Dispositivos eletrônicos para fumar nas capitais brasileiras: prevalência, perfil de uso e implicações para a Política Nacional de Controle do Tabaco

Electronic nicotine delivery systems in Brazilian state capitals: prevalence, profile of use, and implications for the National Tobacco Control Policy

Dispositivos electrónicos para fumar en las capitales brasileñas: prevalencia, perfil de uso e implicaciones para la Política Nacional de Control del Tabaco

Neilane Bertoni André Salém Szklo Sobre os autores

Resumo:

O objetivo deste estudo foi estimar a prevalência de uso de dispositivos eletrônicos para fumar (DEF) e explorar o fluxo lógico esperado do potencial impacto dos DEF na iniciação de cigarro convencional. Foram utilizados dados da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) de 2019, que entrevistou 52.443 indivíduos de 18 anos ou mais das 26 capitais brasileiras e do Distrito Federal. Foram calculados as prevalências pontuais e os intervalos de confiança (IC95%) de uso atual e na vida de DEF em cada capital brasileira, e avaliado o perfil dos usuários destes dispositivos. Estimou-se a prevalência de uso na vida em 6,7% (IC95%: 6,13-7,27) e uso atual em 2,32% (IC95%: 1,97-2,68). São 2,4 milhões de indivíduos que já usaram DEF e 835 mil que usam atualmente. Cerca de 80% das pessoas que já usaram DEF têm entre 18 e 34 anos. A prevalência de uso diário e uso dual entre jovens de 18 a 24 anos foi quase 10 vezes a prevalência nas faixas etárias superiores. Mais da metade dos indivíduos que usaram DEF na vida nunca fumaram. A proporção de mulheres e de indivíduos com escolaridade mais elevada foi maior no grupo de jovens que faz uso exclusivo de DEF do que entre os que usam cigarros convencionais exclusivamente. Também, usuários de dispositivos apresentaram maior consumo abusivo de álcool. Nossos achados vão em sentido oposto ao argumento da indústria do tabaco de que o público-alvo dos DEF são fumantes adultos. E, dado que grupos, a princípio, menos propícios ao uso de cigarros convencionais estão tendo sua iniciação com o DEF, os resultados alertam sobre o possível impacto negativo da disseminação dos dispositivos sobre a exitosa experiência do Brasil no combate ao tabagismo.

Palavras-chave:
Sistemas Eletrônicos de Liberação de Nicotina; Vaping; Produtos do Tabaco; Nicotina; Tabagismo

Abstract:

The objectives of this study were to estimate the prevalence of use of electronic nicotine delivery systems (ENDS) and to explore the potential impact of ENDS use on smoking initiation with conventional cigarettes. We used data from the Risk and Protective Factors Surveillance System for Chronic Non-Comunicable Diseases Through Telephone Interview (Vigitel), 2019 edition, which interviewed 52,443 individuals 18 years or older in Brazil’s 26 state capitals and the Federal District. Point prevalence rates and confidence intervals (95%CI) were calculated for current and ever use of ENDS in each state capital, and the profile of ENDS users were described. Prevalence of lifetime use was estimated at 6.7% (95%CI: 6.13-7.27) and current use at 2.32% (95%CI: 1.97-2.68). A total of 2.4 million individuals had used ENDS any time in life, and 835,000 were currently using them. Approximately 80% of persons who had used ENDS were 18 to 34 years-old. Prevalence rates for daily use and dual use in individuals aged 18 to 24 years were nearly 10 times than prevalence in the older age groups. More than half of individuals who had ever used ENDS were never smokers. The proportion of women and individuals with high educational level were higher in the group of young people who only used ENDS than among those who only smoked conventional cigarettes. ENDS users also presented a higher proportion of binge drinking. Our findings are opposite to the tobacco industry’s argument that the target public for ENDS is adult smokers. Considering that groups purportedly less prone to using conventional cigarettes are experiencing initiation with ENDS, our findings call attention to the possible negative impact of the dissemination of ENDS on Brazil’s successful experience in the fight against tobacco.

Keywords:
Electronic Nicotine Delivery Systems; Vaping; Tobacco Products; Nicotine; Tobacco Use Disorder

Resumen:

