ARTIGO ARTICLE
Rosely Magalhães de Oliveira 1
| As condições e as experiências de vida de grupos populares no Rio de Janeiro: repensando a mobilização popular no controle do dengue
Living conditions and life experiences of working-class groups in Rio de Janeiro: rethinking dengue control and popular mobilization |
1 Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil. | Abstract Using narratives of an experience with popular mobilization during the 1986-91 dengue epidemic in the city of Rio de Janeiro, the authors discuss the scientific research and technical counseling involving basic sanitation conditions for vulnerable social groups. They present research results on water distribution in the slums from the Leopoldina area of the city. The research stemmed from demands by community leaders at local forums discussing health conditions. Gathering, systematizing, and analyzing the data were based on what they call "shared knowledge construction", resulting by crossing accumulated scientific knowledge with popular knowledge produced as a result of living conditions and life experiences among working-class groups. Finally, the authors comment on the need for local health professionals to be aware of relationships between epidemic and endemic processes and protection of life.
Resumo Partindo do relato da experiência de mobilização popular durante a epidemia de dengue ocorrida no município do Rio de Janeiro, entre os anos de 1986 e 1991, o artigo busca apresentar e discutir o processo de investigação científica e assessoria popular em torno da situação de saneamento básico de grupos sociais vulneráveis. São apresentados resultados da investigação sobre o problema de abastecimento de água nas favelas da região, tendo como ponto de partida reclamações de seus representantes em fóruns locais de debate público da situação de saúde. A coleta e sistematização dos dados e informações analisados tiveram como base a "construção compartilhada do conhecimento", compreendida como uma produção onde se intercruzam o saber científico acumulado e o saber popular produzido a partir de condições e experiências de vida da população. Por fim, são efetuadas algumas considerações em torno da necessidade de estarmos atentos para as "técnicas locais" de defesa da vida e sua relação com os processos endêmico-epidêmicos. |
Introdução
Este artigo busca contribuir para a discussão da relação entre projetos e propostas locais de controle de endemias e os movimentos e grupos populares organizados.
Nosso ponto de partida é o relato de experiência de investigação e de assessoria a entidades da sociedade civil na região da Leopoldina - município do Rio de Janeiro, que foi desencadeado conjuntamente com o processo de mobilização popular ocorrida na região, a partir da emergência da epidemia de dengue que atingiu o município e a região entre os anos de 1986 e 1991. Esta experiência foi parte integrante de um projeto mais amplo de pesquisa sobre as condições de vida e saúde, desenvolvido através da integração de profissionais da Escola Nacional de Saúde Pública, especialmente do Departamento de Endemias Samuel Pessoa, e da organização não-governamental Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina (CEPEL).
Para melhor localizarmos como se deu a definição da situação do saneamento como um problema a ser investigado, apresentamos, num primeiro momento alguns números da epidemia de dengue ocorrida no município do Rio de Janeiro entre os anos de 1986 e 1991 e a emergência da mobilização popular em torno deste evento social na região da Leopoldina, dando destaque para os problemas levantados por representantes de moradores locais. Assim, a epidemia foi tratada como um fenômeno dinâmico, constituído politicamente - tanto quanto cientificamente - nas lutas que perpassam as doenças físicas. Portanto, o contexto e o significado da epidemia são definidos ativamente, tanto pelas vítimas como por outros sujeitos a ela relacionados (Stark, 1977).
Em seguida, apresentamos os principais eixos e conceitos norteadores do trabalho de investigação e de assessoria popular.
No item seguinte apresentamos, uma síntese dos resultados da investigação da situação de saneamento, tendo como ponto de partida problemas levantados por representantes da população durante a epidemia.
Por último, levantamos algumas considerações sobre a experiência, abordando aspectos relativos aos limites, possibilidades da transferência de informação no processo de ação política pela transformação da realidade de saúde de grupos sociais vulneráveis.
A emergência do problema: a epidemia de dengue no Município do Rio de Janeiro e os questionamentos dos grupos populares organizados
Após cerca de 60 anos sem que nenhum caso de dengue fosse notificado no Estado do Rio de Janeiro, em 1986 a doença ressurge primeiramente nos municípios do Grande Rio, configurando uma epidemia que notificou cerca de 90 mil casos no biênio 1986/87, todos do sorotipo 1 (FNS, 1997).
No Município do Rio de Janeiro a epidemia teve início em abril de 1986 e encerrou o ano com um total de 12.480 casos notificados. Em 1987, foram notificados pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro 37.215 casos de dengue. Entre 1988 e 1989 os números registrados no município apontavam para um baixo nível de transmissão da doença: foram notificados 247 casos em 1988 e 436 em 1989. Nos anos 1990 e 1991 houve um recrudescimento da epidemia, com 10.965 casos em 1990 e 51.695 em 1991 (FNS, 1997). Do total de casos registrados em 1990, 4058 (37%) ocorreram no mês de dezembro. No ano seguinte, 1991, somente no mês de janeiro foram notificados 19.979 (39%) casos de dengue (Medronho, 1995).
Nos anos 90/91 um novo elemento era adicionado à epidemia: passaram a ser registrados, também, casos de dengue do sorotipo 2 - a "dengue hemorrágica". Foram registrados, respectivamente, 1316 e 636 casos nos anos de 1990 e 1991 (FNS, 1997).
No início de 1991, através de entrevistas à grande imprensa, as autoridades sanitárias do Município e do Estado se recusavam a reconhecer o recrudescimento da epidemia (Oliveira, 1998).
De um lado a população vivia a experiência da doença, através de casos ocorridos na família ou na vizinhança. Por outro, os profissionais dos serviços públicos locais de saúde viviam a experiência com o aumento do número de casos de dengue e passavam a conviver com o temor do aumento do número de casos de dengue tipo 2, geralmente mais graves e de mais difícil tratamento.
