ARTIGO

 

Avaliação da assistência pré-natal oferecida em uma microrregião de saúde do Ceará, Brasil

 

Evaluation of prenatal care in a micro-regional health system in the State of Ceará, Brazil

 

 

Escolástica Rejane Ferreira MouraI; Francisco Holanda Jr.I; Maria Socorro Pereira RodriguesII

ISecretaria Estadual da Saúde do Ceará. Av. Pessoa Anta s/n, Fortaleza, CE 60060-430, Brasil. escolpaz@yahoo.com.br
IIDepartamento de Enfermagem, Universidade Federal do Ceará. Rua Alexandre Baraúna 1115, Fortaleza, CE 60430-160, Brasil

 

 


RESUMO

O estudo apresenta uma análise situacional da atenção pré-natal oferecida em uma microrregião de saúde do Ceará. Os objetivos foram analisar a cobertura da população da microrregião assistida por equipes do Programa Saúde da Família (PSF); avaliar as informações do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) e Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC); e conhecer a dinâmica da oferta das consultas médicas e de enfermagem durante o pré-natal. Os dados foram colhidos na 4ª microrregião de saúde do Ceará (Baturité) e na Secretaria Estadual de Saúde do Ceará (SES-CE), nos meses de maio e junho de 2001, por meio de revisão de prontuários, observação livre e busca nos sistemas de informações. Os resultados revelaram que, apesar da excelente cobertura da população por equipes de PSF, resultando em melhoria de acesso, aumento do número de consultas pré-natais, melhor cobertura vacinal e captação precoce das gestantes, há que se avaliar o impacto dessas ações para a real melhoria na qualidade de vida dessas mulheres; há, também, que se estabelecer um protocolo a ser seguido por médicos e enfermeiros no decorrer da assistência pré-natal, bem como ser garantida a consulta médica nessa ação.

Palavras-chave: Cuidado Pré-Natal; Programa Saúde da Família; Avaliação


ABSTRACT

This article presents an analysis of prenatal care provided in a micro-regional health system in the State of Ceará, Brazil. The objectives were to analyze the population covered by the Family Health Program (FHP) teams; to evaluate data from the Basic Health Care Information System and the Live Birth Information System; and to establish a profile of medical and nursing services provided during prenatal care. Data were collected from the fourth health micro-region in the town of Baturité and the Ceará State Health Department in May-June 2001, through review of patient records, free observations, and searches in the information systems. Despite the excellent population coverage by FHP teams, resulting in improved access, increased numbers of prenatal visits, improved vaccine coverage, and early diagnosis of complications of pregnancies, the impact of these measures need to be assessed in terms of the real improvement in the women’s quality of life. A protocol also needs to be followed by doctors and nurses throughout the course of prenatal care, besides guaranteeing medical consultations as an integral part of the program.

Key words: Prenatal Care; Family’s Health Program; Evaluation


 

 

Introdução

A redução das taxas de morbidade e mortalidade materna e perinatal dependem, significativamente, da avaliação da assistência pré-natal, uma vez que a qualidade dessa assistência tem relação estreita com os níveis de saúde de mães e conceptos.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estimou que, em 1990, cerca de 585.000 mulheres morreram em todo o mundo, devido a complicações ligadas ao ciclo gravídico-puerperal e que 95% dessas mortes ocorreram em países pobres. A disparidade existente entre as Razões de Mortalidade Materna dos países pobres e ricos fica evidente na região das Américas, quando se comparam as Razões de Mortalidade do Canadá e Estados Unidos, onde ocorrem menos de 9 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos, com países como Bolívia, Peru e Haiti que chegam a mais de 200 óbitos. Entretanto, outros países em desenvolvimento, como Chile, Cuba, Costa Rica e Uruguai, apresentam Razões de Mortalidade Materna em torno de 40 por 100 mil nascidos vivos; portanto, números bem inferiores, demonstrando que a morte materna pode ser reduzida com determinação política e garantia de serviços de saúde à população, incluindo, especialmente, a assistência pré-natal de qualidade (MS, 2002).

