ARTIGO ARTICLE

 

O uso de pesquisas na formulação de políticas de saúde: obstáculos e estratégias

 

Research utilization in health policy-making: obstacles and strategies

 

 

Luis Eugenio Portela Fernandes de SouzaI; André-Pierre ContandriopoulosII

IDepartamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, Brasil
IIDépartement d'administration de santé, Université de Montréal, Montreal, Canadá

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Gerir um sistema de saúde requer, entre outras coisas, conhecimentos sobre a realidade sanitária e a administração. É recomendável, portanto, a utilização de conhecimentos científicos pelos gestores da saúde. Todavia, o processo de formulação de políticas e o fazer científico interpõem obstáculos ao uso de pesquisas. Certos empecilhos decorrem de visões reificadoras da tomada de decisão e de concepções objetivistas da ciência. Conceber as práticas político-sanitárias e científicas como jogos de linguagem pode ajudar a superar tais obstáculos. Nessa concepção, o uso de conhecimentos científicos se caracterizaria como um processo de intercâmbio de metáforas significantes entre gestores e cientistas. A adoção de sistemas pluralistas de pesquisa e a aproximação entre pesquisadores e formuladores de políticas, num contexto de socialização do conhecimento, seriam estratégias centrais para melhorar o intercâmbio. No fundamental, as estratégias seriam eficazes se conseguissem reaproximar a ciência do senso comum, transformando a ambos.

Política de Saúde; Conhecimento; Estratégias; Formulação de Políticas


ABSTRACT

Management of a health system requires knowledge of the health situation and administration, among other factors. The use of scientific knowledge by health policy-makers is thus recommendable. However, policy-making processes and scientific practices themselves often appear to pose obstacles to the actual utilization of research results. Many such obstacles result from reifying views of the decision-making process and objectivist conceptions of science. We propose a re-conceptualization of health policy-making and scientific practices based on the language game notion. The use of research results would thus become an exchange of significant metaphors between policy-makers and scientists. Adoption of pluralistic research systems and intensification of interfaces between researchers and policy-makers in a context of knowledge-sharing would be the main strategies to improve this exchange. Such strategies would be efficient to the extent that they succeeded in drawing science and common sense closer together, thereby transforming both.

Health Policy; Knowledge; Strategies; Policy Making


 

 

Os sistemas de saúde podem ser concebidos como um conjunto de elementos inter-relacionados que determinam o estado de saúde dos indivíduos e das populações. Cada um dos elementos, por sua vez, constitui um subsistema de determinantes do estado de saúde. Os serviços de saúde, por exemplo, são um desses subsistemas. O modelo proposto por Contandriopoulos 1 permite visualizar graficamente a dinâmica complexa dos sistemas de saúde (Figura 1). Não precisamos ir mais longe para perceber a complexidade da tarefa de geri-los ou de reformá-los.

No que toca ao uso de conhecimentos, a complexidade dos sistemas de saúde implica que a sua gestão exige algum domínio de disciplinas tão distintas quanto a biologia, a estatística, a epidemiologia, a economia, a clínica etc. Os formuladores de políticas de saúde não dominam o conjunto do conhecimento científico de cada uma dessas disciplinas. Entretanto, basta consultar a agenda deles para verificar que, na prática, utilizam conhecimentos de todas essas áreas. Exemplos: quando têm de decidir que tipo de tratamento para uma determinada doença os serviços de saúde devem oferecer, eles utilizam conhecimentos clínicos. Ou quando querem conhecer os custos de uma ação de saúde, utilizam conhecimentos de economia.

É importante notar que, grosso modo, essa utilização de conhecimentos não exige uma familiaridade especial com as disciplinas científicas. Eventualmente, os cientistas são consultados, mas, na rotina da gestão, a utilização de conhecimentos se concretiza com base naquilo que os gestores aprenderam valendo-se dos saberes que circulam pela sociedade em geral, ou, mais especificamente, entre os atores sociais relevantes para o processo de formulação de políticas de saúde.

Esse tipo de utilização, todavia, é visto como insuficiente. Há um movimento, institucionalizado em organismos internacionais, como a Aliança para Políticas de Saúde e Sistemas de Pesquisa da Organização Mundial da Saúde ou a Rede de Investigações em Sistemas e Serviços de Saúde do Cone Sul, e nacionais, como a Agency for Healtth Care Policy and Research do United States Department of Health and Human Services, que considera que a utilização de conhecimentos científicos para a gestão da saúde pode e deve ser intensificada.

