Organização dos sistemas locais de saúde em municípios rurais remotos brasileiros no enfrentamento da pandemia de COVID-19

Organization of local healthcare systems in remote rural Brazilian municipalities to combat the COVID-19 pandemic

Organización de los sistemas de salud locales en municipios rurales remotos de Brasil en la lucha contra la pandemia de COVID-19

Nereide Lucia Martinelli Simone Schenkman Elisete Duarte Cleide Lavieri Martins Renata Elisie Barbalho Márcia Cristina Rodrigues Fausto Aylene Emilia Moraes Bousquat Sobre os autores

Resumo:

Na pandemia de COVID-19, as populações que vivem mais afastadas dos centros urbanos enfrentaram imensas dificuldades no acesso aos serviços de saúde. O objetivo deste estudo é analisar como os municípios rurais remotos brasileiros enfrentaram a pandemia de COVID-19, tendo como base sua resposta política, estrutural e organizativa ao acesso à saúde. Trata-se de estudo qualitativo de casos múltiplos com a análise de conteúdo temática e dedutiva de 51 entrevistas conduzidas com gestores e profissionais de saúde em 16 municípios rurais remotos dos estados de Rondônia, Mato Grosso, Tocantins, Piauí, Minas Gerais e Amazonas. Com dinâmicas socioespaciais próprias, grandes distâncias até os centros de referência, os municípios rurais remotos responderam às demandas da pandemia, mas não tiveram suas necessidades atendidas oportunamente. Preservaram a comunicação com a população, reorganizaram o sistema local centrado na atenção primária à saúde (APS), alteraram o funcionamento das unidades de saúde, ultrapassando os limites de suas atribuições para prestar o cuidado necessário e aguardar o encaminhamento aos demais níveis de complexidade. Enfrentaram a escassez de serviços, as lacunas assistenciais da rede regional e o transporte sanitário inadequado. A pandemia reiterou as dificuldades da APS em coordenar o cuidado e expôs os vazios assistenciais nas regiões de referência. A provisão equitativa e resolutiva do sistema local de saúde nos municípios rurais remotos implica na articulação interfederativa à formulação e implementação de políticas públicas de modo a assegurar o direito à saúde.

Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; Acesso aos Serviços de Saúde; Sistemas Locais de Saúde

Abstract:

During the COVID-19 pandemic, populations living further away from urban centers faced immense difficulties accessing health services. This study aims to analyze how Brazilian remote rural municipalities faced the COVID-19 pandemic based on their political, structural, and organizational response to access to healthcare. A qualitative study of multiple cases was conducted with thematic and deductive content analysis of 51 interviews conducted with managers and healthcare professionals in 16 remote rural municipalities in the states of Rondônia, Mato Grosso, Tocantins, Piauí, Minas Gerais, and Amazonas. With their socio-spatial dynamics and long distances to reference centers, the remote rural municipalities responded to the demands of the pandemic but did not have their needs met promptly. They preserved communication with the population, reorganized the local system centered on primary health care (PHC), and changed the functioning of healthcare units, exceeding the limits of their responsibilities to provide the necessary care and awaiting referral to other levels of complexity. They faced a shortage of services, gaps in assistance in the regional network, and inadequate healthcare transport. The pandemic reiterated PHC’s difficulties in coordinating care, exposing care gaps in reference regions. The equitable and resolute provision of the local health system in the remote rural municipalities implies inter-federative articulation in formulating and implementing public policies to ensure the right to health.

Keywords:
Primary Health Care; Access to Health Services; Local Health Systems

Resumen:

En la pandemia de COVID-19, las poblaciones que viven más alejadas de los centros urbanos enfrentaron inmensas dificultades para acceder a los servicios de salud. El objetivo de este estudio es analizar cómo los municipios rurales remotos de Brasil enfrentaron la pandemia de COVID-19, a partir de su respuesta política, estructural y organizativa al acceso a la salud. Se realizó el estudio cualitativo de casos múltiple con el análisis de contenido temático y deductivo de 51 entrevistas realizadas con gestores y profesionales de la salud en 16 municipios rurales remotos de los estados de Rondônia, Mato Grosso, Tocantins, Piauí, Minas Gerais y Amazonas. Con dinámicas socioespaciales propias y alejados de los centros de referencia, los municipios rurales remotos respondieron a las demandas de la pandemia, pero no se atendieron sus necesidades de manera oportuna. Preservaron la comunicación con la población, reorganizaron el sistema local centrado en la atención primaria de salud (APS), modificaron el funcionamiento de las unidades de salud, superando los límites de sus atribuciones para proporcionar la atención necesaria, y esperar la derivación a los demás niveles de complejidad. Enfrentaron la falta de servicios, las lagunas asistenciales de la red regional y el transporte sanitario inadecuado. La pandemia reafirmó las dificultades de la APS para coordinar la atención y expuso las lagunas asistenciales en las regiones de referencia. La provisión equitativa y resolutiva del sistema de salud local en los municipios rurales remotos implica en la articulación interfederativa para elaborar e implementar políticas públicas para asegurar el derecho a la salud.

Palabras-clave:
Atención Primaria de Salud; Acceso a los Servicios de Salud; Sistemas Locales de Salud

Introdução

Na pandemia de COVID-19, as populações mais afastadas dos centros urbanos enfrentaram dificuldades no acesso aos serviços de saúde, expressando desigualdades na oferta de serviços e disponibilidade de profissionais. Esses vazios assistenciais demandam dos gestores municipais brasileiros o estabelecimento de parcerias para reorganizar os sistemas locais de saúde, especialmente na atenção especializada 11. Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, Cabral LMDS, Seidl H. Sustentabilidade da atenção primária à saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:1605-18.,22. Almeida PF, Santos AM, Lima LD, Cabral LMS, Lemos MLL, Bousquat AEM. Consórcio Interfederativo de Saúde na Bahia, Brasil: implantação, mecanismo de gestão e sustentabilidade do arranjo organizativo no Sistema Único de Saúde. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00028922.,33. Albuquerque MV, Ribeiro LHL. Desigualdade, situação geográfica e sentidos da ação na pandemia da COVID-19 no Brasil. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00208720.,44. Prentice S. O desafio do atendimento à criança rural no Canadá. Cad CEDES 2017; 37:419-41.,55. Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: oferta, acesso e utilização de serviços de saúde nos últimos 30 anos. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1751-62..

Os efeitos causados pelo SARS-CoV-2 afetaram diferentes lugares, a incidência da COVID-19 variou e provocou mudanças em todos os níveis do sistema de saúde, alterando a rotina e a dinâmica dos territórios 66. Lima LD, Pereira AMM, Machado CV. Crise, condicionantes e desafios de coordenação do Estado federativo brasileiro no contexto da COVID-19. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00185220.,77. Cataia M. Civilização na encruzilhada: globalização perversa, desigualdades socioespaciais e pandemia. Revista Tamoios 2020; 16:232-45.. No contexto de uma pandemia, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no dia 11 de março de 2020, e na perspectiva de uma atenção primária à saúde (APS) resolutiva e ampliada, a organização e a disponibilidade de serviços de saúde locais tornam-se ainda mais relevantes, variando em função do tipo de governança, de gestão, do modelo de cuidado e das necessidades da população 11. Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, Cabral LMDS, Seidl H. Sustentabilidade da atenção primária à saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:1605-18.,88. Bousquat AEM, Fausto MCR, Almeida PF, Lima JG, Seidl H, Sousa ABL, et al. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev Saúde Pública 2022; 56:73..

