Resumos
Neste artigo, compartilhamos um processo de criação e reflexão da pesquisa-intervenção de Mestrado cujo objetivo foi mapear diversas perspectivas sobre/com as pessoas em situação de rua, mediante o convite e a observação das expressões criativas em diálogo com seus cotidianos. Refletimos sobre a expressão artística de um participante que utiliza performance e oralidade para responder à invisibilidade social. A atividade escolhida evidencia a relevância dessa temática e o desejo das autoras de cartografar os afetos e potências dessa experiência e aqueles provocados com os registros dela, em diálogo com a metodologia da pesquisa-intervenção cartográfica. Como conclusão, destacamos a abordagem sensível com visões plurais sobre o viver nas ruas, a potencialidade transformadora das práticas criativas e o valor da escuta atenta das experiências singulares e coletivas das pessoas em situação de rua.
Palavras-chave
Pessoas em situação de rua; Processo criativo; Invisibilidade; Terapia Ocupacional; Arte
En este artículo, compartimos un proceso de creación y reflexión de la investigación-intervención de maestría, cuyo objetivo fue mapear diversas perspectivas sobre/con las personas que viven en la calle, por medio de la invitación y de la observación de las expresiones creativas en diálogo con sus cotidianos. Reflexionamos sobre la expresión artística de un participante que utiliza performance y oralidad para responder a la invisibilidad social. La actividad elegida pone en evidencia la relevancia de esa temática y el deseo de las autoras de cartografiar los afectos y potencias de esa experiencia y los causados con sus registros, en diálogo con la metodología de la investigación-intervención cartográfica. Como conclusión, subrayamos el abordaje sensible con visiones plurales sobre el vivir en la calle, la potencialidad transformadora de las prácticas creativas y el valor de la escucha atenta de las experiencias singulares y colectivas de las personas que viven en la calle.
Keywords
People living on the streets; Creative process; Invisibility; Occupational therapy; Art
En este artículo, compartimos un proceso de creación y reflexión de la investigación-intervención de maestría, cuyo objetivo fue mapear diversas perspectivas sobre/con las personas que viven en la calle, por medio de la invitación y de la observación de las expresiones creativas en diálogo con sus cotidianos. Reflexionamos sobre la expresión artística de un participante que utiliza performance y oralidad para responder a la invisibilidad social. La actividad elegida pone en evidencia la relevancia de esa temática y el deseo de las autoras de cartografiar los afectos y potencias de esa experiencia y los causados con sus registros, en diálogo con la metodología de la investigación-intervención cartográfica. Como conclusión, subrayamos el abordaje sensible con visiones plurales sobre el vivir en la calle, la potencialidad transformadora de las prácticas creativas y el valor de la escucha atenta de las experiencias singulares y colectivas de las personas que viven en la calle.
Palabras clave
Personas que viven en la calle; Proceso creativo; Invisibilidad; Terapia Ocupacional; Arte
Indagamos: qualquer imagem pode ser lida? Poderíamos criar uma leitura para qualquer imagem? Qualquer imagem revela aquilo que podemos chamar de narrativa da imagem?
Podemos ver mais ou menos coisas em uma imagem, sondar mais fundo e descobrir mais detalhes, associar e combinar outras imagens, emprestar-lhe palavras para contar o que vemos, mas, em si mesma, uma imagem existe no espaço que ocupa, independentemente do tempo que reservamos para contemplá-la11 Manguel A. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras; 2001.. No entanto, a interpretação de uma imagem não é objetiva e universal.
De acordo com Alberto Manguel, vemos uma imagem como algo definido pelo seu contexto e traduzido nos termos da nossa própria experiência. Ao ler imagens, "atribuímos a elas o caráter temporal da narrativa"11 Manguel A. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras; 2001. (p. 27). Essa ideia destaca como nossa percepção é moldada pelo tempo e pelo ambiente em que estamos inseridos.
Para Byung-Chul Han, a narrativa é a "expressão da totalidade afetiva de uma época", como "propostas de sentido e identidade"22 Han B-C. A crise da narração. Petrópolis: Editora Vozes; 2023. (p. 11-2), que produz um contínuo temporal, uma história. Isso reforça a perspectiva de que a leitura de uma imagem está intrinsecamente ligada aos contextos cultural e emocional do observador.
