ANÁLISE
Aspectos pré-históricos pleistocênicos do projeto arqueológico Manguinhos e suas potencialidades
Maria da Conceição de Moraes Coutinho Beltrão
Arqueóloga do Museu Nacional do Rio de Janeiro
INTRODUÇÃO
O Projeto "Sítios Pré-históricos e Megafauna Extinta no Brasil", coordenado pela autora da presente comunicação, relaciona-se a sítios arqueológicos que por sua antigüidade são indiscutivelmente contemporâneos de uma fauna de grande porte (megafauna) que se extinguiu há cerca de 11.000 anos, isto é, no fim do pleistoceno ou no iníco do holoceno.
Os sítios arqueológicos, objeto de nossos estudos intensivos, dentro do projeto em causa, podem ser grupados cronologicamente em:
1º) Sítios do Pleistoceno Superior (situados entre 11.000 e 130.000 de anos como, por exemplo o sítio Alice Boër - SP).
2º) Sítios do Pleistoceno Médio (situados entre 130.000 e 1.000.000 anos como os de Itaboraí e Manguinhos - RJ e Toca de Esperança - BA).
O sítio arqueológico de Manguinhos foi descoberto em 1966. Na ocasião, em um corte de estrada, na área do Instituto Oswaldo Cruz, foi verificada a existência de vestígios de duas ocupações holocênicas, isto é, de menos de 11.000 anos. Uma delas correspondente a uma ocupação Tupi-Guarani (Tupinambá), situada provavelmente dentro da faixa cronológica de 500 d.C. a 1.500 d.C.. A outra, também Tupinambá, correspondente ao aldeamento de Payó, registrado por Jean de Léry em 1557.
Manguinhos foi "re-descoberto" por Beltrão em 1986, isto é, 20 anos depois da descoberta da aldeia e do aldeamento Tupinambá, quando verificou a existência de ocupações pleistocênicas muito mais antigas.
Os materiais arqueológicos dessa época pleistocênica são constituídos, essencialmente, por uma indústria lítica cuja matéria-prima é, de modo geral, quartzo. Eles existem sob a forma de artefatos nas camadas IV e VI. Os ossos e dentes de Equus encontrados na camada VI deixam em aberto a possibilidade de tratar-se de animal da mesma época, entre outras razões pelo fato do animal não apresentar fraturas recentes. Não está excluída a possibilidade de se tratar de um Equus do periodo histórico - que teria sido utilizado nas experiências do Instituto Oswaldo Cruz - e que também teria sido, de alguma maneira, introduzido na camada pleistocênica, isto é, de mais de 11.000 anos. Dois fragmentos ósseos e um dente (molar) desse cavalo fóssil (?) foram enviados ao Institut Dolomieu, em Grenoble , para datação pelo método de Ressonância Paramagnética Eletrônica, a cargo do Dr. Gerárd Poupeau, sob supervisão técníca do Dr. Jacques Danon.
Independentemente do Equus ser antigo ou recente, os artefatos líticos encontrados nas camadas IV e VI, comprovam indiscutivelmente, uma ocupação humana pleistocênica em Manguinhos.
LOCALIZAÇÃO
O sítio arqueológico de Manguinhos está situado dentro da área onde está sediado o Instituto Oswaldo Cruz, na Av. Brasil, 4365, na cidade do Rio de Janeiro.
PROSPECÇÕES E ESCAVAÇÕES
Depois de várias prospecções nas superfícies colinosas, encontradas dentro dos limites do Instituto Oswaldo Cruz, optamos, inicialmente, por escavar naquela onde se situa a Casa Amarela.
Essa elevação é constituída por camadas coluvionais quaternárias que podem atingir vários metros de altura.
Num dos bordos da colina onde há hoje uma creche, na camada correspondente a um antigo mangue, por ocasião do aplainamento do terreno, feito por trator, foram encontrados os ossos e dentes do Equus, já referido (Equus existiram no Brasil há muitas dezenas de milhares de anos, tendo-se extinguido há uns 11.000 anos. Foi, posteriormente, reintroduzido pelos europeus).
As camadas de mangue, quando contêm restos de ocupação humana, são, de modo geral, de vital importância para o arqueólogo porque costumam preservar bem os materiais orgânicos. Aliás, entre os materiais orgânicos passíveis de serem encontrados neste tipo de camada existente em Manguinhos, alguns poderão se transformar em objeto de estudo no Instituto Oswaldo Cruz, desde que se encaixem na constelação de técnicas de pesquisa, tradicionalmente executadas pela instituição.
