ARTIGO ARTICLE
Maria da Conceição Nascimento Costa 1 | A concepção de "espaço" na investigação epidemiológica The concept of space in epidemiological research |
1 Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Padre Feijó 29, 4o andar, Canela, Salvador, BA 40110-170, Brasil.
| Abstract Epidemiology's conceptual and methodological shortcomings have placed constraints on the study of health phenomena related to human communities, thus posing a challenge to the field. This paper presents some basic principles resulting from the observation of the field of geography in defining its object space and the application of this object to medicine and epidemiology. Such principles state the pertinence of a conceptual and methodological strategy focusing on an approach to geographic space as expressing the population's living conditions. Application of this concept to epidemiological studies is still limited, although such proposals have already been developed in other areas of knowledge. Ecological studies, whose unit of analysis is the group, and the ecological model, based on the idea of an inter-relationship of factors, if improved, could become a promising alternative in this direction. The authors emphasize that researchers should have wholeness as their scientific reference in order to guarantee the non-separation of the complex interactive processes determining health phenomena in the population. Key words Medical Geography; Geographical Space; Spatial Analysis; Epidemiology Resumo As atuais fragilidades conceituais e metodológicas da epidemiologia são fatores que têm restringido o estudo dos fenômenos de saúde das coletividades humanas. Neste artigo alguns princípios básicos são apresentados como resultado da observação do percurso da geografia na definição do seu objeto o espaço e da sua aplicação na medicina e na epidemiologia. Esses princípios fundamentam a pertinência da estratégia conceitual e metodológica que tem como perspectiva a abordagem do espaço geográfico-social, já que este é entendido como expressão das condições de vida da população. A aplicação desse conceito na prática da investigação epidemiológica ainda é limitada, embora outras áreas do conhecimento já tenham desenvolvido propostas de superação. Os estudos de agregados, cuja unidade de análise é o grupo, mais freqüentemente os agregados espaciais, e o modelo ecológico que se baseia na idéia de inter-relação de fatores, se aperfeiçoados, podem vir a ser uma alternativa promissora nesta direção. Destaca-se que a totalidade deve ser a referência científica, visando garantir o não afastamento dos complexos processos interativos determinantes dos fenômenos de saúde na população. |
Introdução
A existência humana é marcada pelas características biológicas dos indivíduos e pela construção das interações sociais que compõem a história das sociedades. Por sua vez, a formação destas abrange um mosaico de relações que as tornam estruturalmente heterogêneas e estabelecem distintas condições econômicas e sociais para os diversos grupos populacionais. Assim, a saúde e a doença devem ser entendidas como um processo integrante da vida, pois no sentido mais amplo do conceito de enfermidade não se vive absolutamente livre de algum tipo de doença (Castellanos, 1991). A investigação da saúde-doença nas populações é complexa, envolvendo uma série de variáveis, o que no atual estado da arte dificulta a apreensão da realidade.
A epidemiologia, disciplina cujo propósito fundamental é estudar a saúde-doença enquanto fenômeno coletivo, tem sido desafiada a desenvolver bases conceituais e metodológicas capazes de integrar o conhecimento biológico aos fenômenos sociais (Possas, 1989). Contudo, tem-se que se considerar que nenhum campo do saber, ou qualquer categoria de estudo isolada, tem dado conta da pluralidade de fatores implicados no processo saúde/doença, o que exige um esforço conceitual e metodológico para a identificação de recortes mais adequados e de métodos mais sensíveis para apreendê-los concretamente na prática investigativa. Assim, é necessário o aporte de outros campos do conhecimento, adotando-se uma perspectiva inter (ou trans) disciplinar.
Neste sentido, este ensaio tem como objetivo apresentar os fundamentos que colocam o espaço, objeto da geografia, como uma categoria de estudo privilegiada para a investigação do processo saúde-doença nas populações.
A geografia e a definição do seu objeto
Por ser considerada uma disciplina de síntese entre as ciências da natureza e as ciências do homem, a geografia teve grandes dificuldades no campo epistemológico. A imprecisão e conseqüente retardamento na definição do seu objeto de estudo, tornou problemática a sua aceitação no meio acadêmico. Buscando um caráter científico, os geógrafos apoiaram-se de início no modelo das ciências naturais (Vasconcelos, 1995), calcado apenas na contemplação da natureza física do espaço, que em seu sentido mais amplo e determinista corresponde a toda a superfície terrestre e a biosfera.