El objetivo de este estudio fue estimar la prevalencia del uso de dispositivos electrónicos para fumar (DEF) e investigar el flujo lógico esperado del potencial impacto de los DEF en la iniciación de para fumar cigarrillos convencionales. Se utilizaron datos de la Vigilancia de Factores de Riesgo y Protección para Enfermedades Crónicas No Transmisibles por Entrevista Telefónica (Vigitel) de 2019, que entrevistó a 52.443 individuos de 18 años o más de las 26 capitales brasileñas y el Distrito Federal. Se calcularon prevalencias puntuales e intervalos de confianza (IC95%) de consumo actual y en la vida de DEF en cada capital brasileña, y se evaluó el perfil de los usuarios de DEF. Se estimó una prevalencia de consumo en la vida de 6,7% (IC95%: 6,13-7,27) y consumo actual 2,32% (IC95%: 1,97-2,68). Son 2,4 millones de individuos que ya usaron DEF y 835 mil que lo usan actualmente. Cerca de un 80% de las personas que ya usó DEF tiene entre 18 y 34 años. La prevalencia de uso diario y uso dual entre jóvenes de 18 a 24 años fue casi 10 veces la prevalencia en las franjas etarias superiores. Más de la mitad de los individuos que usaron DEF en la vida nunca fumaron. La proporción de mujeres y de individuos de escolaridad más elevada es mayor en el grupo de jóvenes que usa exclusivamente DEF, que entre los que consumen cigarrillos convencionales exclusivamente. También, los usuarios de DEF presentaron un mayor consumo abusivo de alcohol. Nuestros resultados van en el sentido opuesto al argumento de la industria del tabaco de que el público-objetivo de los DEF son fumadores adultos. Y, dado que grupos, en un principio menos propicios al consumo de cigarrillos convencionales, están iniciándose con el DEF, los resultados alertan sobre el posible impacto negativo de la diseminación de los DEF sobre la exitosa experiencia de Brasil en el combate al tabaquismo.

Palabras-clave:
Sistemas Electrónicos de Liberación de Nicotina; Vapeo; Productos de Tabaco; Nicotina; Tabaquismo

Introdução

Os dispositivos eletrônicos para fumar (DEF) - denominação adotada no Brasil para se referir a dispositivos eletrônicos de liberação de nicotina - têm história recente no mercado mundial, embora existam relatos de que a indústria do tabaco já estuda este tipo de dispositivo desde, pelo menos, 1963 11. Dutra LM, Grana R, Glantz SA. Philip Morris research on precursors to the modern e-cigarette since 1990. Tob Control 2017; 26(e2):e97-105., sob a alegação de buscar, para o grupo de fumantes, um substituto para o cigarro convencional, menos danoso por não haver combustão e produção de alcatrão 22. Nutt DJ, Phillips LD, Balfour D, Curran HV, Dockrell M, Foulds J, et al. Estimating the harms of nicotine-containing products using the MCDA approach. Eur Addict Res 2014; 20:218-25.. Os DEF foram introduzidos no mercado no início dos anos 2000, na China 33. Caponnetto P, Campagna D, Papale G, Russo C, Polosa R. The emerging phenomenon of electronic cigarettes. Expert Rev Respir Med 2012; 6:63-74.. Em pouco tempo, novos modelos surgiram, com grande apelo tecnológico e de design moderno, como o Juul 44. Kavuluru R, Han S, Hahn EJ. On the popularity of the USB flash drive-shaped electronic cigarette Juul. Tob Control 2019; 28:110-2., e cigarros de tabaco aquecido (heat-not-burn - HNB), dentre os mais difundidos, o Glo e o IQOS 55. Simonavicius E, McNeill A, Shahab L, Brose LS. Heat-not-burn tobacco products: a systematic literature review. Tob Control 2019; 28:582-94..

Toda essa “novidade tecnológica” vem chamando a atenção dos jovens e inclusive dos nunca fumantes. Nos Estados Unidos, por exemplo, a prevalência de uso de cigarros eletrônicos vem apresentando rápido crescimento. Em 2011, a prevalência de uso entre os estudantes do Ensino Médio era de 1,5% e em 2014 saltou para 13,4% 66. Centers for Disease Control and Prevention. Youth and tobacco use infographics. https://www.cdc.gov/tobacco/infographics/youth/index.htm (acessado em 23/Mar/2020).
https://www.cdc.gov/tobacco/infographics...
. Em 2019, já ultrapassava a prevalência de cigarros convencionais (27,5% vs. 5,8%) 66. Centers for Disease Control and Prevention. Youth and tobacco use infographics. https://www.cdc.gov/tobacco/infographics/youth/index.htm (acessado em 23/Mar/2020).
https://www.cdc.gov/tobacco/infographics...
.

Assim, a ideia de que os DEF seriam apenas uma ferramenta para a redução de danos, voltada para o público de fumantes, vem perdendo forças, uma vez que seu uso está sendo disseminado também em outros subgrupos populacionais. Além disso, o uso de DEF como estratégia de redução de danos não é bem estabelecido na literatura científica, e uma revisão sistemática apontou que artigos financiados pela indústria do tabaco tendem a apresentar resultados mais favoráveis do que os que não recebem este tipo de financiamento 77. Hendlin YH, Vora M, Elias J, Ling PM. Financial conflicts of interest and stance on tobacco harm reduction: a systematic review. Am J Public Health 2019; 109:e1-8..

