ARTIGO ARTICLE
Prevalência de deficiência auditiva referida e causas atribuídas: um estudo de base populacional
Prevalence of self-reported hearing loss and attributed causes: a population-based study
Mariana Sodário CruzI; Luiz Roberto de OliveiraI; Luana CarandinaI; Maria Cristina Pereira LimaI; Chester Luis Galvão CésarII; Marilisa Berti de Azevedo BarrosIII; Maria Cecilia Goi Porto AlvesIV; Moises GoldbaumV
IFaculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, Brasil
IIFaculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
IIIFaculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil
IVInstituto de Saúde, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, São Paulo, Brasil
VFaculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
RESUMO
Objetivou-se verificar a prevalência de deficiência auditiva referida pela população urbana de quatro localidades do Estado de São Paulo, Brasil, e estudar as causas atribuídas e variáveis sócio-demográficas. Foi realizado um estudo transversal de base populacional com dados referentes à população com 12 anos ou mais residente nas quatro localidades, em 2001 e 2002. Participaram 5.250 sujeitos selecionados por amostragem probabilística, estratificada e selecionada por conglomerados, em dois estágios. A análise dos dados foi exploratória, incluindo análise bivariada e regressão logística múltipla. A prevalência de deficiência auditiva foi 5,21%, mais acentuada nas faixas etárias acima de 59 anos (18,7%), que referiram doenças nos 15 dias anteriores à entrevista (8,4%), com transtorno mental comum (8,85%) e que fizeram uso de medicamentos nos últimos 3 dias (8,45%). O estudo dos fatores que se associam à deficiência auditiva direcionam intervenções de saúde para que atendam as reais necessidades da população, principalmente na atenção primária. Há necessidade de mais estudos populacionais com enfoque na audição, visto que esta é uma área escassa de publicações no Brasil.
Perda Auditiva; Inquéritos de Morbidade; População Urbana
ABSTRACT
The objective was to determine the prevalence of self-reported hearing loss in four urban areas in São Paulo State, Brazil, and to describe the causes and socio-demographic variables. This was a population-based cross-sectional study with data on individuals 12 years or older living in the areas in 2001 and 2002. Participation included 5,250 subjects selected by two-stage probability sampling, stratified in clusters. Data analysis was exploratory, including bivariate and multiple logistic regression analysis. Prevalence of hearing loss was 5.21%, and higher levels were associated with: age > 59 years (18.7%), illness in the 15 days prior to the interview (8.4%), common mental disorders (8.8%), and use of medication in the previous 3 days (8.4%). The study of factors associated with hearing loss can lead to health interventions for addressing that the population's real needs, mostly in primary care. More population-based studies on hearing are needed in Brazil, since there are few publications on the subject.
Hearing Loss; Morbidity Surveys; Urban Population
Introdução
Dentre as deficiências humanas, a auditiva pode ser considerada uma das mais devastadoras em relação ao convívio social do sujeito, visto que interfere diretamente no desenvolvimento da linguagem, fala, comunicação interpessoal e aprendizagem, podendo prejudicar o desenvolvimento escolar e, conseqüentemente, profissional da população afetada. Em adultos, o impacto deste tipo de deficiência pode associar-se ao declínio cognitivo, depressão e redução do estado funcional 1 principalmente para sujeitos que apresentam a perda e, no entanto, não foram tratados ou sequer avaliados 2.
A incidência de deficiência auditiva congênita no mundo é estimada em 1 para cada mil recém nascidos 3. No Brasil, pelo censo demográfico realizado em 2000, constatou-se que existiriam aproximadamente 24,5 milhões de pessoas com deficiência, ou seja, 14,5% da população total da época. Destes, 3,4% declararam incapacidade, com alguma ou grande dificuldade de ouvir
(IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico de 2000. http://www.ibge.org.br, acessado em 25/Mai/2005). O Estado de São Paulo apresentou a menor prevalência de deficientes (11,35%) e o Estado da Paraíba, a maior (18,75%).
O levantamento dos deficientes auditivos de uma comunidade, sua localização e o estudo de suas condições sociais são de extrema importância para a adequação das medidas de saúde pública, nos vários níveis de prevenção. Para esta finalidade, o uso de questionários tem se mostrado um eficiente instrumento, no qual o uso de medidas quantitativas (por exemplo, audiometria) não é viável 4. Os inquéritos domiciliares têm sido utilizados em países industrializados como fonte de informação importante para conhecimento da situação de saúde da população e do acesso aos serviços de saúde 5.