Somente no início do século XIX, na Alemanha, o conhecimento deste campo do saber passou a ser sistematizado. Mantendo ainda a idéia de ciência de síntese, o geógrafo alemão Humboldt restringiu a geografia ao estudo dos aspectos visíveis da paisagem, porém avançou no sentido de procurar identificar a associação entre os fenômenos da natureza buscando conexão entre os elementos. Por sua vez, Ritter, um seu contemporâneo, enfatizava a individualidade do lugar, considerado um conceito mais restritivo do pensamento geográfico, porém mais generalizador e explicativo da natureza, porque tinha como finalidade entender o caráter particular de cada local, onde o homem era seu elemento principal (Moraes, 1994). Fortalecendo ainda mais a visão naturalista, Ratzel, nas últimas décadas do século XIX, define como objeto da geografia o estudo da influência da natureza sobre os indivíduos e na sociedade, na qual sua ação seria mediada pela riqueza que propicia. Para ele a natureza era fundamental para a expansão de um povo e na formação do Estado, onde o território representava as condições de trabalho e de existência de uma sociedade (Santos, 1980; Moraes, 1994).
A concepção determinista da relação entre o homem e a natureza só foi rompida quando o francês Vidal de La Blache, no final do século XIX e início do século XX, ainda mantendo o pensamento positivista, define como objeto da geografia a relação homem-natureza, entendendo o primeiro como um ser ativo que sofre a influência e ao mesmo tempo atua sobre o meio. A natureza passou a ser vista como possibilidades para a ação humana, razão pela qual tal movimento recebeu o nome de Possibilismo. A partir de La Blache o conceito de região, originário da geologia, foi explicitado e humanizado, correspondendo a uma unidade de análise geográfica, sujeita a delimitação, descrição e explicação, o que retrataria a forma dos homens organizarem o espaço terrestre (Santos, 1980; Moraes, 1994).
Procurando compreender a manutenção e a ruptura do equilíbrio entre o homem e a natureza, Max Sorre, na década de trinta, aperfeiçoou as concepções de La Blache, e para isto, buscou relacionar conhecimentos de ciências afins como a biologia, sociologia e a medicina, o que representou um avanço significativo na constituição da ecologia humana. Ao formular a teoria de Complexo Patogênico (Sorre, 1955), criou o conceito de habitat, apresentando a inter-relação existente entre o homem, o agente biológico, seus vetores e o ambiente. Este cientista destacou as conseqüências da relação dos indivíduos com o meio, e a necessidade de a geografia apreender tal processo (Ferreira, 1991; Moraes, 1994).
Além do determinismo e do possibilismo, a geografia racionalista constituiu-se no outro grande movimento da geografia tradicional, diferenciando-se dos anteriores por seu menor peso empiricista e maior ênfase no raciocínio dedutivo. Para seu criador, o alemão Hettner, cujas obras foram publicadas entre 1890 e 1910, a geografia era a ciência que explicava as diferenças entre as porções da superfície terrestre as áreas. Possivelmente o domínio do Possibilismo e/ou o isolamento cultural da Alemanha naquela ocasião tenham sido os responsáveis pela pouca divulgação de suas idéias, o que só ocorreu após as mesmas terem sido desenvolvidas e publicadas por Hartshorne entre 1939 e 1959. Os conceitos básicos formulados por este americano foram "integração" e "área", sendo esta considerada como uma parcela da superfície terrestre diferenciada pelo observador, construída no processo da investigação. Uma das diferenças de sua proposta reside no fato de que para ele não seriam os objetos singulares que definiriam as ciências e sim os métodos próprios, devendo a geografia, nos seus estudos, trabalhar o real na sua complexidade, lidar com suas inter-relações não isolando os elementos (Santos, 1980; Moraes, 1994).
