Política de Tarifa Zero e promoção de atividade física: itinerário e reflexões iniciais

Zero Fare Policy and physical activity promotion: itinerary and initial reflections

Política de Tarifa Cero y promoción de la actividad física: itinerario y reflexiones iniciales

Paulo Henrique Guerra Fabio Fortunato Brasil de Carvalho Ricardo Brandão de Oliveira Heloant Abreu Silva de Souza Mathias Roberto Loch Sobre os autores

Temos um problema para resolver, vamos de transporte público

Pela emergência e pela relevância social do tema, elaborou-se o presente texto, com o objetivo de apresentar as interfaces entre a política de Tarifa Zero (TZ) e a promoção da atividade física (AF) mediante a visão ampliada de saúde.

Bora de graça? …que história é essa?

De forma geral, a TZ fundamenta-se na provisão pública, universal e gratuita dos distintos modos de transporte urbano, financiada por recursos advindos de tributos tal como em outras necessidades básicas, como educação e coleta de lixo11 Gregori L, Whitaker C, Varoli JJ, Zilbovicius M, Gregori MS. A cidade sem catracas: história e significados da tarifa zero. São Paulo: Autonomia Literária; 2020.. O custo do serviço distribui-se isonomicamente entre a sociedade, e o dinheiro recolhido vai para um fundo específico que financia o sistema, dirimindo a cobrança direta ao usuário final11 Gregori L, Whitaker C, Varoli JJ, Zilbovicius M, Gregori MS. A cidade sem catracas: história e significados da tarifa zero. São Paulo: Autonomia Literária; 2020..

Políticas brasileiras de TZ remontam à década de 1990, com a criação de um projeto de lei, na cidade de São Paulo, que previa a criação de um fundo composto por dotações e impostos municipais destinados a cobrir os custos do transporte coletivo11 Gregori L, Whitaker C, Varoli JJ, Zilbovicius M, Gregori MS. A cidade sem catracas: história e significados da tarifa zero. São Paulo: Autonomia Literária; 2020.. Mesmo que esse projeto não tenha seguido, a ideia não foi descontinuada e, em 1992, Conchas (SP) foi o primeiro município brasileiro a adotar a política de TZ22 Santini D. Primeira experiência de Tarifa Zero começou há mais de 30 anos no Brasil [Internet]. São Paulo: LabCidade; 2023 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://www.labcidade.fau.usp.br/primeira-experiencia-de-tarifa-zero-comecou-ha-mais-de-30-anos-no-brasil/
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Nos anos 2000, o Movimento Passe Livre retomou o debate sobre a TZ pela organização de mobilizações em prol de uma agenda mais ampla, sob a perspectiva da defesa de direitos e a preocupação sobre a mobilidade urbana. Por exemplo, à parte dos seus desdobramentos políticos33 Jornal da USP. Junho de 2013 não foi o ovo da serpente, mas uma janela de oportunidades [Internet]. São Paulo: Jornal da USP; 2023 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://jornal.usp.br/diversidade/junho-de-2013-nao-foi-o-ovo-da-serpente-mas-uma-janela-de-oportunidades/
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, as manifestações populares de junho de 2013 foram alavancadas pela insatisfação quanto ao aumento das tarifas de ônibus na cidade de São Paulo44 Jornal da USP. Junho de 2013 não foi o ovo da serpente, mas uma janela de oportunidades [Internet]. São Paulo: Jornal da USP; 2023 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://jornal.usp.br/diversidade/junho-de-2013-nao-foi-o-ovo-da-serpente-mas-uma-janela-de-oportunidades/Troi M. A Tarifa Zero é uma proposta concreta: entrevista com Lúcio Gregori. Josum. 2023; 3(1):139-46. doi: 10.53613/josum.2023.v3.011.
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A defesa do transporte como um direito social é indicada pela Constituição Federal55 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. e pelo Estatuto da Cidade66 Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília: Presidência da República; 2001.. Contudo, percebe-se certa distância da realidade, uma vez que a não priorização do transporte público nas cidades brasileiras gera um modelo insustentável, marcado pela escassez de receitas, pela queda na qualidade do serviço e pelo aumento de tarifas, culminando na limitação do deslocamento pela cidade e no afastamento de passageiros33 Jornal da USP. Junho de 2013 não foi o ovo da serpente, mas uma janela de oportunidades [Internet]. São Paulo: Jornal da USP; 2023 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://jornal.usp.br/diversidade/junho-de-2013-nao-foi-o-ovo-da-serpente-mas-uma-janela-de-oportunidades/
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, abrindo margem para o aumento do transporte individual motorizado, seja pela aquisição de automóveis ou motocicletas, seja mesmo pelo uso de serviços de transporte por aplicativos.