Um exemplo elucidativo é relatado por Oliver Sacks, que conta a história de seu paciente Virgil. Nascido praticamente cego, Virgil passou a vida inteira construindo seu mundo por meio de informações não visuais. Após uma cirurgia bem-sucedida do ponto de vista médico, Virgil ficou desconcertado com sua nova realidade visual. A súbita introdução de estímulos visuais lançou-o em um estado de choque e confusão. "Virgil foi esmagado pelas novas sensações [...] o "dom" da visão perturbou-o profundamente, transtornou um modo de ser”, ele passara mais de cinquenta anos interpretando o mundo de uma forma, “assim, cada vez mais ele fechava os olhos ou sentava-se no escuro para isolar-se daquele assustador assalto perceptivo”33 Sacks OW. A ilha dos daltônicos e a Ilha das cicadáceas. São Paulo: Companhia das Letras; 1997. (p. 210).
Esse caso ilustra como a percepção e a interpretação de imagens são profundamente influenciadas pela nossa experiência e pelo contexto prévio.
Sétima camada (invisível agora sou eu, que o vejo)
Este texto-criação é fruto de experiências e reflexões geradas por uma pesquisa-intervenção cartográfica de Mestrado, cujo objetivo foi investigar diversas perspectivas sobre e com as pessoas em situação de rua por meio do convite e da análise das expressões criativas em seus cotidianos. Essa investigação traz à tona as experiências e perspectivas das pessoas em situação de rua, um grupo frequentemente invisibilizado na sociedade.
Ao observar e analisar suas expressões criativas no dia a dia, a pesquisa não só valoriza suas vozes e narrativas, mas também revela a riqueza e a complexidade de suas vidas. Além disso, ao adotar uma abordagem sensível e inclusiva, a pesquisa promove a compreensão e a empatia, contribuindo para uma visão mais humanizada e menos estigmatizada dessas pessoas.
Para tanto, foram realizados 24 encontros sustentados por um conjunto de 19 atividades com nove temáticas distintas, além de cinco caminhadas com intencionalidades diversas.
Este texto foi criado com base em uma oficina intitulada "O sensível nos toca e às vezes silenciar transborda". A proposta dessa oficina era identificar e registrar as marcas emocionais e físicas deixadas pela invisibilidade social nos corpos das pessoas em situação de rua. A oficina visava explorar e mapear essas impressões sensíveis, revelando as formas pela qual a invisibilidade afeta essas pessoas.
O desafio dessa proposta se centrava na ousadia dos participantes de se expressarem por meio da expressão verbal e da gestual, realizando uma ação que pudesse traduzir, por meio de seus gestos, suas emoções e, também, a reflexão, buscando questionar e transformar ideias preexistentes que moldam nossos anseios, indicando um caminho potencialmente mais significativo de viver.
Esse tipo de investigação pode influenciar políticas públicas, práticas sociais e iniciativas comunitárias, incentivando ações que respeitem e integrem as necessidades e capacidades das pessoas em situação de rua.
Ao chegarmos com nosso carrinho de materiais artísticos, fomos recebidas calorosamente por pessoas que já haviam participado de outras atividades da pesquisa-intervenção(g2 Han B-C. A crise da narração. Petrópolis: Editora Vozes; 2023.) e estavam utilizando os serviços da Casa de Passagem naquele momento. Era uma manhã de sábado, em novembro de 2022, e, devido ao clima ameno do interior paulista, decidimos, com esse grupo já familiar, ocupar o espaço ao ar livre próximo à porta da sala, nos fundos.
Enquanto preparávamos os materiais para começar a atividade, mais pessoas se juntavam a mim e à auxiliar da pesquisa-intervenção. Alguns se sentaram à mesa, outros no banco de alvenaria, e alguns permaneceram de pé ao nosso redor. Havia uma sensação palpável de expectativa no ar, formando uma grande roda de participantes ansiosos, todos homens, usuários do serviço, em torno de duas mulheres da universidade, se reconhecendo em uma conversa solta.
Fizemos um convite para experimentarmos algo além do habitual registro com papel e caneta. O desafio estava lançado: ousar expressar emoções ou cenas (com)partilhando com o grupo sentimentos e vivências dos corpos invisibilizados quando em situação de rua. Utilizando tecidos com diferentes tipos de transparência, como voil, tule e organza, nas cores branca, preta e tons de marrom, além de papel e caneta hidrocor preta, cada pessoa foi se apropriando de tecidos inteiros ou retalhos e buscou uma forma autêntica de se expressar por meio da performance, da escrita, do bordado e da colagem, revelando situações e contextos nos quais se sentem invisibilizados.