A globalização dos fluxos e das relações econômicas resultantes do desenvolvimento do capitalismo, tornou a realidade muito mais complexa, fazendo com que o planejamento territorial passasse a ser considerado como um instrumento privilegiado para a organização do espaço, tal como o planejamento econômico era para a intervenção do Estado. As demandas decorrentes desse processo, aliadas às fragilidades internas da própria disciplina, como a imprecisão do seu objeto, contribuíram para o desencadeamento de uma crise na geografia, já que os seus pressupostos cada vez mais tornavam-se insuficientes para responder e explicar as mudanças que vinham ocorrendo (Santos, 1980; Moraes, 1994).
Neste contexto, surge o movimento denominado geografia pragmática, que, mantendo as bases conceituais dominantes, apresenta-as numa feição tecnológica, concretizada mediante a geografia quantitativa e a geografia sistêmica, que se fundamentavam nos princípios da quantificação e no uso de modelos genéricos e teoria dos sistemas, respectivamente. Outra vertente da geografia pragmática, a geografia da percepção busca entender o valor subjetivo do território (Santos, 1980; Moraes, 1994).
Embora os paradigmas da geografia tradicional já estivessem sendo questionados desde os anos cinqüenta, foi na década de setenta que se tornou dominante um novo movimento, a geografia crítica, com oposições radicais, que ultrapassavam os limites acadêmicos, incorporando explicitamente a política no discurso científico e estabelecendo suas raízes nas questões sociais. O espaço passa então a ser considerado fruto da dinâmica de sua complexa organização e interações, incluindo todos os elementos, inclusive o físico (Santos, 1980; Carmo et al., 1995), ou seja, é concebido como espaço geográfico humanizado pelas relações sociais.
O espaço geográfico, a medicina
e a epidemiologia
Atribui-se à Hipócrates (480 A. C.) os primeiros registros sobre a relação entre a doença e o local/ambiente onde ela ocorre. No seu livro Ares, Águas e Lugares, além de enfatizar a importância do modo de vida dos indivíduos, analisou a influência dos ventos, água, solo e localização das cidades em relação ao sol, na ocorrência da doença (Pessoa, 1978; Trostle, 1986). Porém este enfoque analítico e ambiental foi logo suplantado pela teoria da causa divina da doença (Trostle, 1986).
A aproximação entre o saber médico e a geografia só foi impulsionada a partir do século XVI com os grandes descobrimentos, que colocaram a necessidade de se conhecer as doenças nas terras conquistadas, visando à proteção de seus colonizadores e ao desenvolvimento das atividades comerciais. Esse período corresponde ao predomínio da concepção determinista da geografia sobre a relação homem/ natureza, de modo que as características geográficas, principalmente o clima, eram colocadas como responsáveis pela ocorrência das doenças. Tal movimento favoreceu o nascimento da medicina tropical, especialidade médica que adota a concepção de que parte das doenças infecciosas e parasitárias eram específicas de uma faixa do globo terrestre, os trópicos, onde o clima quente debilitaria o organismo humano, expondo-o a estas enfermidades (Pessoa, 1978). Durante os dois séculos seguintes predominaram na literatura médica trabalhos eminentemente descritivos, destacando a influência do meio ambiente sobre o homem.
No século XIX, observa-se um intenso embate entre aqueles que acreditavam que as doenças resultavam de miasmas (teoria miasmática) e os que consideravam que estas eram causadas por organismos contagiosos propagados pelo contato ou objetos contaminados (teoria do contágio). Na busca dos efeitos do ambiente sobre a saúde, os trabalhos produzidos nessa época distinguiram-se por uma maior ênfase biológica/contagionista, geográfica ou sociológica (Trostle, 1986).
