TEMA
Recessão e gasto social: a Conta Social Consolidada (1980-1986)
Solon Magalhães ViannaI; Sérgio Francisco PiolaII; Lúcia Pontes de Miranda Baptista III; William Paul McGreeveyIV
ICoordenador de Saúde e Previdência Social (IPEA/IPLAN)
IICoordenador Adjunto de Saúde e Previdência Social (IPEA/IPLAN)
IIIChefe de Gabinete da Presidência do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN/MS)
IVEconomista do Banco Mundial - BIRD
1. INTRODUÇÃO
Os primeiros anos desta década touxeram para os países ocidentais uma crise econômica sem precedentes nos últimos 50 anos. No Brasil a crise sobreveio imediatamente após um período de arrefecimento da atividade econômica que sucedeu ao "milagre brasileiro", denominação mítico-ufanista pela qual ficou conhecida a excepcional performance da economia brasileira entre 1968 e 1974.
Em que magnitude essa conjuntura desfavorável repercutiu nos recursos federais alocados para os setores sociais? Como se comportaram as diferentes fontes de financiamento? Em que medida a criação, em plena crise, de uma nova fonte vinculada o FINSOCIAL cumpriu seu objetivo político explícito de aumentar os recursos para a área social?
Este documento reúne alguns subsídios para encontrar respostas a estas e outras perguntas referentes ao impacto da crise no gasto federal no campo social entre 1980, ano que marca o início do período recessivo e 1986, quando o crescimento econômico já havia sido retomado.
2. INFORMAÇÕES METODOLÓGICAS
2.1. Antecedentes e abrangências
A organização do que se está chamando de Conta Social Consolidada CSC, retoma e atualiza o trabalho desenvolvido em 1983, no IPEA/IPLAN, de elaboração da Consolidação Plurianual dos Programas de Governo CPPG. Dá, também, continuidade aos estudos realizados em conjunto com o Banco Mundial sobre políticas e financiamento do sistema de saúde brasileiro, iniciados em 1984.
Os dois trabalhos, CPPG e CSC, ainda que similares em suas linhas gerais, apresentam pelo menos uma diferença básica. A CPPG, no que se refere a abrangência temática, abarcou todo o universo governamental. Enquanto este, como seu título indica, está restrito à área social.
Cobrindo o período de 1980 a 1986, a CSC engloba não só os recursos do Tesouro, inclusive o Fundo de Investimento Social FINSOCIAL, como também o Fundo de Previdência e Assistência Social FPAS, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço FGTS (no que se refere aos recursos do Banco Nacional de Habitação destinados à Habitação e Saneamento) e Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social - FAS.
Foram considerados como " sociais" as seguintes áreas:
- Alimentação e Nutrição;
- Saúde;
- Saneamento;
- Educação e Cultura;
- Habitação e Urbanismo;
- Trabalho e
- Assistência e Previdência.
Não foram incluídos na CSC, o Projeto Nordeste e as áreas de Transporte Urbano, Justiça, Apoio ao Pequeno Agricultor (reforma agrária), embora essas áreas tenham integrado o Programa de Prioridades Sociais PPS nos anos de 1985 a 1986.
Também não foram considerados, da mesma forma que na CPPG (área social), os gastos sociais das empresas estatais e dos bancos oficiais, exceto os recursos do FAS e a pequena parcela do FINSOCIAL geridos, respectivamente, pela Caixa Econômica Federal CEF e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social BNDES.
Isso quer dizer que as despesas dessas e outras instituições oficiais de crédito, bem como das demais empresas estatais que prestam serviços sociais (saúde, alimentação, previdência complementar etc...) para seus funcionários e dependentes, não foram contemplados na CSC. Presume-se que esses dispêndios sejam significativos pelo menos em valores "per capita". A confirmação dessa hipótese, entretanto, deve ser objeto de outro estudo previsto no Programa de Trabalho da Coordenadoria de Saúde e Previdência Social do IPEA/IPLAN.
2.2. Critérios básicos
As séries históricas, no que se refere aos gastos do Tesouro e do FPAS, foram construídas a partir da identificação dos gastos segundo os Subprogramas típicos dos diferentes Programas1, como são orçamentariamente identificados.
Nos demais casos (BNH, FAS) utilizaram-se os dados na forma agregada já disponíveis nas fontes consultadas (Coordenadoria de Desenvolvimento Urbano CDU do IPEA/IPLAN para o BNH e Assessoria do Conselho de Desenvolvimento Social CDS na SEPLAN, para o caso do FAS).