Enquanto o recrudescimento da epidemia não era reconhecido publicamente pelas autoridades, diversas informações circulavam, de forma mais restrita, através das redes formais e informais de relações entre profissionais e usuários dos serviços de saúde. Alguns profissionais de saúde suspeitavam que a omissão dos governantes poderia estar relacionada a problemas econômicos. Alertavam que os meses de dezembro e janeiro, em que os registros da doença tinham aumentado, era justamente o período em que a cidade recebe um grande número de turistas nacionais e estrangeiros para as férias de verão. Nesta época, a cidade também se preparava para receber um número maior de turistas que chegariam para participar de um dos maiores eventos culturais e turísticos do país: o desfile das escolas de samba no carnaval, que geralmente ocorre no mês de fevereiro. A divulgação dos dados sobre o aumento de registro de casos de dengue, poderia afugentar os turistas e causar prejuízos econômicos para a cidade, que tem boa parte de sua arrecadação ligada à atividade de turismo, principalmente nos meses de verão.
Através da participação em fóruns locais de discussão sobre a saúde na região, em espaços mais institucionalizados como a Comissão Executiva de Saúde da Área de Planejamento (CEAP) e o Grupo Executivo Local (GEL) ou nas de Oficinas de Educação Popular e Saúde e Participação Popular realizadas, que organizamos a partir de demanda de profissionais e representantes de entidades populares locais, se fazia sentir a indignação de grupos de profissionais e de representantes de grupos populares com a ausência de medidas efetivas para o controle da dengue.
Enquanto os serviços de saúde buscavam providenciar medidas de combate ao vetor através da aplicação de inseticidas, também eram difundidas informações, produzidas principalmente pelos órgãos centralizados de saúde. Tais informações limitavam-se a prescrever medidas de comportamento individual adequado à prevenção da doença, tais como: acabar com os depósitos de água parada e não acumular lixo em área peri-domiciliar.
Nos locais de debate público sobre as questões de saúde, os profissionais de saúde traziam suas preocupações com o aumento de casos de dengue e buscavam reforçar a divulgação de informações sobre as condições ideais para a reprodução do vetor de transmissão da dengue (o Aedes aegypti). Já os moradores da região, em sua maioria residentes em favelas, representados através de associações de moradores e outras entidades, como grupo de mulheres, pastoral de favelas e pastoral da saúde, apontavam que as ações individuais que poderiam desenvolver, enquanto indivíduos, estavam limitadas pelo alcance das políticas públicas de saneamento que, historicamente têm seu alcance restrito aos setores mais abastados da população. Apontavam que nas favelas, onde em 1991 residia cerca de 30% dos quase 600.000 habitantes da região da Leopoldina, a difusão da epidemia de dengue poderia estar relacionada com a precariedade e/ou inexistência de serviços de saneamento.
O problema central apontado por representantes dos moradores era exatamente o fato das áreas de favelas e de conjuntos habitacionais populares da região não contarem com serviços regulares de abastecimento de água e de coleta de lixo. Essa situação acabava por obrigar a população a adotar medidas de reserva de água e destinação de lixo que acabavam por criar condições para a reprodução do vetor. Alertavam, então, para a necessidade de mostrar uma outra realidade ocultada pelas informações produzidas e divulgadas pelos órgãos centralizados de saúde que de uma certa forma acabavam por culpar as vítimas da epidemia. Num primeiro momento, foram organizados eventos públicos para denunciar a situação e produzida uma cartilha denominada "Se Liga Leopoldina: a dengue vem aí". Estes eventos tiveram repercussões na imprensa e de certa forma, na opinião da coordenação do movimento, contribuíram para que as autoridades passassem a reconhecer o recrudescimento da epidemia.
Tendo em vista os problemas levantados pelos representantes de entidades populares locais a respeito da relação entre a precariedade dos serviços de saneamento básico e a emergência da epidemia de dengue e, em função da decisão tomada em seminário local de ter o saneamento como uma das prioridades de pesquisa, passamos a realizar nossa investigação sobre a situação desses serviços. Para efeito deste artigo, estaremos apresentando somente a descrição e análise de informações referentes aos serviços de abastecimento de água Nossa preocupação se voltou não para um estudo de correlação entre a situação do abastecimento de água e a ocorrência da doença. Buscamos realizar um estudo que permitisse constatar a realidade dos serviços de abastecimento de água, segundo os elementos fornecidos por participantes do movimento popular.
Construindo uma metodologia de investigação e assessoria popular
A partir da mobilização social ocorrida na região, em torno da epidemia de dengue, foi possível articular esforços/recursos no sentido da organização de um Sistema de Informação de Nível Local (SINAL), que teve como premissa principal a sistematização e difusão de informações a partir de uma rede informal de relações, da qual os participantes atuam na condição de cidadãos, produzindo, de maneira sistemática, dados e informações sobre as condições de vida da Leopoldina. Essas informações, além de passarem a ser analisadas pela equipe de pesquisadores, deveriam subsidiar a luta do movimento popular na região por melhores condições de vida e de saúde (Valla & Stotz, 1993, 1994).
Passaram a compor o SINAL, tanto informações registradas durante a participação em eventos locais e conversas informais com membros de organizações populares e profissionais como aquelas levantadas em estudos acadêmicos e outras publicações sobre a região, inclusive reportagens veiculadas na imprensa. Nos primeiros tempos de investigação, a equipe de pesquisa participava desses eventos a partir de uma busca ativa do que estava ocorrendo na região, mas, com o tempo, também passou a ser demandada (Valla, 1993).