Identifica-se como exemplo da corrente contagionista, o estudo de Snow em 1855 (Snow, 1997), considerado um marco na constituição da epidemiologia, que, por meio da distribuição espacial dos casos de cólera na cidade de Londres, consegue identificar o veículo de transmissão da doença antes mesmo da descoberta dos micróbios. Os trabalhos de Hirsh, em 1860, representam a vertente geográfica com o privilegiamento das categorias tempo e lugar nas suas análises, enfatizando as comparações em escala internacional. Por sua vez, os estudos de Virchow, em 1847, e os de Durkheim, em 1897, destacavam que os fatores sociais também desempenhavam um papel etiológico causal (Trostle, 1986). Estes, ao lado dos estudos de Villermé, em 1840 (Villermé, 1988), sobre a saúde dos trabalhadores da indústria têxtil, demonstrando a relação entre a saúde e os processos produtivos em diferentes setores de Paris, e dos de Chadwick, em 1842 (Chadwick, 1945), sobre a situação de saúde das classes trabalhadoras na Inglaterra, são considerados como alguns dos principais representantes do movimento da medicina social originário da França, que resultou em uma importante reforma sanitária nos estados republicanos da Europa.
O desenvolvimento da microbiologia no final do século XIX, trouxe como uma de suas conseqüências a concepção da etiologia infecciosa da doença que privilegiava o agente e considerava como secundário o papel de outros fatores, inclusive os da natureza. Contrapondo-se à hegemonia desta teoria, neste período, destacam-se os trabalhos de Max Von Pettenkofer, nos quais, sem negar a importância do agente biológico, este higienista alemão considera a influência de elementos da geografia física como o solo e a água na ocorrência e distribuição da cólera em Londres, fato que tem sido interpretado como indicativo de ser o mesmo adepto da teoria da multicausalidade na determinação da doença. Todavia, o paradigma da unicausalidade era hegemônico e foi responsável pela estagnação da medicina quanto à compreensão da dinâmica das doenças e das causas de sua distribuição geográfica (Pessoa, 1978).
É neste cenário que, apoiada na clínica e na estatística, nasce a epidemiologia, preocupada em explicar a ocorrência das doenças transmissíveis, prevalentes na época. Também ela adota o paradigma dominante da unicausalidade e, apesar de ser a ciência que pretendia estudar a ocorrência da doença nas coletividades, o seu foco central era o indivíduo (Almeida-Filho, 1998).
Os estudos enfatizando o impacto do ambiente, especialmente o clima, sobre as condições de saúde do homem voltaram a ser produzidos e valorizados no início do século XX (Pyle, 1979), mas é entre as décadas de trinta e cinqüenta que se situa o início da crise da teoria unicausal, com a constatação de que somente a presença do agente não era suficiente para a produção de enfermidade e do aparecimento de determinadas nosologias nas quais não era possível a identificação de um agente etiológico. Estes fatos aliados ao desenvolvimento das teorias do complexo patogênico, de Max Sorre, e do foco natural, de Pavlovsky, favoreceram o florescimento da concepção da doença como resultado do desequilíbrio ecológico. Para Sorre, o clima tinha um papel especial entre os elementos da natureza. Ele também se preocupava em fornecer à geografia médica uma base conceitual que permitisse investigações interdisciplinares, e além disso, apresentava os hábitos, as condições de habitação e a ocupação como gêneros de vida, representando as possibilidades de constituição de complexos patogênicos (Silva, 1985). Apesar da maior capacidade explicativa desta teoria, foram as idéias de Pavlovsky as mais debatidas e divulgadas no Brasil. Elas pressupunham a interação homem-ambiente onde o desequilíbrio poderia produzir, alterar ou transformar os focos de transmissão de doenças (Ferreira, 1991), contudo, porém mostrou-se insuficiente para explicá-las enquanto fenômeno que se incorpora ao espaço organizado pelo homem (Martins Jr., 1997). Esta tendência ecológica mantém-se, e principalmente nos anos sessenta observa-se o seu fortalecimento na medicina e na epidemiologia. Os conceitos da ecologia são incorporados nos estudos do processo saúde-doença, contribuindo para o desenvolvimento da história natural das doenças e do modelo da multicausalidade (Barreto, 1982). Os trabalhos realizados por Daggy (1959), Manceau et al. (1960), Kurland & Reed (1988) são alguns exemplos nos quais pode ser observada a ênfase nos fatores ambientais, principalmente o clima, nas análises sobre ocorrência das doenças.
A diferenciação social e cultural mais uma vez volta a ser considerada como determinante da variabilidade espacial da saúde-doença (Pyle, 1979), agora apoiada principalmente nos recursos da epidemiologia (Almeida-Filho, 1998). Entretanto, tais fatores são encarados apenas como uma das características do ambiente e, portanto, colocados no mesmo patamar que o clima e o solo, entre outras.