Durante o tempo em que permanecemos em atividade, a convocação foi não apenas à ação, mas também à reflexão, convidando a questionar e transformar ideias preexistentes que moldam anseios, apontando um caminho potencialmente mais significativo de viver. No ato de realizar, com suas inúmeras possibilidades, pudemos reformular o imaginário que alimenta estereótipos sobre as pessoas em situação de rua. Todo o processo foi documentado por fotografias que capturaram gestos corporais, possivelmente combinados com textos verbais.
Entre os participantes, destacou em meu olhar um rapaz tranquilo, com olhos curiosos e fala suave. Conhecido como bom cozinheiro e sonhador, constantemente o víamos disposto a ajudar a todos e a participar da pesquisa-intervenção. Bastante crítico na oralidade, nos convocou a repensar as formas de oferecer as atividades, pois o mundo das palavras escritas ainda não era seu campo de domínio.
Diante desse convite-desafio, compreendi que escrever, para ele, não seria a melhor forma de incluí-lo nas atividades. Assim, passamos a oferecer mais de uma possibilidade para que as pessoas se expressassem a partir de nossos convites e intencionalidades, permitindo que diferentes tipos de sujeitos, sensibilidades, significados, experiências corporais e pensamentos se manifestassem, enriquecendo sua participação e nossa relação criativa, que compõem a busca da pesquisa-intervenção por compreender suas perspectivas sobre a rua e a situação de rua.
Assim, ao oferecermos a proposta ao grupo, enquanto alguns participantes se expressavam por meio da escrita e da colagem, Marcel(h3 Sacks OW. A ilha dos daltônicos e a Ilha das cicadáceas. São Paulo: Companhia das Letras; 1997.) acompanhava com expectativa o grupo, como quem espera para degustar a comida que está sendo feita. Reconheço-me nesse olhar atento e desejoso da experiência e me conecto a ele de forma especial, deixando o grupo por breves momentos aos cuidados da auxiliar de pesquisa para que, juntos, pudéssemos investir na expressão de suas ideias.
A existência e a presença de uma pessoa no mundo estão intrinsecamente ligadas às suas experiências, que são dinâmicas e constantemente em transformação. A possibilidade de Marcel transformar sua vivência em palavra existe porque ele pôde experimentar isso em si. E eu estava com ele.
(Registros e Memórias da Pesquisa de Campo)
Deleuze & Parnet propõem que "a experimentação sobre si mesmo é a nossa única identidade, nossa única chance para todas as combinações que nos habitam"44 Deleuze G, Parnet C. Diálogos. São Paulo: Editora 34; 1998. (p. 19).
Nessa perspectiva, é impossível ignorar o caráter experimental de como Marcel se expressa e se relaciona com os outros. Esse processo de autoexpressão e interação envolve a exploração contínua de seus diversos "eus" e das diferentes formas de se conectar com outros ao seu redor.
Uma experiência, quando totalmente assimilada e integrada ao ponto de se tornar parte do próprio ser (corpo), resulta em uma compreensão mais profunda e significativa sobre as situações, emoções, relações interpessoais e aspectos da vida que foram experimentados e assimilados em seu ser. O entendimento profundo e significativo não vem apenas da análise racional, mas da vivência e da internalização da experiência. Portanto, é necessário focar no movimento de afirmação conjunta dos processos experienciais.
Assim, uma vida significativa é formada pela qualidade de experiências compartilhadas, complexas e multifacetadas. Essas experiências envolvem uma diversidade de elementos, tanto concretos quanto abstratos, e são definidas pela maneira como são expressas. O foco está nos encontros e interações que permitem a contínua criação, a transformação e a recriação da realidade, gerando novos mundos e modos de compreensão.
Diante do convite para a expressão, com minha mediação, Marcel experimenta a criação por meio de uma performance, manipulando emoções e marcas55 Rolnik S. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cad Subj. 1993; 1(2):241-51. doi: 10.2354/cs.v1i2.38134.
https://doi.org/10.2354/cs.v1i2.38134... de um corpo violentado pela invisibilidade, ao mesmo tempo em que necessita de algo mais concreto, expressando, por meio de palavras que registro imediatamente e, na sequência, outro participante se disponibiliza a escrever com sua própria grafia.
