RESENHAS BOOK REVIENS
Elisabete Ferreira Mângia
Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. mangeli@usp.br
PSIQUIATRIA INSTITUCIONAL: DO HOSPÍCIO À REFORMA PSIQUIÁTRICA. Lougon M. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. 226 pp. (Coleção Loucura & Civilização).
ISBN: 85-75411-088-1
Nas últimas décadas, o problema representado pe-los transtornos mentais tem ocupado cada vez mais a agenda das políticas de saúde. Muitos países têm construído políticas de saúde mental comprometidas com o desenvolvimento de novas formas de cuidado, com a melhoria da qualidade de vida, garantia dos direitos de cidadania e combate às formas de violência, exclusão e estigma, de que são alvo as pessoas com transtornos mentais. Tais políticas têm se caracterizado pela redução significativa de leitos psiquiátricos e pela implantação de serviços baseados na comunidade.
No Brasil do final dos anos 1980, o processo de redemocratização, as pressões dos movimentos sociais associadas à luta pelos direitos humanos levaram à construção da "Reforma Psiquiátrica", que obteve sucesso na consolidação de uma nova Política de Saúde Mental que tem como principais características: a redução de leitos e o maior controle sobre os hospitais psiquiátricos; a criação de rede de serviços substitutivos; a aprovação de nova legislação em saúde mental a Lei nº. 10.216, de 6 de abril de 2001 e a criação de dispositivos de apoio aos processos de desinstitucionalização, além da introdução da saúde mental na pauta de prioridades da educação permanente para o Sistema Único de Saúde (SUS). Em nosso país, a expansão de leitos psiquiátricos atingiu seu ápice em 1985, com 123.355 leitos credenciados ao Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), que representavam 23,57% do total de leitos oferecidos no Brasil, ocupando o primeiro lugar em oferta por especialidade. Atualmente, estima-se que o número de leitos psiquiátricos, credenciados ao SUS, esteja em torno de 38.842, ao lado da expansão progressiva da cobertura assistencial em saúde mental composta por "uma rede com 1.123 CAPS distribuídos em todo o país, 479 Serviços Residenciais Terapêuticos, 860 ambulatórios de saúde mental, cerca de 60 Centros de Convivência e Cultura e 2.741 beneficiários do Programa de Volta para Casa" 1.
É nesse contexto que situamos o livro de Mauricio Lougon, ou mais precisamente no inicio desse processo, uma vez que o texto permite revisitar a história pioneira de transformação de uma instituição psiquiátrica no Brasil. O livro contempla duas partes distintas: a primeira, produzida nos anos 1980, relata a experiência de transformação da Colônia Juliano Moreira. O autor integrou a equipe desse projeto e pôde documentar e analisar o processo no período de 1982 a 1985. A segunda parte, elaborada duas décadas após a primeira, discute as conseqüências decorrentes do processo de desinstitucionalização com base em estudos sobre as experiências norte-americana e européia. Como apêndice são apresentadas 15 fotos do acervo pessoal do autor que ilustram aspectos do estudo empreendido.
Na primeira parte temos três capítulos. O primeiro caracteriza a Colônia Juliano Moreira que, na época, mantinha cerca de 2.600 internos, na maioria idosos, habitantes da instituição há mais de vinte anos. Somava-se a essa população 1.200 funcionários e 3 mil moradores, resultado de anos de ocupação de terras públicas. O texto descreve a instituição, suas funções e aspectos de sua constituição. Apresenta relatos sobre o cotidiano e histórias que nos fazem conhecer alguns de seus personagens, que foram capazes de sobreviver e criar saídas afirmativas. O mais célebre deles, Arthur Bispo do Rosário, estava com 68 anos, internado há 47. O cenário descrito é o da falência da psiquiatria asilar, do abandono à própria sorte da instituição e de seus habitantes. Território de ninguém onde imperava a violência e a coerção. O conceito de instituição total, cunhado por Goofman e utilizado pelo autor, parece frágil e insuficiente diante da exuberância das contradições relatadas.
