ARTIGO ARTICLE


 

 

 

 

 

 

Anaclaudia Gastal Fassa1
Luiz Augusto Facchini1
Marinel Mór Dall'Agnol1


Trabalho e morbidade comum em indústria de celulose e papel: um perfil segundo setor

Work and common disease in a pulp and paper industry: a profile by department

 

 


1 Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Pelotas C. P. 464, Pelotas, RS 96001-970, Brasil.   Abstract The purpose of this study was to identify associations between common morbidity and work accidents and the respective departments in a pulp and paper industry, describing work loads and performing broad control of potential confounding factors. We studied all the workers from a specific pulp and paper industry, using a cross-sectional design and interviews at the workplace (n=671) with a standardized questionnaire. We characterized workers' perceptions of their occupational exposures and health problems. The industrial area had an excess in auditory problems (OR>2.5) and respiratory problems (OR>2.7) as well as accidents (OR>4.7). These diseases were probably related to the high prevalence of noise, dust, sudden temperature changes, exposure to various chemicals, and excessive effort and high-risk situations. Moreover, the management group showed an excess in eye problems, backache, irritation, and nervousness (OR>1.7), apparently related to lack of autonomy and creativeness at work, ergonomic problems, and strained eyesight. The study confirmed not only a high prevalence of common diseases, but also their relationship to specific features of the work process indicated by each department category.
Key words Morbidity; Worker's Health; Work Accidents; Epidemiology  

Resumo Este artigo objetiva identificar as associações das morbidades comuns e dos acidentes de trabalho com setor, descrevendo as cargas de trabalho e realizando um amplo controle de fatores de confusão. Através de delineamento transversal, estudou-se a totalidade dos trabalhadores de uma indústria de celulose e papel (n=671). Realizaram-se entrevistas nesta indústria, caracterizando a percepção dos trabalhadores sobre as exposições ocupacionais e a morbidade. A área industrial caracterizou-se pelo excesso de problemas auditivos (RO>2,5), respiratórios (RO>2,7) e acidentes (RO>4,7), possivelmente relacionados com ruído, poeira, mudanças bruscas de temperatura e exposições a substâncias químicas, além do trabalho físico pesado e exposições a situações de risco. A administração apresentou um aumento de problemas nos olhos, dor nas costas, irritação e nervosismo (RO>1,7), que parecem ter relação com a falta de autonomia e criatividade no trabalho, problemas ergonômicos e esforço visual. Confirmaram-se não só as altas prevalências de morbidades comuns, mas também sua relação com as particularidades do processo de trabalho sintetizadas pela categoria setor.
Palavras-chave Morbidade; Saúde do Trabalhador; Acidentes de Trabalho; Epidemiologia

 

 

Introdução

 

A indústria de celulose e papel é uma atividade produtiva em expansão no Brasil. Entre as dez indústrias de grande porte de nosso país, que produzem mais de oitocentas toneladas por dia, várias duplicaram sua produção recentemente, e outras, como a indústria aqui considerada, devem fazê-lo nos próximos anos. Em vista disso, estudos na área de saúde do trabalhador, à semelhança das avaliações de impacto ambiental, poderão contribuir para que os investimentos priorizem, além do aumento de produtividade e de melhorias na qualidade do produto, processos e tecnologias não poluentes e saudáveis.

Existem vários estudos sobre condições de trabalho e saúde na indústria de celulose e papel, realizados principalmente em países do Primeiro Mundo, que geralmente buscam relacionar, através de delineamentos complexos, agentes etiológicos isolados e morbidades específicas. Estes estudos enfocam, principalmente, doenças ocupacionais crônicas e com longos períodos de latência, como doenças cardiovasculares, câncer e problemas respiratórios, e sua associação com a exposição a riscos químicos e poeira (Jäppinen, 1987; Jäppinen et al., 1987; Ericsson et al., 1988).

No entanto, ainda são escassos os estudos sobre a importância do trabalho na determinação das morbidades comuns, especialmente nas indústrias de celulose e papel. As morbidades comuns, embora não impliquem um risco de vida iminente, têm mostrado altas prevalências e forte relação com o trabalho, marcando o grande desgaste de uma população jovem, em atividade, e, portanto, teoricamente sadia (Laurell et al., 1991).