Ao produzir o texto de palavras não lidas, mas afirmadas pela confiança do encontro, Marcel volta para o mesmo local onde sua performance foi realizada para a captura de um novo registro fotográfico que expressa a recriação da realidade, um acontecimento que dá sentido à experiência vivida. Nessa direção, podemos lembrar as palavras de Deleuze, que propõem:
[...] o esplendor do acontecimento é o sentido. O acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera66 Deleuze G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva; 2003.. (p. 152)
Assim, a performance de Marcel e sua posterior reflexão por meio do texto não são meros eventos aleatórios, mas sim expressões de um significado mais profundo que foi revelado e recriado no momento da sua realização, tal como continua sendo agora por este texto.
Oitava Camada: novos olhares e deslocamentos
Carregando comigo uma bagagem de aproximadamente 20 anos de trajetória de atuação e vida no campo da Arte e da cultura, onde meu trabalho foi ganhando forma e identidade, me encontrei com as pesquisadoras do grupo de pesquisa Atividades Humanas e Terapia Ocupacional (AHTO) de Terapia Ocupacional em 2019. Desde então, sou tocada por imagens, conceitos, atividades, intervenções e modos de fazer, pelos quais me envolvi com as pessoas em situação de rua.
Partimos de uma sintonia no modo de pensar, agir e criar pela junção da Arte e da Terapia Ocupacional. Nessa parceria entre pesquisadoras que se dedicam a cartografar experiências77 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2012., mobilizadas pela expressão da sensibilidade, há uma aposta na conexão e na colaboração com aqueles que compõem os processos propostos. Nesse sentido, os encontros vão além de simples interações, pois os participantes se constituem e se transformam juntos ao longo do processo88 Ingold T. Fazer: antropologia, arqueologia, arte e arquitetura. Petrópolis: Editora Vozes; 2022.. Essa dinâmica se manifesta em um exercício de constante modulação da presença, nos tornando porosas ao encontro e aos atravessamentos das situações99 Shiramizo CS. Corpo e formação: uma pesquisa encarnada em terapia ocupacional [dissertação]. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos; 2023..
(Registros e Memórias da Pesquisa de Campo)
Juntas, olhando para a proposição artística narrada por este texto, nos perguntamos: "Como tornar visível o invisível?", considerando a especificidade do encontro de uma mestranda artista com uma/esta pessoa em situação de rua. Buscamos revelar algumas das camadas que também contam sobre as relações humanas e o viver em sociedade, que não dizem respeito apenas às pessoas em situação de rua, mas que atenuam a necessidade de olharmos e desvelarmos o que está oculto.
Atribuímos, assim, novas camadas de leitura a esse texto, ampliando, por meio da arte da narração, os registros de uma performance e conferimos à imagem estática novos desdobramentos de vida e significado11 Manguel A. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras; 2001.. Tais registros estão materializados por fotografia, uma linguagem que registra não apenas o que é visível, mas também indica o que está fora do quadro, criando uma interação entre o visto e o não visto1010 Berger J. Understanding a photograph: in the look of the things. New York: Viking; 1974..
Reconhecendo que a criatividade não é exclusiva dos artistas e se manifesta em diversas esferas em que podemos cultivar nossa "potencialidade e processos criativos"1111 Ostrower F. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Editora Vozes; 2001., essa visão ampliada da Arte e da experiência humana visa à recriação da vida. Ela busca criar espaços de intervenção que considerem aspectos estéticos, éticos, políticos e culturais, com o objetivo de desenvolver processos que integrem o pensamento e a ação.
A Terapia Ocupacional e a Arte compartilham espaços de atuação e colaboração1212 Castro ED. Arte, corpo e terapia ocupacional: aproximações, intersecções e desdobramentos. Rev Ter Ocup Univ Sao Paulo. 2000; 11(1):7-12.,1313 Castro ED, Silva DM. Habitando os campos da arte e da terapia ocupacional: percursos teóricos e reflexões. Rev Ter Ocup Univ Sao Paulo. 2002; 13(1):1-8.; reconhecem os processos criativos como estratégias de existência no mundo1414 Castro ED, Silva RJG. Processos criativos e terapia ocupacional. Rev Ter Ocup Univ Sao Paulo. 1990; 1(2):71-5.; e propõem oficinas artísticas1515 Silva CR. As atividades como recurso para a pesquisa. Cad Ter Ocup UFSCar. 2013; 21(3):461-70..
