um olhar protocolar na lógica biomédica, os profissionais não apagaram a possibilidade de interlocução com essa potência de rede viva construída pela família, uma vez que a equipe se permitiu ser atravessada pelo instituinte.

Acreditamos que essa equipe foi permeável ao atravessamento da rede viva devido ao fato de a ACS ter demonstrado interesse em conhecer a organização dos agenciamentos tecidos pela usuária, considerando que esses movimentos que produziram suportes e cuidado também seriam pertinentes e valiosos para outros moradores do território. Assim, o instituído e o instituinte se encontraram quando a equipe considerou essa experiência relevante ao convidar os profissionais voluntários no compartilhamento dos cuidados de Aparecida e de outros usuários que precisassem de apoio.

Tais usuários, em movimentos de redes vivas, vão produzindo cuidado por meio da construção de conexões em suas vidas. São redes vivas que são capazes de andar por territórios que muitas vezes não são percebidos pelos profissionais de saúde2525 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Gomes MPC. Da repetição à diferença: construindo sentidos com o outro no mundo do cuidado. In: Franco TB, organizador. Semiótica, afecção e cuidado em saúde. São Paulo: Hucitec; 2010. p. 60-75..

Apesar dessas experiências ricas descritas pela equipe, é evidente a dificuldade de validação dos registros como instrumentos do cuidado, pois, ao serem consultados, não refletem as experiências vivenciadas e relatadas durante o grupo focal, sendo considerados um instrumento frio e protocolar. Dessa forma, podemos considerar que aqui configura uma “barreira” no cuidado, pois se as necessidades assistenciais não são descritas de forma clara, não há como todos os membros da equipe tomarem conhecimento do caso. Assim, sem um registro fidedigno, não é possível garantir um plano terapêutico adequado e a resolutividade das ações propostas.

A necessidade da Educação Permanente para garantir a integralidade do cuidado aos usuários com síndromes demenciais

É notória, nas equipes de Saúde da Família, a necessidade de capacitação dos profissionais que lidam com idosos com demência, pois o desconhecimento pode gerar encaminhamentos desnecessários na rede de atenção. No estudo de Malta2626 Malta EMBR, Araujo DD, Brito MFS, Pinho L. Práticas de profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) no cuidado a idosos com demência. Interface (Botucatu). 2020; 24 Supl 1:e190449. doi: 10.1590/Interface.190449.
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, que analisou a prática dos médicos e enfermeiros que trabalhavam em equipes de APS, foi evidenciado que é esperada uma abordagem preventiva e uma intervenção precoce desses profissionais para detecção de distúrbios cognitivos, do comprometimento da funcionalidade e de suas complicações.

Dessa forma, tais profissionais devem estar qualificados para o atendimento ao idoso com demência e aos seus cuidadores. Estratégias para qualificá-los devem incluir Educação Permanente em serviço, garantida por profissionais especializados no apoio matricial, o que não foi observado nessa equipe.