Com efeito, é razoável supor que os formuladores de políticas de saúde poderiam se beneficiar, mais do que o fazem atualmente, dos conhecimentos produzidos pelos pesquisadores das áreas relacionadas à gestão da saúde. Se não se beneficiam tanto quanto poderiam é porque existem obstáculos à utilização de conhecimentos científicos que precisam ser reconhecidos e superados. Neste trabalho, pretendemos discutir a natureza dos obstáculos e propor pistas de como superá-los.

 

Conhecimentos científicos para a tomada de decisão política

A idéia de que utilizar conhecimentos científicos é uma prática recomendável para os tomadores de decisões repousa sobre o pressuposto de que, com isso, tomarão melhores decisões e atuarão de modo mais eficaz e eficiente. Analisemos com atenção este pressuposto que relaciona conhecimentos científicos, de um lado, e decisões e ações, de outro.

Em relação aos próprios conhecimentos científicos, destacam-se como importantes para a utilização as seguintes características:

• Segundo o padrão dominante de produção científica, os eventos a serem estudados devem ser bem definidos e uma relação de causa e efeito deve ser definida;

• A resolução de controvérsias é o modus operandi da ciência, sua presença é constante;

• Muitos estudos apresentam resultados inconclusivos;

• A aplicabilidade dos resultados de muitas pesquisas não é facilmente perceptível;

• As pesquisas são feitas por meio de projetos específicos e isolados. Às vezes, os resultados de duas pesquisas igualmente válidas são contraditórios entre si;

• Os problemas de políticas de saúde não interessam necessariamente aos pesquisadores.

Em relação à tomada de decisão, os seguintes aspectos têm um impacto sobre a utilização de conhecimentos:

• A tomada de decisão não é um processo exclusivamente racional;

• Toda decisão é necessariamente contextualizada;

• As relações de causa e efeito entre uma decisão particular e uma conseqüência específica raramente são claras;

• Os problemas de gestão dos sistemas de saúde são freqüentemente complexos, mal definidos ou de definição polêmica;

• A aprendizagem de novos conhecimentos é um processo complexo que não depende exclusivamente do acesso à informação;

• Às vezes, não levar em conta uma informação disponível é a opção politicamente mais adequada.

As poucas características relacionadas acima, tanto do processo de produção de conhecimentos, quanto do processo de tomada de decisão política, deixam ver que são muitos os obstáculos ao uso de conhecimentos científicos para a formulação de políticas. E mais grave: mostram que não se trata de obstáculos impostos de fora, mas são dificuldades postas pelos processos mesmos de produção científica e de tomada de decisão. A sua superação exige, portanto, mudanças nos modos de conceber e fazer ciência e política.

A ciência e a formulação de políticas como jogos de linguagem

Para começar, conceber a ciência e a formulação de políticas como jogos de linguagem nos parece uma via promissora para compreender e melhorar a utilização de conhecimentos científicos pelos policy-makers. Mas, o que são jogos de linguagem?

A expressão "jogos de linguagem" indica que toda e qualquer expressão lingüística tem uma série de significados diferentes, similares entre si. As similitudes, por sua vez, não são as mesmas entre todos os significados. De fato, não há uma característica única comum a todos os significados. Supor a existência de tal característica é a ilusão da concepção objetivista da linguagem, que vê na referência a uma realidade objetiva e exterior aos sujeitos a fonte última de significação de uma palavra ou de uma proposição.

Para Wittgenstein, 2 os significados dependem dos diversos usos possíveis da expressão. Ele, entretanto, não propõe um relativismo total onde toda visão não seria mais que uma maneira de ver diferente, mas igualmente válida. Ao contrário, o significado das palavras não é totalmente arbitrário. Mesmo se não existe uma regra universal governando seu uso, a linguagem é essencialmente uma prática humana 3, com formas e conteúdos definidos pelas "formas de vidas" biológicas e culturais próprias dos seres humanos.

Desde que a linguagem remete necessariamente à praxis humana, é mais preciso falar de "jogos de linguagem-formas de vida". A noção de formas de vida enfatiza a existência de um agir comum dos seres humanos, agir que é fundamento de tudo o que é humano 4.