Nessa intersecção entre Terapia Ocupacional e Arte, valorizamos processos e encontros, reconhecendo que eles se instauram pela relação com o outro, mais do que com o objeto ou o produto final1616 Castro ED. Inscrições da relação terapeuta-paciente no campo da terapia ocupacional. Rev Ter Ocup Univ Sao Paulo. 2005; 16(1):14-21.,1717 Ferigato SH. Cartografia dos centros de convivência de Campinas: produzindo redes de encontros [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2013.. Damos importância ao resultado, mas também reconhecemos o valor do processo e da interação humana, elementos fundamentais em ambos os campos.
A essência do trabalho reside na experiência compartilhada e na conexão emocional que se estabelece, promovendo, assim, o acolhimento de indivíduos de diversas trajetórias e contextos, além da expressão criativa em diversas dimensões da vida humana. É nessa relação que a criação, a sensibilidade e o invisível ganharão forma, pois toda criação corresponde essencialmente a processos de transformação1818 Ostrower F. A Arte como Processo na Educação. Rio de Janeiro: Funarte; 1981..
Nessa ótica, utilizar processos de criação e arte com pessoas em situação de vulnerabilidade transforma a realidade desses territórios pela relação, pelo afeto e pelo pertencimento que se instauram por meio das possibilidades de acontecimentos relacionais, ligadas à qualidade do agir humano, criador em sua essência1919 Borriaud N. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes; 2009.,2020 Monsalú F, Alice T, organizadores. Arte relacional no Brasil: o que se faz, o que se come. Rio de Janeiro: Multifoco; 2021. Uma cortesia da casa!; p. 37-40..
A Arte também desempenha um papel político crucial, especialmente quando se trata de representar as experiências das pessoas em situação de rua e desafiar as narrativas dominantes. Por meio de intervenções políticas pela Arte, é possível transformar discursos e representações, abrindo espaço para novas interpretações e reflexões sobre a sociedade e a experiência humana em geral.
Diante do exposto, a interface entre Arte e Terapia Ocupacional com a população em situação de rua une sua potência estético-narrativa a uma articulação comunitária, respectivamente pela vivência e pela maturidade política, social e territorial.
Instaurando-se um devir sensível, evidencia-se uma sensibilidade coletiva, na qual a prática artística está inserida em um contexto em que novas formas de expressão surgem e são parte integrante desse panorama compartilhado, identificando-se a noção comum de Arte como campo de trocas1919 Borriaud N. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes; 2009., bem como os processos de cuidado promovidos por terapeutas ocupacionais.
A atividade narrada compunha uma oficina previamente nominada como "O sensível nos toca e às vezes silenciar transborda", que teve como intenção mapear marcas sensíveis e invisibilizadas registradas nos corpos das pessoas em situação de rua. Apesar de sua intencionalidade, acompanhar processos cartograficamente nos abre para que a experiência e seus afetos sejam a força condutora. Dessa forma, não era possível prever tal acontecimento, embora possamos reafirmar que o toque da sensibilidade, ainda que silencie, transborda.
Traçamos também um paralelo entre a invisibilidade social que escancara desigualdades e a invisibilidade fictícia atrás da qual a objetividade hegemônica da ciência positivista se ampara. No livro "A sensibilidade do intelecto: visões paralelas de espaço e tempo na Arte e na Ciência", Fayga Ostrower2121 Ostrower F. A sensibilidade do intelecto: visões paralelas de espaço e tempo na arte e na ciência. Rio de Janeiro: Campus; 1998. realinha correspondências notáveis entre a produção artística e a científica. Ela traça conexões entre o modo pelo qual artistas expressam ideias e como cientistas abordam o conhecimento.
Expressão artística e conhecimento científico derivam de processos de criação, com maior ou menor proximidade. Para nós, essa proximidade é marcada pela percepção do sensível na produção de subjetividades. E, na tentativa de desvelar invisibilidades, era a sensibilidade que se revelava em Marcel, em mim, em nossa relação e, agora, nessa composição reflexiva.