No segundo capítulo encontramos a história da Colônia Juliano Moreira. Inaugurada em 1924, no contexto da crença sobre a incurabilidade das doenças mentais, visava, além de abrigar os "incuráveis" e afastá-los da vida urbana, a promover a auto-sustentação do asilo por meio do trabalho agrícola. Seu projeto foi liderado por Juliano Moreira que ocupou, de 1903 até 1930, o cargo de diretor da "Assistência Médico Legal aos Alienados". Concorreram para justificar o novo asilo a teoria da degenerescência e o higienismo que desenvolveram conceitos e estratégias de prevenção e atenção precoce, orientados por intenções eugênicas e de controle social, atestando o período de expansão do discurso psiquiátrico em direção à questão social.
O terceiro capítulo apresenta e analisa o projeto de transformação, que teve como contexto inicial as denúncias publicadas na grande imprensa contra a situação dos manicômios públicos, e o primeiro esboço de reorientação do modelo assistencial apresentado em 1982 pelo Governo Federal.
Ao sugerir que consideremos o material apresentado como fonte primária de dados, o autor nos propicia a atitude dialógica empreendida nesta resenha, pois o texto suscita, para a atualidade, inúmeras questões que talvez na época não tivessem como ser respondidas e nem mesmo percebidas. Nessa direção o capítulo carece da apresentação do projeto estudado em suas dimensões técnico-políticas, caracterização dos atores envolvidos e alguns de seus resultados. Talvez pelo tipo de imersão no campo no qual se encontrava o autor, o texto parte rapidamente para a discussão, ancorada em um conjunto amplo e heterogêneo de conceitos, num trabalho exploratório de quem buscava compreender uma realidade complexa e extremamente adversa.
Embora o autor considere que o projeto de mudança da Colônia Juliano Moreira sofreu influência central da experiência italiana, não recomenda sua utilização como referência para análise, pois argumenta que ela foi desenvolvida em um contexto político e cultural muito diferente do nosso. Ocorre que esse mesmo argumento poderia ter sido utilizado diante da opção em buscar os parâmetros para analíticos na experiência norte-americana dos anos 1955-1975, o que nos leva a refletir sobre a opção ideológica empreendida.
Na experiência estudada foram identificadas duas posturas conflitantes: a primeira, denominada de tecnocrática, consistiria na diretividade das medidas que desencadearam o projeto, configuradas inicialmente pela proibição do eletrochoque, desativação das celas fortes e proibição de novas internações. A segunda, denominada de comunitária, pleiteava que o processo de mudança fosse construído coletivamente por seus protagonistas. A leitura tardia da experiência nos permite questionar se não se trataram de atitudes complementares e necessárias ao tipo de processo em curso, e não necessariamente antagônicas, ambas compostas por dimensões técnicas e políticas.
O texto qualifica como "técnica " a decisão sobre a proibição de eletrochoque e desativação de celas fortes, mas ocorre que tais medidas poderiam ser consideradas em seu valor heurístico e referidas à defesa dos direitos dos usuários contra abusos e violências que caracterizavam o regime asilar. O próprio texto confirma esse argumento ao descrever a utilização do eletrochoque em condições inadequadas e com finalidade punitiva.
São identificados também os confrontos entre duas culturas existentes, a dos funcionários e a dos profissionais universitários. Nessa direção o autor aponta aspectos da crise institucional que resultou na ruptura, em 1984, entre a direção e o grupo técnico que promovia o processo. Embora não explicitado no texto, esse momento parece ter marcado a interrupção da experiência analisada. Ao discutir a crise, o autor atribui responsabilidade ao conflito entre dois modelos de gestão, o "oficial" e o de "auto-gestão institucional", mas não explicita os conteúdos que estiveram em disputa. Talvez falte a conexão entre a luta política travada na Colônia Juliano Moreira e o cenário nacional de início da reforma psiquiátrica, corrida no contexto do movimento da reforma sanitária, vitoriosa ao colocar a saúde como direito constitucional e garantir as bases para a construção da Política Pública de Saúde. Nessa perspectiva talvez se pudesse compreender algumas contradições e o acirramento da disputa entre as diferentes forças políticas presentes no processo da Colônia Juliano Moreira.