No Brasil, estudos populacionais sobre audição ilustram, mais freqüentemente, achados sobre os idosos 6,7. Este fato pode ser explicado devido à presbiacusia configurar-se como uma das causas mais freqüentes de deficiência auditiva adquirida 8, juntamente com as causas relacionadas ao trabalho 9, morbidades associadas (otite média 10, diabetes 11, hipertensão 12, reumatismo 13, depressão 14) e uso de medicamentos 15.
Entretanto, essa situação começa a mudar. Em 2003, foi realizado um estudo pioneiro sobre audição no sul do Brasil, com 2.427 sujeitos acima de quatro anos de idade 16. Tal trabalho consistiu na aplicação de um inquérito domiciliar e avaliações audiométricas para a averiguação da saúde auditiva da população de Canoas, Rio Grande do Sul, sendo encontrada prevalência de 6,8% de deficiência auditiva, por meio do instrumento WHO Ear and Hearing Disorders Survey Protocol 17, da Organização Mundial da Saúde. Este estudo pode ser considerado o primeiro deste porte publicado com dados brasileiros.
Devido à escassez de dados a respeito da saúde auditiva da população brasileira, o objetivo deste trabalho foi estimar a prevalência de deficiência auditiva referida em quatro regiões específicas do Estado de São Paulo e estudar as causas atribuídas e os fatores de risco associados a esta deficiência, a fim de direcionar políticas públicas com enfoque na saúde auditiva nas populações estudadas.
Metodologia
O presente estudo foi realizado de forma transversal, com base populacional e utilizou dados referentes à população não institucionalizada, residente em área urbana, em domicílios particulares ou coletivos de seis áreas do Estado de São Paulo no período de 2001 e 2002. Os dados foram obtidos a partir de um questionário multidimensional, pertencente ao estudo denominado Saúde e Condição de Vida em São Paulo: Inquérito Multicêntrico de Saúde no Estado de São Paulo - ISA-SP 18.
Quanto ao delineamento amostral deste inquérito, foram investigadas as seguintes áreas: região sudoeste da grande São Paulo (municípios de Itapecerica da Serra, Embu e Taboão da Serra), Administração Regional do Butantã no Município de São Paulo (distritos de Jaguaré, Rio Pequeno, Raposo Tavares, Vila Sônia e Morumbi); municípios de Campinas e de Botucatu. Essas áreas constituíram estratos independentes, nos quais os setores censitários foram classificados em três estratos, segundo o nível de escolaridade dos chefes de família, tendo como referência o nível universitário - setores com até 5% de chefes de família com nível universitário, com 5% a 25% e com 25% ou mais. A pesquisa, portanto, teve como base uma amostra probabilística da população, estratificada por conglomerados e obtida em dois estágios. No primeiro, os setores censitários foram sorteados de forma sistemática e com probabilidade proporcional ao tamanho, expresso pelo número de domicílios existentes no setor, de acordo com a contagem populacional de 1996 do IBGE. No segundo estágio, uma amostra sistemática simples de domicílios foi sorteada em cada setor censitário.
Em cada área, para cálculo do tamanho da amostra, foram considerados oito domínios de estudo formados pelos subgrupos populacionais: menores de um ano, de 1-11 anos de idade, mulheres de 12-19; 20-59 e 60 ou mais, e homens, nas mesmas faixas etárias. Para cada um desses domínios, foi planejada a realização de 200 entrevistas.
O levantamento da prevalência da deficiência auditiva referida foi realizado por meio da questão "o sr(a) tem algum desses problemas?", sendo oferecidas respostas em conjunto fechado, as quais abrangiam outras deficiências além da auditiva. São elas: dificuldade de enxergar, mesmo com óculos/lentes, cegueira de um olho, cegueira de dois olhos, dificuldade de ouvir, surdez de um ouvido, surdez de dois ouvidos, paralisia total ou parcial de membros, perda de membros ou parte deles. As causas atribuídas foram pesquisadas com a questão: "o que provocou esse problema?", sendo oferecidas respostas também em conjunto fechado e uma opção de resposta livre: doença, violência/agressão, acidente de trânsito, de trabalho ou doméstico, idade avançada e outros.
Não foi feito o descarte de entrevistas quando a pessoa em estudo referia mais de uma deficiência, pois as perguntas específicas eram realizadas separadamente para cada uma das deficiências relatadas. Selecionados os sujeitos, esses foram analisados segundo variáveis sócio-demográficas e de morbidade, a saber: variáveis sócio-demográficas - município de residência, sexo, faixa etária, cor/raça, escolaridade do chefe e renda familiar per capita.