No caso de saúde, destacou-se, como área específica, o Subprograma de Alimentação e Nutrição. O gasto com saúde, portanto, é o resultado do somatório das despesas dos demais subprogramas, Assistência Médico-Sanitária (428 x), Controle de Doenças Transmissíveis (429 x), Vigilância Sanitária (430 x), Produtos Profiláticos e Terapêuticos (431 x) e Assistência Materno-Infantil (432 x) e "outros gastos".
Em "outros gastos", tanto na área da saúde como nas demais, estão incluídas todas as outras despesas (administração, planejamento, ciência e tecnologia etc...) do Ministério nuclear da área, com exceção daqueles gastos correspondentes a Subprogramas típicos de outra área social.
Os gastos com Treinamento de Recursos Humanos subprograma típico do Programa Ensino Supletivo (Função Educação e Cultura) presentes em todas as áreas, foram agrupados na área de educação. Mas as despesas do Ministério da Educação MEC com seus Hospitais Universitários e com merenda escolar estão contabilizados nas áreas de saúde e alimentação, respectivamente.
Procedimento análogo foi adotado em relação aos Subprogramas típicos do Programa Previdência; dois deles, Previdência Social ao Servidor Público PASEP (494) e Previdência Social a Inativos e Pensionistas (495), estão presentes em todos os órgãos governamentais. As despesas correspondentes foram contabilizadas na área de Previdência e Assistência.
A adoção desses critérios permite, no entendimento dos autores, um refinamento de informação bem maior do que se utilizado simplesmente o gasto por Função, Programa ou Ministério Setorial2.
Esta última hipótese (gasto por Função ou Ministério "Social") seria a menos trabalhosa, pois os dados relativos ao orçamento fiscal já vêm sendo tabulados com essas especificações no Balanço Geral da União.
Todavia, nessa alternativa, as despesas seriam subestimadas. O gasto social com recursos do Tesouro, Cz$ 126,486 bilhões, em 1986 segundo a metodologia adotada, desce para Cz$ 125,595 bilhões (Tabela I) quando apresentado por função orçamentária, ou é ainda bem menor Cz$ 89,724 bilhões quando tabulado por Ministério da área social (Tabela II).
A opção de contabilizar os dados do Orçamento Fiscal a partir dos Subprogramas exigiu um verdadeiro trabalho de garimpo nos Balanços Gerais da União; em contrapartida, as informações das demais fontes de financiamento da área social, que representam 61,4% do total, foram obtidas a partir de dados secundários.
Nada obstante, há boas razões para crer que o gasto social quantificado na CSC esteja aquém do real. O Balanço Geral da União e as demais fontes de informação utilizadas não têm a transparência necessária para revelar, por exemplo, quanto os diferentes órgãos da administração direta e indireta realmente despendem com serviços sociais (alimentação, assistência médica principalmente) prestados como "fringe benefits" aos seus funcionários e dependentes.
É improvável que as despesas com assistência médica no Poder Legislativo sejam apenas o que está consignado no Subprograma "Assistência Médico-Sanitária", contabilizado neste estudo. O valor parece muito baixo (Cz$ 25,6 milhões em 1986) para custear os amplos e relativamente sofisticados serviços médicos da Câmara dos Deputados e do Senado, para não mencionar o custeio de tratamento de saúde de Deputados e Senadores no exterior.
Ademais, a CSC não contempla as despesas feitas com recursos próprios dos órgãos autônomos vinculados aos Ministérios. Essa informação não aparece no Balanço Geral da União. A sua inclusão exigiria consulta aos Balanços dessas instituições. A intenção de que a duração do trabalho não ultrapassasse 30 dias impediu esse detalhamento. É possível que esse tipo de receita tenha algum significado em determinados casos. Na Fundação Serviços de Saúde Pública FSESP, por exemplo, órgão vinculado ao MS, a receita própria representou em 1986 20% do total dos recursos3.
2.3. Fontes
Foram utilizadas as seguintes fontes básicas de informação:
1. SEPLAN
a) Secretaria-Central de Controle Interno: Balanços Gerais da União (1908, 1981, 1982, 1983 e 1984);
b) CDS: Dados de aplicações, repasses e transferências do FAS;
c) IPEA:1) Relatório do FINSOCIAL (Assessoria da Vice-Presidência)
2) Informações sobre o BNH (Coordenadoria de Desenvolvimento Urbano)
3) Relatórios do PPS (1985 e 1986): Assessoria da Vice-Presidência.
2. Ministério da Fazenda
a) Secretaria Central de Controle Interno: Balanços Gerais da União (1985 e 1986).
3. Ministério da Previdência e Assistência Social MPAS
a) INAMPS: INAMPS em dados (1980/1986);
b) Secretaria de Planejamento e Orçamento (despesas das instituições do SINPAS, segundo o programa de trabalho (1984-1986);
c) Balanços das Instituições do SINPAS (1980/1983).