Vale destacar que a expansão do crédito para consumo e isenção fiscal de bens industriais é facilitadora dessas aquisições. Entretanto, cabe ponderar que, via de regra, ela leva ao endividamento prolongado e ao comprometimento de parte do orçamento em componentes associados (ex. aquisição de combustível e manutenção).

O contexto desfavorável levou cidades ao replanejamento dos seus modelos de financiamento do transporte público. Atualmente, mais de cem cidades brasileiras adotam a política de TZ77 Coalizão Triplo Zero. Mapa tarifa zero [Internet]. Mobilidade triplo zero; [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://mobilidadetriplozero.org/#block-41092
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, com maior foco no ônibus urbano, o que posiciona o país como líder mundial no ranking de cidades com a política implementada88 Fundação Rosa Luxemburgo. Brasil é o país com mais cidades com tarifa zero [Internet]. São Paulo: Rosalux; 2024 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://rosalux.org.br/brasil-e-o-pais-com-mais-cidades-com-tarifa-zero/
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. Algumas dessas cidades têm populações superiores a 100 mil habitantes, como Caucaia (CE), Maricá (RJ) e São Caetano do Sul (SP). Embora ainda não se tenha uma avaliação mais precisa sobre seus impactos, sua sustentação e o aumento no número de passageiros podem ser entendidos como indicadores da sua viabilidade em cidades de médio porte99 Bocchini B. Tarifa zero aumenta número de passageiros, mostra estudo. Aumento por viagens de ônibus variou de 33% a 371% [Internet]. São Paulo: Agência Brasil; 2024 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-04/tarifa-zero-aumenta-numero-de-passageiros-mostra-estudo
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A catraca é livre, mas é preciso ponderar as circunstâncias das AF de deslocamento

Para melhor compreensão sobre a intencionalidade do estudo, julgamos necessário contextualizar alguns aspectos da AF. O primeiro diz respeito ao fenômeno intitulado “paradoxo da AF”, no qual são ressaltadas as práticas relacionadas aos contextos doméstico e do trabalho que podem apresentar associações a indicadores negativos de saúde1010 Janssen TI, Voelcker-Rehage C. Leisure-time physical activity, occupational physical activity and the physical activity paradox in healthcare workers: a systematic overview of the literature. Int J Nurs Stud. 2023; 141:104470. doi: 10.1016/j.ijnurstu.2023.104470.
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11 Gupta N, Dencker-Larsen S, Rasmussen CL, McGregor D, Rasmussen CDN, Thorsen SV, et al. The physical activity paradox revisited: a prospective study on compositional accelerometer data and long-term sickness absence. Int J Behav Nutr Phys Act. 2020; 17(1):93. doi: 10.1186/s12966-020-00988-7.
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-1212 Loch MR, Augusto NA, Souza BLS, Rufino JV, Carvalho FFB. Association between physical activity domains and depressive symptoms among Brazilian adults: does every move count? Cad Saude Publica. 2024; 40(3):e00095723. doi: 10.1590/0102-311XEN095723.
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O “paradoxo” é um importante balizador para o debate proposto, pois distingue as AF praticadas por necessidade e por opção. Dessa forma, consideramos o tempo livre e o deslocamento como domínios prioritários às estratégias de promoção da AF, ora pela questão de defesa e garantia dos direitos, ora pela sua relação com o bem-estar.