Ainda, parte dos usuários de DEF fazem uso dual desses produtos, ou seja, utilizam também os cigarros convencionais 88. Piper ME, Baker TB, Benowitz NL, Jorenby DE. Changes in use patterns over 1 year among smokers and dual users of combustible and electronic cigarettes. Nicotine Tob Res 2020; 22:672-80., sendo expostos às substâncias tóxicas liberadas por ambos os produtos. Ao contrário do que a indústria do tabaco tenta disseminar, os DEF não são inócuos, pois contêm ou geram substâncias cancerígenas e/ou que causam danos aos pulmões e sistema cardiovascular, como o óxido de propileno 99. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Cigarros eletrônicos: o que sabemos? Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2016., a acroleína 1010. Sleiman M, Logue JM, Montesinos VN, Russell ML, Litter MI, Gundel LA, et al. Emissions from electronic cigarettes: key parameters affecting the release of harmful chemicals. Environ Sci Technol 2016; 50:9644-51., metais pesados 1111. Jain RB. Concentrations of cadmium, lead, and mercury in blood among US cigarettes, cigars, electronic cigarettes, and dual cigarette-e-cigarette users. Environ Pollut 2019; 251:970-4. e ainda compostos inorgânicos do arsênio 1212. Liu Q, Huang C, Chris Le X. Arsenic species in electronic cigarettes: determination and potential health risk. J Environ Sci (China) 2020; 91:168-76..

Desde 2009, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio da RDC nº 46/20191313. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução nº 46, de 28 de agosto de 2009. Proíbe a comercialização, a importação e a propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar, conhecidos como cigarro eletrônico. Diário Oficial da União 2009; 31 ago., proíbe a comercialização, a importação e a propaganda de quaisquer DEF no Brasil, por falta de evidências científicas robustas sobre a segurança no uso destes dispositivos e a eficácia deles na cessação do tabagismo. Apesar disso, o primeiro estudo de representatividade nacional a abordar esse tema no Brasil mostrou que, em 2015, a prevalência do uso de cigarros eletrônicos foi de 0,43% (IC95%: 0,26-0,59) na população de 12 a 65 anos 1414. Bertoni N, Szklo A, Boni RD, Coutinho C, Vasconcellos M, Nascimento Silva P, et al. Electronic cigarettes and narghile users in Brazil: do they differ from cigarettes smokers? Addict Behav 2019; 98:106007., ou seja, cerca de 650 mil pessoas. Na população jovem (12 a 24 anos), a prevalência do uso estimada foi de 0,71% (IC95%: 0,28-1,15) 1414. Bertoni N, Szklo A, Boni RD, Coutinho C, Vasconcellos M, Nascimento Silva P, et al. Electronic cigarettes and narghile users in Brazil: do they differ from cigarettes smokers? Addict Behav 2019; 98:106007.. Outro estudo realizado em três capitais brasileiras apontou que o uso de cigarros eletrônicos, tanto entre fumantes quanto entre não fumantes, aumentou entre 2012 e 2017 1515. Szklo A, Perez C, Cavalcante T, Almeida L, Craig L, Kaai S, et al. Increase of electronic cigarette use and awareness in Brazil: findings from a country that has strict regulatory requirements for electronic cigarette sales, import, and advertising. Tob Induc Dis 2018; 16 Suppl 1:A273..

Monitorar a prevalência de DEF é crucial para entender também o panorama do uso de cigarros convencionais, dado que a iniciação do uso de cigarros convencionais é quatro vezes maior entre os usuários de DEF 1616. Khouja JN, Suddell SF, Peters SE, Taylor AE, Munafò MR. Is e-cigarette use in non-smoking young adults associated with later smoking? A systematic review and meta-analysis. Tob Control 2020; 30:8-15..

Assim, o objetivo deste estudo é estimar a prevalência do uso de DEF, geral e por subgrupos populacionais, utilizando dados de um inquérito telefônico de abrangência nacional, realizado em todas as capitais brasileiras e no Distrito Federal, em 2019. Tais estimativas permitirão, ainda, explorar um fluxo lógico esperado do potencial impacto dos DEF na iniciação de cigarro convencional.

Métodos

Neste estudo, são analisados os dados da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) em sua edição de 2019. O Vigitel é uma pesquisa por telefone realizada nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal com a utilização de amostragem probabilística da população com 18 anos ou mais de idade, que reside em domicílios servidos por, ao menos, uma linha telefônica fixa.

No processo de amostragem, primeiro as linhas telefônicas foram sorteadas de forma sistemática e estratificada por código de endereçamento postal (CEP), com base no cadastro eletrônico de linhas residenciais fixas das empresas telefônicas. Foram verificadas se as linhas telefônicas eram elegíveis, ou seja, se eram linhas residenciais ativas. Em seguida, foi realizado o sorteio de um morador elegível no domicílio (ter 18 anos ou mais). As 52.443 entrevistas telefônicas foram realizadas entre janeiro e dezembro de 2019.

O peso atribuído inicialmente a cada entrevistado considera o inverso do número de linhas telefônicas e o número de adultos no domicílio. Contudo, para possibilitar a inferência dos resultados para toda a população das capitais e não somente para a população adulta que reside em domicílios cobertos pela rede de telefonia fixa, foi feito um processo de pós-estratificação, usando-se o método Rake. Para tal, foram consideradas as seguintes variáveis: sexo (feminino e masculino), faixa etária (18-24, 25-34, 35-44, 45-54, 55-64 e 65 e mais anos de idade) e nível de instrução (sem instrução ou Fundamental incompleto, Fundamental completo ou Médio incompleto, Médio completo ou Superior incompleto e Superior completo). Mais detalhes podem ser verificados em publicação do Ministério da Saúde 1717. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2019: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2019. Brasília: Ministério da Saúde; 2019..