3. O COMPORTAMENTO DO GASTO SOCIAL
As despesas do Governo Federal com seus programas sociais, depois de quedas reais sucessivas em 1983 e 1984, apresentaram nítida recuperação em 1985 e 1986.
A despeito de um crescimento em 1985 de 17,1% em relação ao ano anterior, e de 12,7% em 1986 em relação a 1985, as despesas sociais federais ainda foram inferiores às registradas em 1982 (Tabela III).
O gasto "per capita", que alcançou a Cz$ 2.606,24 em 1982 (preços de 1986), decresceu até 1984 em 30%. Uma recuperação de 26,4% no período de 1985-86 não foi suficiente para alcançar o nível de 1982.
A evolução dessas despesas em relação ao PIB tem comportamento similar: decréscimo, ainda que pouco, significativo, em 1983 e diminuição maior no ano seguinte. O percentual até 1983 manteve-se em torno de 10%, baixando para 7,9% em 1984, aumentando em 1985 para 8,3 e 8,6% em 1986.
4. O PAPEL DOS RECURSOS DO TESOURO
A participação das fontes que compõem o orçamento fiscal4 no financiamento das políticas sociais está em torno de 1/3 do total das aplicações na área, até 1984. Embora descendo a 27,5% em 1982, o percentual subiu em 1984, alcançando em 1985 a 36,9% e 39,6% em 1986. (Tabela V).
Este percentual pode ser um bom indicador do grau de prioridade da área social nas políticas de governo. A destinação dos recursos do Tesouro depende de vontade política. Boa parte desses recursos não está amarrada a nenhum uso específico, ao contrário das fontes vinculadas.
A alocação de recursos dos fundos sociais, de outra parte, depende menos de decisão política do que do comportamento da economia como um todo (FINSOCIAL) e do nível de emprego e salário (FPAS). É a vinculação desses recursos que tem assegurado à área social uma certa imunidade às pressões de outros setores na disputa por maiores fatias dos recursos públicos.
No Orçamento Fiscal também ficou caracterizado um nítido aumento de prioridade para a área social em 1985. Nesse ano, o percentual do gasto social, vis-à-vis a despesa total do Tesouro, chegou a quase 33%, o maior do período analisado.
Em 1986, apesar do gasto federal com recursos do Tesouro na área social ter crescido 20,8% em relação a 1985, a participação desses gastos, dentro do gasto total do Tesouro, é a menor observada no período (23,1%). As áreas de Assistência e Previdência e de Educação são as que têm absorvido maiores percentuais desses recursos (Tabela VI).
É preciso terem conta, porém, que o FINSOCIAL uma das fontes vinculadas à área social faz parte do orçamento fiscal. Em 1984 os recursos originários dessa fonte representaram 10%, 47,8% e 50,2%, respectivamente, dos gastos do MEC, MS e MINTER5. No ano seguinte esses percentuais foram de 24,8%, 71,1% e 24,2%.
Em 1985 e 1986, 80,4% e 96,3% da receita desse Fundo foram utilizados como fonte convencional do Tesouro para compor os orçamentos dos Ministérios da área social. Esse percentual, que foi de apenas 21,1% em 1984, deverá alcançar a 95,8% emm 19876.
Esses valores, e o próprio comportamento do gasto social como um todo, sugerem que essa fonte, que em 1985 gerou uma receita superior a Cz$ 8 trilhões6, (US$ 1,3 bilhões), tem sido, na verdade, não um instrumento de expansão da área social, como justificado na sua criação, mas mera fonte substitutiva da receita tributária.
5. A DIVISÃO DO BOLO
As áreas de Trabalho e de Assistência e Previdência são as que apresentam, no período, um padrão mais uniforme de participação, principalmente a primeira que se manteve entre 1980 e 1985 com um percentual quase inalterado de 0,4% e 0,5% (0,7% em 1986). Assistência e Previdência, área que sozinha absorve mais da metade de todos os recursos da área social, alcançou percentuais que pouco variaram, entre 53,5% em 1980 (mínimo) e 59,8% em 1983 (máximo).
Apenas uma área vem apresentando clara diminuição relativa e queda real progressiva de recursos, Habitação e Urbanismo, que contou em 1980, com 12,2% dos recursos totais e teve sua presença gadativamente reduzida até chegar a apenas 3,9% e 1986. Em valores constantes, os recursos caíram de Cz$ 37,3 bilhões em 1980 para cerca de Cz$ 12,3 bilhões em 1986.
Alimentação e Nutrição, ao contrário, passou no mesmo período de 0,6% para 2,6%, mais do que quadruplicando sua presença relativa no gasto social total. Os recursos passaram de Cz$ 1,9 bilhões para Cz$ 8,2 bilhões em 1986, a preços de 1986.