Entre as populações vulneráveis, estão aquelas que vivem nos 323 municípios rurais remotos no Brasil 9. Com populações dispersas, enfrentam maiores dificuldades pela distância até os centros urbanos que concentram importante parte dos recursos de saúde 11. Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, Cabral LMDS, Seidl H. Sustentabilidade da atenção primária à saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:1605-18.,88. Bousquat AEM, Fausto MCR, Almeida PF, Lima JG, Seidl H, Sousa ABL, et al. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev Saúde Pública 2022; 56:73.,99. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2017..

Independentemente da crise epidemiológica e sanitária, a necessidade de primeiro contato com o serviço de saúde foi reiterada por diversos autores 1010. Giovanella L, Martufi V, Mendoza DCR, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, et al. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saúde Debate 2020; 44(spe4):161-76.,1111. Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, Fausto MCR. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00255020.. A APS enfrentou novos desafios pelo seu potencial para intervir e comunicar-se com a comunidade, gerenciar os riscos, realizar a vigilância, conter a disseminação do vírus, e prestar os primeiros cuidados demandados pela COVID-19 1010. Giovanella L, Martufi V, Mendoza DCR, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, et al. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saúde Debate 2020; 44(spe4):161-76.,1212. Dunlop C, Howe A, Li D, Allen LN. The coronavirus outbreak: the central role of primary care in emergency preparedness and response. BJGP Open 2020; 4:bjgpopen20X101041..

Nos municípios rurais remotos, a rede de atenção é constituída basicamente por serviços de APS, a principal porta de entrada ao Sistema Único de Saúde (SUS). É desenvolvida pelas equipes de atenção básica e, especialmente, da Estratégia Saúde da Família (ESF) 1111. Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, Fausto MCR. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00255020.,1313. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da atenção básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2017; 22 set.,1414. Ministério da Saúde. Cobertura da atenção básica. https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relHistoricoCoberturaAB.xhtml (acessado em 13/Mar/2023).
https://egestorab.saude.gov.br/paginas/a...
, mas tem escassez de profissionais, de recursos financeiros 66. Lima LD, Pereira AMM, Machado CV. Crise, condicionantes e desafios de coordenação do Estado federativo brasileiro no contexto da COVID-19. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00185220. e maior dependência da rede de serviços de referência localizadas nas regiões e em cidades com maior dinamismo e poder econômico 66. Lima LD, Pereira AMM, Machado CV. Crise, condicionantes e desafios de coordenação do Estado federativo brasileiro no contexto da COVID-19. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00185220.,1515. Lakhani HV, Pillai SS, Zehra M, Sharma I, Sodhi K. Systematic review of clinical insights into novel coronavirus (COVID-19) pandemic: persisting challenges in US rural population. Int J Environ Res Public Health 2020; 17:4279.,1616. Fitts MS, Russell D, Mathew S, Liddle Z, Mulholland E, Comerford C, et al. Remote health service vulnerabilities and responses to the COVID-19 pandemic. Aust J Rural Health 2020; 28:613-7.,1717. Marchildon GP, Allin S, Merkur S. Canada: health system review. Health Syst Transit 2020; 22:1-194..

As dificuldades dos municípios rurais remotos para suprir as necessidades da população, garantir o transporte adequado e o acesso aos serviços de saúde em tempo hábil 11. Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, Cabral LMDS, Seidl H. Sustentabilidade da atenção primária à saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:1605-18.,88. Bousquat AEM, Fausto MCR, Almeida PF, Lima JG, Seidl H, Sousa ABL, et al. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev Saúde Pública 2022; 56:73.,1111. Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, Fausto MCR. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00255020. também são encontradas nos Estados Unidos, Austrália, Canadá, China, Índia, Portugal, entre outros. Resultam em desigualdades de acesso entre populações rurais e urbanas, impõem desafios para organizar os serviços de saúde e assegurar o acesso da população em tempo oportuno 1515. Lakhani HV, Pillai SS, Zehra M, Sharma I, Sodhi K. Systematic review of clinical insights into novel coronavirus (COVID-19) pandemic: persisting challenges in US rural population. Int J Environ Res Public Health 2020; 17:4279.,1616. Fitts MS, Russell D, Mathew S, Liddle Z, Mulholland E, Comerford C, et al. Remote health service vulnerabilities and responses to the COVID-19 pandemic. Aust J Rural Health 2020; 28:613-7.,1717. Marchildon GP, Allin S, Merkur S. Canada: health system review. Health Syst Transit 2020; 22:1-194.,1818. Liu Y, Saltman RB. Policy lessons from early reactions to the COVID-19 virus in China. Am J Public Health 2020; 110:1145-8.,1919. Kidd MR. Five principles for pandemic preparedness: lessons from the Australian COVID-19 primary care. Br J Gen Pract 2020; 70:316-7.,2020. Vasques JR, Peres AM, Straub M, Souza TL. Organização dos sistemas de saúde no enfrentamento à COVID-19: uma revisão de escopo. Rev Panam Salud Pública 2023; 47:e38..

É partindo desse cenário, com dificuldades e desigualdades locais e regionais na oferta e distribuição dos serviços, que os sistemas locais de saúde dos municípios rurais remotos tiveram que enfrentar a maior crise sanitária dos últimos 100 anos 33. Albuquerque MV, Ribeiro LHL. Desigualdade, situação geográfica e sentidos da ação na pandemia da COVID-19 no Brasil. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00208720.,88. Bousquat AEM, Fausto MCR, Almeida PF, Lima JG, Seidl H, Sousa ABL, et al. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev Saúde Pública 2022; 56:73.,1010. Giovanella L, Martufi V, Mendoza DCR, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, et al. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saúde Debate 2020; 44(spe4):161-76.. O objetivo deste estudo é analisar como os municípios rurais remotos brasileiros enfrentaram a pandemia de COVID-19, tendo como base sua resposta política, estrutural e organizativa ao acesso à saúde.