No aforisma sete de suas Investigações Filosóficas, Wittgenstein 2 (p. 12), diz: "chamarei também de 'jogos de linguagem' o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada".

A multiplicidade heterogênea dos jogos de linguagem revela a diversidade mesma das práticas humanas (das formas de vida). As formas de vida não explicam os jogos de linguagem, mas os tornam compreensíveis 5.

Enfim, os jogos de linguagem são os modos humanos de andar a vida em toda a sua complexidade biopsicossocial. A metáfora dos jogos evidencia que, se dentro de um jogo particular há regras e objetivos, não existem regras e objetivos transcendentes a todos os jogos, ou seja, à vida como um todo. E chamá-los jogos de linguagem enfatiza que é somente por meio da linguagem que a questão do sentido da vida se pode formular.

Isso posto, o que significa conceber a prática científica e a formulação de políticas de saúde como jogos de linguagem? Significa simplesmente que pesquisadores e formuladores de políticas de saúde, por suas atividades profissionais, têm formas de vida particulares que fazem com que os usos e, em conseqüência, os significados das expressões lingüísticas sejam, na maioria das vezes, diferentes para uns e outros. Ao mesmo tempo, significa que têm em comum certas formas de vida específicas, como o fato de se situarem no mesmo contexto dos sistemas de saúde, por exemplo, e assim compartilham os significados de muitas expressões.

Dentro dessa visão, como se dá a utilização de conhecimentos científicos? Ou mais precisamente, como as questões e as respostas produzidas nos jogos de linguagem dos pesquisadores se traduzem em questões e respostas próprias aos jogos de linguagem dos formuladores de políticas?

Cremos que a tradução de questões e respostas científicas em conhecimentos úteis aos tomadores de decisão se faz por um processo de troca de metáforas.

Aqui, é necessário precisar o que entendemos por metáfora.

Seguindo Lakoff 6, podemos dizer que as metáforas são os meios cognitivos essenciais para compreender e agir sobre a realidade. Os seres humanos utilizam modelos cognitivos para dar sentido à realidade. Tais modelos são estruturas mentais que se formam a partir de nossa própria constituição orgânica. Nossa percepção das formas, a capacidade de movimento corporal, a capacidade de formar imagens mentais, nossa postura vertical etc. são características orgânicas que definem a base dos modelos cognitivos.

A estrutura básica dos modelos cognitivos é complementada pelos mecanismos de projeção metafórica do mundo físico para o mundo abstrato. A significação produzida pela criação de metáforas é indireta, pois depende da sua relação sistemática com a estrutura de base. Todavia, é a projeção metafórica que confere potência aos modelos cognitivos que, sem ela, se limitariam a permitir a compreensão do domínio físico imediato.

Visto que a ciência e os sistemas de saúde são criações do espírito humano e, portanto, construídos com base em modelos cognitivos, é possível admitir que as metáforas são os meios de compreendê-los. O conceito lakoffiano de metáfora mostra ainda que, se a ciência e os sistemas de saúde são criações humanas, não são criações arbitrárias. Como os modelos cognitivos são ancorados na própria conformação orgânica e nas experiências vividas, a ciência e os sistemas de saúde são, como todos os jogos de linguagem, mediados pela praxis humana.

Assim, conceber a utilização de conhecimentos científicos como uma troca de metáforas entre jogos de linguagem é interessante porque chama a atenção para os fatos que: (1) a formulação de políticas de saúde e a prática científica são, antes de tudo, jogos de linguagem-formas de vida particulares, ou seja, conjuntos inseparáveis de ações/discursos específicos; (2) os significados das expressões lingüísticas, inclusive das expressões científicas, são dados pelo uso e, portanto, não há significados fixos ou definitivos. Todavia, os significados não são definidos arbitrariamente, mas decorrem da nossa condição humana, biológica e cultural; (3) a utilização de conhecimentos científicos pelos formuladores de políticas depende da possibilidade de "tradução" da prática e do discurso científicos para a prática e o discurso da formulação de políticas; (4) se toda expressão lingüística é essencialmente uma metáfora, a tradução de uma prática/discurso para outra se baseia na troca de metáforas.

Em suma, a utilização do conhecimento científico pelos formuladores de políticas de saúde se realiza por um processo de apreensão cognitiva de conceitos científicos (metáforas), adotados para facilitar a compreensão e a ação sobre a realidade do sistema de saúde.