Em relação à faixa etária, foram desconsiderados os relatos para idades inferiores a 12 anos devido à necessidade de um instrumento específico para o levantamento da audição nestas populações, que aborde, além da audição em si, dados sobre o desenvolvimento de fala e linguagem, comportamento infantil e presença de otites médias, pois uma pergunta somente não apresentaria sensibilidade e especificidade suficiente para tal levantamento nestas populações 19.
Para o cálculo da renda familiar per capita foi considerado o salário mínimo vigente à época da pesquisa que apresentou as seguintes variações: março a abril de 2001 = R$ 151,00 (ao redor de US$ 69,00); maio de 2001 a março de 2002 = R$ 180,00 (ao redor de US$ 72,00) e abril a setembro de 2002 = R$ 200,00 (ao redor de US$ 65,00).
As variáveis de morbidade consideradas para o presente estudo foram: morbidade auto-referida nos últimos 15 dias, diabetes, hipertensão, doenças reumáticas, depressão, acidente vascular cerebral, uso de medicamentos nos últimos três dias e presença de transtorno mental comum.
Entende-se por transtornos mentais comuns, ou Distúrbios psiquiátricos menores, a presença de sintomas como tristeza, ansiedade, fadiga, diminuição da concentração, preocupação somática, irritabilidade e insônia 20. Para o presente trabalho, foi utilizado o instrumento SRQ-20 (Self-Report Questionnaire) 21. Foi considerado indicativa de TMC, a presença de oito ou mais respostas positivas no SQR-20 para ambos os sexos, escore utilizado em estudos anteriores 22.
A análise dos dados foi conduzida utilizando-se o programa Stata 10.0 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos), módulo survey que permite incorporar aspectos referentes ao delineamento complexo de amostragem: estratificação não proporcional, sorteio de conglomerados e ponderação. A variável "peso", criada para ponderar os dados, foi definida pelo inverso da fração amostral e ajustada para que a amostra tivesse a mesma distribuição de idade e sexo do Censo Demográfico 2000. A sumarização dos dados foi feita a partir de análise exploratória, utilizando-se porcentagens para as variáveis categóricas e média para a variável contínua.
Realizou-se o teste bivariado de associação pelo qui-quadrado (χ2) e, a seguir, a análise múltipla através da Regressão de Poisson. Foram selecionadas para o modelo todas as variáveis que mostraram associação com a variável dependente (deficiência auditiva) em nível de significância de 20% (p < 0,20). Utilizou-se o procedimento retrógrado (backward) para a elaboração do modelo múltiplo, e a variável permaneceu no modelo se p < 0,05. A força da associação entre as variáveis independentes e a dependente foi expressa em valores estimados, brutos e ajustados, de razões de prevalência com intervalos de 95% de confiança (IC95%).
O presente estudo foi realizado segundo os preceitos éticos e Normas do Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, ao qual foi submetido e por ele aprovado.
Resultados
Foram entrevistadas 5.250 pessoas, sendo encontrados 480 relatos de deficiência auditiva, a saber: 387 (80,6%) de dificuldade auditiva, 76 (15,8%) de surdez unilateral e 17 (3,5%) de surdez bilateral. A média de idade da população acima de 12 anos que referiu deficiência auditiva foi de 52,35 anos (IC95%: 49,31-55,39).
As causas atribuídas à deficiência auditiva foram: doenças (19,82%), idade avançada (12,71%), acidente de trabalho (9,37%), causas congênitas (5,6%), acidente doméstico (1,3%), acidente de trânsito (0,5%), violência/agressão (0,3%), outras causas (34,6%) e não sabiam ou não responderam (15,8%).
A análise das causas atribuídas pelos sujeitos que referem deficiência auditiva, realizada por faixa etária, ilustra perfis distintos dentro de cada grupo. No intervalo etário formado por adolescentes (12-19 anos) o item "congênito" foi o mais freqüente (26%). Sujeitos na faixa etária de 20-59 anos relataram como causa mais prevalente para a deficiência auditiva doenças (21%) e o trabalho (10,1%). No grupo de idade entre 60 e 75 anos, a presbiacusia configurou-se como a causa mais freqüente para o transtorno auditivo (17,7%), seguido pelo item "doenças" (17,5%), achado também encontrado no grupo acima de 75 anos, entretanto com taxas mais elevadas (41,4% e 27,9%, respectivamente).