Desta experiência, elaboramos uma proposta de investigação onde a sistematização dos dados tem como base a "construção compartilhada do conhecimento", compreendendo-a como uma produção onde se intercruzam três eixos fundamentais de saber: a) a fala pública dentro do processo de luta política, representando o conhecimento detido e divulgado, pelos órgãos oficiais, a respeito das condições de vida; b) as perspectivas de análises teóricas e metodológicas na compreensão do processo de produção da desigualdade e miséria, representando o conhecimento acadêmico acumulado; c) as falas e práticas que subvertem e humanizam os dados "técnicos" e permitem a flexibilização e ampliação da teoria, representando o conhecimento dos sujeitos que experienciam as condições de vida (Cunha & Oliveira, 1997).
A produção do conhecimento é compreendida, então, a partir de seu caráter dinâmico, considerando que ela não envolve apenas o processamento de informações pela equipe de investigação. Ela se coloca também no movimento de divulgação, onde aqueles que recebem a informação dela se apropria, interpretando-a e produzindo novos conhecimentos (Chartier, 1990).
Considerando que tínhamos em vista a construção de um sistema de informação que considerasse o saber acumulado pelos grupos populares, onde eles pudessem, sobretudo, se reconhecer enquanto sujeitos, pensamos ser necessário destacarmos um eixo de seleção de dados e de análise que enfatizasse as alternativas por eles encontras para fazer face a suas condições de vida (Cunha, 1997). Estamos pois, trabalhando com dois conceitos que se articulam e se complementam na compreensão dos problemas que atingem a população, e de suas lutas: condições e experiências de vida.
As condições de vida apontam para uma realidade que conforma uma determinada situação social e econômica. Elas que determinam, ao mesmo tempo, o surgimento e o agravamento de problemas nas várias dimensões da vida dos grupos populares: saúde, saneamento, educação, transporte etc. Condições de vida é um conceito imprescindível na avaliação da situação de saúde destes grupos, tendo em vista determinados critérios de alocação de verbas definidas pelas próprias políticas públicas. As condições de vida referem-se, então, ao campo de ação onde os atores se movem e atuam, buscando formas de enfrentamento destes problemas e de suas determinações como um todo.
No entanto, se nos restringirmos apenas às condições de vida, corremos o risco de desconsiderar as formas como esses grupos experimentam essas condições e atuam sobre elas, dando-lhes múltiplas respostas. No limite da análise das condições de vida, tendemos a tratar a "realidade" dos grupos populares como mero "objeto de estudo" e, geralmente o fazemos tendo a dedução de determinadas formas de ação, onde estão postos os nossos referenciais teóricos e políticos. Assim, muitas respostas construídas pelos grupos populares escapam ao nosso entendimento.
Ao considerar as experiências de vida, voltamos nossa preocupação, também, para uma determinada forma de apropriação da realidade e as possibilidades de ação sobre ela. Nessas possibilidades, estão colocadas as múltiplas experiências dos grupos populares, tendo em vista seus percursos históricos, seu universo cotidiano, valores culturais e visão de mundo. Na análise da formação da classe trabalhadora inglesa o historiador E. P. Thompson empregou o conceito de experiência de vida, destacando o fato que entre a experiência determinada em grande medida pelas relações de produção e o experimentar desta experiência há um conjunto de mediações que não são menos determinantes à prática histórica e social, uma vez que atravessam as ações dos homens, referenciando o seu agir sobre uma situação determinada. E neste sentido, tais mediações, que nos remetem ao campo da cultura, podem ser vistas também como instituintes da mudança histórica e social (Thompson, 1981).
Consideramos, então, que as experiências dos grupos sociais desenvolvem-se dentro de determinadas condições de vida, apresentando características gerais para a totalidade dos grupos populares, indicando uma experiência comum de exclusão social e econômica. Vivenciada por estes grupos, a experiência traduz aspectos particulares que revelam percursos históricos diversos e especialmente múltiplas formas de ler e atuar sobre a realidade, apontando pois para a forma como se experimenta a exclusão social e econômica. O conceito de experiência de vida abre, portanto, possibilidades para uma análise que avance na compreensão da leitura que a população tem de sua realidade e de suas alternativas de sobrevivência.
Na análise da situação do abastecimento de água, que passaremos a apresentar a seguir, estaremos preocupados não somente com a disponibilidade e qualidade dos serviços, mas também em como e por que determinados grupos de moradores em situação sanitária desfavorável, dentro de uma situação histórica determinada, interpretam e atuam sobre esta realidade.
Um olhar sobre a situação do abastecimento de água na região
Observando dados disponíveis sobre os serviços de água na região da Leopoldina, verificamos uma boa cobertura. Segundo dados do Censo do IBGE, em 1991, em pleno pico da epidemia de dengue, 95,8% dos domicílios da região dispunham de canalização interna com ligação à rede geral de água. Situação semelhante podia ser verificada nos bairros que compõem a região: a menor cobertura foi verificada nos bairros de Vigário Geral e Ramos, ambos com 93,9% e, a maior cobertura encontrava-se no bairro de Bráz de Pina com 99,0%. Tais números estavam bastante próximos daqueles observados no município do Rio como um todo, que era de 96,6% (IPLANRIO, 1993a).
É possível que essa boa cobertura domiciliar dos serviços de água se justifique pelo fato da Zona da Leopoldina se caracterizar como uma região de grande concentração de projetos de viabilização econômica da Área Metropolitana do Rio de Janeiro, desde o início do período de industrialização urbana, no início do século 20, até o período atual. No espaço da Área Metropolitana, a Leopoldina está localizada em uma região de periferia imediata, em relação ao núcleo da metrópole, que concentra as funções centrais (econômicas, administrativas, financeiras e culturais) da estrutura metropolitana. Sua ocupação se fez a partir de primitivos pólos industriais ao redor das paradas de trem suburbano, por onde foram se prolongando as zonas industriais mais antigas da cidade, que irradiam a partir do núcleo metropolitano (Abreu, 1997). Assim, em 1991, a Leopoldina concentrava 5% das indústrias e 11% dos estabelecimentos comerciais do município (IPLANRIO, 1993a).