Os jogos de linguagem próprios aos pesquisadores são formados pelas atividades e pelos discursos que desenvolvem na sua vida cotidiana. Assim, as aulas, as publicações, a busca de financiamento para as pesquisas etc. constituem os jogos de linguagem ­ as formas de vida dos cientistas. Contudo, o conjunto de ações/ discursos essencial de um pesquisador é a produção de conhecimentos. É este conjunto de ações/discursos que marca o jogo científico como distinto dos outros jogos de linguagem humanos.

Da mesma maneira, os jogos de linguagem dos gestores de sistemas de saúde são formados pelas suas atividades e seus discursos rotineiros. São exemplos: as reuniões com assessores, as negociações políticas, as relações com os meios de comunicação etc. Contudo, o conjunto de ações/discursos distintivo de um formulador de políticas de saúde é a tomada de decisões sobre a condução do sistema de saúde.

Nesse sentido, a utilização de conhecimentos científicos pelo formulador de políticas é um conjunto de ação/discurso específico que depende, em parte, dos jogos de linguagem dos cientistas. Enquanto metáfora a ser apropriada, o conhecimento científico é utilizado, principalmente, para facilitar a compreensão pelo tomador de decisão da sua realidade.

Vários fatores inter-relacionados, internos e externos aos jogos de linguagem distintivos de cientistas e policy-makers, influem sobre a utilização do conhecimento científico.

Em relação ao jogo de linguagem próprio dos cientistas, são fatores internos a disponibilidade, a acessibilidade e a validade do conhecimento produzido. A disponibilidade depende do investimento realizado em pesquisa. A acessibilidade depende dos esforços de divulgação das pesquisas. A validade depende da abordagem epistemológica, da robustez metodológica e da riqueza dos dados.

O contexto institucional, os paradigmas científicos e as características individuais dos pesquisadores são fatores influentes externos. Os mecanismos de avanço na carreira, as divisões entre disciplinas, as relações dos centros de pesquisas com a indústria, a definição do conhecimento como somatório de informações ou como sentidos negociados socialmente, os valores e crenças, habilidades e estilo cognitivo do pesquisador etc. são todos fatores que influenciam, diretamente, a produção e, indiretamente, a utilização do conhecimento científico.

Em relação ao jogo de linguagem distintivo dos formuladores de políticas, a utilização de conhecimentos é influenciada, primeiramente, pelas características dos processos de tomada de decisão. O caráter rotineiro ou estratégico de uma decisão, os interesses em jogo e os participantes envolvidos são fatores internos que influenciam a utilização.

O contexto da organização e as características individuais do policy-maker são fatores externos que influenciam, diretamente, a utilização de conhecimentos. O grau de especialização da estrutura organizacional, a cultura organizacional, a intensidade das relações interorganizacionais e os valores, crenças, habilidades e estilo cognitivo do formulador de políticas são todos fatores influentes importantes.

Finalmente, não podemos esquecer que os jogos de linguagem ­ as formas de vida dos pesquisadores e dos formuladores de políticas se situam dentro dos contextos de um determinado sistema de saúde, de uma determinada sociedade e de uma determinada época. A Figura 2 permite visualizar o conjunto do modelo que acabamos de descrever.

Sugestões para melhorar a utilização das pesquisas

Com base no modelo descrito, podemos formular algumas sugestões para melhorar a utilização dos resultados das pesquisas, ou seja, para favorecer a apropriação cognitiva pelos formuladores de políticas de questões e respostas elaboradas pelos cientistas.

Uma recomendação inicial se impõe: cientistas e utilizadores do conhecimento científico devem estar conscientes de que a ciência não oferece respostas definitivas e aplicáveis universalmente. Embora possa parecer, para alguns, um truísmo, esta afirmação é importante, pois muitos defensores das evidence-based practices consideram que os resultados das pesquisas bem conduzidas são, sempre e imediatamente, passíveis de aplicação, como denunciam Hart 7 e Birch 8.

A maior contribuição que a ciência pode oferecer aos tomadores de decisão é a formulação de conceitos (metáforas) fecundos, capazes de aprofundar a compreensão de uma dada realidade. Como sugerem Astley & Zammuto 9, mais flexíveis os conceitos científicos, maior será a possibilidade de sua utilização. Mesmo se parece abstrata, esta contribuição é real. Morgan 10 mostra, por exemplo, o quanto os administradores podem se beneficiar das metáforas científicas para gerir as organizações.

