Transformações do território são uma das vertentes de mudança do mundo capitalista na atualidade. Elas expressam alterações nas diferentes dimensões da relação Estado, economia e sociedade, entre as quais se destacam: as estruturas e formas de produção; as relações sociais incluindo as de trabalho; e as regras de representação e participação política 11. Jessop R. El Estado: passado, presente, futuro. Madrid: Los Libros de La Catarata; 2017.,22. Streeck W. Tempo comprado. A crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo Editorial; 2018.. Também refletem modificações na composição e atuação de atores (públicos, privados e corporativos) e nos modos de produção das políticas públicas, incluindo a reconfiguração de instituições, redes e fluxos decisórios, em múltiplos níveis e escalas territoriais de governança (transnacional, nacional, regional e local) 33. Pierre J, Peters BG. Governance, politics and the State. London: Macmillan; 2000.,44. Cox KR. "Globalization", the "regulation approach" and the politics of scale. In: Harod A, Wright M, editors. Geographies of power: placing scale. Oxford: Blackwell; 2002. p. 85-114.,55. Kazepov Y. Rescaling social policies: towards multilevel governance in Europe. Vienna: Ashgate; 2010..
Estudos recentes procuram aprofundar a compreensão sobre o significado e as implicações das mudanças empreendidas 66. Touraine A. La fin des sociétés. Paris: Éditions du Seuil; 2013.,77. Berardi FB. And: phenomenology of the end. Cambridge: MIT Press; 2015.,88. Levitsky S, Ziblatt D. Como as democracias morrem. São Paulo: Zahar; 2018.,99. Runciman D. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia; 2018.,1010. Castells M. Ruptura: a crise da democracia liberal. São Paulo: Zahar; 2018.,1111. Guilluy C. No society: la fin de la classe moyenne occidentale. Paris: Flammarion; 2018.. Nesse contexto, surgem diversas interpretações e proposições, baseadas em valores de igualdade e solidariedade 66. Touraine A. La fin des sociétés. Paris: Éditions du Seuil; 2013..
Alguns cientistas sociais como Pierre Rosanvallon 1212. Rosanvallon P. Notre histoire intellectuelle et politique 1968-2018. Paris: Éditions du Seuil; 2018. propõem a formulação de um projeto positivo para a sociedade, com foco na construção democrática e solidária do campo social, que ultrapasse uma visão reducionista da relação economia e Estado social, e que objetive desvincular-se de uma política de apelo à resistência ou à mera restauração do que já foi. Para o autor, as transformações atuais caracterizam-se por um “capitalismo de inovação”, associado ao surgimento de um “individualismo de singularidades” e ao declínio da democracia representativa no contexto internacional.
Nesse sentido, a busca pela igualdade não encontra mais ressonância em propostas universais abstratas ou fortemente centradas em identidades comunitárias dentro dos Estados Nacionais. É necessária uma outra construção do social, que leve em consideração os problemas decorrentes tanto da globalização como de situações e condições de vida diversas, e da existência de singularidades individuais; e que use a política como meio para expandir as formas de participação social. Compreender as tensões e as crises que marcam a trajetória de desenvolvimento da modernidade e como estas de manifestam no presente, para redefinir os marcos de um projeto de emancipação do homem, é o horizonte que ele nos coloca no final de sua obra 1212. Rosanvallon P. Notre histoire intellectuelle et politique 1968-2018. Paris: Éditions du Seuil; 2018..
Outros autores enfatizam visões sobre o território, que integram as perspectivas econômica, social e ambiental 1313. Laurent E. La social-écologie: une perspective théorique et empirique. Rev Fr Aff Soc 2015; 1-2:125-43., de forma a construir espaços mais democráticos, menos desiguais e também favoráveis aos valores de respeito à vida e à construção de sociedades plurais. Uma proposição importante refere-se à ampliação do papel dos atuais Estados de Bem-Estar Social, que foram concebidos numa época em que as preocupações ambientais e as interações recíprocas entre o social e o ambiental eram pouco conhecidas. Nesse novo “Estado de Bem-Estar Social-Ecológico”, os riscos e as ameaças provenientes dos efeitos negativos causados pela atividade humana sobre os diversos ecossistemas do planeta também passam a ser objeto de proteção 1414. Laurent E. Measuring tomorrow: accounting for well-being, resilience, and sustainability in the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press; 2018.,1515. Mersch M. Well-being for everyone in a sustainable Europe. Report of the Independent Commission for Sustainable Equality | 2019-2024. Brussels: Group of the Progressive Alliance of Socialists & Democrats; 2018..
A proposta deste Suplemento surge dessas inquietações. Entendemos que o desafio para a construção do social (ponte entre o individual e o coletivo; a sociedade civil e os cidadãos) e de uma cultura de solidariedade no Brasil, marcado por profundas desigualdades, clivagens políticas e desempenho econômico dependente dos circuitos internacionais de acumulação, encontra-se no reconhecimento dinâmico do que é universal e particular. Para isso, é preciso considerar as determinações multiescalares do território, suas diversas dimensões e o modo como se relacionam com a variedade de situações e condições de vida.
