Resumos
O Guia Alimentar para a População Brasileira é reconhecido como um potente indutor de políticas públicas de alimentação e nutrição. Nessa perspectiva, este artigo apresenta o percurso metodológico e as evidências que subsidiaram a elaboração dos novos parâmetros de aquisição de alimentos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Tal elaboração envolveu as análises de: (1) participação dos recursos federais utilizados para compra de alimentos, agrupados segundo a classificação NOVA, empregada no Guia Alimentar para a População Brasileira, pelo conjunto de municípios brasileiros e segundo classificação da execução (positiva ou negativa); (2) cardápios mensais de referência que foram elaborados seguindo recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira; (3) aquisição de alimentos por amostra de 525 municípios, envolvendo a participação relativa dos grupos de alimentos (segundo a NOVA) no total de gastos e de energia e a qualidade nutricional dos alimentos adquiridos; e (4) alimentos ultraprocessados que não devem ser ofertados no ambiente escolar. Foi proposta a adoção dos seguintes parâmetros para participação dos grupos de alimentos em relação ao total de recursos federais empregados na compra de alimentos: ≥ 75% de recursos para alimentos in natura ou minimamente processados; < 20% para alimentos processados ou ultraprocessados e < 5% para ingredientes culinários processados e a ampliação da lista de alimentos cuja aquisição com recursos federais do PNAE é proibida. Esse processo subsidiou a elaboração da Resolução CD/FNDE nº 6, de 8 de maio de 2020, que dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar aos alunos da educação básica no âmbito do PNAE.
Palavras-chave:
Programas e Políticas de Nutrição e Alimentação; Guia Alimentares; Recomendações Nutricionais; Processamentos de Alimentos; Promoção da Saúde na Escolar
La Guía Alimentaria para la Población Brasileña está reconocida como un potente inductor de políticas públicas de alimentación y nutrición. Desde esta perspectiva, este artículo presenta la trayectoria metodológica y evidencias que apoyaron la elaboración de los nuevos parámetros de adquisición de alimentos del Programa Nacional de Alimentación Escolar (PNAE). Tal elaboración implicó los análisis de: (1) participación de los recursos federales utilizados para la compra de alimentos, agrupados según la clasificación NOVA, empleada en el Guía Alimentaria para la Población Brasileña, por el conjunto de municipios brasileños, y según la clasificación de la ejecución (positiva o negativa); (2) menús mensuales de referencia que fueron elaborados siguiendo recomendaciones del Guía Alimentaria para la Población Brasileña; (3) adquisición de alimentos mediante una muestra de 525 municipios, implicando la participación relativa de los grupos de alimentos (según NOVA) en el total de gastos y de energía, así como la calidad nutricional de los alimentos adquiridos; y (4) alimentos ultraprocesados que no deben ser ofrecidos en el entorno escolar. Se propuso la adopción de los siguientes parámetros para la participación de los grupos de alimentos, en relación con el total de recursos federales empleados en la compra de alimentos: ≥ 75% de recursos para alimentos in natura o mínimamente procesados; < 20% para alimentos procesados o ultraprocesados, y < 5% para ingredientes culinarios procesados, así como la ampliación de la lista de alimentos, cuya adquisición con recursos federales del PNAE está prohibida. Este proceso apoyó la elaboración de la Resolución CD/FNDE nº 6, del 8 de mayo de 2020, que organiza la atención de la alimentación escolar a alumnos de educación básica en el ámbito del PNAE.
Palabras-clave:
Programas y Políticas de Nutrición y Alimentación; Guías Alimentarias; Processamiento de Alimentos; Promoción de la Salud en la Escuela
Introdução
Mudanças no perfil epidemiológico e nutricional da população e na forma de compreender seus determinantes demandam a adequação e a atualização das políticas públicas. Nessa perspectiva, ao longo de suas décadas de existência, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) vem aprimorando suas diretrizes técnicas. A partir da publicação, pelo Ministério da Saúde, do primeiro Guia Alimentar para a População Brasileira, em 2006 11. Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira: promovendo alimentação saudável. Brasília: Ministério da Saúde; 2008., o PNAE adotou parâmetros para que os alimentos adquiridos com recursos federais estivessem alinhados às suas diretrizes. Para isso, em 2009, proibiu a aquisição de refrigerantes e sucos artificiais, limitou a aquisição de alimentos enlatados, embutidos, doces, alimentos compostos, preparações semiprontas ou prontas e alimentos com quantidade elevada de sódio ou de gordura saturada e, ainda, estabeleceu um parâmetro para a oferta mínima de frutas e hortaliças 22. Ministério da Educação, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Resolução nº 38, de 16 de julho de 2009, dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar aos alunos da educação básica no Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Diário Oficial da União 2009; 16 jul..
Em resposta ao aumento da obesidade, das doenças crônicas e do consumo de alimentos ultraprocessados, foi publicada, em 2014, nova versão do Guia Alimentar para a População Brasileira33. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.. Ela adotou como abordagem estruturante de suas orientações a classificação NOVA, que agrupa os alimentos segundo a extensão e o propósito de seu processamento industrial 44. Monteiro CA, Cannon G, Levy RB, Moubarac J-C, Jaime P, Martins AP, et al. NOVA. The star shines bright. World Nutr 2016; 7:28-38.,55. Monteiro CA , Cannon G , Levy RB , Moubarac J-C , Louzada MLC, Rauber F, et al. Ultra-processed foods: what they are and how to identify them. Public Health Nutr 2019; 22:936-41.. Diante dessas novas diretrizes alimentares do Ministério da Saúde, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) institui dois grupos de trabalho com intuito de atualização dos parâmetros nutricionais do PNAE para a aquisição e oferta de alimentos. Para isso, deveriam propor parâmetros que contribuíssem para o alcance dos objetivos do programa relacionados à saúde e segurança alimentar e nutricional dos escolares e que, ao mesmo tempo, fossem auditáveis por suas instâncias de controle social.