O texto é finalizado com a apresentação dos "princípios, objetivos e valores" que orientaram o projeto. Seria interessante que tais conteúdos tivessem sido apresentados no início do capítulo, pois criaria nova possibilidade para a compreensão do processo. São elementos analisados: a visão crítica sobre a Colônia Juliano Moreira e a intenção de democratizar sua gestão, promover o resgate da cidadania, a inclusão social e a ressocialização dos internos e as novas formas de atenção e escuta. O autor questiona a viabilidade do projeto e reconhece que a inclusão social esbarrava na impossibilidade das famílias em receberem seus membros improdutivos, ou mesmo na ausência de vínculos familiares ativos, daí sua preocupação com a necessidade de criação de dispositivos capazes de impedir o abandono dos pacientes.
Finalmente o autor considera que muitas das propostas tendiam a simplificar a complexidade e dimensões do problema e o texto é finalizado após algumas considerações sobre o trabalho técnico e as possíveis alianças com os pacientes em um cenário tão hostil.
Dada as características do processo de elaboração do texto, poderíamos considerar que ele mostra o resultado de reflexões provisórias sobre o momento vivido e as incertezas decorrentes de um processo que estava apenas sendo iniciado no país a reforma psiquiátrica não havia como antever seus resultados futuros, que foram bem mais promissores do que pôde imaginar o autor naquele período.
A segunda parte é composta por quatro capítulos relativamente independentes entre si: Biomedicina e Psiquiatria, Reforma Psiquiátrica, Análise da Desinstitucionalização Psiquiátrica Norte-Americana e Desinstitucionalização no Brasil e em Outros Países. O autor discorre sobre cada uma dessas temáticas com base em referências teóricas heterogêneas que vão, em sua maior parte, até o final dos anos 1990 e reúne argumentos para situar e problematizar alguns impasses e "conseqüências geradas pelo processo de desinstitucionalização no campo da saúde mental".
Duas atitudes analíticas são discutidas, a "tradicional ou conservadora", e a "revisionista". A grande polêmica gerada nesse campo de enfrentamento diz respeito às acusações de que os processos de desinstitucionalização tiveram como efeito negativo o abandono social de grande número de pacientes. Como sabemos, esses argumentos, também utilizados pelos críticos da reforma psiquiátrica em nosso país, foram característicos da reforma norte-americana, especialmente pela sua dimensão privativista, e são insuficientes quando analisamos políticas de saúde mental propostas, gerenciadas e financiadas pelo setor público. Um segundo argumento crítico e também polêmico é o de que não seria possível tratar um certo grupo de pacientes com transtorno mental em ambientes comunitários, o que demandaria a necessidade de instituições hospitalares.
Embora o autor conclua ao final do sexto capítulo que a reforma norte-americana resultou em um processo privativista, com perda de controle estatal e prejuízo para os usuários, a excessiva repetição dos argumentos apontados cria um efeito indesejável no texto e talvez, mesmo sem esta intenção, reforce o ponto de vista conservador e contra reformista ainda muito presente em nossa cultura técnica e política. Além disso, para o leitor recém-iniciado neste assunto pode ser difícil perceber que os textos da segunda parte também não foram produzidos recentemente e tomam por referência artigos de uma a duas décadas passadas e que, portanto, mereceriam alguma atualização em se tratando de um lançamento recente, especialmente quando aborda a temática da reforma brasileira, em que o risco de incompreensão tende a ser maior.
Finalmente, observamos que nas duas partes o texto segue um estilo ensaístico e exploratório que, se por um lado deu ao autor grande liberdade discursiva e a possibilidade de percorrer muitas temáticas e longas cronologias, por outro criou lacunas teóricas importantes e a conseqüente perda de profundidade e rigor nos debates encaminhados. O risco do anacronismo pode ser percebido em inúmeros momentos, especialmente nos vínculos que se tenta estabelecer com os autores utilizados e o percurso nacional da reforma psiquiátrica. A leitura pode interessar mais aos estudiosos que buscam compreender certas dimensões históricas do problema pois, no geral, o texto é datado pelo tipo de questões que levanta e pelo encaminhamento discursivo que adota, mas não se coloca como uma leitura recomendável para aqueles que pretendam conhecer as questões atuais desse campo ou ter uma visão mais articulada e contextualizada sobre a constituição desse processo.
1. Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, Ministério da Saúde. Apresentação. Saúde Mental em Dados 2007; (4):4-5. http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/periodicos_ smDados.html.