No Ceará, a Razão de Mortalidade Materna no triênio 1998, 1999 e 2000 foi de 93,3, 82,8 e 75/100 mil nascidos vivos, respectivamente. No que se refere às causas obstétricas diretas do óbito materno, que são essencialmente preveníveis e que compreendem, sobretudo, a doença hipertensiva específica da gravidez (DHEG), as hemorragias, os abortos, as embolias e as infecções puerperais, houve uma gradual redução nos últimos 3 anos, passando de 61,5%, em 1996, para 57,5%, em 1999 (SES-CE, 2001). Portanto, o óbito materno vem sendo enfrentado no Ceará de forma a se determinar uma curva descendente no número de casos. Mesmo assim, esses dados ainda são preocupantes, tendo em vista que a Razão de Mortalidade Materna aceitável pela OMS é de dez óbitos por 100 mil nascidos vivos (WHO, 1985).

Quanto à mortalidade perinatal, a OMS estimou para 1996 uma taxa de 53/1.000 nascidos vivos. Embora no Brasil a mortalidade infantil esteja em declínio, no período de 1990 a 1995, as causas perinatais responderam por mais de 50% dos óbitos em menores de 01 ano (Lago, 1999). No Ceará, a mortalidade perinatal, em 1999, chegou a responder por 41% da mortalidade infantil, com 1.682 óbitos (SES-CE, 2000a). Logo, no âmbito internacional, nacional e estadual, as causas perinatais do óbito infantil representam um grande desafio para os serviços de assistência à gestante e ao recém-nascido.

Voltando ao aspecto da avaliação da assistência pré-natal, pelo menos três indicadores de resultados no País confirmam problemas nessa área: o primeiro é referente à alta incidência de sífilis congênita (24/1.000 nascidos vivos no SUS), cujo diagnóstico e tratamento têm 100% de possibilidade de realização na assistência pré-natal mediante um simples exame de sangue – o VDRL (Venereal Disease Research Laboratory) e da aplicação da penicilina benzatina, elementos esses que devem estar disponíveis no nível primário de atenção (MS, 1999); o segundo corresponde a DHEG, que representa a principal causa dos óbitos maternos, podendo ser diagnosticada pela mensuração sistemática da pressão arterial associada à identificação dos sinais e sintomas clínicos, bem como exame complementar para dosagem de proteinúria, elementos que também devem estar disponíveis na atenção primária (MS, 2000b); e o terceiro é que 37% das gestantes, no Brasil, não foram vacinadas contra o tétano, precaução que deve ser garantida a toda e qualquer mulher antes mesmo da concepção (MS, 2000a; SES-CE, 2000b).

Diante do exposto, fica evidenciada a existência de problemas na qualidade do pré-natal, que associada à significativa inserção de médicos e enfermeiros nessa área do cuidado, em decorrência, particularmente, da implantação das equipes do Programa Saúde da Família (PSF), decidiu-se pela realização do presente estudo, que trata de uma análise situacional da atenção pré-natal oferecida em uma microrregião de saúde do Ceará, enfocando o nível primário da atenção. No referido estudo, foram estabelecidos os seguintes objetivos: (1) analisar a cobertura da população da microrregião por equipes de PSF; (2) avaliar as informações do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) e do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC); e (3) identificar a dinâmica da oferta das consultas médicas e de enfermagem no pré-natal.