Assim, o objetivo deste estudo é identificar as associações das morbidades comuns e dos acidentes de trabalho com setor, realizando um amplo controle de fatores de confusão, e caracterizar o perfil de cargas de trabalho para compreender os mecanismos de determinação.

Neste sentido, destaca-se o estudo de Laurell et al. (1991) sobre a relação do perfil de morbidade com as características do processo de trabalho em uma indústria siderúrgica. Os autores propuseram setor como um indicador sintético capaz de captar o conjunto das exposições que afetam os operários em cada local de trabalho. No entanto, ressaltaram a limitação do indicador para demonstrar diferenças nas morbidades e sua relação com o processo de trabalho quando os setores apresentam exposições semelhantes (Laurell et al., 1991; Laurell et al., 1992).

Por esta razão, privilegia-se, aqui, a comparação dos setores da área industrial com a administração, que, embora interdependentes, têm atividades de natureza distinta.

 

 

Metodologia

 

Através de um delineamento transversal investigou-se a totalidade dos trabalhadores de uma indústria de celulose e papel. Utilizou-se um questionário padronizado, pré-codificado, que captou a percepção dos trabalhadores sobre as cargas de trabalho e os danos à saúde.

Os trabalhadores foram entrevistados em seu setor, na própria fábrica, em salas que garantiam o sigilo das entrevistas, as quais foram realizadas por três auxiliares de pesquisa no período de 10 de janeiro a 21 de março de 1994.

Como variável independente, identificaram-se quatro setores: administração (compras, vendas, recursos humanos, projetos...), produção (corte, branqueamento, secagem, empacotamento e planta química), apoio (caldeiras, tratamento de água e efluentes, laboratórios e porto) e manutenção (mecânica, civil e elétrica). Estes eram caracterizados como o local em que o trabalhador estava desempenhando suas atividades no momento da entrevista.

Além disso, a partir de uma listagem, perguntava-se ao trabalhador sobre as cargas a que ele se considerava exposto no setor, valorizando-se a resposta afirmativa como um indicador de exposição. As cargas foram subdivididas em dois grandes grupos, ambientais e relacionadas à atividade, sendo entendidas não como agentes nocivos isolados, mas como um conjunto de exposições inter-relacionadas (Facchini, 1994; Laurell et al., 1991).

Utilizaram-se três critérios na caracterização do perfil de morbidade. A partir da lista de problemas, perguntava-se nos dois primeiros: que morbidade o trabalhador costumava ter e relacionava com seu trabalho e que morbidade havia apresentado nos 15 dias anteriores à entrevista. O terceiro critério captava a ocorrência de acidente de trabalho no ano anterior à entrevista, caracterizando-se o tipo de acidente, por exemplo, cortes e queimaduras. Nos três casos, havia três possibilidades de resposta: sim, não e ignorado. A resposta sim indicava, respectivamente, a percepção da morbidade como relacionada ao trabalho, a ocorrência do problema de saúde nos 15 dias anteriores à entrevista e a ocorrência de pelo menos um acidente de trabalho no ano anterior à entrevista.

Aplicou-se também o questionário padronizado SRQ-20 (Self-reported questionnaire), para identificar problemas psiquiátricos menores. Considerou-se positivo o teste com pelo menos oito respostas afirmativas para mulheres e seis respostas afirmativas para homens (Mari et al., 1986). Estudaram-se também as perguntas do teste de forma isolada, considerando a resposta afirmativa como a presença do problema em questão.

Também foram coletadas as seguintes informações:

· variáveis demográficas: gênero, idade em anos, estado civil (casado ou com companheiro, solteiro ou sem companheiro);

· variáveis sócio-econômicas: escolaridade em anos completos, renda em salários mínimos no mês anterior à entrevista;

· outras variáveis ocupacionais: turno (administrativo, revezamento), antigüidade na empresa em meses, função (operador, técnico/laboratorista, analista/supervisor, assistente/auxiliar), treinamento para a função (curso no SESI (Serviço Social de Indústria)/técnico/superior, curso patrocinado pela empresa, treinamento em serviço/ajudante, não fez treinamento);

· variáveis comportamentais: tabagismo (fumante, não fumante) e alcoolismo medido através do questionário padronizado CAGE (Soibelman et al., 1990).