Os fatores sócio-demográficos que estabeleceram associação com a prevalência de deficiência auditiva referida foram a faixa etária e a cor/raça, no nível de significância de 5%, não sendo estabelecida tal associação para a área de residência, sexo, renda familiar per capita e escolaridade do chefe da família, conforme Tabela 1.
A Tabela 2 mostra os indicadores de morbidade utilizados neste estudo. Os grupos com presença de morbidade nos 15 dias anteriores à entrevista, diabetes, hipertensão, doenças reumáticas, depressão, acidente vascular cerebral, transtorno mental comum e uso de medicamentos nos três dias anteriores à entrevista apresentaram maior proporção de deficientes auditivos, sendo essas associações estatisticamente significativas (p < 0,05).
Na análise multivariada, por meio da regressão de Poisson, obteve-se um modelo final com as variáveis faixa etária, morbidade auto-referida nos últimos 15 dias, presença de transtorno mental comum e utilização de medicamentos (Tabela 3). Embora o sexo masculino não tenha permanecido no modelo final, vale ressaltar que o valor de p encontrado foi marginal (p = 0,06).
Dentre as morbidades relatadas no período recordatório de 15 dias, as mais importantes foram as relacionadas às doenças do aparelho respiratório, com valor de 42,3% (considerando a primeira morbidade relatada).
Discussão
Os estudos de prevalência de deficiências auditivas no Brasil ainda são escassos e, quando realizados, seguem metodologias distintas, fato que dificulta a comparação entre os achados encontrados no presente trabalho com fontes anteriores. Entretanto, podemos observar valores de prevalência próximos entre o atual estudo (5,2%) e o de Canoas, Rio Grande do Sul 16 (6,8%), similaridade analisada com ressalvas tendo em vista as diferenças metodológicas entre os estudos, tais como faixa etária da amostra, área de estudo e protocolos utilizados.
Os valores relatados no presente estudo também se aproximam dos achados de Ribeiro & Pinheiro 23, que encontraram prevalência de 5% em uma comunidade de Juazeiro do Norte (Ceará), na faixa etária de 13 a 80 anos. Entretanto, vale alertar para as diferentes condições sociais e de vida existentes entre municípios do Estado de São Paulo e do Ceará e, mesmo com estas discrepâncias, os valores do presente estudo ainda são levemente maiores. Novamente, questões metodológicas devem ser consideradas.
A análise das causas atribuídas pelos sujeitos que referem deficiência auditiva, realizada por faixa etária, ilustra perfis distintos dentro de cada grupo. No intervalo etário formado por adolescentes (12-19 anos) o item "congênito" foi o mais freqüente, sendo mencionada também a causa "violência", que se encontra dentro do item "outros". Embora os valores sejam pequenos, este achado é de extremo interesse, visto ser esta etiologia pouco explorada por estudos referentes à audição.
Sujeitos na faixa etária de 20-59 anos relataram como causa mais prevalente para a deficiência auditiva o trabalho e doenças. Fatores relacionados ao trabalho são apontados pela literatura como uma das causas mais comuns para o transtorno auditivo 9, principalmente as relacionadas com a exposição prolongada ao ruído. A deficiência auditiva é uma doença ocupacional de alta prevalência nos países industrializados, destacando-se como um dos agravos à saúde do trabalhador mais prevalentes nas indústrias brasileiras 24.
No grupo de idade mais avançada (60 anos ou mais), a presbiacusia configurou-se como a causa mais freqüente para o transtorno auditivo, seguida pelo item "doenças", achado concordante com a literatura pesquisada 8,25. Entretanto, vale ressaltar a diferença proporcional destes itens em cada grupo etário. Acima de 75 anos, a presbiacusia e as doenças referidas somam 90% das causas atribuídas de deficiência auditiva, enquanto que, na faixa etária de 60 a 75 anos, estas também são as causas mais freqüentes, porém atingem apenas 35%.
As taxas de deficiência auditiva na amostra estudada mostraram-se crescentes com o passar da idade, sendo significativo o salto observado ao se atingir a idade de 60 anos e mais, representando uma elevação de quatro e de nove vezes, respectivamente, em relação às taxas dos segmento etário de 12-19 anos. A partir da análise de um inquérito realizado nos Estados Unidos, verificou-se que mais da metade das pessoas com deficiência auditiva tinham idades acima de 65 anos e apenas 4% estavam na faixa etária abaixo de 18 anos 26, dados que apontam a relação positiva entre idade e deficiência auditiva.