Vale salientar que a epidemiologia, assim como a clínica, utilizava os conceitos da geografia sem contudo estabelecer-se um diálogo entre estes campos de conhecimento, existindo apenas esforços isolados não hegemônicos neste sentido.
Os avanços alcançados pela matemática e pela estatística a partir das décadas de sessenta e setenta, bem como o desenvolvimento da computação eletrônica, contribuem para que a epidemiologia encontre sua identidade provisória, e é também por intermédio desta disciplina que se processa o esforço para a matematização da área da saúde (Almeida-Filho, 1998). Concomitantemente vai se acentuando neste campo um debate sobre a importância dos fatores econômicos e sociais na determinação dos fenômenos coletivos, que passam a ser entendidos não apenas como atributos individuais ou um elemento do ambiente físico. Tal movimento já vinha sendo incorporado ao discurso da geografia desde o início dos anos cinqüenta, conforme referido anteriormente. Estas ciências questionam a abordagem reducionista até então adotada, apontando para a importância de se estudar os fenômenos populacionais com uma visão mais totalizadora, considerando a historicidade de sua determinação. Nesta linha de investigação podem ser citados os trabalhos de Barreto (1982), Silva (1985), Silva Jr. (1995), Paim (1997) e Barata et al. (1998).
A transcendência do espaço geográfico
O espaço como uma totalidade é uma instância da sociedade, ao mesmo tempo que as instâncias econômica e cultural-ideológica. Os seus elementos homens, instituições, meio ecológico e as infra-estruturas estão submetidos a variações qualitativas e quantitativas, embora como realidade sejam uno e total (Santos, 1992). O homem, porém, não é apenas o habitante de um determinado lugar, mas é também o produtor, o consumidor e membro de uma classe social, que ocupa um lugar específico e especial no espaço, e isto também define o seu valor (Santos, 1993).
O processo de ocupação do espaço, desde o seu início (passado) até o momento (presente) se refletirá no futuro, e é parte inerente aos determinantes das condições de vida (Santos, 1992). Assim, o espaço humano é necessariamente produto de uma série de decisões que orientam sua organização, segundo os critérios hegemônicos em uma dada formação econômica e social, seja pela movimentação do capital, seja pela ação organizada e planejada da sociedade pelo Estado, sendo um processo cheio de densidade histórica. Conseqüentemente, o estudo do espaço presta-se a enfoques interdisciplinares, envolvendo a sociologia, a história, a economia e o urbanismo, que exigem da geografia um permanente intercâmbio cultural com as ciências do homem e da vida (Ferreira, 1991).
O perpétuo processo de reorganização das formas que apresenta e o seu conteúdo cultural, impõe que os estudiosos desse campo recorram ao conhecimento histórico e cronológico. Este fato induz a uma maior aproximação entre a geografia e a história, porque para explicar a organização atual do espaço, externada em grande parte na paisagem, é necessário reconhecer a sua inter-relação com o tempo (Andrade, 1994). Este porém, nunca será diretamente percebido ou apreendido, uma vez que é filtrado pelos agentes sociais históricos (Almeida-Filho, 1998). Um reflexo concreto desta historicidade é o recente fenômeno da globalização oriundo da difusão generalizada das técnicas e das informações, em que as cidades continuam combinando um grande número de variáveis típicas desta época e de épocas passadas. Logo, na realidade, as metrópoles não devem ser consideradas espaços homogeneamente globalizados e modernizados, pois contêm elementos de diversas origens e idades com multiplicidade de relações de capital, trabalho e cultura (Santos, 1997).
O esforço para atingir uma visão global, coloca para o investigador a necessidade de utilizar não só sua capacidade de observação e reflexão como também investir na busca de inovações que facilitem o conhecimento da realidade (Andrade, 1994). As generalizações não podem ser feitas, já que as pessoas não são atingidas igual e linearmente pelas transformações sociais (Santos, 1993), impondo-se interpretações mais profundas e multilaterais das realidades.