Sugestões mais ou menos específicas, podem ser formuladas baseando-se nos fatores determinantes da utilização do conhecimento científico acima descritos.

Comecemos pelas características do próprio conhecimento. Quanto à disponibilidade, a sugestão mais importante para favorecer a utilização do conhecimento é envolver os gestores da saúde na definição das prioridades de pesquisa na área das políticas de saúde.

Quanto à acessibilidade, a melhor sugestão é buscar a divulgação mais ampla possível, não se restringindo à publicação em revistas especializadas. Para tanto, é fundamental que os conceitos científicos sejam expressos em termos claros, não herméticos.

Quanto à validade, a utilização será favorecida se as abordagens epistemológicas, metodológicas e empíricas forem apresentadas de forma explícita e clara.

Em relação às características do contexto científico, a primeira sugestão é desenvolver programas integrados de pesquisa. Isso evitaria a excessiva fragmentação da realidade a ser estudada, tornando os resultados mais realistas e mais úteis aos formuladores de políticas.

Uma segunda sugestão é assegurar a autonomia dos centros de pesquisa. A submissão da ciência a interesses comerciais ou partidários pode ser útil para certos grupos, mas para uma utilização que visa a democratizar e aprofundar a capacidade de decisão dos indivíduos e das sociedades, a independência da ciência é fundamental 11.

Distintos paradigmas científicos têm influências diferentes sobre a produção e a utilização de conhecimentos. A sugestão é desenvolver sistemas pluralistas de pesquisa que permitam a adoção de abordagens epistemológicas, teóricas e metodológicas discordantes, na linha proposta por Kerr 12, com base nos trabalhos de Imre Lakatos. A criatividade científica seria favorecida e metáforas mais fecundas poderiam ser elaboradas.

Em relação às características individuais dos pesquisadores, a sugestão é sensibilizá-los para a necessidade de elaborar conceitos científicos que possam ser utilizados criativamente por não-cientistas. Além disso, é preciso interessá-los e capacitá-los para as tarefas de divulgação cientifica.

No que concerne ao processo de tomada de decisão, a sugestão para melhorar a utilização de conhecimentos científicos é buscar fortalecer a racionalidade técnica. Mesmo reconhecendo o caráter político de toda decisão, é possível se buscar um acordo entre os atores envolvidos de privilegiar os argumentos técnicos.

Já ressaltamos que os processos de tomada de decisão nunca são perfeitamente racionais. A descrição clássica, feita por Lindblom 13, da tomada de decisão como um processo de comparações limitadas e sucessivas de alternativas parece muito mais realista. De todo modo, a racionalidade técnica pode ser fortalecida, se não com a perspectiva de análises completas e prévias à decisão, com a possibilidade de informar o processo de comparação de alternativas.

Em relação ao contexto dos serviços de saúde, a sugestão é buscar desenvolver organizações abertas à incorporação de novas idéias. Os teóricos da learning organization apresentam uma série de estratégias que podem ser adotadas para favorecer a inovação 14,15. Como a observação e a modelização do comportamento dos outros é um importante mecanismo de aprendizagem 16,17, o estímulo ao estabelecimento de relações interorganizacionais é outra boa estratégia para aumentar a capacidade de inovação de uma organização.

Quanto às características individuais dos formuladores de políticas, a sugestão é motivá-los a assumir uma postura positiva, sem ser ingênua, frente à ciência. Favorecer os contatos diretos com cientistas é uma boa maneira de motivar a adoção dessa postura positiva e realista. Sem falar que a aproximação entre uns e outros é, sem dúvida, uma forma eficaz de disseminação de conhecimentos científicos 18,19.

Enfim, há muita coisa que pode e deve ser feita para melhorar o uso dos conhecimentos científicos pelos formuladores de políticas. Entretanto, não são coisas simples. No limite, a concretização de várias das sugestões apresentadas depende de significativas mudanças institucionais, culturais e sociais. Devemos esperar que estas mudanças ocorram para só então trabalhar por uma melhor utilização das pesquisas? Ou podemos fazer algo desde já?