Método

Estudo qualitativo de casos múltiplos, integrante da pesquisa nacional Desafios e Estratégias no Enfrentamento da Pandemia da COVID-19 nos Municípios Rurais e Remotos Brasileiros. O enfoque metodológico apoiou-se no instrumental de políticas públicas 2121. Viana ALd'A, Ferreira MP, Cutrim MA, Fusaro ER, Souza MR, Mourão L, et al. The regionalization process in Brazil: influence on policy, structure and organization dimensions. Rev Bras Saúde Mater Infant 2017; 17 Suppl 1:S27-43.,2222. Viana Ald'A, Bousquat A, Cutrim MA, Ferreira MP, Fusaro ER, Souza MR, et al. Região e Redes: abordagem multidimensional e multinível para análise do processo de regionalização da saúde no Brasil. Rev Bras Saúde Mater Infant 2017; 17 Suppl 1:S7-16., desdobrado na análise multidimensional que analisou os condicionantes políticos, estruturais e organizativos, para compreender como se deu a reorganização do sistema de saúde locorregional nos municípios rurais remotos durante a pandemia da COVID-19.

Inicialmente, em 2020, foi realizada a coleta de dados secundários nos bancos de dados oficiais: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Departamento de Informática do SUS (DATASUS), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD; 2010); Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES; 2019). Paralelamente, realizou-se busca na internet de documentos, notícias, planos de contingência, entre outros, que permitissem identificar as atividades realizadas no combate à pandemia em todos os municípios rurais remotos brasileiros. Foi definido que no mínimo dez documentos seriam necessários para essa análise. Dos 323 municípios rurais remotos, apenas 26 não cumpriram esse critério. Em 2022, foram coletados os recursos financeiros transferidos por meio de emendas parlamentares, entre 2020 e 2022 (do Fundo Nacional de Saúde/Ministério da Saúde) e o valor destinado ao enfrentamento da COVID-19.

Foi criado um escore de enfrentamento à COVID-19 a partir da análise documental, sendo definidas 29 variáveis distribuídas em seis dimensões: condução política (plano, decretos, comitê de enfrentamento); organização dos serviços (fluxos de atendimento, unidades de referência, atendimento remoto/rotina); isolamento social (suspensão das atividades); vigilância de casos (monitoramento de casos/contactantes); vigilância de fronteiras (barreiras, quarentena); e apoio social (máscaras, produtos de higiene, merenda, cestas básicas, suspensão de cobrança de contas). Os pesos foram iguais para as dimensões e suas variáveis componentes. As variáveis e dimensões variaram de 0 a 1, sendo 1 o mais completo.

Entre os que obtiveram os escores com maior e menor completude, selecionaram-se 16 municípios rurais remotos para realizar entrevistas: Campinápolis, Figueirópolis D’Oeste, Indiavaí, Nova Canaã do Norte, Nova Lacerda, Serra Nova Dourada, Terra Nova do Norte e Vila Bela da Santíssima Trindade (Mato Grosso); Campos Lindos e Goianorte (Tocantins); Indaiabira e Rubelita (Minas Gerais); Maués (Amazonas); Pajeú do Piauí e Porto Alegre do Piauí (Piauí); e São Miguel do Guaporé (Rondônia).

As entrevistas foram apoiadas por roteiros semiestruturados, embasadas no instrumental de análise de políticas públicas 2121. Viana ALd'A, Ferreira MP, Cutrim MA, Fusaro ER, Souza MR, Mourão L, et al. The regionalization process in Brazil: influence on policy, structure and organization dimensions. Rev Bras Saúde Mater Infant 2017; 17 Suppl 1:S27-43.,2222. Viana Ald'A, Bousquat A, Cutrim MA, Ferreira MP, Fusaro ER, Souza MR, et al. Região e Redes: abordagem multidimensional e multinível para análise do processo de regionalização da saúde no Brasil. Rev Bras Saúde Mater Infant 2017; 17 Suppl 1:S7-16. e categoria acesso, como referencial teórico 2323. Russell DJ, Humphreys JS, Ward B, Chisholm M, Buykx P, McGrail M, et al. Helping policy-makers address rural health access problems. Aust J Rural Health 2013; 21:61-71.. Analisaram-se as dimensões: (1) política - disputas entre níveis de governo e o poder decisório; (2) estrutural - a capacidade instalada laboratorial, ambulatorial, hospitalar e de leitos de unidade de tratamento intensivo (UTI), aquisição dos insumos específicos, equipamentos, incluindo os equipamentos de proteção individual (EPI); e (3) organizacional - estratégias priorizadas, acompanhamento e atendimento remotos, acesso aos serviços da rede local e regionalizada, mecanismos de regulação, redesenho dos fluxos e reorganização das ações e serviços da APS.

Utilizaram-se roteiros diferenciados para os distintos atores políticos: secretários municipais de saúde (n = 13), coordenadores da atenção básica (n = 12), coordenadores de vigilância epidemiológica/em saúde (n = 9), profissionais da ESF (n = 10), prefeitos (n = 2), representantes do Conselho Municipal de Saúde (CMS) (n = 6), responsáveis pela regulação (n = 2) e assistentes sociais (n = 3). Foram realizadas 47 entrevistas virtuais individuais e sete conjuntas, resultando em 59 entrevistados, entre julho de 2021 e abril de 2022, por meio das plataformas Meet (https://meet.google.com/) e Zoom (https://zoom.us/pt), todas gravadas. Quatro entrevistas previstas não foram feitas nesse primeiro momento, por problemas de agenda, mas foram realizadas presencialmente em 2022. No total, foram 51 entrevistas com 63 entrevistados.

Foram entrevistadas 43 mulheres (68%) e 20 homens (32%); com média de idade de 37 anos, com desvio padrão de oito anos (23-62 anos); mediana do tempo de atuação no município de nove anos (0,33-31 anos), com dois anos (0,03-24 anos) na função atual; 22% apresentavam Ensino Médio completo, nível técnico ou Superior incompleto; 63% com Superior completo e 15% com Especialização/Pós-graduação.

A análise de conteúdo temática e dedutiva, utilizou roteiro previamente definido que contemplou as dimensões e categorias de análise (Quadro 1), a possibilidade de captar novos conteúdos e as categorias no momento analítico, reservando um campo para inclusão dos trechos das falas dos entrevistados.

Quadro 1
Dimensões e categorias de análise consideradas para as entrevistas. Municípios rurais remotos brasileiros, 2021-2022.

Os roteiros de análise foram submetidos a pré-testes, ajustados por dois pesquisadores e, finalmente, consolidados por cinco pesquisadores com perfis diferentes, que analisaram as entrevistas de cinco municípios. Uma dupla de pesquisadores, ao concluir a análise de todas as entrevistas, realizou a síntese global do município de forma combinada às falas dos entrevistados. O posicionamento dos atores-chave nas entrevistas permitiu entender as relações formais e informais estabelecidas entre entes federativos, gestores, prestadores de serviços, profissionais e população para intervir e viabilizar o acesso à assistência à saúde durante a pandemia.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (CAAE 37672620.8.0000.5421, parecer nº 4.285.824) e todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Os resultados serão apresentados segundo as dimensões de análise priorizadas. Elas apresentam interseções importantes, sobretudo no contexto pandêmico que exigiu mudanças e aproximações nas várias dimensões, borrando os limites entre si.