 

Metodologia

Trata-se de estudo predominantemente quantitativo, de caráter descritivo. Os dados foram colhidos nos meses de maio e junho de 2001, na 4ª microrregião de saúde do Ceará (Baturité) e na Secretaria Estadual de Saúde do Ceará (SES-CE), tendo como fonte as informações geradas na Célula de Organização da Atenção Primária (CEOAP); as produzidas pelo SIAB; as constantes do SINASC; as resultantes da observação livre com anotações em diário de campo; e as decorrentes da revisão de 48 prontuários, sendo seis de cada um dos municípios da pesquisa, o que corresponde aos registros de oito equipes de PSF. Vale acrescentar que os prontuários foram selecionados por funcionários do Serviço de Arquivo Médico (SAME), obedecendo ao critério de conter um acompanhamento pré-natal a ser concluído no período da pesquisa. Destes prontuários, foi extraída, tão somente, a informação da quantidade de consultas e se foram realizadas por médico ou enfermeiro. A microrregião de Baturité é composta pelos Municípios de Aratuba, Mulungu, Itapiúna, Pacoti, Aracoiaba, Baturité, Guaramiranga e Capistrano. Com uma população de 126.288 habitantes, estima-se que nessa microrregião 2.526 gestantes/ano estejam a demandar cuidados pré-natais e dessas, 2.147 devem ter suas necessidades atendidas pela atuação das equipes de PSF.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COMEPE), do Complexo Hospitalar da Universidade Federal do Ceará, na conformidade das normas que regulamentam a pesquisa com seres humanos, resolução no. 196/96, do Conselho Nacional de Saúde – Ministério da Saúde. Foi financiada pela Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa (FUNCAP), sob a forma de bolsa de demanda social. Contou-se, ademais, para sua execução, com o apoio da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará.

 

Análise e discussão dos resultados

Os resultados estão apresentados em quatro categorias: cobertura da população pelo PSF; assistência pré-natal segundo informações do SIAB; assistência pré-natal conforme informações do SINASC; e dinâmica da oferta das consultas médicas e de enfermagem no pré-natal.

Cobertura da população pelo PSF

Nessa categoria apresenta-se a cobertura de PSF nos municípios da microrregião de Baturité, procedida de uma análise da necessidade de equipes de PSF, bem como do número de agentes comunitários de saúde, com vistas a atender às necessidades de saúde da população.

Conforme as diretrizes do PSF, a cobertura é a proporção da população (famílias cadastradas) no modelo de atenção PSF com relação à população geral do município (MS, 1997). Nesse sentido, as equipes de PSF são compostas por um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e seis agentes comunitários de saúde, com a responsabilidade de acompanhar cerca de mil famílias (2.400 a 4.500 pessoas; 3.450 pessoas em média) por equipe (MS, 1998). Comparando esse parâmetro exposto com a realidade pesquisada, apresenta-se, a seguir, na Tabela 1, dados reveladores de que a cobertura da população, por equipes de PSF, é superior a 100% em quatro municípios da microrregião pesquisada, ou seja, Aratuba, Mulungu, Guaramiranga e Pacoti; outros dois municípios, Capistrano e Aracoiaba, apresentam uma cobertura igual ou superior a 90%; apenas os municípios de Baturité e Itapiúna apresentaram déficit de cobertura. Constata-se, então, nessa microrregião, uma excelente cobertura da população por equipes de PSF (97,6%), enquanto a média estadual está em torno de 58,8% (julho de 2001). Observa-se, ainda, na mesma Tabela 1 que o número de agentes de saúde é satisfatório, em todos os municípios, cuja proporção é de 06 agentes por equipe, meta estipulada nas normas básicas do PSF (MS, 1998). Esses resultados, por sinal animadores, instigam a uma reflexão por parte de todos os envolvidos no PSF: levando em conta que a avaliação de impacto deve fazer parte do processo de implantação e acompanhamento do programa, quais os benefícios trazidos às populações cobertas e quais mudanças ocorreram a partir da implantação do programa?