A população estudada teve uma relação expostos/não expostos de 5:1; desta forma, foi possível detectar, com um erro alfa de 5% e um poder estatístico de 80%, riscos superiores a 2,5 para morbidades com prevalências maiores que 10% nos não expostos.

A parte descritiva do estudo e a análise bivariada foram realizadas através do programa SPSS/PC+ (Norussis, 1986). A população foi descrita pelas variáveis demográficas, sócio-econômicas e ocupacionais, enquanto a análise bivariada consistiu no exame das associações de setor com as cargas de trabalho e a morbidade.

As cargas de trabalho foram estudadas somente no nível da análise bivariada, utilizando-se este dado para compreender melhor as associações entre setor e morbidade. Como as prevalências das cargas foram muito altas, freqüentemente acima de 40%, adotou-se a razão de prevalências como a medida de efeito.

As morbidades, em muitos casos, apresentaram prevalências superiores a 10% (Tabelas 3 e 4); portanto, a medida de efeito mais adequada seria razão de prevalências. Porém, como as associações entre setor e morbidade foram exploradas na análise multivariada através de regressão logística, expressando os resultados em termos de "razão de odds", optou-se por esta medida de efeito. Entretanto, é preciso lembrar que, para fatores de risco, a "razão de odds" é ligeiramente maior do que a razão de prevalências (Checkoway, 1989; Olinto, 1993).

 

 

 

 

 

 

 

 

A análise multivariada foi realizada com o pacote estatístico EGRET (EGRET, 1988). Selecionaram-se para esta análise as morbidades significativamente associadas com setor, bem como aquelas com prevalências superiores a 25% nos expostos, para as quais havia poder estatístico para detectar riscos de 2,5 após ajustar para os fatores de confusão. A identificação dos fatores de confusão levou em conta o modelo teórico e a associação estatística (p<0,1) com setor (variável dependente) e com as morbidades (variáveis independentes) (figura 1).

Assim construiu-se uma equação de regressão para cada uma das trinta morbidades. As variáveis gênero, idade, estado civil e alcoolismo estiveram significativamente associadas a setor (p<0,1) e foram incluídas na equação quando estavam também associadas a morbidade. Tabagismo e antigüidade na empresa não estiveram significativamente associados com setor (p>0,1), desta forma não foram incluídos na análise multivariada. Os fatores de confusão examinados que não modificaram substancialmente a "razão de odds" não foram excluídos da equação. Esta opção levou em conta o fato de a identificação de fatores de confusão, na associação entre setor e as morbidades, não ser objetivo deste estudo.

Para aprofundar o entendimento dos mecanismos causais, examinaram-se também as variáveis função e turno como fatores de confusão. Uma vez que estas não se comportaram como fatores de confusão, mas sim como determinantes principais de algumas morbidades, serão abordadas em outras publicações (Fassa, 1995).

 

 

Resultados

 

Características do processo de produção


 

Em funcionamento há mais de vinte anos, a indústria estudada produz diariamente cerca de oitocentas toneladas de celulose e duzentas toneladas de papel. Há sete anos, após protestos que culminaram com sua interdição temporária, adequou a planta de forma a evitar a poluição do meio ambiente.

O processo de trabalho é automatizado, de fluxo contínuo e com controle computadorizado na maior parte das fases dos setores produtivos e de apoio.

A indústria vem realizando a flexibilização do processo de produção, com terceirização de áreas periféricas com maior risco ou com maior contingente de trabalhadores. Esta política costuma transferir às empresas contratadas problemas de saúde do trabalhador típicos de funções críticas, como, por exemplo, aqueles observados nos jatistas de areia.