Os grupos de trabalho foram compostos por representantes do FNDE, do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, dos Centros Colaboradores em Alimentação e Nutrição do Escolar (CECANE) 66. Ministério da Saúde; Ministério da Educação. Portaria Interministerial nº 1.010, de 8 de maio de 2006. Institui as diretrizes para a Promoção da Alimentação Saudável nas Escolas de educação infantil, fundamental e nível médio das redes públicas e privadas, em âmbito nacional. Diário Oficial da União 2006; 9 mai., do Conselho Federal de Nutricionistas, da Organização Pan-Americana da Saúde, por nutricionistas responsáveis técnicos pelo PNAE de secretarias estaduais e municipais de educação, e de especialistas de diferentes instituições de ensino superior. O processo de trabalho foi apoiado por técnicos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), pelo Grupo Gestor do Programa de Aquisição de Alimentos e pelo Grupo Consultivo do PNAE. O primeiro grupo de trabalho atuou no período de abril a novembro de 2017 (aqui denominada Fase 1) e o segundo, de março a setembro de 2018 (Fase 2).
Este artigo tem como propósito apresentar o percurso metodológico e as evidências que subsidiaram o trabalho desses dois grupos no tocante à elaboração dos novos parâmetros de aquisição de alimentos no PNAE, bem como a proposta resultante deste esforço coletivo. O registro do percurso, as evidências e a proposta de parâmetros referente à oferta de alimentos extrapola o escopo deste artigo.
Métodos
Fase 1
Atualização dos parâmetros do PNAE para restrição de aquisição de alimentos
Nesta fase, foram realizados três grupos de análises: o primeiro, para o total das entidades executoras do PNAE (municípios, estados e escolas federais); o segundo, para um conjunto de municípios segundo nível de seu desempenho (execução positiva e execução negativa); e o terceiro, para cardápios elaborados pelos CECANE, conforme detalhado a seguir.
Para os três grupos de análise, foi realizada a alocação de cada alimento nos grupos da classificação NOVA 55. Monteiro CA , Cannon G , Levy RB , Moubarac J-C , Louzada MLC, Rauber F, et al. Ultra-processed foods: what they are and how to identify them. Public Health Nutr 2019; 22:936-41.. Tal alocação foi feita com base na lista de ingredientes declarada no rótulo dos alimentos, obtida, por meio de busca na internet, em sites de três grandes redes de supermercados. Para realizar essa busca, foi utilizada a nomenclatura dos alimentos do Sistema de Gestão de Prestação de Contas (SIGPC), por exemplo, achocolatado em pó. Já que o SIGPC não informa a marca dos produtos adquiridos, foi utilizada a lista de ingredientes do alimento que apresentou menor preço entre três diferentes marcas pesquisadas, tendo em vista que esse é o procedimento praticado nos processos licitatórios para aquisição de alimentação escolar. Para realizar essa alocação, uma proposta de consenso foi enviada por intermédio de formulário eletrônico aos membros das nove entidades e órgãos representados no grupo de trabalho, além dos CECANE, totalizando 24 especialistas consultados. No caso de discordância, uma proposta de consenso (e sua justificativa) era apresentada aos especialistas, analisada e resolvida entre membros do grupo.
a) Primeiro grupo de análises
Na resolução vigente à época 22. Ministério da Educação, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Resolução nº 38, de 16 de julho de 2009, dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar aos alunos da educação básica no Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Diário Oficial da União 2009; 16 jul., a aquisição de enlatados, embutidos, doces, alimentos compostos, preparações semiprontas ou prontas e alimentos com quantidade elevada de sódio ou de gordura saturada era restrita a até 30% dos recursos federais empregados na compra de alimentos para o Programa. Com o objetivo de subsidiar a atualização desses parâmetros, foi desenvolvido estudo ecológico com dados secundários obtidos do SIGPC para identificar a participação de cada grupo de alimentos, segundo extensão e propósito de seu processamento industrial, no total de recursos federais empregados na compra de alimentos para o programa. Os dados são referentes aos valores anuais de aquisição de cada alimento pelas entidades executoras do país, entre os anos de 2013 a 2015, último período disponível à época.
a) Segundo grupo de análises
Com a base de dados do SIGPC, foi realizada análise da participação de cada grupo de alimentos para um conjunto de municípios segundo seu nível de desempenho no programa. Para isso, foi selecionado um município por região com o maior número dos seguintes critérios de execução positiva: aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar acima do percentual mínimo previsto em lei (30%); prestação de contas aprovada sem ressalvas pelo Conselho de Alimentação Escolar (CAE) do município; ausência de saldo na conta específica do PNAE além do permitido pela legislação ao final do exercício; registro de pelo menos três ações de educação alimentar e nutricional no exercício de 2014; utilização de recursos próprios destinados à alimentação escolar em percentual equivalente a 50% ou mais dos valores transferidos pelo FNDE; e atingimento da meta prevista, para os anos iniciais do Ensino Fundamental, no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Também foi selecionado um município por região do país com o maior número dos seguintes critérios de execução negativa: não aquisição de alimentos da agricultura familiar; prestação de contas não aprovada pelo CAE; denúncia referente à execução do programa oriunda da ouvidoria do FNDE ou de órgão de controle, reprogramação de saldo acima do valor permitido (30%); e registro, no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional, de prevalência de 50% ou mais de excesso de peso entre crianças de 5 a 10 anos de idade. No ano de 2015, 30 municípios foram monitorados pelo FNDE e caracterizados de acordo com estes critérios. Os municípios incluídos nessa análise foram caracterizados segundo número de habitantes 77. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2010. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2011., Índice de Desenvolvimento Humano Municipal brasileiro 88. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Atlas do desenvolvimento humano no Brasil. Brasília: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/Fundação João Pinheiro/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2013. e número de alunos matriculados 99. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Notas estatísticas. Censo Escolar 2017. Brasília: Ministério da Educação; 2018..