Os efeitos do crescimento industrial da Área Metropolitana, foram sentidos na região da Leopoldina, sobretudo nas obras públicas de infra-estrutura urbana que, ao trazerem recursos fundamentais à instalação de indústriais, transformaram os espaços dos subúrbios, melhorando as condições de moradia e de acesso.
Esses benefícios, no entanto, ficaram limitados às áreas mais valorizadas pela ocupação industrial. As menos valorizadas, geralmente localizadas nas encostas dos morros, nas áreas de mangue e nas margens dos rios que cortam a região, foram sendo ocupadas por favelas. Essa ocupação foi resultante do esforço coletivo, e às vezes individual, dos moradores, geralmente expulsos de outras áreas da cidade e por migrantes de outros estados do país (Oliveira & Coelho, s.d.). Realizando desmatamento ou aterro dos terrenos, os novos moradores foram transformando os locais menos valorizados em locais de moradia.
Desta forma, tão logo começou a dar seus primeiros passos na cidade, a expansão industrial e urbana já vinha mostrando sua face excludente. Esta situação de desigualdade na distribuição da riqueza gerada socialmente, pode ser evidenciada por dados e informações que passamos a apresentar a seguir.
Em função dos números apresentados pelas estatísticas oficiais acerca da cobertura domiciliar de abastecimento de água e das reclamações dos moradores locais, em torno da precariedade e/ou insuficiência desses serviços, procuramos encaminhar nosso estudo para a coleta e análise da operação do sistema de abastecimento de água, a partir de informações da Companhia Estadual de Água e Esgoto (CEDAE). Esta possibilidade foi abandonada em função da resistência do órgão em fornecer tais informações. A nossa desistência se deu quando, em 1992, tentamos ter acesso, ao mapa de manobras da rede de água na região. Após percorrer todos os trâmites burocráticos da empresa para formalizar a solicitação das informações, obtivemos apenas um mapa de manobras da rede referente ao ano de 1972, com algumas anotações a lápis, que se referiam a uma tentativa de acrescentar outras informações mais atualizadas. Com o tempo fomos aprendendo que a dificuldade em obter informações junto à empresa e também de prestar esclarecimentos sobre os serviços era uma reclamação geral. Por diversas vezes, membros de entidades populares locais apontaram que o órgão público mais difícil para se conversar/dialogar era a CEDAE. Dificilmente, os representantes da Companhia cumpriam o compromisso de participar das reuniões promovidas pelas comunidades para discutir os problemas de sua responsabilidade.
O passo seguinte foi buscar informações junto ao Cadastro de Favelas do Município do Rio, através de entrevistas com moradores, conversas informais e acompanhamento de eventos locais em torno da questão.
Segundo a atualização do Cadastro de Favelas do Município do Rio, em 1991 a região da Leopoldina abrigava 69 favelas. Nestas favelas, de acordo com dados do Censo Demográfico de 1991, residiam 220.441 pessoas, que equivalia a 37% do total da população residente na região. Tinha, ainda, 40 Conjuntos Habitacionais Populares onde residem 135.615 habitantes (IPLANRIO, 1993a).
Quando observamos dados sobre a situação do abastecimento de água em favelas da região da Leopoldina, disponíveis no Cadastro de Favelas do Município do Rio de Janeiro - 1981/1991, podemos verificar uma situação bastante precária.
Na Tabela 1 podemos verificar que, em 1991, das 69 favelas cadastradas na região, apenas 11 (15,94%) contavam com serviços de água oficial no total dos domicílios (rede total oficial). Em 28 comunidades (40,58%) a rede de água oficial só atendia parte dos domicílios (rede parcial oficial). Em 19 comunidades o abastecimento era efetuado através de redes clandestinas, construídas pelos próprios moradores (rede não-oficial). Em três favelas o abastecimento ainda era efetuado através de bicas, poços e nascentes.
Em análise específica sobre a região da Penha, verificamos que entre 1981 e 1991, houve alguma melhoria dos sub-sistemas de água nas áreas de favelas. No entanto a situação ainda é bastante precária. Em 1981 a grande maioria das comunidades da XI Região Administrativa não contava com sistema oficial de abastecimento de água: as redes eram "clandestinas", implantadas pelos próprios moradores e, outras comunidades se serviam de bicas públicas. Em 1991, somente as comunidades de Vila Proletário da Penha, Parque Proletário do Grotão e Vila Cruzeiro contavam com rede oficial no total dos domicílios (Cunha & Oliveira, 1997). Através de visitas a essas comunidades e conversas informais com moradores, verificamos que a freqüência de abastecimento está muito aquém das necessidades dos moradores. Além de o abastecimento ser feito em um ou dois dias alternados, não existe horário certo para a distribuição. Situação mais grave ocorria no período de verão, quando o abastecimento de água chegava a ficar interrompido por até 15 dias, geralmente por problemas de manutenção na única bomba destinada a lançar água para os reservatórios localizados nos pontos mais altos do morro. Ou seja, as instalações de bombeamento não dispunham de bomba reserva para atender problemas emergenciais de manutenção.