Estes achados nos remetem à consideração do crescimento da população idosa no Brasil. Estima-se que a proporção de indivíduos na faixa etária de 60 anos ou mais que era de 5% em 1960, elevando-se para 8,6% em 2000, passará para 14% em 2025, atingindo uma proporção verificada em países desenvolvidos 27. Pode-se prever, portanto, uma expressiva elevação do número de pessoas com deficiência auditiva no Brasil nas duas próximas décadas, a se considerar a evolução crescente do estrato populacional de idosos e as elevadas taxas de prevalências deste tipo de deficiência que se verificam nesta faixa etária, dado encontrado no presente estudo e confirmado em pesquisas anteriores 8,9.
Estima-se que 15,8% da população estudada não saberiam apontar uma causa para a deficiência auditiva. A definição etiológica da deficiência auditiva é um processo trabalhoso, visto que este agravo pode ter causa multifatorial ou se desenvolver ao longo de muitos anos (como por exemplo, a presbiacusia e a perda auditiva induzida pelo ruído ocupacional) e, no momento em que o sujeito percebe o agravo auditivo, este, por sua vez, pode ter se instalado num passado distante. Desse modo, em alguns casos, não seria possível estabelecer causas precisas para este tipo de deficiência, levando a classificá-las como idiopáticas.
Dentre os fatores de morbidade estudados, apesar da literatura apontar relações entre deficiência auditiva e alterações cardiovasculares (tais como acidente vascular cerebral) 12, doenças reumáticas 13, depressão 14 e diabetes 11, o presente estudo não encontrou tal associação quando analisada pelo modelo multivariado.
As taxas de prevalência de deficiência auditiva referida segundo a escolaridade do chefe e a renda per capita familiar não apresentaram associação estatística, apesar de a literatura ressaltar tais achados 25. Entretanto, se considerarmos a população com 60 anos ou mais, verificamos que os achados concordam com os estudos da National Academy On An Aging Society 28. O referido trabalho indica que a variável "escolaridade" perde a significância estatística como fator associado à prevalência de deficiência auditiva em sujeitos idosos, sendo que a taxa de prevalência deste agravo se eleva independente do nível educacional abordado, nesta faixa etária específica. Esta afirmação se torna pertinente devido à elevada média de idade encontrada na população estudada.
Quanto à morbidade auto-referida nos últimos 15 dias, pode-se levantar duas hipóteses: esta pode ter estabelecido associação com a deficiência auditiva pela elevada proporção de doenças do aparelho respiratório encontrada no presente estudo, visto que afecções de vias aéreas superiores (gripes e sinusites) podem desencadear processos de otite média 10, causando perda de limiar auditivo (perda auditiva condutiva) e presença de queixas otológicas. Num segundo raciocínio, indivíduos com deficiência auditiva referida apresentariam maior número de morbidades associadas devido a uma pior qualidade de vida e este fato poderia levar, também, ao aumento no consumo de medicamentos.
Em relação ao uso de medicamentos, também há a possibilidade de estes serem a causa de algumas deficiência auditiva, entretanto, tal conclusão não pode ser realizada pelo presente estudo, visto que não foram realizadas análises dos tipos consumidos e dos conseqüentes prejuízos que estes poderiam causar à audição dos entrevistados. Por outro lado, a literatura relata que vários medicamentos poderiam causar distúrbios auditivos, dentre os quais se destacariam os antibióticos, em especial os aminoglicosídeos 29, alguns agentes tópicos, tais como salicilatos e antiinflamatórios não esteroidais, diuréticos de alça e agentes quimioterápicos 30, sendo indicado o monitoramento auditivo em pacientes usuários destas drogas 14. A automedicação também pode contribuir para o aumento de transtornos auditivos relacionados ao consumo de medicamentos, entretanto, para discutir tal aspecto com maior profundidade, estudos mais direcionados seriam necessários.
A deficiência auditiva pode estabelecer associações com o transtorno mental comum vistos o prejuízo nas relações interpessoais e a redução da capacidade de escutar sons agradáveis que tal deficiência pode proporcionar. Estes fatores podem desencadear isolamento social, dificuldades de comunicação e, em alguns casos, a estigmatização, podendo afetar a saúde mental e a qualidade de vida do indivíduo acometido 31. A capacidade de se comunicar é uma das privações sensoriais que mais frusta o sujeito, principalmente os idosos com deficiência auditiva pós-lingual. Em alguns casos, eles podem passar a "culpar" os demais interlocutores, acusando de falar baixo demais, articularem mal ou de exclui-los de conversas. Geralmente canalizam sua insatisfação aos parentes ou cuidadores mais próximos, gerando situações de conflito e extrema ansiedade.