 

 

Procurou-se traçar uma analogia com o sistema de PSF existente em Cuba, país cujo PSF tem uma ressonância mundial, com suas equipes compostas por um médico e um auxiliar de enfermagem, co-responsáveis pela saúde de 120 a 140 famílias, o que corresponde a 600/700 pessoas (Ordoñez, 1995, apud Andrade, 1998). Apesar de não existir uma equivalência entre as equipes do Brasil e de Cuba, é possível inferir que há um contingente bem mais elevado de pessoas a serem assistidas, por equipe, no Brasil. Os profissionais de saúde da microrregião de Baturité, instados a falar sobre esta particularidade, foram unânimes em considerar bastante elevado o contingente de pessoas sob responsabilidade de cada equipe de PSF. No entanto, quando solicitados a emitir uma posição sobre a existência de demanda reprimida de gestantes, não relataram existência dessa problemática, fato que pode estar associado tanto ao esforço e eficiência do trabalho dessas equipes, quanto a uma priorização do atendimento dessa população-alvo dentro das ações do PSF, bem como à queda da taxa de fecundidade em nosso Estado. Esta realidade parece favorecer a organização da demanda ao atendimento pré-natal, vale dizer, que os profissionais (médicos e enfermeiros) não tenham um número tão elevado de consultas no tempo determinado para o atendimento, possibilitando um contato mais longo com as gestantes. Inclusive, o MS afirma que, em âmbito nacional, de um modo geral, as consultas de pré-natal são muito rápidas, impedindo uma escuta adequada das queixas da cliente e a identificação dos sinais de alerta, representando um sério obstáculo à prestação do serviço com boa qualidade (MS, 2000a).

 

Assistência pré-natal segundo informações do SIAB

Nesta categoria, a análise foi direcionada a 04 segmentos: gravidez abaixo dos vinte anos; gestantes acompanhadas por agentes comunitários de saúde; gestantes com consultas em dia; captação das gestantes ao serviço de saúde no 1º trimestre de gestação; e cobertura de vacinação antitetânica. Vale ressaltar que o SIAB fornece informações relativas, tão somente, às gestantes cadastradas, uma vez que o sistema é alimentado pelas equipes de PSF. Porém, considerando que na MR de Baturité a cobertura de PSF é de 97,6%, esta análise torna-se bastante próxima do universo total de gestantes da microrregião.

Na Tabela 2, apresentada a seguir, verifica-se que 23,4% das mulheres grávidas cadastradas nos serviços de saúde, na MR de Baturité, têm menos de 20 anos de idade, com pouca diferença entre os municípios pesquisados, à exceção de Mulungu, com 59,3% dessas ocorrências envolvendo mulheres com menos de 20 anos. Sobre esta questão Díaz & Díaz (1999) afirmam que a falta de informação correta, associada aos fatores sociais que, por um lado, estimulam a vida sexual das adolescentes e por outro lado respondem por sua condenação, juntando-se à falta de acesso a serviços adequados nessa faixa etária, levam uma grande parte dos adolescentes a iniciar sua vida sexual sem praticar a anticoncepção, resultando, quase sempre, em gravidez precoce e indesejada. Os mesmos autores consideram que qualquer esforço para melhorar o atendimento em saúde reprodutiva dos adolescentes deve incluir, necessariamente, a participação da comunidade, com especial destaque dos pais e professores. Portanto, no contexto do PSF, há que se desenvolver estratégias mais coerentes com a realidade dos adolescentes, que podem ser favorecidos pelo caráter do envolvimento da escola, da família e da comunidade, considerando a interação entre adolescentes, pais, professores e profissionais da saúde; e do sistema social, englobando as relações do adolescente, com o seu universo comunitário (escola, igrejas, clubes, associações etc.).