O morador selecionado respondeu a um questionário que incluiu perguntas sociodemográficas e comportamentais. Os participantes respondiam às seguintes questões sobre o uso de cigarros convencionais: “Q60 - Atualmente, o(a) Sr.(a) fuma?” e “No passado, o(a) Sr.(a) já fumou?”. As opções de resposta eram “Sim, diariamente”, “Sim, mas não diariamente” e “Não”. Sobre o uso de DEF, a pergunta era: “O(a) Sr.(a) usa aparelhos eletrônicos com nicotina líquida ou folha de tabaco picado (cigarro eletrônico, narguilé eletrônico, cigarro aquecido ou outro dispositivo eletrônico) para fumar ou vaporizar? (Não considere o uso de maconha)”. As opções de resposta eram: “Sim, diariamente”, “Sim, menos do que diariamente”, “Não, mas já usei no passado” e “Nunca usei”.

O status de fumo foi classificado da seguinte forma: “fumante atual”, se reportou o uso diário ou não diário (ocasional) de cigarros convencionais; “ex-fumante”, se reportou não utilizar atualmente, mas já fumou no passado de forma diária ou não; e “nunca fumante”, se não fuma atualmente e nunca usou no passado.

O uso de DEF foi classificado em uso na vida (diariamente, menos que diariamente ou no passado), uso diário, uso ocasional e uso atual (diário + ocasional).

Outras variáveis sociocomportamentais também foram avaliadas e categorizadas para atender o objetivo do estudo. As idades reportadas foram agrupadas em faixas etárias (18-24, 25-34, 35-54 e 55 ou mais), de modo a possibilitar melhor entendimento da relação entre iniciação e cessação. Para a classe de escolaridade, os indivíduos foram agrupados de acordo com o número de anos de estudos referido (0-8 vs. 9 ou mais), sendo este um proxy de classe econômica. Os indivíduos reportavam ainda o sexo (masculino vs. feminino) e consumo de bebida alcoólica de forma abusiva (binge drinking) nos últimos 30 dias, considerando-se a ingestão de bebidas alcoólicas, em uma mesma ocasião, de 4 ou mais doses para mulheres e 5 ou mais doses para homens.

Foram calculadas as prevalências pontuais e os respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%) para avaliar o consumo de DEF de acordo com as demais variáveis descritas, além de estimativas por macrorregião e capital. As estimativas do número absoluto de pessoas com as características selecionadas baseou-se no total populacional amostral. As diferenças entre as estimativas foram avaliadas pela sobreposição de seus IC95%.

Para entender melhor o fluxo lógico esperado do potencial impacto dos DEF na iniciação de cigarro convencional, para o subgrupo de jovens de 18 a 24 anos, foi feito o cruzamento das informações de uso atual de DEF e de consumo de cigarro convencional (fumante, ex-fumante ou nunca fumante), segundo as variáveis sociodemográficas e comportamentais. A hipótese, com base na literatura científica disponível sobre o tema, seria de que “nunca fumantes de cigarro convencional” que entram em contato com DEF têm uma maior probabilidade de evoluírem para a experimentação do cigarro convencional, seguida do uso dual ou da opção pela cessação apenas do cigarro convencional. E não necessariamente essa população tem o mesmo perfil sociodemográfico daquela que já entraria em contato com o cigarro convencional.

Para as análises, utilizou-se o pacote survey do software R v.3.5.1 (http://www.r-project.org). Todas as análises aqui apresentadas consideram o desenho da amostra ao usar o peso pós-estratificado.

O Vigitel foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Ministério da Saúde (CAAE: 65610017.1.0000.0008).

Resultados

Estima-se que 6,7% (IC95%: 6,13-7,27) da população de 18 anos ou mais das capitais brasileiras já tenham feito uso de DEF na vida e que, atualmente, 2,32% (IC95%: 1,97-2,68) de indivíduos façam uso diário ou ocasional destes dispositivos, sendo este último o mais frequente. São cerca de 2,4 milhões de indivíduos que já tiveram contato com DEF e 835 mil que utilizam atualmente (Tabela 1) apenas nas capitais brasileiras.

Tabela 1
Prevalência do uso de dispositivos eletrônicos para fumar (DEF) segundo características sociocomportamentais. Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), 2019.

As faixas etárias mais jovens são as mais afetadas pela presença dos DEF. Cerca de 80% das pessoas que já usaram DEF têm entre 18 e 34 anos. Observa-se que 1 em cada 5 jovens de 18 a 24 anos já fez uso desses dispositivos na vida, e que entre os indivíduos de 35 anos ou mais esta proporção não chega a 3 em 100 (Tabela 1).

A prevalência de uso diário entre os jovens de 18 a 24 anos é quase dez vezes a prevalência entre as faixas etárias superiores, e estes jovens representam mais da metade dos usuários diários desses dispositivos (Tabela 1).