Um estudo realizado na Itália 1 concluiu que a deficiência auditiva foi altamente prevalente em uma população de idosos e se associou ao declínio cognitivo, depressão e redução do estado funcional. Para minimizar tais transtornos, foi sugerido o uso do aparelho de amplificação sonora individual (AASI), a fim de proteger esses idosos contra o declínio cognitivo e o sofrimento psíquico, para a melhoria da qualidade de vida. O declínio cognitivo, apesar de não ter sido abordado pelo presente estudo, mostra-se como um campo de pesquisa promissor para audiologistas na área do envelhecimento e é um aspecto imprescindível em estudos com idosos. A não inclusão deste dado pode ser considerada uma deficiência do presente estudo.
Em uma linha de raciocínio inversa, o transtorno mental comum poderia contribuir para o aumento da prevalência de relatos de deficiência auditiva, tendo em vista a possibilidade de ocorrência da chamada "surdez de conversão", em que transtornos mentais, associados a altos níveis de estresse, ocasionariam uma deficiência auditiva sem causa orgânica aparente, que apresentariam melhora após psicoterapia 32 . Este tipo de deficiência auditiva é considerada rara na população adulta e ainda carente de estudos brasileiros que aprofundem a temática com dados nacionais.
O estudo dos fatores que se associam à deficiência auditiva e das causas atribuídas pode direcionar intervenções de saúde, principalmente em atividades realizadas na atenção primária. Com essa preocupação, a população adulta e idosa também deve ser o foco de programas de saúde auditiva, devido à associação desta deficiência com o avanço da idade. Atualmente, os grandes programas de saúde auditiva no Brasil são voltados para recém-nascidos (triagem auditiva neonatal) e crianças (programas de saúde auditiva escolar), e ocorre escassez de projetos e programas para a saúde auditiva do adulto e, principalmente, do idoso. Este enfoque poderia ser incluído em programas já existentes na atenção básica (voltados para diabéticos, hipertensos, saúde do idoso, saúde da mulher, saúde mental, entre outros) e poderia evitar ou diagnosticar de forma mais precoce a deficiência auditiva adquirida na idade adulta e também amenizar o sofrimento psíquico destas pessoas que são afetadas pela deficiência auditiva, tendo em vista a associação encontrada no presente estudo.
Em relação às causas atribuídas, destacaram-se a congenicidade, violência, trabalho e a presbiacusia. Dentre essas últimas citadas, vale ressaltar que algumas causas congênitas (tais como uso de teratógenos e rubéola na gestação), violência e, principalmente, o trabalho, são passíveis de prevenção, ou seja, ações preventivas (por exemplo, vacinações) e melhorias no ambiente de trabalho, no que se refere à diminuição do ruído e/ou utilização de equipamentos de proteção individual de forma correta, poderiam diminuir as taxas de deficiência auditiva encontradas.
O estudo dos deficientes auditivos por meio de inquéritos e grandes estudos populacionais se apresenta como uma área em expansão no Brasil, rica em oportunidades de pesquisa para diversos profissionais, tais como: fonoaudiólogos, médicos, psicólogos, assistentes sociais, entre outros, e é de grande importância na formulação de políticas públicas, para que estas consigam atender esta fatia populacional com mais precisão e, principalmente, resolubilidade.
Colaboradores
M. S. Cruz realizou a análise dos dados e foi a redatora principal do artigo. L. Carandina, C. L. G. César, M. B. A. Barros, M. G. P. Alves, M. Goldbaum são coordenadores do projeto de pesquisa, tendo orientado o delineamento do estudo, participado da análise e discussão dos resultados e da redação final do trabalho. M. C. P. Lima colaborou na análise dos dados e revisão crítica final do artigo. L. R. Oliveira participou da elaboração do delineamento do estudo e da revisão crítica final do artigo.
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Correspondência:
M. S. Cruz
Departamento de Saúde Pública
Faculdade de Medicina de Botucatu
Universidade Estadual Paulista
Rua das Camélias 139, Avaré, SP, 18706-410, Brasil
msodario@yahoo.com.br
Recebido em 26/Ago/2008
Versão final reapresentada em 27/Nov/2008
Aprovado em 29/Dez/2008