c) Terceiro grupo de análises
Foi descrita a participação relativa de cada grupo de alimentos no total do custo de 22 cardápios mensais elaborados pelos CECANE das cinco regiões do país, de acordo com a recomendação do Guia Alimentar para a População Brasileira33. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2014. (p. 26) - “faça de alimentos in natura ou minimamente processados a base de sua alimentação” - que fossem exequíveis do ponto de vista da complexidade de preparo das refeições no ambiente escolar. Foram elaborados cardápios para atender 20%, 30% e 70% das necessidades nutricionais diárias dos alunos de creche, pré-escola, Ensino Fundamental e Médio. A participação relativa de cada grupo de alimentos foi cotejada com a média nacional de sua participação no montante de recursos federais empregados na compra de alimentos.
A participação relativa dos grupos de alimentos nos valores de aquisição dos cardápios mensais foi calculada da seguinte forma: (1) pesquisa de preço realizada no site da Central de Abastecimento (CEASA) do estado referente ao CECANE ou de estado mais próximo, em 2017; (2) utilização do menor preço de pesquisa realizada na Internet, conforme explicitado anteriormente, para os alimentos cujo preço não se encontrou no site da CEASA. A lista com preços dos alimentos foi validada pelo respectivo CECANE.
Foi também realizada a análise da qualidade dos cardápios elaborados pelos CECANE, aplicando-se o índice de qualidade da Coordenação de Segurança Alimentar e Nutricional (IQ COSAN) 1010. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Índice de qualidade da coordenação de segurança alimentar nutricional - IQ COSAN. Brasília: Ministério da Educação; 2018., que, além de avaliar características como a diversidade alimentar dos cardápios, presença de alimentos regionais e da sociobiodiversidade e ausência de alimentos proibidos, incorporou aspectos do Guia Alimentar para a População Brasileira em sua matriz avaliativa, atribuindo pontuação positiva à ausência de alimentos processados ou ultraprocessados em substituição à pontuação positiva para a ausência de alimentos restritos. A pontuação do IQ COSAN varia de 0-95 pontos e classifica os cardápios em: inadequado (0-45 pontos), precisa de melhoras (46-75 pontos) e adequado (76-95 pontos).
Com base nesse conjunto de análises, foi formulada proposta de atualização dos parâmetros para restrição da aquisição de alimentos que estabelecem valores percentuais máximos para aquisição de ingredientes culinários processados e alimentos processados e ultraprocessados e percentuais mínimos para aquisição de alimentos in natura ou minimamente processados.
Atualização dos parâmetros do PNAE para a proibição da aquisição de determinados alimentos Com o intuito de atualizar a lista de alimentos cuja aquisição com recursos federais do PNAE era proibida na resolução vigente à época 22. Ministério da Educação, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Resolução nº 38, de 16 de julho de 2009, dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar aos alunos da educação básica no Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Diário Oficial da União 2009; 16 jul., os alimentos ultraprocessados adquiridos em 2015 pelas entidades executoras (municípios, estados e escolas federais) do país, obtidos do SIGPC, foram analisados com base nas diretrizes do PNAE, nos preceitos do Guia Alimentar para a População Brasileira e da promoção da alimentação adequada saudável 88. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Atlas do desenvolvimento humano no Brasil. Brasília: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/Fundação João Pinheiro/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2013., segundo os quais guloseimas, bebidas açucaradas e outros não devem fazer parte da rotina alimentar de crianças e, sobretudo, não devem ser ofertados no ambiente escolar.
Em caráter complementar, esses alimentos foram analisados com base no Modelo de Perfil Nutricional da Organização Pan-Americana da Saúde1111. Organização Pan-Americana da Saúde. Modelo de perfil nutricional da Organização Pan-Americana da Saúde. Washington DC: Organização Pan-Americana da Saúde; 2016.. Foram, então, identificados aqueles que apresentavam teor excessivo de sódio (≥ 1g por 1Kcal), de açúcar livre (≥ 10% do valor energético total - VET do alimento), de gorduras totais (≥ 30% do VET do alimento), de gordura saturada (≥ 10% do VET do alimento), de gordura trans (≥ 1% do VET do alimento) e, ainda, aqueles que continham edulcorante. Como a declaração da quantidade de açúcares totais não é obrigatória nos rótulos dos alimentos no Brasil, foi calculada a diferença entre a quantidade de carboidratos totais do alimento analisado com açúcar e o alimento sem açúcar disponível na 4ª edição da Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TACO) 1212. Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação, Universidade Estadual de Campinas. Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TACO). Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2004., ou na tabela do Instituto Brasileira de Geografia e Estatística (IBGE) 1313. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tabela de composição de alimentos. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 1996. de 2008-2009, caso o alimento não constasse na primeira. Para os demais alimentos que não apresentavam versão sem açúcar na TACO ou na tabela do IBGE, utilizou-se o valor do açúcar livre do alimento, obtido da tabela do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) 1414. Agricultural Research Service, United States Department of Agriculture. Composition of foods raw, processed, prepared. Beltsville: United States Department of Agriculture; 2002. (USDA National Nutrient Database for Standard Reference. Release, 15)..