É claro que há muito o que se fazer desde logo. Patton 20, com sua Utilization-Focused Evaluation, propõe algumas pistas interessantes.

A estratégia central é estabelecer boas parcerias entre formuladores de políticas e pesquisadores. A parceria deve ser forjada desde as etapas iniciais da pesquisa para assegurar que sejam levantadas as questões de maior interesse para a formulação de políticas. Além disso, o estudo deve enfatizar as variáveis que o formulador de políticas a quem se destinam os resultados pode controlar, sem o que a pesquisa perderia em utilidade para o formulador envolvido. Por último, o pesquisador deve formular recomendações explícitas.

Infelizmente, como salienta Weiss 21, mesmo adotando todas essas táticas, a utilização das pesquisas pode não se concretizar. É preciso, então, pensar em outras alternativas. De modo geral, o importante é identificar o canal de comunicação capaz de chamar a atenção dos policy-makers para as pesquisas. São canais possíveis: a assessoria e as comissões de estudo instituídas pelo formulador de políticas, os grupos de interesse e as redes temáticas que atuam em áreas afeitas à formulação de pesquisas e os meios de comunicação de massa. O cientista ou o divulgador científico pode utilizar todos esses canais.

Fortalecer as interfaces entre pesquisadores e formuladores de políticas é, também para Hanney et al. 19, a estratégia mais importante para favorecer o uso de conhecimentos científicos. Eles ressaltam, contudo, a importância do papel do "receptor", ou melhor, da capacidade receptiva do formulador de políticas, que pode ser ampliada por meio de treinamentos e da intermediação de agentes com dupla inserção ­ acadêmica e política.

Em resumo, as sugestões de Patton 20, Weiss 21 e Hanney et al. 19 são todas interessantes. De fato, são táticas já bem conhecidas, mas que não perderam sua utilidade. A novidade está em vê-las como parte de uma estratégia mais global, que adota uma perspectiva sistêmica, segundo a qual a utilização de conhecimentos científicos depende do enriquecimento do senso comum que, por sua vez, depende da instauração de novas visões sobre a ciência e a formulação de políticas.

 

Comentários finais

Os sistemas de saúde são complexos e dinâmicos e sua gestão exige o uso de muitos e diferentes conhecimentos. Na prática, os formuladores de políticas de saúde usam vários tipos de conhecimentos, a maioria deles parte do acervo circulante entre os atores sociais envolvidos, mais ou menos diretamente, com o processo de condução do sistema de saúde.

Dado que os conhecimentos científicos são produzidos segundo regras bem definidas que visam a assegurar a sua qualidade, a sua utilização parece recomendável se os formuladores de políticas desejam tomar decisões mais bem informadas e, portanto, mais adequadas.

Entretanto, os obstáculos à utilização do conhecimento científico não são pequenos. E o mais grave: residem tanto no próprio modo atual de produção de conhecimento, quanto na forma predominante de condução dos sistemas de saúde. Particularmente, são obstáculos significativos as idéias de que a ciência produz resultados definitivos e universais, ou de que os processos de decisão que envolvem a formulação de políticas são essencialmente racionais.

Esses obstáculos podem ser removidos se concebermos a ciência e a formulação de políticas como jogos de linguagem que se comunicam por meio da troca de metáforas. A utilização de conhecimentos científicos ganha, então, outra dimensão. Não se trata mais de "aplicar" uma verdade "descoberta" a uma realidade objetiva e racional, mas de ampliar e aprofundar a compreensão de uma realidade construída socialmente (embora não arbitrariamente) a partir do emprego criativo de novas metáforas.

Nesse sentido, a mais efetiva utilização do conhecimento científico ocorre no momento em que este passa a fazer parte do senso comum. Ou, melhor dito, quando a ciência se torna um meio de aumentar a capacidade de decisão de cada indivíduo e de toda a sociedade sobre como conduzir a vida. Para tanto, a ciência precisa ir ao encontro dos outros saberes que circulam na sociedade, promovendo a "segunda ruptura epistemológica", no dizer de Santos 11.

As diversas sugestões aqui apresentadas para melhorar a utilização do conhecimento científico não têm outra motivação que a vontade de favorecer o encontro da ciência com o senso comum na área de políticas de saúde. A concretização de tal encontro exige a instauração de formas mais democráticas de produção de conhecimentos e de gestão dos sistemas de saúde, em particular, e de organização da vida em sociedade, em geral.