Resultados

Os 323 municípios rurais remotos brasileiros concentram-se nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste 99. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2017.. Os 16 municípios rurais remotos analisados são de pequeno porte, a maioria de baixa densidade demográfica e menos de 10 mil habitantes. Estão localizados nos seguintes estados: Rondônia, Mato Grosso, Tocantins, Piauí, Minas Gerais e Amazonas (Tabela 1).

Tabela 1
Municípios rurais remotos selecionados, segundo informações sociodemográficas e financeiras. Brasil, 2019.

Na caracterização socioeconômica em 2019, o produto interno bruto (PIB) per capita variou de R$ 5.059,00 em Pajeú do Piauí a R$ 31.756,00 em Campos Lindos, sendo que 62,08% e 26,52% da população, respectivamente, recebe Bolsa Família, ambos com Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) baixo. Campos Lindos tem o maior PIB, e, dos seis municípios rurais remotos que apresentam IDHM baixo, dois têm PIB per capita maior que R$ 10.000,00. Os demais municípios apresentam IDHM médio (Tabela 1).

A transferência de recursos via emendas parlamentares totalizou entre os 16 municípios rurais remotos mais de R$ 100 milhões no período de 2020 a 2022 e os que mais receberam foram Maués (54%) e, entre o restante (46%), São Miguel do Guaporé (17%), Terra Nova do Norte (10%), Nova Canaã (9%), Vila Bela da Santíssima Trindade (9%), Indaiabira (9%), Campos Lindos (8%), Campinápolis (8%) e Goianorte (7%) (Tabela 1).

Política

Os sistemas locais de saúde nos municípios rurais remotos foram reorganizados com base nos decretos dos governos federal e estadual. Orientaram os gestores para elaborar os decretos municipais, o plano de contingência e criar os comitês de enfrentamento. Poucos utilizaram o plano de contingência como instrumento estratégico à condução política local, adotando características mais regionais. Assim, não foi reconhecido como delineador da condução local, apresentando poucos relatos.

Na articulação entre os níveis de governo, houve diversidade locorregional. O apoio estadual ocorreu por meio das instâncias regionais, da definição dos fluxos de referências regional e macrorregional, da regulação do transporte aéreo, da instalação de leitos de UTI e de hospitais de campanha, que serão detalhados nas respectivas dimensões. Ocorreram situações em que o nível local teve de se expandir para compensar a ausência e/ou a baixa capacidade instalada dos serviços de referência. Poucos municípios rurais remotos participaram de Consórcios Intermunicipais de Saúde (CIS) como estratégia para ampliar o acesso.

A cooperação técnica das instâncias regionais, como a Comissão de Intergestores Regional (CIR) contribuíram para a tomada de decisões e condução das medidas de contingência: “as reuniões de CIR foi muito importante...” (gestor; município 4). Por meio da CIR, os gestores se sentiram apoiados “o escritório... fazia os encontros... por ‘live’, toda quarta-feira... faziam sugestões,... os apontamentos... o que era possível... era adotado” (profissional da ESF/coordenador da atenção básica - enfermeiro/a; município 3). Reconhecidamente, propiciaram a articulação intermunicipal e interfederativa e estimularam a troca de experiências “...a troca de experiência é muito válida...” (gestor; município 4).

A criação dos comitês de enfrentamento nem sempre ocorreu de forma espontânea; em um município, resultou da indução do Ministério Público: “a iniciativa de reunir várias esferas da sociedade, pautar... decidir o rumo das coisas conjuntamente foi do Ministério Público” (profissional da ESF - enfermeiro/a; município 10). Apesar da diferença nos processos, foram criados nos 16 municípios rurais remotos, constituídos por atores do setor público, privado e representações da população: prefeito, secretário da saúde, polícia municipal, comércio, conselheiros de saúde, igreja católica e/ou evangélica, secretaria de educação e de promoção social, promotoria pública e profissionais da saúde. A participação dos profissionais, em alguns municípios rurais remotos, contribuiu para promover medidas de contingenciamento antes da ocorrência do primeiro caso.

Os comitês foram consultivos e essenciais para elaborar os planos de contingência, mobilizar e organizar a rede local “eram vários... representantes, não era deliberativo, a decisão final era do executivo..., todo mundo dava as suas opiniões, mas quem optava pelo decreto se ia fechar e o que não ia fechar, na verdade era o prefeito” (profissional da ESF - enfermeiro/a; município 9). Além disso, foram determinantes para definir e aplicar as medidas preventivas e sanitárias. Os entrevistados afirmaram realizar o chamamento das representações “...nós verificamos quem seriam as instituições que poderiam agregar... e solicitamos os representantes, o critério... foi esse” (gestor; município 10), mas nem todos contaram com a participação social.

Nas reuniões dos comitês, havia conflitos; sobretudo na primeira onda, ocorreram pela resistência dos estabelecimentos em acatar as medidas restritivas. “Vivia... uma guerra,... público contra privado, tipo, ah vocês são públicos, vocês estão com o salário garantido, não precisam abrir nada, vocês querem mais é que feche tudo, e aí quando a gente tinha essas reuniões... começava a ser muito agredido,...como se nós estivéssemos querendo prejudicar o andamento do município…” (profissional da ESF - enfermeiro/a; município 9).

A maioria dos municípios rurais remotos relatou a relevância dos decretos federais e estaduais e a experiência positiva com o comitê de enfrentamento, norteador da condução política, que concretizou a articulação e participação de outros setores e da população. Poucos reportaram conflitos nas deliberações, dificuldades extremas na adesão às medidas de contingenciamento, ausência de participação de alguns setores e participação local.

Na dimensão política, identificaram-se diversidades nas relações intergovernamentais, pouca participação interfederativa nas decisões, apoio técnico das instâncias regionais das Secretarias de Estado da Saúde (SES), em algumas regiões, e uso dos CIS como estratégia de ampliação da rede de atenção.

Estrutura

A reorganização da rede de atenção variou e foi ampliada com a instalação de centros de COVID-19, aquisição de equipamentos e serviços, mas continuou limitada, principalmente no início, pela escassez de recursos e insumos e pela baixa capacidade instalada local. As equipes de atenção básica e da ESF viabilizaram o primeiro contato do usuário, mas nem todos os municípios rurais remotos, apresentavam cobertura de 100% de APS (Tabela 2).

Tabela 2
Municípios rurais remotos brasileiros, segundo Unidade Federativa (UF), região de saúde, rede de atenção local e cobertura de atenção primária à saúde (APS) e de agentes comunitários de saúde (ACS), em 2019.

Durante a pandemia, alguns municípios rurais remotos, em espaços distintos ou nos mesmos locais das unidades básicas de saúde (UBS), instalaram centros de COVID-19 com leitos de observação (Tabela 2). Sete municípios rurais remotos dispõem de unidade de Serviços de Apoio Diagnóstico Terapêutico (SADT) isolada; em outros, há apenas unidades de coleta. Pela falta de capacidade instalada local e regulada pelo estado, as demandas por serviços de exame laboratorial e de imagem (tomografia computadorizada - TC), consultas especializadas, hospitais gerais e UTI eram encaminhadas às regiões e macrorregiões. Também foram liberadas pelos CIS ou pela compra municipal de serviços privados, mas com custos e desembolso direto pelo usuário, “a população tinha que pagar as TC,... muita dificuldade,... a gente cobrou para que a Secretaria pagasse as TCs..., as ressonâncias... para a COVID...” (representante do CMS; município 7).