Sobre essa matéria, destaca-se o apoio matricial como uma metodologia de trabalho que oferece auxílio assistencial e suporte pedagógico às equipes de Saúde da Família2727 Rodrigues DC, Pequeno AMC, Pinto AGA, Carneiro C, Machado MFAS, Magalhães AG Jr, et al. Permanent education and matrix support in primary health care: family health routine. Rev Bras Enferm. 2020; 73(6):e20190076. doi: 10.1590/0034-7167-2019-0076.
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. O matriciamento tem a potência de favorecer o direcionamento das ações de promoção da saúde, com estratégias de compromisso e corresponsabilidade dos profissionais da equipe de referência e da equipe matricial, do usuário e sua família e da comunidade2727 Rodrigues DC, Pequeno AMC, Pinto AGA, Carneiro C, Machado MFAS, Magalhães AG Jr, et al. Permanent education and matrix support in primary health care: family health routine. Rev Bras Enferm. 2020; 73(6):e20190076. doi: 10.1590/0034-7167-2019-0076.
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. O usuário que se beneficia de um serviço de apoio matricial não deixará de ser usuário de sua equipe de referência2727 Rodrigues DC, Pequeno AMC, Pinto AGA, Carneiro C, Machado MFAS, Magalhães AG Jr, et al. Permanent education and matrix support in primary health care: family health routine. Rev Bras Enferm. 2020; 73(6):e20190076. doi: 10.1590/0034-7167-2019-0076.
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. Não há encaminhamentos, mas projetos terapêuticos a serem executados conjuntamente2727 Rodrigues DC, Pequeno AMC, Pinto AGA, Carneiro C, Machado MFAS, Magalhães AG Jr, et al. Permanent education and matrix support in primary health care: family health routine. Rev Bras Enferm. 2020; 73(6):e20190076. doi: 10.1590/0034-7167-2019-0076.
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Ter uma equipe multidisciplinar que ofereça esse apoio matricial na ESF é importante devido aos resultados positivos que são alcançados com essa metodologia de trabalho, tanto para o usuário, os familiares e os trabalhadores quanto para o próprio sistema de saúde, que reduz gastos com atendimentos especializados e internações desnecessárias2727 Rodrigues DC, Pequeno AMC, Pinto AGA, Carneiro C, Machado MFAS, Magalhães AG Jr, et al. Permanent education and matrix support in primary health care: family health routine. Rev Bras Enferm. 2020; 73(6):e20190076. doi: 10.1590/0034-7167-2019-0076.
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Os achados do estudo evidenciam que seria fundamental para essa equipe ter o apoio desses profissionais matriciadores no que se refere ao auxílio para lidar com as redes vivas traçadas pelos usuários e seus familiares, assim como a família de Aparecida fez de uma forma tão organizada. Trata-se da necessidade de os profissionais da APS ultrapassarem os limites do instituído e os protocolados nas redes formais de Atenção à Saúde e permitirem o protagonismo do usuário.

Na APS, têm-se os cadernos de Atenção Básica relacionados ao Envelhecimento e à Saúde do Idoso2828 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Básica. Departamento de Atenção Básica. Envelhecimento e saúde da pessoa idosa. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. (Série A: normas e manuais técnicos. Cadernos de Atenção Básica, n. 19). como documento orientador. Nesses manuais, são apresentados os procedimentos de avaliação da capacidade funcional e cognitiva, que são tecnologias essenciais para o diagnóstico e o planejamento das intervenções necessárias a essa população. Tal cuidado deve envolver a família e a rede de suporte social do idoso2828 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Básica. Departamento de Atenção Básica. Envelhecimento e saúde da pessoa idosa. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. (Série A: normas e manuais técnicos. Cadernos de Atenção Básica, n. 19)..

A Educação Permanente tem sido adotada, no Brasil, como política de desenvolvimento humano para o SUS2929 Pinheiro GEW, Azambuja MS, Bonamigo AW. Facilidades e dificuldades vivenciadas na Educação Permanente em Saúde na Estratégia Saúde da Família. Saude Debate. 2018; 42(4 Spec No):187-97. doi: 10.1590/0103-11042018S415.
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. Utilizando como tendência pedagógica a educação problematizadora, a Educação Permanente se baseia em uma concepção de aprendizagem que visa produzir sentido e proporcionar a transformação das atividades profissionais mediante a reflexão crítica2929 Pinheiro GEW, Azambuja MS, Bonamigo AW. Facilidades e dificuldades vivenciadas na Educação Permanente em Saúde na Estratégia Saúde da Família. Saude Debate. 2018; 42(4 Spec No):187-97. doi: 10.1590/0103-11042018S415.
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Dessa forma, Ceccim3030 Ceccim RB, Feuerwerker LCM. O quadrilátero da formação para a área de saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis. 2004; 14(1):41-65. doi: 10.1590/S0103-73312004000100004.
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acrescenta que a Educação Permanente se constitui como um dispositivo fundamental para a reformulação das práticas de gestão, formação e controle social, tendo em vista que o processo de aprendizagem é participativo.

No entanto, apesar de todos os direcionamentos apontando que a Educação Permanente na APS é funcional e necessária para o aprimoramento das práticas profissionais, percebemos que muitas vezes, devido à sobrecarga de afazeres, não é estabelecida como política institucional. As ações executadas ainda são insuficientes diante do que se espera para as transformações desejadas no âmbito da saúde. Quando realizadas, percebemos que o formato de educação é feito de maneira pontual e fragmentada, utilizando-se metodologias tradicionais e verticalizadas, com pouca ou nenhuma conexão com a realidade local.