Verificamos, então, que mesmo aquelas comunidades que estavam classificadas como tendo rede total oficial (com abastecimento na totalidade dos domicílios) podiam não estar com atendimento satisfatório. Em visitas que realizamos nas comunidades acima citadas, constatamos ainda, que além da freqüência de abastecimento ser muito baixa, a qualidade do material que compõe parte da rede ainda é a mesma implantada por moradores através de ligações "clandestinas". Observamos diversos domicílios que não dispunham de reservatório domiciliar adequado, ou pela precariedade da habitação e/ou pela dificuldade do morador em adquirir o produto (caixas d'água) devido o seu preço elevado. Assim, a baixa freqüência no abastecimento obriga os moradores a depositar água em diversos vasilhames no interior e no entorno da casa. Constatamos que algumas famílias mais antigas, que pareciam ser mais estruturadas e com melhor renda familiar, haviam construído enormes reservatórios enterrados com sistema de bombeamento que alimentavam um reservatório elevado no domicílio: desta forma garantiam água para a semana toda. Estas famílias, geralmente socorriam os moradores com problemas mais sérios de abastecimento de água.
Um bom exemplo é situação descrita por uma moradora da Vila Proletária da Penha: "Na minha casa tem cisterna e duas caixas de 1.000 litros em cima. Isso dá para segurar a semana toda. Nas casas que não têm cisterna, tem que guardar água em vasilhas: aí, o pessoal fica sem água e tem que carregar. Carregam de outras ruas mais embaixo; pegam água de outra pessoas que têm cisterna e têm menor número de família e filhos. Se não, tem que por a lata d'água na cabeça e carregar água." (Moradora da Vila Proletário da Penha, Complexo de Favelas da Penha - 1992)
Outro problema observado foram os vazamentos que ocorriam nas tubulações da rede de água, devido à baixa qualidade do material e a precariedade e/ou inexistência de manutenção. Este fato contribuía, também, para a criação de depósitos de água no terreno.
Cabe ainda ressaltar que nas favelas localizadas em áreas de encosta, que eram consideradas como tendo abastecimento pela rede oficial (total ou parcial), a administração dos serviços não era efetuada diretamente pela CEDAE. A manobra da rede interna que abastecia os domicílios das favelas era realizada pelas Associações de Moradores (AM). A AM contratava um "manobreiro", geralmente morador local, para efetuar esse serviço.
Nas favelas localizadas em encostas, principalmente nos grandes complexos de favelas do Alemão e da Penha, a solução técnica disponibilizada pela empresa pública de saneamento foi a construção de reservatórios elevados, que recebem água através de elevatórias localizadas na área plana de um bairro próximo. Esses reservatórios, geralmente atendem a um grupo de comunidades, com duas ou mais localidades, e deles a água é distribuída em dias diferentes para cada uma.
Vejamos abaixo alguns pontos sobre a situação do abastecimento de água de um grupo de comunidades localizadas no Complexo de Favelas da Penha, descrita no estudo preliminar, realizado em 1994, pela Prefeitura Municipal para o Programa Favela-Bairro:
Um reservatório de água localizado entre os morros da Chatuba e do Sereno, acima da pedreira mais alta do Morro da Fé, possui a função de abastecer cinco comunidades (Caracol, Grotão, Sereno, Paz e Morro da Fé). Cada uma delas recebe água, durante 12 horas, de 3 em 3 dias. Um "manobreiro" sobe até o local de manobra próximo ao reservatório, de 3 em 3 dias, para comandar a operação de distribuição para as comunidades alternadamente.
Durante o verão a falta de água é bastante freqüente. Os moradores que não possuem caixa d'água em casa, são obrigados a descer até a horta (terreno da Light) para buscar água ou, mesmo lavar roupas em alguns tanques dispostos no local. Os moradores declaram através da Associação de Moradores que, apesar do reservatório ter sido construído pela CEDAE, não irão pagar água enquanto não possuírem reservatório próprio para cada comunidade.
Embora exista tubulação na parte alta da comunidade, muitas casas ficam sem água por que não tem pressão suficiente para alcançar essas áreas.
Situação idêntica é descrita por uma moradora do Complexo do Alemão: "A tarefa é árdua. A Presidente da [favela] Joaquim Queiroz, administra a distribuição de água para todas as comunidades da seguinte forma: às quartas e domingos, por 3 a 4 horas em cada dia. Já no Alemão o abastecimento é feito nos outros dias (...) Para manter o sistema funcionando, um manobreiro é pago pela Associação da Joaquim Queiroz, além de toda a manutenção, através de pequenos pagamentos feitos pela comunidade." (Moradora da Favela Joaquim Queiróz, Complexo de Favelas do Alemão - 1991)
Uma situação bastante comum de ser verificada é a compra de material para a manutenção da rede. Pequenos registros, trechos de rede e outros equipamentos de pequeno porte acabam sendo comprados através de "rateios" entre moradores.
Moradores do Morro do Adeus, comunidade localizada no Complexo do Alemão, reunidos em seminário local em 1995, apontavam que a rede oficial de abastecimento de água só abastece parte da comunidade, a freqüência é muito baixa e o reservatório que foi construído é insuficiente para atendê-los. Relataram, ainda que falta manutenção da rede de água por parte da empresa de saneamento. A operação da rede interna era efetuada por um manobreiro remunerado por moradores que se cotizavam. Ali, não havia nem o convênio entre a CEDAE e a associação de moradores que poderia repassar os recursos para pagar o manobreiro. Além disso, quando havia necessidade de peças para reparos na rede, eram os próprios moradores que compravam o material (AMMA, 1995).