Assumido nessa concepção, o espaço geográfico apresenta-se para a epidemiologia como uma perspectiva singular para melhor apreender os processos interativos que permeiam a ocorrência da saúde e da doença nas coletividades. De acordo com Silva (1997), pelo fato de a geografia marxista e de a epidemiologia terem como objeto o centro de uma rede de relações ampla e complexa que não se adequa a uma visão metodológica estreita, tornou-se bastante interessante para esta última disciplina o modo como aquela corrente da geografia trabalhou a categoria espaço, valendo-se da análise do processo de sua organização como esteio das referidas relações, dando coerência a um aparente caos.
O estudo da constituição dos diferentes espaços recuperando a sua historicidade permite uma aproximação da realidade sem minimizar a sua complexidade. Entendendo que a produção e distribuição da doença e a constituição do espaço têm os mesmos determinantes, este último, enquanto expressão das condições de vida dos segmentos que o ocupam, representa a mediação passível de informar certas relações entre a sociedade e a saúde (Paim, 1997).
Limitações metodológicas e possibilidades de superação
Mesmo reconhecendo que as abordagens individuais e populacionais não são excludentes, a epidemiologia ao investigar a saúde e a doença, continua dando mais crédito às correlações individuais (Castellanos, 1998), quando deveria adotar uma abordagem contextual para estar em consonância com a estrutura epidemiológica dos coletivos humanos (Almeida-Filho, 1998). As fragilidades conceituais e metodológicas no estudo desse processo enquanto fenômeno coletivo têm sido mascaradas pela interpretação do coletivo como uma associação estatística de dados individuais (Breihl, 1991). Essa disciplina tem sido então desafiada a aportar os conhecimentos necessários à superação da crise atual de modo que realmente possa subsidiar o planejamento e, conseqüentemente, as ações de saúde (MS/Cenepi, 1993; Rabello, 1996). Para isto, será preciso que novos modelos interpretativos da saúde/doença sejam construídos, de uma maneira que os torne capazes de integrar conceitos sistêmicos e causas independentes, pela historicidade do processo e seus determinantes. Concomitantemente deverão ser buscadas alternativas metodológicas para a pesquisa de processos e práticas sociais ligadas à saúde (Almeida-Filho, 1998). Como salienta Krieger (1994), a rede de causalidade não atende a esta necessidade por ser orientada pelo pensamento biomédico e individualista, pois a mesma foi elaborada apenas para dar conta da inter-relação simultânea dos vários fatores envolvidos na produção das doenças. Para se adequar a uma teoria que realmente integre os conhecimentos biológico e social, a autora sugere ao invés da rede, uma metáfora que denomina de "ecosocial" que corresponderia a uma estrutura de um objeto de natureza fractal, uma vez que a inter-relação entre os fatores deve ser entendida como existindo em todos os níveis, do subcelular ao social, repetindo-se indefinidamente.
Inicialmente utilizado pela epidemiologia como uma tentativa de integrar o biológico ao não biológico (Silva, 1985), o espaço geográfico era considerado um lugar estático, isolado, sem dimensão histórica (Carmo et al., 1995). Ao revestir-se de caráter social, ele passa a atender também às necessidades explicativas da concepção de determinação social da doença, visto permitir que os diferentes fatores que compõem a estrutura epidemiológica sejam analisados numa perspectiva dinâmica e histórica (Barata, 1985), estando a sua compreensão diretamente articulada à formação econômico-social (Laurell, 1983).
O conceito de espaço social recupera a historicidade, incorpora a dinâmica de sua organização, a complexidade das interações e a totalidade de sua constituição (Carmo et al., 1995). Desta forma, a distribuição espacial da doença representa a realização manifesta ou empírica dos processos geradores subjacentes (Mayer, 1983), e o seu estudo capta a dinâmica da estrutura epidemiológica (Silva, 1985), já que o perfil epidemiológico dos diferentes espaços é criado pela interação das relações sociais que caracterizam a sua organização, e modifica-se através do tempo conforme o momento histórico em que se encontre o estágio de desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais, as quais são os fatores definidores da organização do espaço (Breilh, 1991).