Com base nesse conjunto de análises, foram listados os alimentos ultraprocessados que deveriam ter aquisição proibida.
Fase 2
Os objetivos desta fase foram: (a) analisar a participação relativa dos alimentos adquiridos no PNAE, segundo extensão e propósito do seu processamento industrial, no total de recursos financeiros federais empregados na sua aquisição e no total de energia adquirida, e (b) identificar a relação entre a participação relativa dos grupos de alimentos nesses recursos financeiros e a qualidade dos alimentos adquiridos. Para isso, foi desenvolvido estudo ecológico com dados secundários oriundos do SIGPC, referentes ao ano de 2016, último ano disponível quando as análises foram realizadas. Foram utilizados dados referentes a quantidades de cada alimento e respectivos valores pagos (em Reais - R$) por 525 municípios. Para a seleção dos municípios, primeiro foi realizado sorteio de um estado de cada região (Acre, Alagoas, São Paulo, Santa Catarina e Goiás) e, então, considerando o conjunto de municípios desses estados (n = 1.310), foi realizado sorteio aleatório simples de 40% dos municípios.
A quantidade de cada alimento registrada pelos municípios em diferentes unidades de medida (p.ex.: kg, unidade, lata, maço) foi convertida em gramas 1515. Pinheiro ABV, Lacerda EMA, Benzecry EH, Gomes MCS, Costa VM. Tabela para avaliação de consumo alimentar em medidas caseiras. 4ª Ed. São Paulo: Editora Atheneu; 2002. e foi excluída a fração não comestível, de acordo com os fatores de correção correspondentes 1111. Organização Pan-Americana da Saúde. Modelo de perfil nutricional da Organização Pan-Americana da Saúde. Washington DC: Organização Pan-Americana da Saúde; 2016.. A composição nutricional dos alimentos adquiridos foi calculada com uso da TACO 1111. Organização Pan-Americana da Saúde. Modelo de perfil nutricional da Organização Pan-Americana da Saúde. Washington DC: Organização Pan-Americana da Saúde; 2016. e, para os alimentos não disponíveis nela, usou-se a tabela oficial de composição nutricional americana 1313. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tabela de composição de alimentos. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 1996..
Todos os itens alimentares adquiridos foram classificados segundo extensão e propósito de processamento industrial, conforme proposto no Guia Alimentar para a População Brasileira, de acordo com a classificação NOVA 33. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.,44. Monteiro CA, Cannon G, Levy RB, Moubarac J-C, Jaime P, Martins AP, et al. NOVA. The star shines bright. World Nutr 2016; 7:28-38.,55. Monteiro CA , Cannon G , Levy RB , Moubarac J-C , Louzada MLC, Rauber F, et al. Ultra-processed foods: what they are and how to identify them. Public Health Nutr 2019; 22:936-41., como descrito na Fase 1.
Adicionalmente, como elementos de avaliação da qualidade da alimentação fornecida pelos municípios, foram explorados: a distribuição percentual da energia oriunda de cada macronutriente (carboidratos, proteínas e lipídios) no total de energia adquirido, a densidade de micronutrientes (quantidade do micronutriente/energia total adquirida pelo município) (vitamina C, vitamina A, ferro e cálcio) e o número de alimentos in natura ou minimamente processados adquiridos. A última variável foi construída pela contagem de diferentes tipos de alimentos, de acordo com os conceitos de diversidade 1616. Kennedy G, Ballard T, Dop MC. Guidelines for measuring household and individual dietary diversity. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2011. e variedade 33. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2014., que, em alguma medida, expressam o aporte de micronutrientes da alimentação.
Para as análises dos dados da Fase 2, além dos valores médios obtidos para o conjunto de municípios analisados, eles foram divididos em quartos segundo participação relativa de energia oriunda de alimentos ultraprocessados no total de alimentos adquiridos, sendo o primeiro quarto (Q1) aquele com menor participação.
Foi estimada a participação média relativa (%) de energia e de recursos financeiros executados para cada um dos quatro grupos de alimentos para o conjunto de municípios analisados e em cada quarto de participação de alimentos ultraprocessados. Foram também estimados a distribuição percentual de macronutrientes e da densidade de micronutrientes e o número médio de alimentos in natura ou minimamente processados adquiridos para o conjunto de municípios analisados, para cada quarto de participação de alimentos ultraprocessados. Além disso, para o conjunto de municípios que atendiam aos parâmetros de participação relativa dos diferentes grupos de alimentos no total de recursos federais empregados para aquisição de alimentos propostos na Fase 1 (parâmetros de gastos), foram estimados a distribuição percentual de macronutrientes e o número médio de alimentos in natura ou minimamente processados adquiridos.
As análises dos dados foram realizadas no software Stata versão 14.2 (https://www.stata.com).
Resultados
Fase 1
Atualização dos parâmetros do PNAE para restrição de aquisição de alimentos
No período analisado (2013-2015), o grupo de alimentos in natura ou minimamente processados teve maior participação nos recursos federais empregados na compra do total de alimentos para o programa (67,6%). Já a participação média da soma dos grupos de alimentos ultraprocessados e processados correspondeu a quase um terço (29,3%) dos recursos federais despendidos (Tabela 1).
Participação (%) de cada grupo de alimento em relação ao total de recursos federais empregados na compra de alimentos. Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Brasil, 2013 a 2015.
Quando comparados à participação média nacional de cada grupo de alimentos (Tabela 1), os municípios com execução positiva do PNAE apresentaram valores superiores para a participação de alimentos in natura ou minimamente processados e inferiores para processados e ultraprocessados; sendo observado o oposto para os municípios com execução negativa. A participação média de ingredientes culinários processados nos dois grupos de municípios foi semelhante à média nacional (Tabela 2). Pode-se observar ainda que, no primeiro grupo de municípios, a participação média de alimentos in natura ou minimamente processados foi superior a 75%, do que a de processados e ultraprocessados, somados, foi inferior a 20% e que a de ingredientes culinários processados foi inferior a 5%.