Deve ser ressaltado que a situação de abastecimento de água não foi a mesma observada para todas as favelas da Leopoldina. Verificamos por exemplo que, em 1991, na área do Complexo de Favelas da Maré, que em 1991 contava com dez favelas e quatro Conjuntos Habitacionais Populares - o abastecimento de água era bastante satisfatório. Segundo classificação do cadastro de favelas do município, podemos constatar que, em 1991, cerca de 85% das comunidades da Maré contavam com rede oficial de abastecimento na totalidade dos domicílios (rede total oficial). Em visitas realizadas na área e conversas informais com moradores locais, constatamos que na área da Maré, em 1991, mesmo aquelas favelas que não tinham rede oficial na totalidade das casas, dificilmente tinham problema de abastecimento: através de ligações "clandestinas" nas redes oficiais de comunidades próximas, garantiam abastecimento regular. Não foram encontrados, também domicílios que utilizassem vasilhames para o depósito de água. As poucas reclamações que ouvimos, geralmente estavam relacionadas à existência de vazamentos de água devido à precária manutenção da rede.
Estudo realizado por Marques (1996), apontou que na Maré, em 1995, era comum encontrar domicílios onde sequer havia reservatórios de água (caixa d'água). A freqüência regular no abastecimento tornava desnecessário o armazenamento de água no domicílio. Essa boa situação de abastecimento de água na área da Maré, pode ser justificada por um amplo processo de mobilização social ocorrido no final dos anos 70 que culminou com a implantação, a partir dos anos 80, de um grande projeto de urbanização financiado pelo Banco Nacional de Habitação, garantindo importantes investimentos em saneamento (CEDAE, 1982).
A partir de nossa observação direta, podemos dizer que, de uma forma geral, nas favelas localizadas em áreas planas, a freqüência de abastecimento de água depende muito da localização do terreno em relação ao sistema oficial de água. Se a comunidade estiver localizada em ponta de rede a freqüência é irregular. Se as comunidades não estão localizadas em ponta de rede a freqüência de abastecimento é bem melhor. Nas áreas planas que não estão em ponta de rede, não necessariamente existe o serviço de manobra efetuado pelos moradores, pois a situação do terreno favorece o funcionamento da rede por gravidade. Observamos que geralmente, a situação do abastecimento de água é mais precária em comunidades localizadas em ponta de rede e/ou em áreas de encostas. No verão, quando o consumo de água da cidade aumenta, agrava-se a situação da população que encontra-se na parte mais frágil do sistema de abastecimento, favorecendo a criação de alternativas de armazenamento.
A falta de água também era uma constante, principalmente no verão, em conjuntos habitacionais populares localizados nas áreas de cotas mais elevadas como aqueles dos bairros de Cordovil e Braz de Pina. Lembramos que são regiões onde foi instalada toda a infra-estrutura de saneamento quando da construção dos conjuntos e, mesmo assim, a população desses locais ainda sofria com a baixa freqüência de abastecimento de água.
Nas comunidades da Leopoldina, tanto aquelas em favelas como em conjuntos habitacionais populares, que têm os domicílios ligados oficialmente à rede pública (rede total oficial ou rede parcial oficial), os moradores efetuam o pagamento de uma taxa mínima de consumo referente a 15 metros cúbicos por quarto (dormitório) existente no domicílio. O pagamento deve ser feito em banco, sem atraso, não importando se na comunidade chega água uma ou sete vezes por semana. Contraditoriamente, um dos poucos locais onde existe rede oficial de água e não existe nenhum tipo de pagamento é no Complexo da Maré. Nesta área, como vimos acima, a grande maioria das comunidades dispõe de abastecimento bastante satisfatório. Ali todas as favelas, exceto os Conjuntos Habitacionais não efetuam pagamento da água consumida.
A experiência popular no enfrentamento dos problemas de abastecimento de água
Contatamos que, naquelas comunidades onde foram constatadas situações de insuficiência e/ou precariedade nos serviços de abastecimento de água, geralmente os moradores são obrigados a lançar mão de estratégias de sobrevivência que também levam a outras situações de riscos para a proliferação de doenças. À primeira vista seria fácil afirmar que os moradores criam situações de riscos porque não têm informações. No entanto, observamos que as soluções que criam, muitas vezes são as únicas possíveis diante da realidade. Trata-se, portanto, de escolhas possíveis dentro de um campo de possibilidades limitado pela precariedade dos serviços.
Algumas "falas" de moradores em áreas distintas da região da Leopoldina estão transcritas abaixo e podem nos ajudar a entender essa situação.
"Somos obrigados a encher bacias e reservatórios de água até para podermos tomar banho e fazer comida. No verão piora, inclusive com o risco da dengue, já que os reservatórios são justamente o habitat preferido dos mosquitos. Temos que arriscar, porque não podemos ficar sem água, ainda mais quem tem criança." (Moradora do Complexo da Penha, 1991).
"A gente vai guardando água em qualquer depósito e os mosquitos vão proliferando".
"Não temos outro remédio, temos que encher tudo que encontramos pela frente, para as necessidades urgentes. Deixamos tudo tampado, mas se houver outro surto de dengue aqui, do jeito que as coisas estão, este será um dos lugares mais atingidos" (Moradora da Comunidade de Cordovil, 1991).
"É uma coisa muito chata. As pessoas queriam ter suas casas direitinho, arrumadinha e ficam muito chateadas porque não podem ter. Principalmente com as crianças que ficam sem tomar banho neste calor. As crianças sofrem muito. As pessoas têm preocupação com a saúde mas, infelizmente, não têm como resolver. Você pode querer pôr uma verdura de molho, por exemplo, mas não dá".
"Alguém tem que tomar alguma providência o mais rápido possível. Não podemos ficar esperando por melhorias que nunca chegam. Corremos o risco de epidemia. Com esse problema de cólera, nosso trabalho de conscientização da população não tem qualquer valor (...) A saúde dos moradores está em jogo" (Agente de Saúde - Complexo do Alemão, 1991).