Além da terceirização, não ocorreram grandes modificações no processo de trabalho nos últimos anos. As modificações que ocorreram, como a introdução de oxigênio para clarear a celulose, foram nos pontos de maior automação, onde o contato direto com os trabalhadores é pequeno. Em vista disso, e considerando a pequena mobilidade entre os diferentes setores, assume-se que as exposições caracterizadas não sofreram grandes modificações ao longo do tempo.

A maioria dos trabalhadores da indústria (77%) considera que as condições de trabalho melhoraram, ou seja, os níveis de exposição histórica foram possivelmente iguais ou piores do que os caracterizados; neste caso, se houvesse um viés, este seria em direção à hipótese nula.

O processo de produção de celulose é físico-químico e consiste em picar a madeira transformando-a em cavaco; levar o cavaco ao digestor, onde é cozido a uma temperatura de 175oC com líquor branco (composto de água, soda e antraquinona), transformando-o em celulose; clarear a celulose com oxigênio e branqueá-la com dióxido de cloro, após o que a celulose é seca, prensada, cortada e embalada para a comercialização.

O uso mais comum da celulose é na fabricação de papel. Com celulose não branqueada produz-se o papel kraft; com a clareada com oxigênio (celulose oxicel) elabora-se o papel ecograph e com a branqueada faz-se o papel branco comum. Porém, a celulose também é utilizada como matéria-prima para outros produtos, como, por exemplo, fraldas e filmes fotográficos.

 

Características da população


 

Dos 671 trabalhadores elegíveis, foram estudados 638, o que implicou 4,9% de perdas. Estas não se concentraram em setores ou funções específicas e deveram-se ao fato de alguns trabalhadores estarem em férias no período final do estudo.

Da população estudada, a maioria era do gênero masculino (90,9%), casada (75,9%) e branca (93,9%). Os trabalhadores tinham uma distribuição normal de idade com média de 33 anos (d.p.7,7). Apresentavam um alto nível de escolaridade (média 11 anos, d.p.3,7) e de renda (média de 10,3 salários mínimos, d.p.7,7). Os tabagistas representavam 41,2% da população.

 

Características ocupacionais


 

O setor que concentrava o maior número de trabalhadores era a produção (37,6%), seguido do apoio (28,2%), manutenção (17,2%) e administração (16,9%). A maioria trabalhava em turno de revezamento (63,8%).

Na população em estudo, 66,3% tinham mais de cinco anos de antigüidade na empresa. Esta variável foi transformada em categórica para a utilização na análise, uma vez que esta não apresentava distribuição normal.

A função de operador era a mais freqüente entre os trabalhadores da indústria (35,6%), seguindo-se de técnicos e laboratoristas (29,9%), assistentes e auxiliares (19,9%) e analistas e supervisores (14,6%). E cerca de 40% tinham mais de cinco anos de antigüidade na função.

O treinamento em serviço foi o mais freqüente (41,5%), seguido dos cursos regulares (técnico, superior, SESI), que envolveram 20,1% dos trabalhadores. Além disso, cerca de 15% dos operários não fizeram qualquer treinamento para a função.

 

As cargas de trabalho


 

De uma maneira geral, as cargas de trabalho apresentaram altas prevalências. Metade dos trabalhadores considerou problemáticas oito das 16 cargas ambientais listadas e cinco das 22 cargas relacionadas à atividade.

As cargas ambientais foram pelo menos duas vezes maiores na área industrial (produção, apoio e manutenção) do que na administração, sendo ruído, poeira, mudanças bruscas de temperatura e exposição a óleos e solventes químicos as mais prevalentes (Tabela 1).  

Quanto às cargas de trabalho relacionadas à atividade, o perfil foi mais heterogêneo. Forçar a vista, trabalhar em grande velocidade, ficar no mesmo posto o tempo todo, posição incômoda, sofrer pressão do chefe, não poder usar suas idéias foram significativamente mais prevalentes na administração, enquanto fazer muita força, ficar molhado ou sujo, fazer revezamento de tarefa, trabalhar com perigo de acidentar-se, enfrentar situações de emergência e risco permanente de vida eram significativamente mais prevalentes na produção, manutenção e apoio (Tabela 2).  