A participação média do grupo dos alimentos in natura ou minimamente processados no custo dos 22 cardápios mensais elaborados pelos CECANE (88%) (Tabela 3) foi superior à participação média desse grupo no total de recursos federais empregados na compra de alimentos para o programa (Tabela 1). A participação média de ingredientes culinários processados (6,7%) também superou a participação média nacional desse grupo, e a soma da participação média de alimentos processados e ultraprocessados (5,3%) foi inferior à participação média nacional de tais grupos. Apesar da expressiva participação relativa de alimentos in natura ou minimamente processados, dos 22 cardápios mensais elaborados pelos CECANE, dez eram adequados, 11 precisavam de melhorias e um era inadequado no tocante à sua qualidade de acordo com o IQ COSAN (Tabela 3). Todos os cardápios previam a oferta de frutas e de preparações culinárias possíveis de serem produzidas no ambiente escolar, como arroz e feijão, baião de dois, arroz carreteiro, feijão tropeiro, maxixada, canjica e curau (dados não apresentados em tabela).
Com base nesse conjunto de resultados, o grupo de trabalho propôs que fossem adotados os seguintes parâmetros para participação dos grupos de alimentos em relação ao total de recursos federais empregados na compra de alimentos: ≥ 75% de recursos para alimentos in natura ou minimamente processados; < 20% para alimentos processados ou ultraprocessados; e < 5% para ingredientes culinários processados. Pela distribuição média obtida no período estudado, os parâmetros propostos buscaram estabelecer uma meta de participação dos diferentes grupos de alimentos que promovesse uma melhoria do perfil de aquisição de alimentos no âmbito do PNAE.
Atualização dos parâmetros do PNAE para a proibição da aquisição de determinados alimentos
De um total de 390 alimentos ultraprocessados adquiridos com recursos federais do programa, em 2015, foram identificados 160 que não deveriam ser ofertados no ambiente escolar, os quais foram reunidos em 13 categorias (Tabela 4). Mais da metade do total desses alimentos são produtos em pó ou para reconstituição (52,2%), como bebida láctea em pó, sopa em pó, mistura para canjica, bolo, pudim, risoto e arroz doce. O segundo principal grupo, que agregou 14% dos alimentos listados, refere-se aos concentrados à base de xarope de guaraná ou groselha, bebidas à base de frutas com aditivos ou adoçadas, além de outras bebidas similares, como suco concentrado, néctar de fruta e xarope para bebida.
Foi analisada a proibição da aquisição de margarina e de produtos cárneos ultraprocessados, como carne mecanicamente separada, mortadela, salsicha, almôndega, apresuntado, carne bovina em conserva, salame e linguiça. Embora apresentem altos teores de nutrientes críticos, a proibição poderia ser de difícil implementação, tendo em vista que são produtos de baixo custo que compõem ou acompanham preparações culinárias. Para evitar a presença frequente desses produtos nos cardápios, foram sugeridos parâmetros para limitar sua oferta.
De forma complementar, com base no Modelo de Perfil Nutricional da Organização Pan-Americana da Saúde, identificou-se que todos os 160 alimentos apresentavam pelo menos um nutriente crítico, que 62% continham alto teor de açúcar livre; 27,2%, alto teor de gordura saturada; 25,9%, alto teor de gorduras totais; 25,3%, alto teor de sódio; 2,5%, alto teor de gordura trans; e 6,3% continham edulcorante. O detalhamento desses resultados por categoria de alimentos está apresentado na Tabela 4.
Com base nessas análises, propôs-se que a lista de alimentos cuja aquisição seria proibida com recursos federais passasse a ser: refrigerantes e refrescos artificiais, já previstos na Resolução nº 38 de 2009 22. Ministério da Educação, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Resolução nº 38, de 16 de julho de 2009, dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar aos alunos da educação básica no Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Diário Oficial da União 2009; 16 jul., bebidas ou concentrados à base de xarope de guaraná ou groselha, chás prontos para consumo e outras bebidas similares, bebidas à base de frutas com aditivos ou adoçadas, cereais com aditivo ou adoçado, balas e similares, confeitos, bombons, chocolates em barra ou granulados, biscoitos ou bolachas recheadas, bolos com cobertura ou recheio, barras de cereais com aditivo ou adoçadas, gelados comestíveis, gelatinas, temperos com glutamato monossódico ou sais sódicos, maionese e alimentos em pó ou para reconstituição.
Fase 2
O grupo de alimentos in natura ou minimamente processados teve maior participação relativa de energia (52,9%) no total de alimentos comprados para o PNAE nos municípios estudados. Já o grupo dos alimentos ultraprocessados respondeu, em média, por quase 30% do total de energia adquirido, variando de 5,1% (para os 25% de municípios com menor participação) a 64% (para os 25% de municípios com maior participação). Somados aos alimentos processados, responderam por 1/3 da energia adquirida (Tabela 5).
O cotejamento dos resultados referentes à participação relativa de alimentos ultraprocessados no total de energia adquirido com a participação desses grupos de alimentos no total de recursos empregados indicou que a abordagem financeira guardava relação com a abordagem nutricional (Tabela 5). A constatação da coerência foi reiterada quando se comparou a participação relativa dos grupos de alimentos no total de calorias com a proposta, oriunda da Fase 1, de adoção de parâmetros de participação relativa dos grupos de alimentos no total de gastos: verificou-se que os municípios situados no primeiro quarto de participação energética de alimentos ultraprocessados (situação mais desejável para o programa) apresentaram, em média, distribuição próxima à dos parâmetros propostos.