Em algumas regiões, a estrutura da rede de atenção anterior à pandemia era incompatível à instalação de leitos de UTI, no setor público e privado, a rede de atenção nas regiões de saúde sofre com a falta de serviços, até mesmo no setor privado. Durante a pandemia, alguns municípios rurais remotos compensaram esses problemas com pontos adicionais à rede e instalação de leitos de UTI no setor privado, “...o estado nos ajudou... UTI... conseguimos dez leitos.... foi um sonho... a região... precisava” (gestor; município 5).

A expansão da capacidade laboratorial local, a instalação dos hospitais de campanha e os CIS de Mato Grosso e Rondônia, foram iniciativas municipais e alternativas para ampliar o escopo e amenizar a insuficiência de serviços locorregionais, agilizando o acesso à rede de saúde: “o consórcio ajudou na compra das tomografias, dos EPIs, testes rápidos...compramos tudo isso via consórcio” (gestor; município 2).

Os custos aumentaram, as despesas diversificaram-se e as transferências de recursos financeiros fundo a fundo, ou por meio das emendas parlamentares, contribuíram para contornar as dificuldades. A maioria relatou que os recursos foram utilizados para contratar e ou contratualizar exames laboratoriais, ampliar as cotas de tomografia, instalar os centros de COVID-19 e realizar a compra de ambulâncias, de insumos e EPI “facilitou bastante... conseguir emenda parlamentar” (gestor; município 10). Na primeira onda da pandemia, as máscaras e aventais disponibilizados aos profissionais foram confeccionados pela assistência social, e o álcool em gel doado (por empresas e outros setores) contribuiu para que houvesse suficiência.

Os meios de transporte variaram conforme a disponibilidade, as necessidades, o tipo e a distância ao local de referência (Quadro 2). Em Maués, foi utilizado o transporte aéreo e as ambulanchas (ambulância fluvial), os demais faziam o uso de ambulâncias básicas ou equipadas com semi-UTI. Alguns municípios rurais remotos tiveram dificuldade para contratar e/ou adquirir semi-UTI e, quando conseguiam, os custos eram altos. Além disso, a falta de manutenção dos equipamentos, sua inadequação e o excesso de deslocamentos dificultaram a gestão local, com pouco apoio estadual.

Quadro 2
Municípios rurais remotos, municípios de referência regional, distância e tipo de transporte sanitário utilizado durante a pandemia. Brasil, 2021-2022.

As condições do transporte sanitário, aliadas à situação das estradas e à distância até a referência ou até a uma metrópole ou capital regional como definido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 99. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2017., dificultaram os encaminhamentos. A demora em obter o apoio logístico gerou necessidades de aquisições, viabilizadas com os recursos transferidos pelo Governo Federal. Um município rural remoto recebeu uma ambulância de doação, enquanto outros contrataram o serviço de remoção: “tenho três ambulâncias...todas...simples, quando...solicitava UTI móvel... era um valor exorbitante...” (gestor; município 2) (Quadro 2). Entre os municípios rurais remotos, as distâncias para os centros urbanos de maior porte variam, sendo maiores para os municípios de Terra Nova do Norte (621,8km) e Maués (612km) e ainda aumentam quando os encaminhamentos são dirigidos a outros locais (Quadro 2).

Na assistência farmacêutica e laboratorial, a demanda aumentou, o que exigiu novos insumos e serviços, e a escassez ocorreu em todos os municípios rurais remotos, mas o esforço da gestão contribuiu, “...não faltava medicação... o prefeito... falou, o que você precisar... vamos comprar... o que você indicar, a gente vai dar um jeito de licitar e comprar, e foi assim que foi feito” (profissional da ESF - médico/a; município 4). O consumo de oxigênio exigiu apoio logístico, várias viagens diárias para suprir as necessidades. Um município referiu produção local com usinas de oxigênio ativas, criadas anteriormente à pandemia.

Foi comum a afirmação dos entrevistados quanto às dificuldades estruturais disponíveis nos centros mais próximos, como também no apoio laboratorial e na regulação dos casos graves. Nessa dimensão, estão os maiores problemas para acolher e resolver as demandas dos usuários.

Organização

A reorganização do sistema local de saúde considerou a equipe, a capacidade instalada, os recursos transferidos, as parcerias e os arranjos estabelecidos. Inicialmente, alguns municípios suspenderam o atendimento de rotina, focando nos casos suspeitos de COVID-19. Posteriormente, foi restabelecido um fluxo de prioridade para gestantes, crianças e os cadastrados nos programas da unidade de saúde. Os demais pontos da rede, quando existentes, também suspenderam o atendimento e redistribuíram-se os profissionais para as atividades de monitoramento e prevenção conduzidas pelas equipes das UBS.

Na rede de atenção local, a maioria dos municípios rurais remotos analisados dispunha de pelo menos um dos serviços: Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), Centros de Apoio Psicossocial (CAPS) ou Centros de Reabilitação (Tabela 2). Apenas um município contava com os três tipos de serviços, e cinco com nenhum desses serviços formalmente habilitados. Independentemente de estrutura física específica, todos contavam com fisioterapeuta e apenas um município não disponibilizava psicólogo no serviço público. Na pandemia, os “profissionais do NASF, psicólogo, fisioterapeuta, odontólogo... ficaram na unidade...” (coordenador de atenção básica; município 11); “as psicólogas, fizeram trabalho de grupos, pessoas que tinham sido contaminadas... os fisioterapeutas na... reabilitação daqueles... que estiveram internados... o CAPS não deixou de funcionar...” (coordenador de atenção básica; município 10). Alguns municípios ofereceram apoio psicológico aos profissionais devido ao estresse e sobrecarga de trabalho.

Nas comunidades rurais, os agentes comunitários de saúde (ACS) entregaram medicamentos nos domicílios às pessoas com COVID-19 e àqueles com doenças crônicas, “cada zona rural, cada território tem seu agente comunitário, tem que..., levar informação, buscar, monitorar... entra em contato...” (gestor; município 9). Os ACS solicitavam ao serviço de referência o transporte sanitário e o atendimento aos sintomáticos de COVID-19 e acompanhavam os casos confirmados.

A separação entre atendimento de rotina e de sintomáticos respiratórios foi comum em todos os municípios rurais remotos, apesar das diferenças na capacidade instalada e na escassez de profissionais. Os centros de COVID-19 realizavam triagem, observação, acompanhamento, tratamento e estabilização até a remoção para a referência, outros utilizaram instalações de outros setores para triagem.