 

 

Conforme o apresentado anteriormente, pode-se visualizar, na Tabela 2, que 92,2% das gestantes cadastradas no pré-natal receberam a visita do agente de saúde no mês em estudo, enquanto 84,8% receberam consulta médica ou de enfermagem. No entanto, diferenças de cobertura são observadas entre os municípios da microrregião de Baturité, visto que no Município de Baturité, 74,9% das gestantes cadastradas foram visitadas pelo agente de saúde e 69,4% receberam consulta médica ou de enfermagem, fato concordante com o déficit de cobertura da população por equipes de PSF, apresentada na Tabela 1; em Mulungu, a cobertura de consulta/mês também se mostrou baixa, comparada à dos demais municípios. Esses resultados, comparados com a taxa de 60% de cobertura de pré-natal do ano de 1994, quando teve início a implantação do PSF, demonstra um crescimento ascendente de cobertura de gestantes, por ações de saúde, no pré-natal. A Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS – BENFAM, 1996), realizada no Brasil, revelou que, aproximadamente, 13% das mulheres que tiveram filhos nos últimos cinco anos que antecederam a pesquisa, não realizaram nenhuma consulta pré-natal. Essa percentagem foi de 9% nas regiões urbanas e 32% no meio rural.

Quanto à chegada da gestante ao serviço de pré-natal, ainda no 1o trimestre de gravidez, a Tabela 2 apresenta uma média de 58,2% na microrregião, indicando a necessidade de intensificação da captação precoce das gestantes na comunidade, a fim de garantir tempo hábil para a implementação das possíveis intervenções de saúde, aspecto que faz da captação precoce estratégia básica, essencial à garantia da qualidade da assistência pré-natal (MS, 2000a). Entretanto, merecem destaque os Municípios de Capistrano e Guaramiranga, nos quais a captação precoce das gestantes mostrou-se acima dos 70%. A PNDS-1996 revelou que 73% das gestantes da área urbana e 46% da área rural ingressaram no pré-natal no 1o trimestre da gestação.

Com relação à vacinação contra o tétano, a mesma tabela revela coberturas em torno de 90%, com os Municípios de Capistrano e Itapiúna na liderança, chegando, praticamente, a 100% de cobertura; o Município de Baturité, todavia, ainda apresenta uma cobertura de 74,5%, sugerindo que este fato possa, também, estar associado ao déficit no número de equipes de PSF, de visitas pelo agente de saúde e de oferta de consultas por profissional. O MS e a SES-CE enfatizam que é preciso garantir a meta de 100% de vacinação com o toxóide tetânico para mulheres em idade reprodutiva com o fito de garantir a erradicação do tétano neonatal. Os casos de tétano neonatal, no Ceará, foram reduzidos consideravelmente nos últimos quatro anos. Em 1996 e 1997 foram notificados 11 casos; em 1998, nove casos; em 1999, três casos e em 2000, apenas um caso (SES-CE, 2000b).

 

Assistência pré-natal conforme informações do SINASC

Esta categoria advém das informações apresentadas no SINASC, em que se avaliou o número de consultas realizadas, por gestantes, com base no número de nascidos vivos por município de residência. Analisando os dados do SINASC, apresentados na Tabela 3, a seguir, identifica-se que 108 (62,4%) das gestantes notificadas no sistema, no mês de junho de 2001, receberam de 4 a 6 consultas no decorrer da gestação, e 31 (18%) receberam 07 ou mais consultas, que é o número ideal de consultas para garantia de uma boa atenção durante o pré-natal; 28 (16%) haviam sido consultadas pelo menos 3 vezes. Somente 3 (2%) das gestantes não haviam realizado qualquer consulta. Esses dados comparados aos da PNDS-1996 (BENFAM, 1996), em que 13% das gestantes não haviam realizado qualquer consulta, e comparados aos dados do SIA e SIH/SUS, cuja média de consultas por gestante, em 1998, estava em torno de três, leva a reconhecer avanços significativos no número de consultas pré-natais/ gestante na microrregião de Baturité, estando cada vez menor o número de gestantes sem acompanhamento. Rehen (1999) constatou essa mesma realidade em nível nacional, ressaltando que no período de 1994 a 1998 as consultas de pré-natal quadruplicaram.