A prevalência de uso atual de DEF entre os homens é o dobro da observada entre as mulheres (3,26%; IC95%: 2,63-3,89 vs. 1,52%; IC95%: 1,16-1,89). Entre os indivíduos com 9 anos ou mais de escolaridade, a prevalência de uso atual é maior do que entre os com menos anos de estudos (3,02%; IC95%: 2,54-3,50 vs. 0,6%; IC95%: 0,34-0,87). Também há maior prevalência de uso atual de DEF entre os indivíduos que fazem uso de álcool de forma abusiva do que entre os que não bebem desta forma (6,33%; IC95%: 5,02-7,63 vs. 1,4%; IC95%: 1,09-1,70).

Entre os fumantes, estima-se que 6,86% (IC95%: 5,11-8,60) façam uso atual de DEF, o que representa cerca de 242 mil indivíduos que fazem o uso dual de cigarros convencionais e dispositivos eletrônicos nas capitais brasileiras atualmente. Contudo, mais da metade dos indivíduos que fizeram uso de DEF na vida, ou que fazem uso atualmente, são do grupo de nunca fumantes. Ou seja, são cerca, respectivamente, de 1,2 e 0,5 milhão de pessoas que nunca fumaram cigarros convencionais, mas que já fizeram e/ou ainda fazem uso de DEF (Tabela 1).

A prevalência de uso de DEF varia entre as regiões brasileiras, tendo o agregado de capitais da Região Centro-oeste apresentado as maiores prevalências de uso, tanto na vida quanto atual (11,59%; IC95%: 9,99-13,19 e 4,53%; IC95%: 3,62-5,43, respectivamente) (Tabela 1). Na Tabela 2, é possível observar as prevalências de uso de DEF na vida e atualmente para cada uma das capitais brasileiras. Observa-se que o Distrito Federal foi a capital que apresentou a maior prevalência de uso de DEF, sendo 12,81% (IC95%: 9,96-15,66) para uso na vida e 4,93% (IC95%: 3,44-6,41) para uso atual. São Paulo, contudo, é a capital que apresenta o maior quantitativo de usuários de DEF, sendo seguida pelo Distrito Federal e Rio de Janeiro (Tabela 2). Essas três capitais, conjuntamente, têm cerca de 60% dos usuários atuais de DEF.

Tabela 2
Prevalência do uso de dispositivos eletrônicos para fumar (DEF) segundo as capitais dos estados brasileiros e o Distrito Federal. Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), 2019.

A Tabela 3 traz informações sobre o uso de DEF, em cada faixa etária, de pessoas que fumam cigarros convencionais atualmente, ex-fumantes e pessoas que nunca fumaram. Observa-se que a faixa etária de 18 a 24 anos apresenta as maiores prevalências de uso, atual ou passada, independentemente do status de fumo. Nessa faixa etária, mais da metade dos fumantes atuais também tiveram contato com DEF, e cerca de um terço desses fumantes usaram DEF apenas no passado, ou seja, iniciaram ou mantiveram apenas o uso de cigarros convencionais pós-uso de DEF. A prevalência de uso dual de DEF e cigarros convencionais na faixa etária mais jovem (de 18 a 24 anos) foi quase dez vezes a apresentada pelo grupo de indivíduos de 35 anos ou mais (20,46%; IC95%: 12,16-28,76 vs. 2,21%; IC95%: 1,25-3,17). Vale a pena assinalar que cerca de 60% dos usuários atuais de DEF entre os jovens de 18 a 34 anos é composta por indivíduos que nunca fumaram o cigarro convencional, proporção esta maior do que aquela observada para as pessoas mais velhas (~34%).

Tabela 3
Prevalência do uso de dispositivos eletrônicos para fumar (DEF) segundo faixa etária e status de fumo. Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), 2019.

Na Tabela 4, observa-se que, para as faixas etárias de 25 a 34 anos e de 35 anos ou mais, a prevalência de uso atual de DEF é maior entre os homens e entre os indivíduos com 9 ou mais anos de escolaridade do que entre as mulheres e do grupo de menor escolaridade, respectivamente. No grupo mais jovem, de 18 a 24 anos, esse padrão também foi observado, contudo, a diferença não foi estatisticamente significativa.

Tabela 4
Prevalência do uso atual de dispositivos eletrônicos para fumar (DEF) por faixa etária, segundo características sociocomportamentais. Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), 2019.

Observou-se também uma relação entre o uso dos DEF e binge drinking, em todas as faixas etárias, de forma que os indivíduos que fizeram uso abusivo de álcool nos últimos 30 dias apresentaram maiores prevalência de uso de DEF, sendo esta diferença mais pronunciada na faixa etária de 18 a 24 anos (Tabela 4).

Ainda na Tabela 4, verifica-se que a prevalência de uso atual de DEF variou bastante entre as regiões brasileiras para cada faixa etária, contudo, não observou-se diferença estatisticamente significativa entre as faixas etárias de 18 a 24 anos e de 25 a 34 anos para as regiões Sul e Sudeste. Chama a atenção a elevada estimativa de uso de dispositivos entre os jovens de 18 a 24 anos da Região Centro-oeste (16,74%; IC95%: 12,62-20,85).

Na Figura 1, apresentamos as características de indivíduos de 18 a 24 anos de acordo com status de fumo e uso de DEF. Embora os amplos IC95% não nos permitam verificar diferenças estatisticamente significativas, evidencia-se que há uma maior proporção de mulheres no grupo de usuários exclusivos de DEF do que entre os fumantes exclusivos de cigarros convencionais. Entre os ex-fumantes, também verifica-se um incremento na proporção de mulheres usuárias dos DEF.