ASPECTOS MORFO-ESTRATIGRÁFICOS
Os sítios pré-históricos de Manguinhos estão localizados em superfícies colinosas de encosta - "rampa" - pouco íngremes.
As vertentes prospectadas apresentaram nas camadas superficiais uma seqüência de coluvios com, pelo menos, uma linha de seixos composta de fragmentos subangulosos de quartzo (cascalheira).
Essa cascalheira tem importante significado regional.
A litologia da cascalheira permite inferir que ela se formou sob condições torrenciais, embora os seixos e fragmentos de quartzo não devam ter sido carregados muito longe da área fonte.
O clima à época da formação da cascalheira deve ter sido semi-árido.
A estratigrafia dessas superfícies colinosas, em Manguinhos, reflete as fases erosivas e de sedimentação do Quaternário.
Como Itaboraí (vide "Relatório de Atividades: Itaboraí"), Manguinhos tem condições de se transformar em sítio de referência. Não só pode vir a contribuir para a determinação da idade de outros sítios arqueológicos localizados em "rampas", como para vir a subsidiar a interpretação geocronológica de cascalheiras registradas em vários pontos do Brasil Meridional.
Há, portanto, necessidade de trabalho conjugado do arqueólogo com o geomorfólogo para permitir a busca de um melhor equacionamento da dinâmica paleoambiental na área em estudo.
Elaboramos uma cronoestratigrafia preliminar para entender melhor as relações estratigráficas do sítio.
A seqüência estratigráfica de Manguinhos é composta de, pelo, menos, 6 camadas bem nítidas. Uma delas é constituída por uma camada de seixos e fragmentos de quartzo onde existem numerosos artefatos pleistocênicos. Além dessa há artefatos pleistocênicos na camada correspondente ao antigo mangue.
ARTEFATOS
O homem pré-histórico já encontrou no local, a matéria-prima que mais utilizou no sítio aí localizado: quartzo.
Esta matéria-prima, apesar de não ser de tão boa qualidade quanto o sílex, foi tratada, em alguns casos, com grande habilidade. Assim, a técnica de preparação do núcleo por lascamento circundante (que existe em Itaboraí sobre sílex) foi aplicada em Manguinhos sobre o quartzo. Há ainda, lascas orientadas, em quartzo, com bordos paralelos transformados em raspadores.
A relação dos artefatos líticos até agora encontrados, embora não seja muito grande, em virtude de estarmos apenas iniciando os trabalhos de escavação, é muito expressiva. Inclui: choppers, facas e raspadores de vários tipos, inclusive os raspadores laterais em lasca espessa etc. Há também vários núcleos que permitirão a reconstituição das técnicas empregadas na confecção dos objetos.
Na camada de mangue, que aparentemente corresponde ao Pleistocene Superios (130 mil anos a 11 mil) a pátina dos artefatos é pouco visível, porque aí os materiais foram sempre lavados pela umidade constante da camada.
Na cascalheira, que pertence, como idade, ao Pleistoceno Médio, a pátina é conspícua, brilhante e de modo geral amarelada.
Há nos artefatos encontrados na cascalheira de Manguinhos, uma grande identidade tipológica com os artefatos das cascalheiras do sítio arqueológico de Itaboraí. Aliás, o sítio de Itaboraí integra o que defini-os como a Região Arqueológica de Manguinhos.
SINGULARIDADE DO SÍTIO
O sítio arqueológico de Manguinhos singulariza-se pela sua incomum abrangência temporal.
A cronologia da ocupação inicia-se por faixas bastante recuadas, como o Pleistoceno Médio (portanto, há, pelo menos, 130 mil anos, na faixa cronológica correspondente ao Homo erectus) passa por várias ocupações situadas em faixas mais recentes, como a que corresponde ao antigo mangue (do Pleistoceno Superior), alcança ocupações Tupinambá dos períodos proto-históricos e históricos, atinge uma fazenda do séc. XVIII para, significativamente, desembocar, já nesse século, na instalação, no local, de um monumento da pesquisa científica no Brasil, que é o Instituto Oswaldo Cruz.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BELTRÃO, M. C. de M. C. E SARCIÀ, M. N. G. - "L'Industrie lithique et la stratigraphie du Site d'Itaboraí (Rio de Janeiro, Brésil). In Resumo das Comunicações do 2º. Congresso Internationale di Paleontologie Umana (28.09 a 03.10.87) Section 43Homo Erectus - Preneandertallens-Homo Sapiens Archaiques, pp. 174, Torino, Italia, 1987.