As evidências científicas têm demonstrado a necessidade de uma avaliação multidimensional da pessoa idosa, no sentido de se compreender de uma forma global todas as necessidades dos idosos para contribuir com intervenções mais adequadas e personalizadas, consequente melhoria na resolução dos problemas identificados e prevenção de comorbidades2929 Pinheiro GEW, Azambuja MS, Bonamigo AW. Facilidades e dificuldades vivenciadas na Educação Permanente em Saúde na Estratégia Saúde da Família. Saude Debate. 2018; 42(4 Spec No):187-97. doi: 10.1590/0103-11042018S415.
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. Esses testes se mostram adequados para serem introduzidos na Atenção Básica à Saúde; porém, devido ao longo tempo para aplicação e à alta demanda por atendimentos, eles devem ser considerados apenas para usuários com maior risco de incapacidade3131 Marques GCS, Rodrigues SG, Rodrigues JS, Souza MR, Barros PS, Borges CJ. Profissional enfermeiro: competências e habilidades para a avaliação multidimensional da pessoa idosa. Rev Kairos Gerontol. 2018; 21(2):307-26. doi: 10.23925/2176-901X.2018v21i2p307-326.
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. Dessa forma, a utilização de instrumentos para a detecção de possíveis síndromes demenciais é necessária na APS, pois em todo mundo a demência tem sido subdiagnosticada e o diagnóstico geralmente feito em estágio avançado da doença22 Silveira AG, Silva DA. Burden of family members in caring for senile dementia patients: an integrative review. Res Soc Dev. 2020; 9(6):e179963671. doi: 10.33448/rsd-v9i6.3671.
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Assim, enfatizamos a necessidade de reconhecer a importância da avaliação multidimensional em idosos visando à identificação de necessidades específicas do processo de envelhecimento, seja na promoção, na proteção, seja na recuperação e na reabilitação e, a partir desse reconhecimento, elevar as possibilidades de uma assistência mais assertiva e qualificada.

Considerações finais

O estudo apresenta como limitações o fato de ter sido realizado em apenas uma equipe de Saúde da Família por meio de um caso, o que reduz sua possibilidade de generalização. Contudo, foi possível concluir que os profissionais da CF direcionam suas ações em saúde pautados em um modelo biomédico que os assegura em um mundo instituído, protocolar. No entanto, por vezes, a micropolítica do seu processo de trabalho é invadida pelos usuários que expressam suas vozes, desfazendo o instituído. Ao desfazer esse instituído e em busca de acesso aos seus cuidados, traçam as suas próprias redes que por vezes são desconhecidas pelos profissionais e não valorizadas.

O estabelecimento de simetria no reconhecimento do outro como interlocutor válido possibilitou o protagonismo do usuário no movimento de redes vivas por meio de encontros entre os atores envolvidos no cuidado. Acredita-se que as ações oferecidas pelos profissionais de saúde devem ser feitas por meio de um trabalho vivo em ato e relacional, para que se produza vínculo e aceitação.

Dessa forma, sinaliza-se a necessidade da articulação de tecnologias de cuidado de forma que tornem mais efetivas as ações de cuidado proporcionadas pelas equipes da APS aos idosos com demência, sobretudo a incorporação de mais tecnologias leves, que se materializam em práticas relacionais. Nesse sentido, as visitas domiciliares destacam-se como um dispositivo facilitador para o estabelecimento de tais relações.

É evidente também a necessidade do investimento na formação pela Educação Permanente para esses trabalhadores e gestores, visando à integralidade, ao acolhimento e à humanização das práticas em saúde que considerem o usuário como protagonista do seu cuidado, principalmente entre as pessoas idosas com síndromes geriátricas.

Tendo em vista o impacto emocional e incapacitante da demência, a Educação Permanente para profissionais da Atenção Básica requer a criação de espaços coletivos com a finalidade de levar os profissionais da saúde à reflexão e à avaliação dos atos produzidos no cotidiano, a fim de buscar a transformação das práticas de saúde, propiciando assim um cuidado mais qualificado a essa clientela.

  • Lopes FMVM, Espírito Santo TB, Caldas CP, Nicoli EM. A utilização do fluxograma analisador para descrever os movimentos de redes vivas de um usuário com demência. Interface (Botucatu). 2025; 29: e240061 https://doi.org/10.1590/interface.240061
  • Financiamento

    Esther Mourão Nicoli – Bolsa Capes, número do processo: 88887.968238/2024-00.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2024
  • Aceito
    16 Set 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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