Em relação à escolaridade, o perfil dos usuários de DEF também difere do perfil dos fumantes ou ex-fumantes exclusivos de cigarros convencionais, i.e., há uma menor proporção de baixa escolaridade (Figura 1).

Figura 1
Proporção de indivíduos de 18 a 24 anos com características sociocomportamentais selecionadas em cada status de uso de cigarro e de dispositivos eletrônicos para fumar (DEF). Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), 2019.

Entre os indivíduos de 18 a 24 anos que nunca usaram cigarros ou DEF, a proporção de jovens que fazem uso de álcool de forma abusiva é estatisticamente menor do que entre os usuários de qualquer um destes produtos de tabaco. Mas observa-se maior proporção de binge drinking entre os usuários de DEF do que entre os fumantes de cigarros convencionais, e entre os usuários duais esta proporção chega a quase 75%.

Discussão

Este estudo apresenta um panorama sobre o uso de DEF no Brasil, e revela que mais da metade dos indivíduos que já utilizaram DEF na vida, ou que usam atualmente, nunca usaram cigarros convencionais. Ademais, o estudo estima que cerca 1/4 dos usuários atuais de DEF residentes nas capitais brasileiras é composta de nunca fumantes jovens. Tal achado vai de encontro do argumento da indústria do tabaco de que esses dispositivos têm como público-alvo central os fumantes adultos que querem parar de fumar 1818. Gaiha SM, Halpern-Felsher B. Public health considerations for adolescent initiation of electronic cigarettes. Pediatrics 2020; 145 Suppl 2:S175-80.. Além disso, está alinhado com os resultados de estudos publicados recentemente que encontraram forte evidência da associação entre o uso dos DEF e a iniciação subsequente do uso do cigarro convencional 1616. Khouja JN, Suddell SF, Peters SE, Taylor AE, Munafò MR. Is e-cigarette use in non-smoking young adults associated with later smoking? A systematic review and meta-analysis. Tob Control 2020; 30:8-15.,1919. Barufaldi LA. Risco de iniciação ao tabagismo com o uso de cigarros eletrônicos: revisão sistemática e meta-análise. Ciênc Saúde Colet 2020; http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/risco-de-iniciacao-ao-tabagismo-com-o-uso-de-cigarros-eletronicos-revisao-sistematica-e-metaanalise/17801?id=17801.
http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/...
.

No Brasil, uma pesquisa realizada também via inquérito telefônico em três capitais com indivíduos de 18 anos ou mais, mostrou que a prevalência de uso de DEF na vida entre os não fumantes era de 1,1% em 2013 e passou para 2,2% em 2017 1515. Szklo A, Perez C, Cavalcante T, Almeida L, Craig L, Kaai S, et al. Increase of electronic cigarette use and awareness in Brazil: findings from a country that has strict regulatory requirements for electronic cigarette sales, import, and advertising. Tob Induc Dis 2018; 16 Suppl 1:A273.. Analisando esse mesmo subgrupo com base nos dados do Vigitel, observamos que a prevalência para 2019 foi de 6,2% (dados não mostrados em tabela), evidenciando a grande disseminação que os DEF vem tendo, especialmente entre os não fumantes no Brasil. Esse padrão de rápida disseminação dos DEF é observado também em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, houve um aumento do indicador de uso de cigarros eletrônicos nos 30 dias anteriores à pesquisa, na ordem de 78% dentre os estudantes do Ensino Médio, entre 2017 e 2018 2020. Cullen KA, Ambrose BK, Gentzke AS, Apelberg BJ, Jamal A, King BA. Notes from the field: use of electronic cigarettes and any tobacco product among middle and high school students - United States, 2011-2018. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 2018; 67:1276-7..