"Não dá para manter tudo limpo como a médica mandou; existem muitos mosquitos e ratos. Moramos na beira do rio e não temos água" (Moradora da Vila São Pedro, Bonsucesso, 1992).
"Hoje, viver aqui é uma verdadeira luta, já que temos que ter sempre água estocada até para tomar banho" (Moradora do Jardim América, 1992).
Nos fragmentos de "falas" acima, optamos por não identificar os moradores por que algumas "falas" foram coletadas através de conversas informais. Como veremos adiante, o receio de identificar os "informantes" está relacionado ao fato da operação da rede local de abastecimento de água ser controlado pelas associações de moradores que, com o avanço do comércio nacional e internacional de drogas ilícitas, passaram a sofrer influência e controle de grupos locais de narcotraficantes.
Em alguns eventos locais e encontros informais com moradores, tivemos a oportunidade de expor os "achados" de nossos estudos, apontando para a necessidade de reivindicar água 24 horas por dia nas comunidades com administração direta pela CEDAE, como um direito de saúde e de cidadania. Na nossa interpretação, os problemas de saúde relacionados à situação de saneamento só poderiam ser resolvidos na medida em que a população passasse a pressionar o estado para que aplicasse recursos nessas áreas. A cada vez que tínhamos a oportunidade de falar sobre o assunto, apontávamos essa solução. Em muitas oportunidades tivemos o silêncio como resposta. Com o tempo, através de conversas informais, alguns moradores fizeram os seguintes questionamentos: será que a tarifa não vai aumentar se a CEDAE passar a fazer a administração local do abastecimento de água? Será que se a CEDAE passar a fazer a administração direta, sem mudar a situação da rede local, poderemos continuar a interferir na busca de soluções possíveis para os problemas no sistema local?
Com o avanço do controle das Associações de Moradores pelos grupos locais de narcotraficantes, essa situação se agravou ainda mais. Em conversas informais com pessoas com que mantivemos relações mais próximas, um outro obstáculo foi considerado - e talvez justifique tanto silêncio nas reuniões públicas, já que são os "donos da área" quem acabam decidindo sobre a forma de distribuir a água, e têm na operação da rede mais um instrumento de poder sobre os moradores das comunidades: será que a pressão política sobre a CEDAE vai surtir efeito? Os moradores não estariam correndo outros riscos?
Para se ter uma idéia do grau de interferência de grupos locais do narcotráfico na rotina do abastecimento de água em algumas favelas localizadas nas áreas de encosta, reproduzimos abaixo um diálogo que tivemos, em um encontro casual, no ano de 1998, com uma moradora de umas das comunidades da área da Penha:
Moradora A: - "Sabe que a água lá na comunidade agora está boa?"
Pesquisadora R: - "Que bom! Fizeram obras?"
Moradora. A: - "Não. É que o menino que está lá agora distribui a água direitinho para os dois lados da comunidade. Assim, a gente sabe melhor quando a água vai chegar e pode prever o gasto."
Uma outra opinião comum entre os moradores era a de que não seria importante ter uma administração direta da rede de água pela CEDAE. Argumentava-se que, diante do tratamento que recebem dos funcionários da empresa, entregar a operação local do sistema para a empresa poderia significar ficar sem água nenhuma. A experiência de pouco diálogo com a empresa pode ser um indicativo de que "ela não está preocupada com os pobres".
Durante nossa pesquisa, alguns moradores argumentaram que não necessariamente deva haver distribuição de água durante 24 horas. Afirmaram que se tiverem garantida a entrada de água no domicílio durante 2 a 3 vezes por semana já está bom: já se pode saber com mais segurança quando a água vai entrar e já dá para se prevenir. Esse argumento geralmente é utilizado por moradores que contam com um bom sistema de armazenamento no domicílio.
Em estudo realizado por Oliveira (1993, 1996), pudemos constatar que a luta pela água na região da Leopoldina sempre se desenvolveu por aproximações sucessivas. Foram identificadas diversas comunidades, principalmente as mais antigas, em que a conquista da ligação à rede pública de abastecimento de água foi resultado da luta simultânea que envolvia ações locais de defesa da vida (construção de bicas, ligações clandestinas), aliança com diversos agentes de mediação (igreja, políticos, profissionais) e, quando possível, pressão direta sobre o aparelho do Estado. De acordo com as interpretações que os grupos populares pudessem fazer com relação às possíveis alianças e ao seu potencial de resolução, a pressão sobre o Estado poderia ser maior ou menor. Em muitos casos a pressão sobre o Estado sequer estava programada. Um bom exemplo é o das ligações clandestinas de água. Quando os moradores das favelas faziam os "gatos" (ligações clandestinas) na rede pública de água ou de luz, a única intenção era ter água em seu domicílio, porém essa ação traz problemas para o sistema de abastecimento como um todo, pois as casas com ligações oficiais também passam a sofrer com a falta de água. Desta forma o Estado se vê obrigado a buscar soluções, mesmo que provisórias, para as comunidades onde o "gato" é dominante.
Algumas considerações em torno do papel da investigação científica na mobilização popular pela saúde
Com a eclosão da epidemia de dengue no município e na região da Leopoldina, a legitimidade das instituições governamentais de saúde ficou ameaçada, principalmente pela exposição nos meios de comunicação de massa, da fragilidade e dos limites das estratégias de controle utilizados pelos serviços de saúde. Essa situação proporcionou que houvesse uma ampliação da aliança entre os profissionais dos serviços locais de saúde e os moradores organizados em torno do movimento político pela saúde na região da Leopoldina, em 1991. Com a mobilização social em torno da epidemia, os moradores tiveram a oportunidade de expor publicamente a situação de vulnerabilidade a que se encontravam submetidos.