Apesar da magnitude da tarefa, sua realização é possível. Cientistas e lideranças políticas de saúde podem tomar algumas iniciativas desde logo. No que toca à ciência, a constituição de sistemas pluralistas de pesquisa representaria um grande passo para favorecer uma produção mais democrática de conhecimentos. No que toca à formulação de políticas, tornar as instituições de saúde mais abertas à participação dos trabalhadores e dos usuários significaria um avanço importante rumo à democratização da sociedade.

O aprofundamento da democracia é uma condição, mas é também uma conseqüência de uma melhor utilização do conhecimento científico. É por isso que são importantes as sugestões singelas de Patton 20, de Weiss 21 e de Hanney et al. 19. Nas condições atuais, as iniciativas de aproximação entre os pesquisadores e os formuladores de políticas e as iniciativas de difusão ampla dos conhecimentos científicos são, em si, estratégias de favorecimento do encontro da ciência com o senso comum.

 

Colaboradores

Os autores conceberam conjuntamente o texto, definindo sua estrutura e seu conteúdo. L. E. P .F. Souza escreveu a primeira versão, que foi revisada por A. P. Contandriopoulos. A versão apresentada para publicação foi aprovada por ambos.

 

Referências

1. Contandriopoulos AP. La régulation d'un système de soins sans murs. In: Claveranne JP, Lardy C, Pouvourville G, Contandriopoulos AP, Experton B, editors. La santé demain: vers un système de soins sans murs. Paris: Economica; 1999. p. 87-102.        

2. Wittgenstein L. Investigações filosóficas. 3a Ed. São Paulo: Abril Cultural; 1984.        

3. Kenny A. Wittgenstein. London: Allen Lane/The Penguin Press; 1973.        

4. Hottois G. La philosophie du langage de Ludwig Wittgenstein. Bruxelles: Éditions de l'Université de Bruxelles; 1976.        

5. Finch HL. Wittgenstein. Rockport: Elements Books; 1995.        

6. Lakoff G. Women, fire and dangerous things. What categories reveal about the mind. Chicago: University of Chicago Press; 1987.        

7. Hart JT. What evidence do we need for evidence based medicine? J Epidemiol Community Health 1997; 51:623-9.        

8. Birch S. As a matter of fact: evidence-based decision-making unplugged. Health Econ 1997; 6: 547-59.        

9. Astley WG, Zammuto RF. Organization science, managers, and languages games. Organization Science 1992; 4:443-60.        

10. Morgan G. Images of organization. 2nd Ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 1997.        

11. Santos BS. Introdução à uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal; 1989.        

12. Kerr DH. Barriers to integrity. Modern modes of knowledge utilization. Boulder: Westview Press; 1984.        

13. Lindblom C. The science of muddling through. Public Adm Rev 1959; 19:79-88.        

14. Argyris C. Knowledge for action: a guide to overcoming barriers to organizational change. San Francisco: Jossey-Bass; 1993.        

15. Senge P. A quinta disciplina. 13a Ed. São Paulo: Best Seller; 2002.        

16. Bandura A. Social learning theory. Englewoods Cliffs: Prentice Hall; 1977.        

17. Rogers E. Diffusion of innovations. 3rd Ed. New York: Free Press; 1983.        

18. Huberman M. Predicting conceptual effects in research utilization: looking with both eyes. Knowledge in society. The International Journal of Knowledge Transfer 1989; 3:6-24.        

19. Hanney SR, Gonzalez-Block MA, Buxton MJ, Kogan M. The utilisation of health research in policy-making: concepts, examples and methods os assessment. Health Res Policy Sys 2003; 1:2. http:// www.health-policy-system.com/content/1/1/2 (acessado em 05/Set/2003).        

20. Patton M. The evaluator's responsibility for utilization. Eval Pract 1988; 2:5-24.        

21. Weiss CH. Evaluation for decisions: is anybody there? Does anybody care? Eval Pract 1988; 1:5-19.        

 

 

Endereço para correspondência
Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza
Departamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana
Km 03, BR 116 Norte, Campus Universitário
Feira de Santana, BA 44031-460, Brasil
luiseuge@uefs.br

Recebido em 13/Mar/2003
Versão final reapresentada em 18/Set/2003
Aprovado em 02/Out/2003

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br