Naqueles poucos municípios rurais remotos que dispunham de unidade com leitos de internação, os locais de atendimento foram reorganizados para assistência de casos moderados ou graves, “...lá no hospital também foi criada uma ala somente para COVID... com oxigênio instalado para todos os leitos... tem uma sala, semi UTI, faz os primeiros atendimentos para... aguardar essa vaga” (coordenador de atenção básica/vigilância epidemiológica; município 8).

Com limitações, esses locais ofereceram segurança aos familiares, mas isso gerou estresse e tensão pela falta de estrutura e equipamentos que os casos requeriam “...óbito graças a Deus a gente não passou essa situação... acontecer por falta de atendimento, mais vagas... era angustiante,... vivenciar corrida, todos os profissionais atrás das vagas...a gente se colocava na pele do médico... a preocupação era muita” (coordenador de atenção básica; município 3).

Outro município do Mato Grosso afirmou que o hospital público de referência não ampliou o número de leitos na pandemia e ocorreu superlotação, “as filas estavam grandes e necessitava dar uma resposta, mas... houve quatro óbitos esperando vaga em UTI. A gente ficava de mãos atadas, sem suporte” (gestor e assistente social; município 4). Nesse município, para prover assistência aos casos não atendidos na referência regional, a gestão alugou um hospital privado desativado e, com limitações, assegurou o atendimento, mas tensionou o trabalho dos profissionais, que foram além da capacidade estrutural.

Os arranjos locais também foram viabilizados junto ao setor privado, devido ao aumento expressivo da demanda por internações. Em Tocantins, o estado e os municípios instalaram o hospital de campanha; em Mato Grosso, liderados pelos prefeitos e vereadores, o estado instalou leitos de UTI em hospitais do setor privado. Esses arranjos dependiam da maior ou menor presença estadual. A insuficiência de leitos gerou dificuldades para acolher e aguardar a vaga para encaminhamento até o centro de referência “...poderia ter ampliado leitos e não teve...” (profissional da ESF/coordenador de atenção básica - enfermeiro/a; município 2).

Os encaminhamentos para as regiões ou macrorregiões eram regulados pelo estado. A qualidade de alguns serviços foi questionada pelos usuários, “um amigo... médico se referiu ao hospital regional [de referência], no auge da pandemia, como um matadouro” (coordenador de vigilância epidemiológica/representante do CMS; município 4). As dificuldades enfrentadas mostraram que as regiões precisam de investimentos: “é muito difícil para a região, a estrutura, deixa muito a desejar, falta médico, profissionais, que atenda a média e a alta complexidade,... estou a setenta e oito quilômetros [referência mais próxima].... e a duzentos e cinquenta de [outra referência]..., quase nada se resolve [hospital de referência mais próximo], o que eu não resolvo aqui, pode se dizer que eu não resolvo lá” (gestor; município 16).

Nessa dimensão, identificaram-se os esforços dos gestores e profissionais para organizar o atendimento dos sintomáticos respiratórios e dos usuários acompanhados pelas unidades de saúde antes da COVID-19. Foi comum a afirmação de pouca participação do estado na reorganização dos serviços da rede de apoio regionalizada e no transporte aéreo, gerando dificuldades no encaminhamento das demandas.

O Quadro 3 sintetiza os principais achados, por dimensão, categorias de análise e opiniões dos entrevistados.

Quadro 3
Síntese dos resultados da pesquisa por categorias de análise das dimensões da política, da estrutura e da organização dos serviços, com afirmações dos entrevistados dos municípios rurais remotos selecionados. Brasil, 2022.

Discussão

Situados em diferentes estados e com suas singularidades, os municípios rurais remotos analisados responderam aos desafios da pandemia com o protagonismo da APS 11. Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, Cabral LMDS, Seidl H. Sustentabilidade da atenção primária à saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:1605-18.. De forma diferenciada, as necessidades em saúde foram parcialmente respondidas em tempo oportuno, na perspectiva da integralidade do cuidado. Apresentam dificuldades de acesso aos grandes centros, com fragilidades e irregularidades no transporte sanitário adequado e no uso de tecnologias de informação que geraram insegurança aos usuários e aos profissionais 88. Bousquat AEM, Fausto MCR, Almeida PF, Lima JG, Seidl H, Sousa ABL, et al. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev Saúde Pública 2022; 56:73.,1111. Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, Fausto MCR. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00255020.,2424. O'Sullivan BG, Worley P. Setting priorities for rural allied health in Australia: a scoping review. Rural Remote Health 2020; 20:5719.. Entre esses municípios, há desigualdades socioespaciais que combinam abundância e escassez, expressas pelo PIB per capita e índice de Gini. Revelam formas de acumulação desigual que, associadas aos baixos investimentos públicos, geram disfunções sociais, acesso diferenciado aos serviços de saúde e afetam as condições de vida e de saúde da população 66. Lima LD, Pereira AMM, Machado CV. Crise, condicionantes e desafios de coordenação do Estado federativo brasileiro no contexto da COVID-19. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00185220.,2525. Arruda NM, Maia AG, Alves LC. Desigualdade no acesso à saúde entre as áreas urbanas e rurais do Brasil: uma decomposição de fatores entre 1998 a 2008. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00213816.,2626. Thomas SL, Wakerman J, Humphreys JS. Ensuring equity of access to primary health care in rural and remote Australia - what core services should be locally available? Int J Equity Health 2015; 14:111..

Os resultados deste estudo de casos múltiplos não garantem a representatividade do conjunto dos municípios rurais remotos; porém, apresentam os impasses comuns enfrentados durante a pandemia da COVID-19. As entrevistas virtuais buscaram captar a condição do sistema de saúde no contexto rural remoto. Apresentaram limitações técnicas (interrupções; somente áudio em alguns momentos) e de análise da linguagem não verbal que é mais ampla quando a entrevista é presencial. No entanto, a experiência dos entrevistadores e a interação com eles foram bastante positivas, dentro do cenário possível.

Esses municípios têm em comum um sistema de saúde restrito à APS, com pontos de atenção na sede e alguns no interior 11. Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, Cabral LMDS, Seidl H. Sustentabilidade da atenção primária à saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:1605-18.,1111. Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, Fausto MCR. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00255020.. Durante a pandemia, a resposta e o cuidado às necessidades variaram, disponibilizaram transporte sanitário rodoviário e fluvial, criaram estratégias que contemplaram as especificidades para equalizar a assistência à saúde e não restringir o acesso ao cuidado oferecido nesse nível. Com muitas limitações, e nem sempre com o apoio dos demais entes interfederativos, o empenho da gestão e dos profissionais contribuiu para facilitar o acesso à rede de serviços locorregional, reorganizar a APS e estabelecer a comunicação, de forma semelhante a outros países 1616. Fitts MS, Russell D, Mathew S, Liddle Z, Mulholland E, Comerford C, et al. Remote health service vulnerabilities and responses to the COVID-19 pandemic. Aust J Rural Health 2020; 28:613-7.,2727. Barbalho R, Schenkman S, Sousa A, Bousquat A. Innovative shortcuts and initiatives in primary health care for rural/remote localities: a scoping review on how to overcome the COVID-19 pandemic. Rural Remote Health 2023; 23:8236.,2828. Bousquat A, Giovanella L, Campos EMS, Almeida PF, Martins CL, Mota PHS, et al. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuários. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:1141-54.,2929. Bourke L, Humphreys JS, Wakerman J, Taylor J. Understanding rural and remote health: a framework for analysis in Australia. Health Place 2012; 18:496-503..