 

Perfil de morbidade por setor


 

Neste estudo, foi possível estabelecer um perfil de morbidade segundo setor. A partir de uma lista, estudou-se a referência de 22 problemas relacionados ao trabalho, 44 problemas ocorridos nos 15 dias anteriores à entrevista, além do teste SRQ-20 para problemas psiquiátricos menores. Entretanto, como objetiva-se examinar setor como um determinante de morbidade comum, serão apresentadas apenas as associações significativas.

A Tabela 3 mostra as morbidades mais freqüentes na administração do que na área industrial, ajustadas para fatores de confusão. Irritação e nervosismo, dor nas costas e problemas nos olhos foram cerca de três vezes mais relacionados ao trabalho. Dor ou irritação nos olhos e enxergar pouco foram duas vezes mais referidas. Cansar-se com facilidade (SRQ-20) apresentou um risco em torno de seis quando comparado com a manutenção.

As morbidades mais freqüentes na área industrial do que na administração, controlados os fatores de confusão, foram os problemas respiratórios, auditivos e os acidentes. Os primeiros estiveram cerca de duas vezes mais relacionados com o trabalho, enquanto os acidentes foram os desfechos com maior risco, sendo mais de 14 para queimaduras nos três setores da área industrial e em torno de quatro para ocorrência de acidente no último ano (Tabela 4).

Caracterizando-se algumas especificidades da área industrial em relação à administração, observou-se que dor nas juntas relacionada ao trabalho e idéias embaralhadas (SRQ-20) eram cerca de duas vezes mais freqüentes na manutenção. Problema de pele relacionado ao trabalho teve risco três vezes maior no apoio e zumbido nos ouvidos foi cerca de três vezes maior na produção (Tabela 4).

 

 

Discussão

 

Tradicionalmente o trabalho não é reconhecido como determinante de morbidades comuns (Laurell et al., 1991; Moeller, 1992). No entanto, neste estudo, foi possível confirmar não só as altas prevalências de morbidades comuns nos trabalhadores de uma indústria de celulose e papel, mas também as particularidades de sua distribuição em função do setor, que expressa a lógica global da organização do trabalho e as especificidades das exposições ocupacionais.

Deste modo, irritação e nervosismo, dor nas costas, problemas nos olhos e cansaço destacaram-se como problemas típicos dos trabalhadores da administração. Ao mesmo tempo, problemas respiratórios, auditivos e acidentes, especialmente queimaduras, relacionaram-se fortemente aos trabalhadores da área industrial.

Tendo em vista a controvérsia relativa à determinação das morbidades comuns pelo trabalho, discutem-se inicialmente alguns aspectos metodológicos relevantes à validade dos achados. Em relação ao delineamento, cabe questionar a possibilidade de afirmar uma relação de determinação através de estudo transversal. A falta da dimensão temporal (Hernberg, 1992; Chekoway, 1989) é parcialmente superada pela caracterização da antigüidade na empresa como um dos fatores em estudo. O fato de a maioria dos trabalhadores terem mais de cinco anos de antigüidade na empresa e de a rotatividade entre os setores ser praticamente inexistente, aliado à ênfase em morbidades comuns agudas, com menores períodos de indução e latência, sugere uma anterioridade da exposição em relação aos desfechos analisados, afastando a possibilidade de causalidade reversa.

No estabelecimento de um perfil de morbidade, um aspecto problemático é o exame de múltiplas associações, também denominado "fenômeno da multisignificância" (Hernberg, 1992). Entretanto, as relações de morbidade com setor e cargas de trabalho não parecem decorrentes de achados casuais devido a plausibilidade e força das associações.

A opção pela coleta de dados no local de trabalho poderia levar a um viés de informação (Checkoway, 1989). Neste caso, a possibilidade de os trabalhadores sentirem-se intimidados levaria a uma subestimação de exposição e desfecho. Entretanto, a realização das entrevistas em salas que preservavam a privacidade do trabalhador e a garantia do sigilo das informações parecem haver minimizado este problema, melhorando a acurácia das medidas (Last, 1988).