No domínio do deslocamento, que representa as AF praticadas como forma de ir de um lugar a outro, é prudente diferenciar as caminhadas e pedaladas que ocorrem por opção das que ocorrem por necessidade. Pela visão ampliada de saúde, é perigoso compará-las diretamente, a julgar pelos sentidos que elas têm na vida das pessoas. AF praticadas no tempo livre e como forma de deslocamento opcional por muitas vezes estão relacionadas ao bem-estar, à autonomia e à qualidade de vida, e seus benefícios vão para além dos marcadores biológicos.

Tendo em vista a complexa conjuntura socioeconômica brasileira, não podemos desconsiderar a influência de elementos como a falta de acesso e a falta de oportunidade para os deslocamentos ativos. Logo, discursos de promoção da AF que não levem em consideração os determinantes sociais da saúde estão descolados da realidade nacional, pois as razões pelas quais as pessoas praticam AF de deslocamento são distintas, geralmente justificadas por questões econômicas, de tempo e de infraestrutura e, portanto, de acesso aos destinos de interesse1313 Salvo D, Jáuregui A, Adlakha D, Sarmiento OL, Reis RS. When moving is the only option: the role of necessity versus choice for understanding and promoting physical activity in low- and middle-income countries. Annu Rev Public Health. 2023; 44:151-69. doi: 10.1146/annurev-publhealth-071321-042211.
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Atividades físicas de deslocamento por opção são favorecidas por infraestrutura adequada, ambiente urbano regularizado e segurança. Por outro lado, os deslocamentos ativos por necessidade podem desvelar a falta de recursos financeiros para a utilização do transporte público e/ou a ausência de infraestrutura e espraiamento urbano (ex.: pela falta ou irregularidade na oferta das linhas, pela ausência de pontos/paradas próximas de suas casas, pela distância de destinos de interesse)1313 Salvo D, Jáuregui A, Adlakha D, Sarmiento OL, Reis RS. When moving is the only option: the role of necessity versus choice for understanding and promoting physical activity in low- and middle-income countries. Annu Rev Public Health. 2023; 44:151-69. doi: 10.1146/annurev-publhealth-071321-042211.
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Apontam-se iniquidades entre os perfis majoritários dos praticantes de AF nos distintos domínios1414 Brasil. Vigitel Brasil 2006-2023: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de prática de atividade física nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal entre 2006 e 2023: prática de atividade física [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2024 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/vigitel_2006_2023_pratica_atividade_fisica.pdf
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. Mesmo com tendência decrescente nos últimos anos1414 Brasil. Vigitel Brasil 2006-2023: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de prática de atividade física nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal entre 2006 e 2023: prática de atividade física [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2024 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/vigitel_2006_2023_pratica_atividade_fisica.pdf
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, pessoas com maiores jornadas de trabalho, pessoas com menor escolaridade e renda, mulheres e pessoas de cor preta ou parda são mais ativas no deslocamento1515 Bastone AC, Moreira BS, Vasconcelos KSS, Magalhães AS, Coelho DM, Silva JI, et al. Time trends of physical activity for leisure and transportation in the Brazilian adult population: results from Vigitel, 2010-2019. Cad Saude Publica. 2022; 38(10):e00057222. doi: 10.1590/0102-311XEN057222.
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16 Ide PH, Martins MSAS, Segri NJ. [Trends in different domains of physical activity in Brazilian adults: data from the Vigitel survey, 2006-2016]. Cad Saude Publica. 2020; 36(8):e00142919. Portuguese. doi: 10.1590/0102-311X00142919.
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-1717 Cruz DKA, Silva KS, Lopes MVV, Parreira FR, Pasquim HM. Socioeconomics inequities associated with different domains of physical activity: results of the National Health Survey 2019, Brazil. Epidemiol Serv Saude. 2022; 31 Spec No 1:e2021398. doi: 10.1590/SS2237-9622202200015.especial.
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; por outro lado, homens, pessoas de cor branca, de maior escolaridade e de renda são mais ativos no tempo livre1515 Bastone AC, Moreira BS, Vasconcelos KSS, Magalhães AS, Coelho DM, Silva JI, et al. Time trends of physical activity for leisure and transportation in the Brazilian adult population: results from Vigitel, 2010-2019. Cad Saude Publica. 2022; 38(10):e00057222. doi: 10.1590/0102-311XEN057222.
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16 Ide PH, Martins MSAS, Segri NJ. [Trends in different domains of physical activity in Brazilian adults: data from the Vigitel survey, 2006-2016]. Cad Saude Publica. 2020; 36(8):e00142919. Portuguese. doi: 10.1590/0102-311X00142919.
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-1717 Cruz DKA, Silva KS, Lopes MVV, Parreira FR, Pasquim HM. Socioeconomics inequities associated with different domains of physical activity: results of the National Health Survey 2019, Brazil. Epidemiol Serv Saude. 2022; 31 Spec No 1:e2021398. doi: 10.1590/SS2237-9622202200015.especial.
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. Embora os instrumentos de avaliação disponíveis geralmente não diferenciem os deslocamentos praticados por opção ou necessidade, uma vez que os agrupamentos mais relacionados também são vulneráveis quanto a outros indicadores de saúde, podemos levantar a hipótese do predomínio da sua prática pela necessidade.