Apesar de o conceito de espaço social adequar-se enquanto formulação teórica para a explicação da ocorrência e da distribuição da doença, para que se alcance a construção do coletivo, é indispensável, além do referencial teórico, o emprego de métodos e técnicas competentes (Breilh, 1991). Neste sentido, o antigo instrumento da cartografia vem sendo utilizado com mais freqüência através das modernas técnicas de computação eletrônica (Barreto, 1993; Medronho, 1995) e servindo como uma ferramenta auxiliar de maior precisão e capacidade operacional na apresentação e interpretação de informações espaciais.
No momento atual a epidemiologia defronta-se com a incapacidade de operacionalizar os seus novos paradigmas que têm nos objetos totalizados e na determinação não linear algumas de suas propriedades fundamentais (Almeida-Filho, 1998). Alguns esforços nessa direção vêm sendo desenvolvidos por autores latino americanos, tanto no campo teórico como prático. Samaja (1996) discute as limitações dos tipos de amostras que vêm sendo tradicionalmente utilizados na epidemiologia, sugerindo sua substituição por uma representatividade qualitativa sustentada em tipologias espaço-populacionais. Outros (Silva Jr., 1995; Paim, 1997; Barata et al., 1998) vêm trabalhando objetivamente em alternativas para a operacionalização da vigilância da situação de saúde segundo condições de vida, como proposto por Castellanos (1991, 1998) cuja abordagem privilegia a categoria espaço, desenvolvendo uma metodologia específica, que se encontra em processo de validação.
O modelo ecológico, por se basear na idéia de inter-relacionamento entre fatores, tem sido apontado como o precursor teórico mais avançado para o estudo da determinação da doença na perspectiva de integrar o conhecimento biológico e social (Barata, 1985; Almeida-Filho, 1998); porém, ainda não permite a interpretação fiel da realidade para transformá-la (Barata, 1985). Apesar de já se encontrar quase esquecido pelos epidemiologistas, este modelo, se melhor fundamentado por meio da incorporação da dinâmica do processo, poderá ser aperfeiçoado e se constituir em uma alternativa (Almeida-Filho, 1998).
Na prática investigativa, os desenhos de estudos de agregados são considerados pela epidemiologia clássica como de segunda linha (Kleinbaum et al., 1982; Rothman, 1986). Todavia, este tipo de estudo apresenta-se como a mais adequada ou talvez a única estratégia metodológica para a apreensão da complexidade desses fenômenos, pelo fato de usar mais freqüentemente os agregados espaciais como unidade de análise, e portanto, tomar rigorosamente a dimensão coletiva (Possas, 1989; Schwartz, 1994; Almeida-Filho, 1998; Castellanos, 1998). Assim, os efeitos resultantes da agregação nesses estudos devem ser valorizados ao invés de julgados como restrição, pois os mesmos tornam evidentes processos que muitas vezes produzem efeitos imperceptíveis no âmbito individual (Almeida-Filho, 1998).
Apesar das possibilidades que representa, a abordagem que tem como referência a concepção de espaço social, não vem sendo adequadamente operacionalizada, visto que ainda emprega variáveis, indicadores e medidas de um modo que termina por reduzir esse conceito. Logo, torna-se necessário o desenvolvimento de um instrumental metodológico capaz de abordar esta questão entendendo a saúde e a doença enquanto totalidade, ou que se faça uma apropriação competente daqueles já desenvolvidos em outras áreas do conhecimento, a exemplo da química e da economia (Almeida-Filho, 1998).
A complexidade do enfoque conceitual de espaço, proposto pela geografia crítica e posteriormente desenvolvido por vários autores, tem levado a uma perplexidade ou mesmo a uma imobilidade para a sua operacionalização face à intrincada dimensão que assume a questão. Entretanto, este impasse deve ser superado, pois, por mais complexa que seja a situação, historicamente sempre que se verifica a insuficiência de um paradigma estabelecido, o homem é instigado a identificar novos caminhos que aportem aspectos essenciais da solução. O importante no atual estágio do conhecimento é se ter a totalidade como referência científica, para garantir o não afastamento dos complexos processos interativos determinantes dos fenômenos que ocorrem em cada espaço social.
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