Outro aspecto que reforça a validade dos achados diz respeito ao controle de fatores de confusão, realizado através de análise multivariada (Hernberg, 1992). Esta estratégia analítica raramente é utilizada em estudos transversais de perfil de morbidade.

Os fatores de confusão estudados foram gênero, idade e tabagismo, comumente explorados em estudos epidemiológicos ocupacionais (Checkoway, 1989), além de alcoolismo e estado civil. Alcoolismo é um potente determinante de acidentes, morbidade muito importante no estudo. Estado civil, no entanto, esteve fortemente associado com setor, bem como com algumas morbidades. Isto poderia dever-se ao fato de estado civil ser um marcador de setor, não sendo neste caso fator de confusão. Por outro lado, estas associações poderiam indicar um excesso de exposição entre os casados, que, em função de maiores responsabilidades, teriam outras ocupações além daquela em foco. Desta forma, optou-se por incluir estado civil no modelo, uma vez que, não sendo fator de confusão, alteraria a medida de efeito no sentido da hipótese nula.

A caracterização da exposição costuma ser um dos aspectos mais difíceis e controversos em epidemiologia ocupacional (Hernberg, 1992). Para enfrentar este desafio, utilizaram-se indicadores sintéticos do processo de trabalho (Laurell, 1992), complementando-os com um perfil de cargas de trabalho por setor (Facchini, 1994; Laurell, 1989). Este método, ao estabelecer uma listagem de setor e função específica para a indústria em estudo, supera as matrizes de exposição ocupacional (job exposure matrix) e as listagens de profissão (job titles) (Vingard et al., 1991; Mäkelä et al., 1991; Alterman et al., 1994; Rom, 1983; Hernberg, 1992). O método supera também as medições ambientais, que não examinam as cargas com materialidade interna, como, por exemplo, aquelas decorrentes da organização e divisão do trabalho, freqüentemente relacionadas ao estresse (Facchini, 1994; Laurell, 1989). Além disso, a inclusão do setor administrativo propiciou a comparação de áreas com exposições bastante heterogêneas, aumentando as diferenças tanto nas exposições quanto nas morbidades.

A caracterização do desfecho através da percepção de problemas de saúde foi a forma encontrada para poder estudar o perfil de morbidade. Esta opção poderia ser questionada pela introdução de um possível viés de informação (Kleinbaum, 1982). Porém, não há por que pensar que existam diferenças sistemáticas na forma de referir morbidades entre os diferentes setores, considerando-se a semelhança das características sócio-econômico-culturais da população (Joung, 1994). Além disso, vários estudos têm sido realizados captando morbidade através da percepção. Demers et al. (1990) mostraram baixa incongruência entre sintomas referidos relativos a dispnéia e tosse quanto aos achados clínicos. No estudo de Kehoe et al. (1994), as disparidades foram maiores, porém este captava diagnósticos referidos por pacientes em relação a um relatório médico realizado a partir do registro; desta forma, o padrão ouro também poderia ser o problema. Portanto, a referência de problemas de saúde e sintomas parece bastante adequada, ao contrário da referência de diagnósticos.

Discutida a validade dos achados, apresenta-se a contribuição das características do processo de trabalho na determinação das morbidades comuns.

Laurell et al. (1991), observando o perfil de morbidade em siderúrgica, mostraram diferenças nas prevalências de doenças comuns em relação a antiguidade e setor. À semelhança de nossos achados, os autores encontraram um risco aumentado de problemas auditivos e respiratórios em trabalhadores da área industrial. Doenças irritativas dos olhos, transtornos mentais e fadiga, ao contrário de nossos achados, também foram maiores na área industrial, possivelmente porque sua comparação não foi com a administração, mas com trabalhadores do apoio que desenvolviam tarefas fora da área industrial.

Heederik et al. (1990) também encontraram um risco aumentado de problemas respiratórios em operários de indústrias de papel, quando comparados com trabalhadores do setor de serviços. Nejjari et al. (1993) igualmente identificaram uma alta prevalência de problemas respiratórios em indústrias de papel quando comparadas com outros ramos produtivos.