A paisagem da janela revela que a TZ tem relações com as AF de deslocamento

Em novembro de 2023, São Caetano do Sul (SP) adotou a política de TZ. Dentre as matérias veiculadas na imprensa, destacamos duas repercussões: (I) sobre a mudança do perfil dos usuários do transporte público, indicando que pessoas que faziam curtas distâncias a pé passaram a usar o sistema de ônibus; e (II) a preocupação de alguns leitores sobre os impactos da TZ na diminuição da AF de deslocamento, o que traria efeitos deletérios à saúde das pessoas1818 Folha de São Paulo. ‘Tudo que promove o transporte coletivo é bem-vindo’, diz leitor [Internet]. São Paulo: Folha de São Paulo; 2023 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2023/11/tudo-que-promove-o-transporte-coletivo-e-bem-vindo-diz-leitor.shtml
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Mesmo considerando o caráter não sistematizado dessas matérias e o número de respondentes não ser representativo, a perspectiva de risco à saúde atribuída à TZ nos chamou a atenção, uma vez que a AF é reconhecida, em suas múltiplas manifestações, como promotora da qualidade de vida, de inclusão social e de redução de desigualdades sociais, além de ser tema prioritário de políticas públicas nacionais1919 Loch MR, Knuth AG, Silva ICM, Guerra PH. As práticas corporais/atividade física nos 30 anos do Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2018;23(10):3469. doi: 10.1590/1413-812320182310.19102018.
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,2020 Brasil. Presidência da República. Decreto nº 11.766, de 1º de novembro de 2023. Institui a Rede de Desenvolvimento do Esporte. Brasília: Presidência da República; 2023 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11766.htm
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.

O cenário de expansão da política de TZ no país22 Santini D. Primeira experiência de Tarifa Zero começou há mais de 30 anos no Brasil [Internet]. São Paulo: LabCidade; 2023 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://www.labcidade.fau.usp.br/primeira-experiencia-de-tarifa-zero-comecou-ha-mais-de-30-anos-no-brasil/
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,88 Fundação Rosa Luxemburgo. Brasil é o país com mais cidades com tarifa zero [Internet]. São Paulo: Rosalux; 2024 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://rosalux.org.br/brasil-e-o-pais-com-mais-cidades-com-tarifa-zero/
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pode até, em teoria, culminar na diminuição da AF de deslocamento, mas os benefícios diretos e indiretos que lhe estão associados dialogam mais consistentemente com a visão ampliada de saúde. Ao retomarmos a linha de que os deslocamentos motivados por necessidade não são uma via potencial para a promoção da AF – por não se relacionarem com o bem-estar, qualidade de vida e autonomia1313 Salvo D, Jáuregui A, Adlakha D, Sarmiento OL, Reis RS. When moving is the only option: the role of necessity versus choice for understanding and promoting physical activity in low- and middle-income countries. Annu Rev Public Health. 2023; 44:151-69. doi: 10.1146/annurev-publhealth-071321-042211.
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–, também discordamos dessas preocupações trazidas pelos leitores.