Nas unidades de APS, ocorreram mudanças na rotina de cuidado, inicialmente muitas foram fechadas e reabertas em seguida, priorizando o atendimento dos sintomáticos de COVID-19. Nas diferentes ondas da pandemia, iniciadas em março de 2020 que se prolongaram em alerta até meados de 2022, as equipes acolheram as demandas, mantiveram a rotina seletiva de atendimento, monitoraram os inscritos nos programas e os casos de COVID-19 1010. Giovanella L, Martufi V, Mendoza DCR, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, et al. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saúde Debate 2020; 44(spe4):161-76.,3030. Giovanella L, Bousquat A, Medina MG, Mendonça MH, Facchini LA, Tasca R, et al. Desafios da atenção básica no enfrentamento da pandemia de COVID-19 no SUS. In: Portela MC, Reis LGC, Lima SML, organizadoras. COVID-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde. Rio de Janeiro: Observatório COVID-19 Fiocruz/Editora Fiocruz; 2022. p. 201-16. e não interromperam a comunicação, responsabilizando-se pela população adscrita ao território 3030. Giovanella L, Bousquat A, Medina MG, Mendonça MH, Facchini LA, Tasca R, et al. Desafios da atenção básica no enfrentamento da pandemia de COVID-19 no SUS. In: Portela MC, Reis LGC, Lima SML, organizadoras. COVID-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde. Rio de Janeiro: Observatório COVID-19 Fiocruz/Editora Fiocruz; 2022. p. 201-16..

A vulnerabilidade nos municípios rurais remotos ocorre pela inacessibilidade geográfica, escassez de profissionais e serviços de saúde, tempo de deslocamento, condições de transporte sanitário, financiamento insuficiente, distribuição e uso dos recursos públicos. Esses achados confirmam que as populações rurais utilizam menos os serviços de saúde 33. Albuquerque MV, Ribeiro LHL. Desigualdade, situação geográfica e sentidos da ação na pandemia da COVID-19 no Brasil. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00208720.,3131. Travassos C, Viacava F. Acesso e uso de serviços de saúde em idosos residentes em áreas rurais, Brasil, 1998 e 2003. Cad Saúde Pública 2007; 23:2490-502., têm barreiras de acesso aos demais níveis de complexidade e se assemelham ao contexto de populações rurais de outros países, como Canadá e Austrália 44. Prentice S. O desafio do atendimento à criança rural no Canadá. Cad CEDES 2017; 37:419-41.,2323. Russell DJ, Humphreys JS, Ward B, Chisholm M, Buykx P, McGrail M, et al. Helping policy-makers address rural health access problems. Aust J Rural Health 2013; 21:61-71.,2727. Barbalho R, Schenkman S, Sousa A, Bousquat A. Innovative shortcuts and initiatives in primary health care for rural/remote localities: a scoping review on how to overcome the COVID-19 pandemic. Rural Remote Health 2023; 23:8236.. Essas limitações interferem nas práticas de saúde, no acesso, na integralidade e no cuidado ofertado.

Estudo sobre as regiões do SUS advertiu que parte significativa apresenta insuficiência e escassez de serviços nas referências regionais para prover o atendimento aos acometidos pela COVID-19 66. Lima LD, Pereira AMM, Machado CV. Crise, condicionantes e desafios de coordenação do Estado federativo brasileiro no contexto da COVID-19. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00185220.,3232. Shimizu HE, Lima LD, Carvalho ALB, Carvalho BG, Viana ALd'A. Regionalização e crise federativa no contexto da pandemia da COVID-19: impasses e perspectivas. Saúde Debate 2021; 45:945-57.,3333. Aleluia IRS, Medina MG, Vilasbôas ALQ, Viana ALd'A. Gestão do SUS em regiões interestaduais de saúde: análise da capacidade de governo. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:1883-94.. Os CIS e os hospitais de campanha instalados em alguns estados constituíram arranjos interfederativos para realizar a aquisição de insumos, contratualizar serviços de imagens e laboratoriais, internações hospitalares e leitos de UTI 22. Almeida PF, Santos AM, Lima LD, Cabral LMS, Lemos MLL, Bousquat AEM. Consórcio Interfederativo de Saúde na Bahia, Brasil: implantação, mecanismo de gestão e sustentabilidade do arranjo organizativo no Sistema Único de Saúde. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00028922.,3232. Shimizu HE, Lima LD, Carvalho ALB, Carvalho BG, Viana ALd'A. Regionalização e crise federativa no contexto da pandemia da COVID-19: impasses e perspectivas. Saúde Debate 2021; 45:945-57.,3434. Batista GC, Carvalho BG, Silva JFM, Gomes JSM. A atuação dos consórcios públicos de saúde da macrorregião Norte do Paraná junto aos municípios no enfrentamento da pandemia pela COVID-19. Braz J Dev 2022; 8:5131-45.. Estabelecidos na emergência da pandemia, minimizaram as iniquidades e melhoraram o acesso aos demais níveis de complexidade 11. Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, Cabral LMDS, Seidl H. Sustentabilidade da atenção primária à saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:1605-18.,2323. Russell DJ, Humphreys JS, Ward B, Chisholm M, Buykx P, McGrail M, et al. Helping policy-makers address rural health access problems. Aust J Rural Health 2013; 21:61-71.,2828. Bousquat A, Giovanella L, Campos EMS, Almeida PF, Martins CL, Mota PHS, et al. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuários. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:1141-54.,2929. Bourke L, Humphreys JS, Wakerman J, Taylor J. Understanding rural and remote health: a framework for analysis in Australia. Health Place 2012; 18:496-503.. No entanto, são considerados frágeis e podem aumentar as desigualdades em saúde se as políticas públicas não contemplarem a realidade dos municípios rurais remotos, se não houver coordenação e reconhecimento por parte do Estado 3232. Shimizu HE, Lima LD, Carvalho ALB, Carvalho BG, Viana ALd'A. Regionalização e crise federativa no contexto da pandemia da COVID-19: impasses e perspectivas. Saúde Debate 2021; 45:945-57. das condições de vulnerabilidade a que estão expostos.