A maior participação energética de alimentos ultraprocessados resultou em maior proporção de carboidratos (Q1: 52,1%; Q2: 56,2%; Q3: 57,1%; Q4: 62,4%) e menor proporção de proteínas (Q1: 17,7%; Q2: 15,5%; Q3: 14,3%; Q4: 12,6%) e lipídios (Q1: 30,2%; Q2: 28,3%; Q3: 28,6%; Q4: 25,1%). Nos municípios alocados no primeiro quarto de participação relativa de alimentos ultraprocessados no total de energia adquirida, foi encontrada a seguinte média de distribuição de macronutrientes: 52,02% para carboidratos, 17,74% para proteínas e 30,19% para lipídios. Já para aqueles alocados no último quarto, a distribuição foi de, respectivamente, 62,36%, 12,57% e 25,07%.
Em relação aos micronutrientes, a participação energética de alimentos ultraprocessados no total de alimentos adquiridos não influenciou a densidade de vitamina C, vitamina A e cálcio. A densidade de vitamina C foi menor, mas não de forma significativa, nos quartos superiores de participação de alimentos ultraprocessados, enquanto vitamina A e cálcio não apresentaram relação clara com a participação desses alimentos. Quanto ao ferro, foi constatado gradiente positivo de sua densidade de acordo com a participação de alimentos ultraprocessados no total de calorias adquiridas pelos municípios.
Pela análise do número de alimentos in natura ou minimamente processados adquiridos segundo participação de alimentos ultraprocessados, tem-se que as médias de itens foram 31,9 (Q1), 35,5 (Q2), 34,7 (Q3) e 35,3 (Q4).
Os parâmetros de gastos propostos na Fase 1 já eram praticados por 22,5% (n = 118) dos 525 municípios estudados nessa Fase. Neste grupo, a média de distribuição de energia oriunda de cada macronutriente foi a seguinte: 54% de carboidratos, 17,5% de proteínas e 28,5% de lipídios. Esses valores estão de acordo com as recomendações de distribuição de macronutrientes (respectivamente, 55-75% para carboidratos, 10-15% para proteínas e 15-30% para lipídios) 1717. Mann J, Cummings J, Englyst H, Key T, Liu S, Riccardi G, et al. FAO/WHO Scientific update on carbohydrates in human nutrition: conclusions. Eur J Clin Nutr 2007; 61 Suppl 1:S132-7.,1818. World Health Organization. Protein and amino acid requirements in human nutrition: report of a joint FAO/WHO/UNU expert consultation. Geneva: World Health Organization; 2007.,1919. Food and Agriculture Organization of the United Nations. Fats and fatty acids in human nutrition. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2008., a despeito de se referirem a um dia alimentar e não à aquisição de alimentos. Considerando o parâmetro de gasto com todos os grupos de alimentos, o número médio de tipos desses alimentos, foi de 34,9, porém não foram encontradas diferenças entre os municípios que alcançavam ou não os parâmetros.
O achado de que a participação de alimentos ultraprocessados não influenciou a quantidade de micronutrientes nem o número de alimentos in natura ou minimamente processados adquiridos (proxy de variedade e diversidade) levou a quatro recomendações. As primeiras três, de caráter mandatório, com foco na oferta de micronutrientes, a saber: inclusão nos cardápios de alimentos de fonte de ferro heme pelo menos quatro dias por semana e de alimentos-fonte de vitamina A pelo menos três dias por semana. No caso de alimentos fonte de ferro não heme, eles devem ser acompanhados de facilitadores da sua absorção, como alimentos-fonte de vitamina C. A quarta, de caráter sugestivo, tendo foco na aquisição: que fosse de no mínimo 50 o número de diferentes tipos de alimentos in natura ou minimamente processados adquiridos anualmente pelos municípios, com vistas a promover maior variedade e diversidade na alimentação escolar.
Discussão
Os parâmetros propostos para aquisição de alimentos contribuem para a incorporação das diretrizes do Guia Alimentar para a População Brasileira no PNAE, uma vez que se baseiam na extensão e no propósito de processamento industrial dos alimentos. Além disso, a participação relativa dos recursos empregados na aquisição dos grupos de alimentos no total de recursos executados foi coerente com a participação relativa de energia desses grupos no total de energia adquirida. Por consequência, o estabelecimento de pontos de corte para a participação dos grupos de alimentos no total de recursos federais empregados em sua compra que preveem participação majoritária de alimentos in natura ou minimamente processados e limitada dos processados e ultraprocessados convergem com as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira.
Foi observada, também, coerência entre os parâmetros propostos e a distribuição relativa de energia de cada macronutriente (carboidratos, proteínas e gorduras) no total de energia adquirida. As participações relativas, no total de energia adquirida, tanto dos grupos de alimentos segundo extensão e propósito do processamento industrial 55. Monteiro CA , Cannon G , Levy RB , Moubarac J-C , Louzada MLC, Rauber F, et al. Ultra-processed foods: what they are and how to identify them. Public Health Nutr 2019; 22:936-41. quanto dos macronutrientes são importantes proxy de qualidade da alimentação 2020. Monteiro CA, Cannon G, Lawrence M, Louzada MLC, Machado PP. Ultra-processed foods, diet quality, and health using the NOVA classification system. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2019.. Vale registrar que a equivalência observada entre os parâmetros de aquisição e os parâmetros nutricionais se deu em função dos preços dos alimentos praticados em 2016. Ao atentar para a tendência de diminuição relativa dos preços de alimentos ultraprocessados em relação aos in natura ou minimamente processados 2121. Maia EG, Passos M, Levy RB, Martins APB. What to expect from the price of healthy and unhealthy foods over time? The case from Brazil. Public Health Nutr 2020; 23:579-88., os pontos de corte dos parâmetros propostos devem ser revisados periodicamente.