 

 

No entanto, de acordo com a pesquisa já referida entre as gestantes que realizaram pré-natal, 75% tiveram mais de quatro consultas e 50% realizaram até mais de seis consultas, vale dizer, o número mínimo adequado e esperado. Por conseguinte, é importante observar que os dados da PNDS-1996 (BENFAM, 1996) contrastam com a informação disponível no Sistema de Informação Ambulatorial e Sistema de Informação Hospitalar (SIA e SIH/SUS), que apresentou uma média de três consultas de pré-natal por parto, em 1998. É preciso considerar que as duas fontes de dados diferem quanto ao seu universo. Na PNDS trabalhou-se com a população geral, e a própria gestante informava o número de consultas; no segundo caso, o universo pesquisado foi composto por usuárias do SUS, tendo se trabalhado com o registro do procedimento declarado pelo município, isto é, a razão entre o número de consultas e o número de partos.

Mendes (1998), a respeito das informações do SIAB e SINASC, cita que a implementação de sistemas nacionais de informação tem sido crucial e que mudanças positivas já são percebidas por intermédio do acompanhamento desses indicadores básicos.

 

Dinâmica da oferta das consultas médicas e de enfermagem no pré-natal

A presente categoria destaca a rotina dos municípios com relação à oferta das consultas médicas e de enfermagem no pré-natal, identificadas e analisadas com base nos dados colhidos por revisão de prontuários e observação livre (informações registradas no diário de campo).

Em 7 dos 8 municípios da microrregião de Baturité, detectou-se maior freqüência no número de consultas de enfermagem, em detrimento do número de consultas médicas (consultas registradas nos prontuários). No Município de Aratuba, porém, essa realidade foi diferenciada, tendo em vista que a equipe avaliada funcionava sem enfermeira há quatro meses.

A Tabela 4, apresentada no final da descrição dessa categoria, traz uma síntese desses resultados, enfocando, também, detalhes específicos, por municípios, a respeito do modo de distribuição das consultas médicas e de enfermagem.

 

 

Reunindo elementos da observação livre, detectou-se que, em alguns municípios, a consulta pré-natal era oferecida pelo médico, pelo menos, duas vezes, ao longo da gestação; já em outros, a consulta médica era oferecida apenas mediante o encaminhamento de enfermagem por motivos principais de pressão alta, sangramento, déficit de peso da gestante, irregularidade na curva de crescimento uterino e dúvidas quanto a avaliação da idade gestacional. Nos Municípios de Mulungu e Guaramiranga não foram detectados registros de consulta médica, ficando no primeiro a casuística duvidosa e, no segundo, bem determinada. Sobre esta realidade levantamos duas condições: o médico não está realizando ou não está registrando os dados da consulta. Cumpre ressaltar que as duas situações revelam séria omissão. Contudo, queremos destacar que o sub-registro das consultas médicas no pré-natal já vem sendo detectado por outros autores, não parecendo ser uma revelação nova nos processos de avaliação dos serviços de pré-natal. Silveira et al. (2001) em estudo realizado nas 31 unidades de atenção primária à saúde da zona urbana de Pelotas, região sul do Brasil, identificou que o pré-natal foi adequado em somente 37% dos registros (Índice de Kessner).

Estas observações justificam a maior oferta de consultas de enfermagem. Em conformidade com o manual de normas técnicas para a assistência pré-natal do MS, no item descrição do nível de execução do profissional médico, está preconizada "a realização da consulta pré-natal, intercalada com a procedida pela enfermeira" (MS, 2000a:52). Corrobora-se aquilo que diz Ministério da Saúde nesse sentido, dado que contextualiza a ação integrada e complementar de médicos e enfermeiros, princípio do trabalho em equipe previsto no PSF. Para Souza (2000), o PSF valoriza o trabalho em equipe com enfoque multidisciplinar, requerendo uma prática pautada nos princípios de promoção da saúde, o que favorece uma visão e uma ação ampliada, com a incorporação de múltiplos saberes. Severino (1998), considera que, em razão da complexidade e da diversidade de demandas, na prática, os múltiplos enfoques concedidos pelas abordagens das várias ciências particulares são fundamentais à garantia da assistência de qualidade, consolidada no exercício da multi e da interdisciplinaridade. Entretanto, por oportuno, é relevante destacar que no mesmo manual de normas técnicas do MS (Assistência pré-natal) encontra-se a seguinte assertiva: "conforme dado da Lei do exercício profissional da enfermagem, Decreto no. 94.406/87, o pré-natal de baixo risco pode ser inteiramente acompanhado pela enfermeira" (MS, 2000a:18). Avalia-se o referido enunciado como impróprio, pois o mesmo não está contido na Lei do exercício profissional da enfermagem, tendo em vista que esta não assegura a realização da assistência pré-natal, exclusiva, por enfermeiros. Além disso, esse enunciado está contraditório à orientação de intercalação das consultas, defendida pelo próprio Ministério da Saúde.