Com esse intuito, o fascículo reúne um conjunto de análises teóricas e empíricas, de autores de várias organizações acadêmicas e áreas do conhecimento, que permitem ampliar o olhar sobre uma política específica - o processo de regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS), reconhecendo a complexidade de seus condicionantes e de suas experiências concretas.
O artigo de Debate analisa a relevância do enfoque regional frente aos processos de reconfiguração territorial na fase recente da globalização, de orientação predominantemente liberal. Com base em extensa revisão bibliográfica e em resultados de pesquisas, as autoras identificam os impasses das transformações atuais para a regionalização e o enfrentamento das desigualdades em saúde no Brasil.
No Espaço Temático, são apresentados três artigos que exploram as experiências do Canadá, de Portugal e da Argentina, em temas importantes para o processo de regionalização e saúde. Respectivamente: a integração e coordenação do cuidado; a reorientação da atenção primária; e programas de fomento à participação social. Seguem na seção Ensaio dois textos que sistematizam as contribuições teóricas da abordagem de redes e dos trabalhos sobre federalismo para os estudos de políticas públicas e de saúde.
A seção Artigos é composta por sete trabalhos empíricos que, em seu conjunto, reúnem evidências para o aprofundamento da análise dos avanços, problemas e desafios do processo de regionalização do SUS. Em grande parte, os artigos apresentam resultados inéditos da pesquisa Política, Planejamento e Gestão das Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil, constituída por uma rede interinstitucional e interdisciplinar de pesquisadores (https://www.resbr.net.br/). Com diferentes recortes e métodos, os esforços de investigação abordam os seguintes temas: arranjos regionais de governança; política, estrutura e organização da atenção primária; configuração espacial da utilização de serviços de internação; oferta e estratégias institucionais da graduação de saúde; padrões e fatores intervenientes da circularidade dos médicos; avaliação de desempenho da regionalização da vigilância em saúde; e incorporação de tecnologias nos sistemas de saúde.
Por meio de diferentes abordagens e enfoques deste Suplemento esperamos contribuir para o debate sobre regionalização e saúde, que não se restringe à valorização da dimensão regional na organização da gestão, das relações federativas, das políticas e dos serviços, ainda que estes aspectos sejam relevantes. Regionalizar implica identificar as mudanças em curso nos distintos espaços da vida construídos historicamente no território, buscando, para além de novas explicações, ordenamentos e sentidos éticos para a ação política, que promovam a redução das desigualdades sociais, o usufruto de bens coletivos e a melhoria da saúde das populações. Em síntese, um debate que reforce o compromisso da Saúde Coletiva com as práticas democráticas, com a noção da saúde como um direito universal, que deve ser garantido de acordo com as necessidades das pessoas e com respeito às diversidades de todos os tipos, superando as desigualdades injustas.
- 1Jessop R. El Estado: passado, presente, futuro. Madrid: Los Libros de La Catarata; 2017.
- 2Streeck W. Tempo comprado. A crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo Editorial; 2018.
- 3Pierre J, Peters BG. Governance, politics and the State. London: Macmillan; 2000.
- 4Cox KR. "Globalization", the "regulation approach" and the politics of scale. In: Harod A, Wright M, editors. Geographies of power: placing scale. Oxford: Blackwell; 2002. p. 85-114.
- 5Kazepov Y. Rescaling social policies: towards multilevel governance in Europe. Vienna: Ashgate; 2010.
- 6Touraine A. La fin des sociétés. Paris: Éditions du Seuil; 2013.
- 7Berardi FB. And: phenomenology of the end. Cambridge: MIT Press; 2015.
- 8Levitsky S, Ziblatt D. Como as democracias morrem. São Paulo: Zahar; 2018.
- 9Runciman D. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia; 2018.
- 10Castells M. Ruptura: a crise da democracia liberal. São Paulo: Zahar; 2018.
- 11Guilluy C. No society: la fin de la classe moyenne occidentale. Paris: Flammarion; 2018.
- 12Rosanvallon P. Notre histoire intellectuelle et politique 1968-2018. Paris: Éditions du Seuil; 2018.
- 13Laurent E. La social-écologie: une perspective théorique et empirique. Rev Fr Aff Soc 2015; 1-2:125-43.
- 14Laurent E. Measuring tomorrow: accounting for well-being, resilience, and sustainability in the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press; 2018.
- 15Mersch M. Well-being for everyone in a sustainable Europe. Report of the Independent Commission for Sustainable Equality | 2019-2024. Brussels: Group of the Progressive Alliance of Socialists & Democrats; 2018.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Jun 2019 - Data do Fascículo
2019