Os parâmetros de aquisição propostos se mostraram factíveis, já que, dos 525 municípios estudados na segunda fase, 22,5% os praticavam. Além disso, os cardápios elaborados pelos CECANE se mostraram factíveis do ponto de vista do preparo. A factibilidade é um atributo imprescindível a qualquer proposta de melhoria de uma política pública, sendo tão importante quanto sua qualidade técnico-científica, pois é ela que possibilitará a aplicabilidade em diferentes realidades.
Ao mesmo tempo, se plenamente praticados, os parâmetros de aquisição propostos induzirão o aprimoramento do PNAE, pois a média do percentual de recursos financeiros empregados na aquisição de alimentos in natura ou minimamente processados aumentará de 69% para pelo menos 75%.
Além disso, vale destacar a importância de não apenas serem indicados os valores mínimos para gastos com aquisição de alimentos in natura ou minimamente processados, o que poderia ser operacionalmente mais simples, mas também apontar os limites para gastos com ingredientes culinários processados e alimentos processados e ultraprocessados, uma vez que essas recomendações são complementares e atuam para favorecer a qualidade da alimentação oferecida pelo PNAE.
Na ótica da gestão pública, é importante estabelecer parâmetros que induzam os municípios e estados a melhorarem a qualidade nutricional dos cardápios oferecidos nas escolas porque o PNAE é uma das políticas estratégicas para a garantia da segurança alimentar e nutricional 2020. Monteiro CA, Cannon G, Lawrence M, Louzada MLC, Machado PP. Ultra-processed foods, diet quality, and health using the NOVA classification system. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2019.. Ademais, a alimentação escolar pode ser um fator de proteção para obesidade e doenças crônicas não transmissíveis 2222. Nogueira RM, Barone B, Barros TT, Guimarães KLSLQ, Rodrigues SS, Behrens JH. Sixty years of the National Food Program in Brazil. Rev Nutr 2016; 29:253-67.,2323. Gonçalves VS, Duarte EC, Dutra ES, Barufaldi LA, Carvalho KM. Characteristics of the school food environment associated with hypertension and obesity in Brazilian adolescents: a multilevel analysis of the Study of Cardiovascular Risks in Adolescents (ERICA). Public Health Nutr 2019; 22:2625-34. e contribui para um ambiente alimentar escolar promotor de práticas alimentares saudáveis 2424. Noll PRS, Noll M, Abreu LC, Baracat EC, Silveira EA, Sorpreso ICE. Ultra-processed food consumption by Brazilian adolescents in cafeterias and school meals. Sci Rep 2019; 9:7162.,2525. Locatelli NT, Canella DS, Bandoni DH. Positive influence of school meals on food consumption in Brazil. Nutrition 2018; 53:140-4..
De mais a mais, os parâmetros propostos são auditáveis pelas instâncias de controle social. Os gestores municipais têm obrigação de apresentar informações detalhadas sobre gastos com aquisição de alimentos ao Conselho de Alimentação Escolar. Com base nelas e com uma lista da classificação dos alimentos segundo a NOVA (que pode ser disponibilizada pelo FNDE), os conselheiros poderão calcular a participação relativa de cada grupo de alimentos no total de recursos. Isso representa um importante avanço para as práticas de controle social, já que, até 2020, parte dos parâmetros nutricionais do PNAE era focada em nutrientes e dependia de ferramentas computacionais e profissionais especializados para verificação do seu cumprimento.
A possibilidade de acompanhamento desses parâmetros pela sociedade é uma forma de obedecer a um dos princípios do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei nº 11.346/2006), transparência também encorajada em documentos internacionais 2626. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the Lancet Commission Report. Lancet 2019; 393:791-846.. Segundo Siqueira et al, nos últimos anos, o PNAE avançou no seu marco legal em direção à realização do direito humano à alimentação, mas ainda é preciso avançar no envolvimento ativo das organizações da sociedade civil 2727. Siqueira RL, Cotta RMM, Ribeiro RCL, Sperandio N, Priore SE. Análise da incorporação da perspectiva do direito humano à alimentação adequada no desenho institucional do programa nacional de alimentação escolar. Ciênc Saúde Colet 2014; 19:301-10..