Quanto à realização das consultas médicas acontecerem somente mediante os encaminhamentos advindos das consultas de enfermagem, pode parecer uma estratégia de otimização do trabalho médico. Entretanto, a abordagem da consulta de enfermagem, embasada no diagnóstico de enfermagem, é bem distinta da consulta médica, cujo diagnóstico médico, decorrente do julgamento de um conjunto de sinais e sintomas, que determinam uma patologia, é inerente ao profissional médico; conseqüentemente, a consulta de enfermagem não substitui a consulta médica e vice-versa, tendo que se considerar a importância e a necessidade de atuação do médico no acompanhamento das gestantes. Inclusive, enfermeiras e gestantes, instadas a falar sobre o assunto, foram insistentes na reivindicação da consulta médica no pré-natal, fato que se constata nas seguintes notas de campo: "Eu passei mal com pressão baixa, ela [a enfermeira] nem me encaminhou, porque não tinha médico. Quando ela não resolve manda a gente para o doutor, mas muitas vezes ele não vem. Eu acho que se tivesse um médico ali pra quando as enfermeiras não pudessem resolver era melhor" (gestante).

"Falta um profissional médico que tenha conhecimento e sensibilidade sobre pré-natal para compartilhar as dúvidas que ocorrem; era melhor se houvesse envolvimento da categoria médica, que o trabalho fosse realizado em equipe..." (enfermeira).

Uma possibilidade de ação integrada de enfermeiros e médicos, nessa situação específica, talvez fosse a determinação de protocolo bem definido para a atuação de ambos, de maneira a ser implementado em uma relação harmoniosa, conscienciosa e ética, sustentada no compromisso com a segurança do cliente e com a resolubilidade dos seus problemas.

 

Considerações finais

A população da microrregião de Baturité está praticamente coberta (100%) pelo PSF, o que tem contribuído para a melhoria do acesso das gestantes ao atendimento pré-natal, gerando boa cobertura de acompanhamento por agentes de saúde e consultas, bem como excelente cobertura por toxóide tetânico; a captação precoce das gestantes precisa continuar melhorando e o número de consultas por gestantes mostrou-se satisfatório em sua maioria. Ressalta-se, aqui, a grande importância da implantação e utilização dos dados do SIAB e SINASC com o intuito de avaliar, continuamente, a assistência pré-natal.

Contudo, ainda são evidenciados obstáculos importantes a uma boa qualidade do pré-natal, como: um percentual significativo de gravidez na adolescência, que deve ser trabalhado em uma etapa anterior, com a garantia de serviços de planejamento familiar; e a ausência de padronização na dinâmica das consultas médicas e de enfermagem, o que merece uma reflexão a respeito de a assistência ser oferecida por médicos e enfermeiros, intercalando consultas e adotando a prática de interconsulta, embasados por protocolo, em uma perspectiva do trabalho em equipe, tendo-se a compreensão de que consultas médicas e de enfermagem não se sobrepõem.

 

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Recebido em 31 de março de 2003
Versão final reapresentada em 22 de maio de 2003
Aprovado em 11 de agosto de 2003

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br