A segunda maior área, quanto ao gasto social, é a de Saúde que se conserva entre 17% e 19,5%, exceto em 1983 quando o percentual desceu para 16%. O FPAS é a fonte hegemônica de financiamento dessa área. Em 1986, ano de menor participação do FPAS no financiamento da área de saúde, o percentual de recursos dessa fonte foi de 76,8% (em 1980 foi de 85%) em relação ao total do dispêndio.
Educação e Cultura e Saneamento tiveram uma participação menos homogênea no período. A primeira apresentou percentuais que variaram de 11,0% (1980) a 16,5% (1986). Saneamento, por sua vez, decresceu sua presença em 1983 e 1984 (3,2% e 2,3%), mas passou para 3,7% em 1985, ainda um pouco distante de 4,3% (1981) o maior percentual do período.
6. SÍNTESE CONCLUSIVA
Com o advento da recessão, no início dos anos 80, o esforço nacional que poderia estar contribuindo para o resgate da imensa dívida social, passou a ser canalizado para atender ao serviço do endividamento externo contraído nos tempos de prosperidade interna e de abundância de crédito internacional.
A redução da atividade econômica repercutindo nas receitas fiscais e parafiscais e, conseqüentemente, no gasto como um todo, atingiu também o orçamento social.
O gasto social público total, considerando apenas a parcela financiada pelo Orçamento Fiscal (inclui FINSOCIAL) caiu de Cz$ 85 bilhões para Cz$ 73 bilhões (a preços de 1986), ou seja, o equivalente a 14% ente 1980 e 1984.
A recuperação em 1985 e 1986 é inegável. Os dispêndios do Tesouro (Orçamento Fiscal) nas áreas sociais alcançaram nesses anos seus valores mais altos no período considerado no estudo (198086).
Nada obstante, o gasto social consolidado, incluindo todas as demais (FPAS, FAS e BNH), embora tenha crescido em relação a 1983 e 1984, ainda está inferior ao observado em 1982.
Esse aumento em 1985 e 1986 do gasto social do Tesouro decorre da decisão política de priorizar o social, compromisso explícito na Nova República. Em 1985, não só houve um aumento real em valores absolutos, como as despesas sociais alcançaram o seu mais alto percentual em relação ao gasto público no período.
O resultado global menos satisfatório, quando se considera a CSC, se deve ao comportamento das fontes vinculadas como FAS, FPAS e as que financiam o BNH.
O FPAS, estimulado pelo crescimento do nível de emprego, apresenta um dispêndio em 1985 e 1986 maior que em 1984 e 1983, mas ainda inferior ao registrado em 1982.
No FAS a queda foi bem maior: as aplicações em 1986 foram 70% menores do que em 1982. O mesmo aconteceu com o BNH, onde o percentual de diminuição foi de 62,8% em relação a 1982.
A intenção não só de preservar os programas sociais, como até mesmo fortalecê-los mediante o aumento das contribuições previdenciárias em 1982 e a criação do FINSOCIAL no mesmo ano, não foram suficientes para compensar o impacto negativo da recessão. O FINSOCIAL, embora tenha contribuído para reforçar linhas de ação da maior importância, como os programas de alimentação e nutrição, no geral funcionou como simples substitutivo de recursos das fontes fiscais convencionais.
Nota: As opiniões emitidas neste trabalho, elaborado em junho de 1986, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não sendo necessariamente endossadas pelo IPEA ou pelo BIRD.
1 Segundo a Classificação Funcional Programática. No caso de Educação e Cultura adotou-se a Classificação por Programa (Ensino do 1°. Grau, Ensino do 2°. Grau, Ensino Supletivo, Educação Física e Desporto, Assistência ao Educando, Cultura e Educação Especial).
2 Funções de Governo consideradas como sociais neste estudo: Educação e Cultura, Habitação e Urbanismo, Saúde e Saneamento, Trabalho, Assistência e Previdência. Os seguintes Ministérios foram classificados como da área social: Educação e Cultura, Interior, Previdência e Assistência Social, Saúde e Trabalho. A partir de 1985, considera-se também os Ministérios da Cultura e Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente.
3 MS FSESP,Relatório e prestação de contas,1986.
4 Inclui a contribuição social que compõe o FINSOCIAL criada em 1982 (Decreto-lei nº 1940).
5 REZENDE, Fernando e SILVA, Beatriz A. Estudos para a Reforma Tributária. Tomo 4, Contribuições Sociais. IPEA. Textos para discussão interna nº 107. Março, 1987.
6 ABREU e LIMA, M., BAPTISTA, L. e MUNIZ, K. FINSOCIAL Análise Sumária do Financiamento (1982 1986) IPEA/ASTECFINSOCIAL, janeiro, 1987.