Estudos anteriores realizados no Brasil 1414. Bertoni N, Szklo A, Boni RD, Coutinho C, Vasconcellos M, Nascimento Silva P, et al. Electronic cigarettes and narghile users in Brazil: do they differ from cigarettes smokers? Addict Behav 2019; 98:106007.,1515. Szklo A, Perez C, Cavalcante T, Almeida L, Craig L, Kaai S, et al. Increase of electronic cigarette use and awareness in Brazil: findings from a country that has strict regulatory requirements for electronic cigarette sales, import, and advertising. Tob Induc Dis 2018; 16 Suppl 1:A273.,2121. Cavalcante TM, Szklo AS, Perez CA, Thrasher JF, Szklo M, Ouimet J, et al. Electronic cigarette awareness, use, and perception of harmfulness in Brazil: findings from a country that has strict regulatory requirements. Cad Saúde Pública 2017; 33 Suppl 3:e00074416. apontam que a prevalência de uso de DEF é maior entre indivíduos jovens e com alta escolaridade, contudo, no estudo atual, isto não foi observado de maneira estatisticamente significativa entre os indivíduos com 18-24 anos. E, sendo a escolaridade um proxy de classe socioeconômica, uma possível explicação para esse resultado encontrado passaria pela teoria da inovação 2222. Lucherini M, Hill S, Smith K. Potential for non-combustible nicotine products to reduce socioeconomic inequalities in smoking: a systematic review and synthesis of best available evidence. BMC Public Health 2019; 19:1469., em que inicialmente os grupos de maior renda têm acesso às novas tecnologias e, com o passar do tempo, isto passa a ser mais equânime entre todas as faixas de renda. Assim, aparentemente, todos os jovens brasileiros estariam correndo maiores riscos de iniciação no tabagismo com o surgimento do DEF do que sem a sua presença. De fato, grande parte do marketing dos DEF vem sendo trabalhada nas mídias sociais pela indústria do tabaco e, dado o tempo que os adolescentes/jovens passam nestas mídias, eles acabam sendo mais expostos a estas mensagens 2323. Wagoner KG, Reboussin DM, King JL, Orlan E, Cornacchione Ross J, Sutfin EL. Who is exposed to e-cigarette advertising and where? Differences between adolescents, young adults and older adults. Int J Environ Res Public Health 2019; 16:2533.,2424. Ramamurthi D, Chau C, Jackler RK. Exploitation of the COVID-19 pandemic by e-cigarette marketers. Tob Control 2020; [Online ahead of print]., o que influencia diretamente o seu comportamento para a experimentação destes produtos 2525. O'Brien EK, Hoffman L, Navarro MA, Ganz O. Social media use by leading US e-cigarette, cigarette, smokeless tobacco, cigar and hookah brands. Tob Control 2020; 29(e1):e87-97.. Assim, intervenções nesses meios poderiam, inclusive, reduzir ou prevenir o uso de tais produtos de tabaco 2626. Cavazos-Rehg P, Li X, Kasson E, Kaiser N, Borodovsky JT, Grucza R, et al. Exploring how social media exposure and interactions are associated with ENDS and tobacco use in adolescents from the PATH study. Nicotine Tob Res 2020; 23:487-94..

Outra estratégia da indústria do tabaco que também parece estar voltada especificamente para o público mais jovem é o uso de aditivos de sabor nos e-líquidos. Uma revisão sistemática mostrou que, entre os jovens, os sabores são um dos principais fatores para a experimentação e o uso de cigarros eletrônicos, que aditivos adocicados conferem uma sensação de serem menos danosos e que a proibição da venda de e-líquidos saborizados poderia reduzir a iniciação e a prevalência do uso destes dispositivos 2727. Zare S, Nemati M, Zheng Y. A systematic review of consumer preference for e-cigarette attributes: flavor, nicotine strength, and type. PLoS One 2018; 13:e0194145.. No Brasil, em 2012, a Anvisa proibiu o uso de aditivos/sabores em produtos de tabaco, mas em 2013 a medida foi suspensa por uma liminar na Justiça impetrada pela indústria do tabaco. E, embora em 2018 essa liminar tenha caído, até hoje essa importante medida não foi posta em prática. Assim, o lobby da indústria do tabaco é considerada a maior ameaça para o controle do tabaco 2828. Portes LH, Machado CV, Turci SRB. Trajetória da política de controle do tabaco no Brasil de 1986 a 2016. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00017317., e suas estratégias precisam ser contidas para que não haja retrocesso na trajetória de sucesso do controle do tabagismo no Brasil.

Encontramos que quase 1/3 dos usuários adultos de DEF atualmente faz uso dual com cigarros convencionais, e isto foi ainda mais pronunciado entre os indivíduos de 18 a 24 anos do que nas faixas etárias superiores. O uso dual tem se mostrado associado à maior dependência de nicotina, além de elevar o risco para transtornos depressivos, obesidade e síndrome metabólica 2929. Kim C-Y, Paek Y-J, Seo HG, Cheong YS, Lee CM, Park SM, et al. Dual use of electronic and conventional cigarettes is associated with higher cardiovascular risk factors in Korean men. Sci Rep 2020; 10:5612.. Também, mais recentemente, um estudo realizado nos Estados Unidos avaliou a associação entre o uso de cigarros eletrônicos e o diagnóstico positivo para COVID-19 3030. Gaiha SM, Cheng J, Halpern-Felsher B. Association between youth smoking, electronic cigarette use, and coronavirus disease 2019. J Adolesc Health 2020; 67:519-23., e mostrou que a chance de ter diagnóstico positivo para a COVID-19 foi cinco vezes maior para usuários exclusivos de cigarro eletrônico na vida, sete vezes maior para usuários duais na vida e sete vezes maior para usuários duais nos últimos 30 dias, quando comparados aos que não usavam nenhum destes produtos.