O fato de os problemas respiratórios haverem sido mais relacionados ao trabalho na área industrial pode ser compreendido pela maior presença de cargas ambientais no setor, como, por exemplo, poeira, calor, mudanças bruscas de temperatura e umidade, decorrentes dos procedimentos físico-químicos utilizados.

Em estudo realizado na própria indústria, Kwitko et al. (1994) encontraram que 88% dos operários da área industrial estavam expostos a níveis de ruído superiores a 85 db, mostrando uma média de perda auditiva maior do que a esperada para a idade. A maior importância dos problemas auditivos na área industrial, em comparação com a administração, é indicada pela realização de exames audiométricos periódicos exigidos por lei apenas nos trabalhadores do primeiro grupo.

Outro problema aumentado na área industrial quando comparada à administração foram os acidentes, especialmente queimaduras. Neste caso, além das particularidades da atividade, cargas decorrentes do processo físico-químico, como, por exemplo, altas temperaturas e substâncias químicas, parecem determinantes (Facchini, 1986).

Apesar da importância das evidências anteriores, existem poucos estudos relacionando morbidade comum a setor. Entretanto, há indicações na literatura de que as morbidades discutidas estão fortemente relacionadas ao perfil de cargas dos setores estudados.

Hernberg et al. (1992) e Levy et al. (1988) referiram que dor nas costas é mais comum em trabalhos pesados do que em leves, embora também seja causada por trabalho sedentário e condições ergonômicas adversas. Fazer muita força e sempre repetir os mesmos movimentos tiveram um risco aumentado na área industrial em relação à administração. Entretanto, apenas 35% dos trabalhadores da área industrial reconheceram estas cargas como problemáticas. Por outro lado, os problemas ergonômicos foram extremamente importantes na administração, atingindo mais da metade dos trabalhadores, podendo justificar o risco aumentado de dor nas costas no setor.

A forte associação de irritação e nervosismo com a administração parece guardar relação com as particularidades do processo de trabalho no setor, especialmente com pressão da chefia e trabalho não criativo, com forte presença no cotidiano dos operários. Na área industrial, as cargas potencialmente relacionadas a esta morbidade, como o enfrentamento de situações de risco, adquirem concretude eventualmente, como quando ocorrem emergências ou acidentes.

As demandas visuais intensivas, referidas como forçar a vista, podem explicar, em parte, a maior freqüência de problemas visuais na administração. Neste contexto, um aspecto ocupacional que tem recebido crescente atenção como possível causa de problemas visuais é o trabalho com "terminais de vídeo" (Last, 1992; Rom, 1983), mais disseminado na administração do que na área industrial, onde a exposição restringe-se aos operadores.

Em síntese, ao longo desta discussão, foi possível evidenciar a participação decisiva de setor, como indicador das particularidades do processo de trabalho, na determinação de morbidades comuns em operários de uma indústria de celulose e papel. Além disso, pôde-se avançar na caracterização da exposição, examinando-se a plausibilidade de as cargas de trabalho típicas de cada setor mediarem o processo de determinação da morbidade.

A área industrial caracterizou-se pelo excesso de problemas auditivos, respiratórios e acidentes possivelmente relacionados com as altas prevalências de ruído, poeira, mudanças bruscas de temperatura e exposição a substâncias químicas, além do trabalho físico pesado e exposição a situações de risco. A administração apresentou um aumento de problemas nos olhos, dor nas costas, irritação e nervosismo, que parecem ter relação com a falta de autonomia e criatividade no trabalho, problemas ergonômicos e esforço visual.

Estes achados apontam, além das principais morbidades, cargas de trabalho que, se controladas, tornarão o processo de produção mais saudável, fazendo com que este estudo possa significar para os empresários a oportunidade de prevenir a ocorrência de danos à saúde dos trabalhadores, evitando custos desnecessários; para os trabalhadores, o direito de conhecer o impacto do trabalho sobre sua saúde e para os profissionais de saúde, a possibilidade de relacionar de modo mais preciso as morbidades comuns a características ocupacionais.

 

 

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