Passado o período de maior visibilidade pública, quando a doença passou a atingir níveis endêmicos, restringindo-se às áreas periféricas, onde as ações de controle têm seus efeitos mais restritos (Sabroza et al., 1992), a rede de alianças, ampliada no período epidêmico, também se restringiu. Para os grupos mais vulneráveis, as possibilidades de ação foram deslocadas para um lugar de onde nunca deixaram de estar: o cotidiano dos sujeitos e das comunidades.
Diante da constatação da precariedade dos serviços de saneamento e da submissão ao "mundo da necessidade" (Arendt, 1991) ficamos seriamente tentados a prescrever o remédio para o problema: organização popular para reivindicar melhores serviços. Imbuídos de boas intenções, esperamos uma grande mobilização popular que exija dos governos constituídos a garantia dos direitos de cidadania, tais como abastecimento de água em quantidade e qualidade adequadas. Nossos estudos poderiam compor o universo de informações técnicas necessárias para qualificar as reivindicações das organizações populares locais.
No entanto, a experiência da população na sua relação com os diferentes níveis de governo, técnicos e outros agentes de mediação, e também com os grupos locais de poder, indica que é preciso muito mais que informações técnicas para a construção de caminhos para a solução dos problemas. O caminho se faz ao caminhar. Ou como diz uma agente comunitária de saúde, moradora do Complexo da Penha: "só se aprende a caminhar, caminhando" (Peregrino, 1996).
No caso específico da situação de saneamento, sente-se/sabe-se que o tratamento dispensado aos moradores de favelas pela empresa de saneamento (CEDAE), reflete o tratamento historicamente dispensado pelo Estado aos moradores de favelas. Sente-se/sabe-se, também, que grande parte das Associações de Moradores das favelas, hoje, sofre controle direto ou indireto dos chefes locais do narcotráfico, que geralmente interferem na manobra da rede de água e também nos serviços de limpeza pública. Fazer pressão sobre os governos para conquistar seus direitos pode criar conflito com os "donos da área". Ressalta-se, ainda que a manutenção dos "currais" eleitorais nas áreas de favelas depende cada dia mais do apoio desses grupos.
Não se trata, portanto, de desconhecer seus direitos de cidadãos. O "principio de realidade" fala mais alto e é melhor caminhar por caminhos já sabidos, contando com suportes construídos na experiência de vida, do que arriscar perder o que se conquistou lentamente. As transgressões aos limites das políticas sociais vão ocorrendo dentro de um espaço onde predominam as "astúcias", as "ações táticas", que são características do sujeito que encontra-se em situação de fragilidade (Certeau, 1994). É melhor apostar nos caminhos mais lentos, dentro de um campo de possibilidades de ação que podem ser controlados, onde o corpo "sabe" que pode dominar/agüentar, do que apostar apenas nas soluções técnicas indicadas por um "agente estranho", que sequer valoriza sua experiência de vida. Ou seja, é mais seguro arriscar tendo como referência o conhecimento construído pela experiência de vida e a rede de relações, que oferecem suporte social, do que arriscar tendo como referência a informação do estranho, que apesar de afirmar que os reconhece como legítimos produtores de conhecimento, quase certamente, não estará presente quando o "circo pegar fogo".
A nossa participação em diversos eventos sociais na área estudada, expondo nossas impressões sobre os problemas, proporcionou momentos ricos de convivência onde foi possível a permanente revisão de nossas idéias e posições.
Pelo tempo que temos nos dedicado ao estudo das condições de vida e experiência de vida na região da Leopoldina, é muito comum que pessoas tragam, constantemente, informações sobre os problemas vivenciados. Novos questionamentos vão surgindo e, na medida que vamos convivendo/discutindo/dialogando vamos agindo em torno da busca de soluções para problemas, vamos articulando recursos materiais e emocionais, que favorecem encontrar soluções coletivas. A informação técnica é um desses recursos, mas não é só ela que a população espera receber. É preciso estar atento, também, para as técnicas locais de enfrentamento da vida, construídas na vivência. Pois o "único caminho já sabido de todo sujeito é o caminho da morte. A vida é desvio." (J. C. Valadares, comunicação pessoal).
Constatamos que falar da produção de dengue e de seu controle, em diversas localidades da região da Leopoldina implicou falar tanto dos limites das políticas sociais como das experiências acumuladas pela população para enfrentar esses limites.
Assim, o problema da mobilização social em saúde não estaria apenas no fato de imputar aos indivíduos a responsabilização pelo seu estado de saúde. O problema estaria no fato de desconsiderar que a responsabilidade individual é limitada pela existência (ou não) de suportes sociais/coletivos que possibilitem o desenvolvimento de um "individualismo positivo" (Castel, 1998). Desconsiderando, portanto que: "Vive-se mais à vontade a própria individualidade à medida que esta se apóia em recursos objetivos e proteções coletivas." (Castel, 1998: 609).
Estamos falando, portanto, de uma relação de autonomia e dependência entre indivíduo/individualidade e sociedade/coletividade. Não nos interessa eliminar a individualidade, mas sim fortalecê-la a partir da disponibilidade de suportes coletivos. Dentre os diversos suportes requeridos para o exercício de uma individualidade saudável devem estar tanto os bens materiais mas, também, os bens espirituais - a compaixão, a solidariedade, o respeito - que também dão sustentação à ação.
Quem se (pré)ocupa, cuida. Cuidar implica agir junto. Nesse agir conjunto, a racionalidade técnica em estado bruto perde sentido: atuar junto exige ser respeitado em seus desejos e projetos de vida, que é quem de fato é capaz de colocar nossos corpos em movimento.
Referências
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