Ao analisar as reformas dos sistemas de saúde das últimas décadas nos deparamos com um movimento aparentemente pendular. Em momentos de ajustes macroeconômicos, o pêndulo oscila para a contenção de gastos, supressão de direitos e abertura ao mercado sob o argumento de que a competição melhora a qualidade. Nesse contexto, a atenção primária em saúde (APS) é vista como uma política seletiva para populações excluídas. Em conjunturas político-econômicas favoráveis, a saúde é considerada condição para o desenvolvimento e coesão social, com ênfase na construção de redes coordenadas pela APS, para garantir a sustentabilidade desses sistemas.
O artigo de Lígia Giovanella & Klaus Stegmüller (p. 2263-81) atualiza essa discussão. Além de descrever as medidas de contenção que vêm sendo implementadas, a pesquisa analisa seus efeitos de modo consistente. Há muitas semelhanças com as medidas da agenda pós-welfare aplicada de 1980 até meados dos anos 1990: cortes com restrições de serviços, aumento de copagamentos, transferência de custos para os usuários, diminuição de responsabilidades por parte do Estado, aumento nas formas de privatização.
Esse discurso teve uma influência nefasta nas reformas na América Latina onde, ao contrário dos países centrais, ocorreu uma forte retração do gasto público. A queda desses gastos durante crises econômicas e ajustes fiscais tem sido bem documentada em nosso continente (Sojo A. Ciênc Saúde Coletiva 2011; 16:2673-85). O financiamento público foi particularmente vulnerável durante os períodos 1994-1998 e 2001-2003, com uma variação anual negativa superior à queda do PIB na região. Embora permaneça baixo, o gasto público em saúde tem mostrado uma tendência de crescimento, mas está associado a um elevado gasto direto das famílias.
No atual contexto europeu ainda não há uma diminuição dos gastos públicos, porém o trabalho sugere que isto pode ser esperado para a Inglaterra e para a Espanha em função de restrições legais. Após o Real Decreto Lei no 16/2012, o acesso ao Sistema Nacional de Salud (SNS) passou a depender da condição de segurado do sistema de previdência, não sendo mais um direito universal da cidadania. Também, chama atenção a pressão crescente para inserir formas de privatização em sistemas nacionais considerados macroeficientes, como é o caso da Espanha.
Em que medida um contexto recessivo e o aumento da regulação nesses países poderá determinar uma expansão do mercado para a América Latina? A dinâmica de acumulação setorial é intensa, com ganhos complementares entre o segmento médico-industrial, médico-financeiro e uma importante hipertrofia de serviços (assessorias, tecnologias de informação, exportação de hospitais, turismo médico). Estimativas para os próximos anos, feitas por empresas de consultorias privadas como a IMS Health e a Deloitte, identificam Ásia, África e América Latina como os mercados mais promissores (“health care growth markets”).
A diminuição de recursos interfere na qualidade e ameaça a legitimação social de sistemas nacionais orientados pela APS como o SNS e o National Health Service (NHS). O mesmo movimento vem ocorrendo no sistema nacional português. Além de fontes de evidências, corre-se o risco de perder importantes referenciais de solidariedade, gestão pública e práticas de saúde mais adequadas. Esse cenário, combinado com o atual discurso propondo uma cobertura universal (“universal health coverage”) para países de média e baixa renda, deve ser analisado com cuidado. Sem uma ampla discussão sobre os modelos de prática nos sistemas de saúde, essa proposta poderá representar muito mais uma oportunidade de negócios do que um acesso oportuno.
Eleonor Minho Conill
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil.
eleonorconill@gmail.com
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Nov 2014