Ao mesmo tempo, apontamos que é tempo de superar a visão instrumental da AF, centrada no gasto energético e no acúmulo de minutos, desconsiderando os contextos e as razões em que elas são praticadas. A promoção de AF é necessária, obviamente, desde que norteada pelo espectro do desenvolvimento humano.

Por outro lado, esse eventual cenário de diminuição dos deslocamentos ativos que não são opcionais reforça a necessidade de aumento do acesso e da oferta de AF no tempo livre – destacando o papel da Atenção Primária à Saúde do Sistema Único de Saúde –, e também das oportunidades para os deslocamentos que são opcionais, baseados em escolhas autônomas e realizados em locais adequados, seguros e agradáveis, como nos espaços e vias públicas que precisam ser (re)pensadas para atender a tais questões.

Como outra potencialidade, a política de TZ, se bem implementada, poderá promover uma descentralização das cidades, a melhoria da caminhabilidade dos bairros, a melhoria dos espaços públicos para prática de AF no lazer e a economia de recursos financeiros para utilização em outras necessidades, como melhoria de habitação, alimentação, vestuário e lazer.

O somatório dos gastos com habitação, alimentação e transporte representa quase três quartos da despesa de consumo médio das famílias brasileiras2121 Agência IBGE Notícias. POF 2017-2018: famílias com até R$ 1,9 mil destinam 61,2% de seus gastos à alimentação e habitação [Internet]. Rio de Janeiro: Agência IBGE Notícias; 2019 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25598-pof-2017-2018-familias-com-ate-r-1-9-mil-destinam-61-2-de-seus-gastos-a-alimentacao-e-habitacao
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. Ao considerarmos que, no Brasil, o preço médio da tarifa de transporte público varia entre R$ 4,50 e 5,002222 Numbeo. Prices by country of one-way ticket [Internet]. Numbeo; 2024 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://www.numbeo.com/cost-of-living/prices_by_country.jsp?displayCurrency=BRL&itemId=18
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, a média mensal de gasto de uma pessoa, considerando 21 dias úteis de trabalho e a utilização de dois passes em um dia (ida e volta), varia entre R$ 189,00 e 210,00 mensais, valor que representa entre 13,3% e 14,9% do salário mínimo atual (R$1.412,00).

Mas a implementação e os efeitos da TZ, naquilo que propomos, não apenas devem incidir nos estratos socioeconômicos mais desfavorecidos. Implicam maior atratividade das opções de transporte público para as pessoas situadas nos estratos de maior renda, como vem ocorrendo em algumas cidades europeias2323 Deutche Welle. Vídeo: cidade alemã oferece ônibus gratuito para todos [Internet]. São Paulo: TV Folha; 2024 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/tv/2024/03/video-cidade-alema-oferece-onibus-gratuito-para-todos.shtml
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. Contudo, reconhecemos a elevada pretensão dessa estratégia por propor a superação de uma cultura vigente e hegemônica, que remete ao senso comum de que os serviços públicos e o deslocamento ativo são “para pobres”, bem como a perspectiva de que possuir determinados modelos de automóveis e/ou motocicletas denota pertencimento a estratos sociais mais elevados.