Observou-se que a proporção de mulheres e de indivíduos com maior escolaridade no grupo que usa exclusivamente o DEF foi superior à observada entre os fumantes que usam/usaram exclusivamente cigarros convencionais. Apesar do baixo número de usuários dos dispositivos presentes na amostra estudada não permitir que tais análises comparativas sejam estatisticamente significativas, os resultados deste estudo sugerem que a presença de DEF pode contribuir para que subgrupos populacionais, que a princípio estariam menos propícios a usar cigarros convencionais, como mulheres e indivíduos de escolaridade mais elevada 3131. Szklo AS, Souza MC, Szklo M, Almeida LM. Smokers in Brazil: who are they? Tob Control 2016; 25:564-70., sejam atingidos pela epidemia do tabagismo. Isso porque a experimentação/iniciação do uso de cigarros convencionais pode ser fortalecida pela presença dos DEF 1616. Khouja JN, Suddell SF, Peters SE, Taylor AE, Munafò MR. Is e-cigarette use in non-smoking young adults associated with later smoking? A systematic review and meta-analysis. Tob Control 2020; 30:8-15.,1919. Barufaldi LA. Risco de iniciação ao tabagismo com o uso de cigarros eletrônicos: revisão sistemática e meta-análise. Ciênc Saúde Colet 2020; http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/risco-de-iniciacao-ao-tabagismo-com-o-uso-de-cigarros-eletronicos-revisao-sistematica-e-metaanalise/17801?id=17801.
http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/...
. E um possível reflexo disso pode já estar sendo captado pelo Vigitel, que constatou um aumento das estimativas pontuais de prevalência de uso de cigarros convencionais entre 2018 e 2019 1717. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2019: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2019. Brasília: Ministério da Saúde; 2019..

Também, a presença de DEF parece estar relacionada a outros comportamentos de risco. Neste estudo, observou-se uma maior proporção do consumo abusivo de álcool entre os indivíduos que usam DEF, independentemente do status de fumo, o que pode fazer com que haja um incremento de uso abusivo de álcool em decorrência do uso também de DEF. A associação entre o uso de DEF e de outras substâncias psicoativas, como, por exemplo, álcool e maconha, já foi descrita em diversos outros estudos 3232. McCabe SE, West BT, McCabe VV. Associations between early onset of e-cigarette use and cigarette smoking and other substance use among US adolescents: a national study. Nicotine Tob Res 2018; 20:923-30.,3333. Milicic S, Leatherdale ST. The associations between e-cigarettes and binge drinking, marijuana use, and energy drinks mixed with alcohol. J Adolesc Health 2017; 60:320-7.,3434. Park E, Livingston JA, Wang W, Kwon M, Eiden RD, Chang Y-P. Adolescent e-cigarette use trajectories and subsequent alcohol and marijuana use. Addict Behav 2020; 103:106213.,3535. Bentivegna K, Atuegwu NC, Oncken C, Di Franza JR, Mortensen EM. Electronic cigarettes associated with incident and polysubstance use among youth. J Adolesc Health 2020; 68:123-9.,3636. Rogers SM, Loukas A, Harrell MB, Chen B, Springer A, Perry CL. Multidirectional pathways of tobacco and marijuana use, including comorbid use, among young adults (aged 18-25 years) in Texas: a six-wave cross-lagged model. J Adolesc Health 2021; 68:116-22., e apontam na direção de que os usuários de DEF têm maiores chances de fazer uso subsequente destas substâncias.

Uma limitação inerente ao estudo deve-se ao fato de ser um inquérito telefônico baseado em residentes das capitais brasileiras que possuem linhas telefônicas fixas, o que reduz a representatividade do estudo. Contudo, para tentar contornar essa situação, foram utilizados pesos de pós-estratificação, com o intuito de recompor as características da população geral. No entanto, ainda pode haver distorções, como descrito em estudo anterior 3737. Ferreira AD, César CC, Malta DC, Souza Andrade AC, Ramos CGC, Proietti FA, et al. Validity of data collected by telephone survey: a comparison of VIGITEL 2008 and "Saúde em Beagá" survey. Rev Bras Epidemiol 2011; 14:16-30., que apontou que, para algumas variáveis comportamentais, como o tabagismo, essa calibração pode não ser suficiente para igualar os resultados de um inquérito telefônico e de um inquérito domiciliar. Mesmo assim, nossos resultados servem de alerta para o fato de que os DEF estão se disseminando nas capitais brasileiras e, segundo a teoria da difusão da inovação, logo poderá também sofrer um processo de interiorização, atingindo municípios menores e outros grupos socioeconômicos, caso nada seja feito. Além disso, a natureza transversal deste estudo não permite fazer afirmativas no que diz respeito à causalidade dos eventos, embora as conclusões comparativas entre os perfis de usuários atuais de DEF que nunca usaram cigarro convencional e dos usuários duais sofram menor influência do viés temporal.

Conclusões

Este estudo levanta importantes aspectos sobre as características sociodemográficas e de comportamento de risco dos usuários de DEF, e traz um alerta sobre o possível impacto negativo da disseminação dos DEF sobre a exitosa experiência do Brasil no combate ao tabagismo. Novos estudos sobre este tema podem servir, portanto, para apontar as ações legislativas, educacionais e de tratamento necessárias para impedir um aumento na morbimortalidade associada ao uso do cigarro convencional e/ou DEF no país.

Agradecimentos

Este estudo foi apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) por meio do programa Redes de Pesquisa em Saúde no Estado do Rio de Janeiro (E-26/010.002428/2019).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2020
  • Revisado
    13 Nov 2020
  • Aceito
    27 Nov 2020
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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