O invisível, afinal, ele ou eu? A vida escancarada na rua ou a "neutralidade" da racionalidade científica? A palavra escrita não lida ou a performance? A sobreposição do saber-poder ou o gesto da escuta, do cuidado e do convite para compartilhar processos? O invisível guarda nossa relação, o conhecimento, o instante efêmero, a implicação e muito mais. Esse fio invisível, tecido pela sensibilidade, conduziu à criação, produziu deslocamentos e gerou novas formas de agir, de se expressar e de ser perante o mundo. Marcel, agora, é outro. Eu, agora, sou outra. Nós somos outras. Agora, somos nós em criação infinita de camadas.
Agradecimentos
Ao participante da pesquisa, nomeado como Marcel Marceau, pela dedicação durante a atividade, e aos gestores da Casa de Passagem pela oportunidade de realizar a pesquisa na instituição.
- *Este artigo baseia-se em uma experiência vivenciada com pessoas em situação de rua na cidade de São Carlos-SP, durante o desenvolvimento da pesquisa de mestrado "A rua pela população em situação de rua: perspectivas múltiplas na produção do sensível", realizada por Fernanda de Cássia Ribeiro, sob orientação da Profa. Dra. Carla Regina Silva. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/20280.
- Ribeiro FC, Silva CR, Cardinalli I, Shiramizo CS, Mazzante CAG. Narrativas da sensibilidade: como tornar visível o invisível?. Interface (Botucatu). 2025; 29: e240281 https://doi.org/10.1590/interface.240281
- (g)Durante a produção de dados de tal pesquisa, foram realizados 24 encontros com a mesma população.
- (h)Nome fictício, escolhido em referência ao artista mímico Marcel Mangel, mais conhecido como Marcel Marceau.
Referências
- 1Manguel A. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras; 2001.
- 2Han B-C. A crise da narração. Petrópolis: Editora Vozes; 2023.
- 3Sacks OW. A ilha dos daltônicos e a Ilha das cicadáceas. São Paulo: Companhia das Letras; 1997.
- 4Deleuze G, Parnet C. Diálogos. São Paulo: Editora 34; 1998.
- 5Rolnik S. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cad Subj. 1993; 1(2):241-51. doi: 10.2354/cs.v1i2.38134.
» https://doi.org/10.2354/cs.v1i2.38134 - 6Deleuze G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva; 2003.
- 7Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2012.
- 8Ingold T. Fazer: antropologia, arqueologia, arte e arquitetura. Petrópolis: Editora Vozes; 2022.
- 9Shiramizo CS. Corpo e formação: uma pesquisa encarnada em terapia ocupacional [dissertação]. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos; 2023.
- 10Berger J. Understanding a photograph: in the look of the things. New York: Viking; 1974.
- 11Ostrower F. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Editora Vozes; 2001.
- 12Castro ED. Arte, corpo e terapia ocupacional: aproximações, intersecções e desdobramentos. Rev Ter Ocup Univ Sao Paulo. 2000; 11(1):7-12.
- 13Castro ED, Silva DM. Habitando os campos da arte e da terapia ocupacional: percursos teóricos e reflexões. Rev Ter Ocup Univ Sao Paulo. 2002; 13(1):1-8.
- 14Castro ED, Silva RJG. Processos criativos e terapia ocupacional. Rev Ter Ocup Univ Sao Paulo. 1990; 1(2):71-5.
- 15Silva CR. As atividades como recurso para a pesquisa. Cad Ter Ocup UFSCar. 2013; 21(3):461-70.
- 16Castro ED. Inscrições da relação terapeuta-paciente no campo da terapia ocupacional. Rev Ter Ocup Univ Sao Paulo. 2005; 16(1):14-21.
- 17Ferigato SH. Cartografia dos centros de convivência de Campinas: produzindo redes de encontros [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2013.
- 18Ostrower F. A Arte como Processo na Educação. Rio de Janeiro: Funarte; 1981.
- 19Borriaud N. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes; 2009.
- 20Monsalú F, Alice T, organizadores. Arte relacional no Brasil: o que se faz, o que se come. Rio de Janeiro: Multifoco; 2021. Uma cortesia da casa!; p. 37-40.
- 21Ostrower F. A sensibilidade do intelecto: visões paralelas de espaço e tempo na arte e na ciência. Rio de Janeiro: Campus; 1998.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Nov 2024 - Data do Fascículo
2025
Histórico
- Recebido
17 Jun 2024 - Aceito
01 Set 2024