Para além dos impactos diretos na saúde, o domínio do deslocamento também traz consigo potencialidades que abrangem aspectos econômicos, ambientais e de mudanças climáticas2424 Reis R, Hunter RF, Garcia L, Salvo D. What the physical activity community can do for climate action and planetary health? J Phys Act Health. 2022; 19(1):2-3. doi: 10.1123/jpah.2021-0719.
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. Nesse aspecto, no cenário de gradual migração do transporte motorizado individual para o transporte público coletivo, o que poderá levar a impactos positivos sobre a poluição do ar derivada da menor emissão de CO2, avalia-se como necessária a ampliação de políticas públicas intersetoriais tendo em vista a necessidade do envolvimento de outros setores para o fortalecimento das ações, por exemplo: segurança pública, trânsito, infraestrutura e meio ambiente2525 Thuany M, Melo JCN, Tavares JPB, Santos FMJ, Silva ECM, Werneck AO, et al. The profile of bicycle users, their perceived difficulty to cycle, and the most frequent trip origins and destinations in Aracaju, Brazil. Int J Environ Res Public Health. 2020; 17(21):7983. doi: 10.3390/ijerph17217983.
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. Entretanto, mesmo que distintas cidades brasileiras tenham construído facilidades para o deslocamento ativo nos últimos anos, a literatura sugere irregularidades em suas estruturas e conectividade2626 Valenzuela ALEM, Lopes AAS, Rescarolli M, Pazin J, Rech CR. Assessement of the quality of bicycle paths and its correlation with bicycle use in Florianópolis. J Phys Educ. 2023; 34:e3428. doi: 10.4025/jphyseduc.v34i1.3428.
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.

Pondera-se que tais mudanças, no âmbito do deslocamento, não ocorrerão de maneira simples, ou rapidamente no nível populacional, por conta de distintos fatores, como: (i) a existência das facilidades não é a única variável que as pessoas levam em consideração para o engajamento em AF; (ii) a forte representação sociocultural de “ter um carro” em determinados lugares; (iii) o lobby da indústria automobilística nos governos, tomadores de decisão, legisladores etc., com grande capacidade de investimento por suas características transnacionais; e (iv) o lobby de setores ligados à especulação imobiliária que, ao perpetuar a lógica do capital sobre o uso da terra, segue segregando socioespacialmente as camadas mais vulneráveis da população2727 Loch MR, Guerra PH. Bikes vs Cars: análise crítica do documentário de Fredrik Gertten. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):725-9. doi: 10.1590/1807-57622016.0788.
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De qualquer forma, acreditamos que esse olhar para o deslocamento ativo opcional poderá incidir em maior ocupação e fortalecimento dos atores sociais em suas posições de direito nos espaços de discussão, planejamento, criação e/ou preservação das facilidades construídas para a AF no deslocamento, como pistas de caminhada, ciclovias e ciclofaixas2828 Zorzi VN, Wanderley RS Jr, Onita BM, Silva AAP, Silva AT, Oliveira ES, et al. Perspectives on urban mobility in promoting physical activity in the context of commuting in Brazil. Rev Bras Ativ Fis Saude. 2023; 28:e0310. doi: 10.12820/rbafs.28e0310.
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. No momento em que este texto é escrito, pode-se destacar a existência de movimentos que se propõem a discutir e a defender o deslocamento ativo, bem como a política de TZ com os entes governamentais2929 Freitas F. Participação social e a judicialização das políticas públicas – As tentativas de diálogo da Ciclocidade sobre o aumento das velocidades nas marginais [Internet]. São Paulo; Ciclocidade; 2017 [citado 26 Jun 2024]. Disponível em: https://www.ciclocidade.org.br/noticias/participacao-social-e-a-judicializacao-das-politicas-publicas-tentativas-de-dialogo-da-ciclocidade-sobre-o-aumento-das-velocidades-nas-marginais/
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.

Chegamos, mas a TZ não pode parar…

À parte das reflexões e da compreensão de que muitas mudanças ocorrem processualmente, requerendo esforços intra e intersetoriais, até mesmo a mudança de cultura, reforçamos que a TZ é uma política que, para além da garantia direta e indireta de direitos, também dialoga com a promoção da AF por meio da visão ampliada de saúde. Na contramão do modelo hegemônico de financiamento do transporte público, que é excludente, indica-se a TZ como importante conquista no âmbito da cidadania, que não deve ser vista como “inimiga” da prática de AF.

  • Guerra PH, Carvalho FFB, Oliveira RB, Souza HAS, Loch MR. Política de Tarifa Zero e promoção de atividade física: itinerário e reflexões iniciais. Interface (Botucatu). 2025; 29: e240338 https://doi.org/10.1590/interface.240338

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2024
  • Aceito
    10 Set 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br