Na pandemia, tornaram-se evidentes os esforços para prover o acesso e o cuidado integral a partir da APS, aproximando-se de seu papel na coordenação do cuidado. Denotam diferentes contextos, capacidades desiguais 33. Albuquerque MV, Ribeiro LHL. Desigualdade, situação geográfica e sentidos da ação na pandemia da COVID-19 no Brasil. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00208720., respostas diferentes para situações semelhantes que traduzem as condições desiguais para o cuidado. Requerem, para além do apoio técnico regional: fortalecer as instâncias regionais; contemplar as regiões fronteiriças 3333. Aleluia IRS, Medina MG, Vilasbôas ALQ, Viana ALd'A. Gestão do SUS em regiões interestaduais de saúde: análise da capacidade de governo. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:1883-94.; compartilhar os recursos interfederativos; e implementar políticas públicas de Estado. As especificidades dos municípios rurais remotos e suas regiões, há muito negligenciadas, devem ser contempladas, de modo a aprimorar o sistema de saúde locorregional e a capacidade de gestão do SUS, com o foco na equidade em saúde 3535. Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção primária à saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00310520..

A crise da pandemia acentuou os problemas já enfrentados pelos municípios rurais remotos e, apesar da sua limitada capacidade, reorganizou e fortaleceu a APS 3636. Furlanetto DLC, Santos WD, Scherer MDA, Cavalcante FV, Oliveira A, Oliveira KHD, et al. Estrutura e responsividade: a atenção primária à saúde está preparada para o enfrentamento da COVID-19? Saúde Debate 2022; 46:630-47.,3737. Harzheim E, Martins C, Wollmann L, Pedebos LA, Faller LDA, Marques MDC, et al. Ações federais para apoio e fortalecimento local no combate ao COVID-19: a atenção primária à saúde (APS) no assento do condutor. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:2493-7. e o sistema local de saúde. No entanto, a APS requer investimentos e comprometimento dos entes federativos 11. Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, Cabral LMDS, Seidl H. Sustentabilidade da atenção primária à saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:1605-18. para dar sustentabilidade ao fortalecimento observado na pandemia.

As especificidades dos municípios rurais remotos 11. Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, Cabral LMDS, Seidl H. Sustentabilidade da atenção primária à saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:1605-18.,88. Bousquat AEM, Fausto MCR, Almeida PF, Lima JG, Seidl H, Sousa ABL, et al. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev Saúde Pública 2022; 56:73.,1010. Giovanella L, Martufi V, Mendoza DCR, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, et al. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saúde Debate 2020; 44(spe4):161-76.,1111. Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, Fausto MCR. Contexto e organização da atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00255020. foram reiteradas e, para além das destacadas, ainda há necessidades de esclarecer os papéis interfederativos e de aprimorar os mecanismos de cooperação intergovenamental. Os arranjos de governança podem fortalecer os espaços locorregionais, validar a proteção à saúde e prover serviços que facilitem o acesso equitativo ao cuidado em saúde, de forma contínua e integral, com qualidade e acesso oportuno 22. Almeida PF, Santos AM, Lima LD, Cabral LMS, Lemos MLL, Bousquat AEM. Consórcio Interfederativo de Saúde na Bahia, Brasil: implantação, mecanismo de gestão e sustentabilidade do arranjo organizativo no Sistema Único de Saúde. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00028922.,88. Bousquat AEM, Fausto MCR, Almeida PF, Lima JG, Seidl H, Sousa ABL, et al. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Rev Saúde Pública 2022; 56:73.,3535. Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção primária à saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00310520.,3838. Viana Ald'A, Iozzi FL. Enfrentando desigualdades na saúde: impasses e dilemas do processo de regionalização no Brasil. Cad Saúde Pública 2019; 35 Suppl 2:e00022519..

Foram frequentes os relatos de conflitos e de dificuldades, mas também das iniciativas e empenho dos municípios rurais remotos para resolver as demandas durante a pandemia. Além do avanço estrutural do sistema de saúde, necessitam do apoio técnico e protagonismo do estado na condução da política de saúde. Os resultados sugerem intervenções interfederativas que abarcam as dimensões exploradas, para, de forma integrada e estratégica, fortalecer e contribuir para reduzir as fragilidades do sistema de saúde, potencializadas pelas barreiras de acesso e acentuadas durante a pandemia da COVID-19.

A abordagem multidimensional identificou autonomia, mas também interdependências entre os condicionantes políticos, estruturais e organizacionais na reorganização do sistema de saúde locorregional. O conjunto das informações obtidas dos atores inseridos no sistema municipal de saúde demonstrou as experiências comuns e as especificidades quanto aos problemas mais recorrentes enfrentados pelos municípios rurais remotos.

Considerações finais

Partindo de importantes limitações, os municípios rurais remotos analisados responderam aos desafios enfrentados na pandemia no período de 2020 a 2022. Seguindo as medidas de contingenciamento orientadas pelos decretos dos governos federal e estadual, constituíram os comitês, mas poucos elaboraram o plano de contingenciamento. Todos receberam recursos financeiros fundo a fundo. As dificuldades enfrentadas variaram entre os municípios rurais remotos, expressas por: suas características socioespaciais, indicadores econômicos e sociais, distâncias até os centros de referência, escassez de serviços do primeiro nível de atenção, transporte sanitário inadequado e acesso inoportuno aos serviços da rede de atenção regionalizada.

Independentemente do escore alcançado na análise documental, reorganizaram o sistema local com limitações, e a APS aproximou-se de seu papel na coordenação do cuidado. As equipes trabalharam com determinação, preservaram a comunicação com a população, buscaram alternativas para acolher e atender às demandas, alteraram o funcionamento das unidades de saúde e, de forma responsável, não interromperam a rotina de cuidado realizando o monitoramento dos casos de COVID-19 e dos inscritos nos programas.

Os fluxos regionais foram definidos pelo estado, mas as lacunas assistenciais da rede de serviços secundários, terciários e de apoio diagnóstico, impediram que suas necessidades fossem atendidas em tempo oportuno. De maneira prudente e sem capacitação específica, os profissionais ultrapassaram os limites de suas atribuições para prestar o cuidado necessário e aguardar o encaminhamento aos demais níveis de complexidade.

Este estudo mostrou que a disponibilidade, a localização e a entrada na rede de serviços influenciam a qualidade do cuidado em tempo hábil e integral. A rede de atenção locorregional requer comprometimento dos entes interfederativos com investimentos na estrutura física, equipamentos, capacitação das equipes e apoio logístico. É uma situação complexa que reitera o subfinanciamento crônico do SUS, os vazios assistenciais da rede de atenção, e requer fortalecimento das relações interfederativas. O empenho, o esforço e a integração das equipes resultaram em experiências exitosas; mas a provisão equitativa e resolutiva do sistema local de saúde nos municípios rurais remotos, em resposta a crises sanitárias, implica na rearticulação interfederativa, na formulação e implementação de políticas públicas, que são elementos imprescindíveis à superação de desafios e, ao mesmo tempo, põem em relevo a vitalidade do SUS.

Agradecimentos

Centro de Estudos da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (CEAP-FSP-USP) por meio do projeto JBS “Fazer o Bem Faz Bem”. A. E. M. Bousquat é bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); S. Schenkman é bolsista de pós-doutorado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP; processo nº 2022/05461-5).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2023
  • Revisado
    19 Jan 2024
  • Aceito
    22 Jan 2024
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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