Por outro lado, uma baixa participação de alimentos ultraprocessados no total de alimentos adquiridos não foi suficiente para promover maior aporte de micronutrientes nem maior diversidade e variedade de alimentos in natura ou minimamente processados no elenco de alimentos adquiridos quando comparada a uma maior participação de alimentos ultraprocessados. Esse segundo achado foi corroborado pela análise dos cardápios elaborados pelos CECANE: mesmo elaborados de acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira, mais da metade deles não alcançou classificação “adequada” para diversidade/variedade. Os resultados referentes ao aporte de micronutrientes divergem daqueles encontrados em estudos que investigaram a qualidade nutricional da dieta segundo participação de alimentos ultraprocessados, em bases de dados de consumo alimentar individual. Neles, foi verificada associação inversa entre consumo de ultraprocessados e ingestão de micronutrientes como B12, ferro, zinco, entre outros 2828. Falcão RCTMA, Lyra CO, Morais CMM, Pinheiro LGB, Pedrosa LFC, Lima SCVC, et al. Processed and ultra-processed foods are associated with high prevalence of inadequate selenium intake and low prevalence of vitamin B1 and zinc inadequacy in adolescents from public schools in an urban area of northeastern Brazil. PLoS One 2019; 14:e0224984.,2929. Cornwell B, Villamor E, Mora-Plazas M, Marin C. Processed and ultra-processed foods are associated with lower-quality nutrient profiles in children from Colombia. Public Health Nutr 2017, 21:142-7.,3030. Louzada MLC, Martins APB, Canella DS, Baraldi LG, Levy RB, Claro RM, et al. Impact of ultra-processed foods on micronutrient content in the Brazilian diet. Rev Saúde Pública 2015, 49:45.,3131. Elizabeth L, Machado P, Zinöcker M, Baker P, Lawrence M. Ultra-processed foods and health outcomes: a narrative review. Nutrients 2020; 12:1955.. Uma possível explicação para a divergência é o fato de, em nosso estudo, a estimativa do aporte de micronutrientes ter sido feita com base em dados de aquisição e não de consumo de alimentos. Tal método pode não ter tido sensibilidade suficiente para captar essa associação. Por outro lado, nossos achados corroboram os de outros estudos, que apontam baixa diversidade/variedade da dieta dos brasileiros, independentemente da participação de alimentos ultraprocessados 3232. Canella DS, Louzada MLC, Claro RM, Costa JC, Bandoni DH, Levy RB, et al. Consumption of vegetables and their relation with ultra-processed foods in Brazil. Rev Saúde Pública 2018; 52:50.,3333. Oliveira N, Santin F, Paraizo TR, Sampaio JP, Moura-Nunes N, Canella DS. Baixa variedade na disponibilidade domiciliar de frutas e hortaliças no Brasil: dados das POF 2008-2009 e 2017-2018. Ciênc Saúde Colet 2021; 26:5805-16.. Esta baixa diversidade/variedade parece ocorrer também no processo de aquisição de alimentos do PNAE 3434. Amorim ANB, Rosso VV, Bandoni DH. Acquisition of family farm foods for school meals: Analysis of public procurements within rural family farming published by the cities of São Paulo state. Rev Nutr 2016; 29:297-306.. Tendo em vista esses achados referentes ao aporte de micronutrientes e diversidade/variedade alimentar, os critérios para aquisição de alimentos devem ser complementados por critérios de oferta que contribuam para a garantia da qualidade das refeições oferecidas.
É importante comentar algumas limitações do estudo. Os dados do SIGPC são referentes apenas às aquisições realizadas com recursos repassados pelo FNDE, desconsiderando a contrapartida dos municípios. Assim, aquisições realizadas com recursos próprios não foram computadas. Apesar de não refletirem o que foi efetivamente consumido pelos estudantes, as estimativas de compra são precisas para determinar os tipos de alimentos e os valores gastos com alimentação escolar. A falta de informações sobre o valor da contrapartida de estados e municípios também não permitiu estimar o impacto financeiro dos parâmetros propostos, aspecto importante para a avaliação de sua factibilidade.
No que diz respeito à aplicação do Modelo de Perfil Nutricional da Organização Pan-Americana da Saúde, tendo em vista a não obrigatoriedade da declaração da quantidade de açúcares totais nos rótulos dos alimentos no Brasil e a indisponibilidade das marcas dos produtos no SIGPC, houve imprecisão nas estimativas de composição nutricional e de açúcares livres nos alimentos adquiridos. Todavia, tendo em vista a limitação da legislação de rotulagem no país e que o estudo se baseou em dados secundários, foi delineada estratégia analítica bem fundamentada e que pode ser reproduzida.
Outro aspecto relevante se refere às diferenças de registro de informações dos municípios no que tange à quantidade de alimentos adquiridos. Em alguns casos, medidas como maço e unidade foram encontradas desacompanhadas de informações referentes a peso. Com base na literatura, adotou-se uma padronização de peso para essas medidas, mas não é possível garantir a precisão dos valores.
Além disso, não foi possível avaliar o aporte diário per capita de micronutrientes, visto que só estavam disponíveis dados anuais de compra de alimentos, sem nenhuma informação sobre quantidades per capita e número de beneficiários, por exemplo. Porém, a análise do número de tipos de alimentos adquiridos pode ser considerada uma proxy de variedade e diversidade, que está associada ao aporte de micronutrientes.
Cabe, também, comentar as fortalezas do estudo. A primeira delas foi a adoção da classificação NOVA, do Guia Alimentar para a População Brasileira e do Modelo de Perfil Nutricional da Organização Pan-Americana da Saúde, referenciais teóricos consistentes sobre tema de interesse do estudo. A segunda diz respeito ao fato de os parâmetros propostos serem pautados em base empírica oriunda da rotina do PNAE, fato que permitiu trabalhar com grande volume de dados e produzir evidências robustas para os objetivos pretendidos.
Como lição aprendida, a experiência de conciliar aspectos científicos e rigor metodológico com o saber acumulado na experiência de gestão permitiu chegar a uma proposta de parâmetros embasados cientificamente e aplicáveis à realidade de uma política pública em funcionamento há mais de sessenta anos.
Este processo subsidiou a revisão dos parâmetros de aquisição de alimentos recentemente publicados na Resolução nº 6/20203535. Ministério da Educação, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Resolução nº 6, de 8 de maio de 2020, sobre o atendimento da alimentação escolar aos alunos da educação básica no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Diário Oficial da União 2020; 8 mai., que atualizou as normas para a execução do PNAE a partir de 2021. Esta nova resolução reitera a contribuição do programa para a garantia da segurança alimentar e nutricional dos escolares da educação básica pública em alinhamento com as diretrizes alimentares vigentes no brasil.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
20 Abr 2022 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
03 Jun 2020 - Revisado
06 Out 2020 - Aceito
16 Out 2020