Um breve panorama sobre a Agenda 2030, as doenças crônicas não transmissíveis e os desafios de não deixar ninguém para trás

A brief overview of the 2030 Agenda, noncommunicable diseases and the challenges of leaving no one behind

Un breve panorama de la Agenda 2030, las enfermedades crónicas no transmisibles y los desafíos de no dejar a nadie atrás

Laurenice de Jesus Alves Pires José Mendes Ribeiro Marly Marques da Cruz Sobre os autores

Resumo:

Este ensaio traz uma reflexão teórica sobre os desafios para alcançar as metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, considerando seu lema de “não deixar ninguém para trás”. Para exemplificar esses desafios, apresenta-se como pano de fundo as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), um dos principais temas da agenda da saúde global antes da pandemia de COVID-19, discutindo as dimensões políticas e econômicas que determinam sua presença e avanço global. Após um breve panorama sobre as DCNT, busca-se responder a três perguntas: em “Sem deixar ninguém para trás?”, elencamos alguns temas para refletir sobre como e quem tem ficado historicamente para trás, aprofundando um pouco mais os exemplos ao adentrar em “Quem tem ficado para trás no mundo?” e “Quem tem ficado para trás no Brasil?”. A partir de dados da literatura mais relevante e recente sobre o tema, apresentamos os desafios e alguns caminhos para não deixar ninguém para trás em um mundo em que o modo de produção tem historicamente vulnerabilizado alguns grupos sociais, com destaque para a população negra e a população indígena. Trazemos nas considerações finais a inspiração do ideograma Sankofa para lembrar que as respostas para o desenvolvimento sustentável que buscamos podem estar em algum lugar de nosso passado mais originário e tradicional, e que é preciso apostar na construção de novos caminhos a partir de outras epistemologias e cosmovisões presentes do outro lado da linha abissal.

Palavras-chave:
Doenças Não Transmissíveis; Desenvolvimento Sustentável; Direitos Humanos; População Negra; População Indígena

Abstract:

This essay provides a theoretical reflection on the challenges of meeting the Sustainable Development Goals of the 2030 Agenda, considering its motto of “leave no one behind”. To exemplify these challenges, we discuss noncommunicable diseases (NCDs), one of the main issues on the global health agenda before the COVID-19 pandemic, and the political and economic dimensions that determine their presence and global spread. After a brief overview of NCDs, the text seeks to answer three questions: In “Leaving no one behind?” we list some themes to reflect on how and who has historically been left behind, delving a little deeper into the examples in “Who has been left behind in the world?” and “Who has been left behind in Brazil?”. Using data from the most relevant and recent literature on the subject, we discuss the challenges and some ways to leave no one behind in a world where the mean of production has historically made some social groups vulnerable, especially black and Indigenous populations. In our final remarks, we draw inspiration from the Sankofa ideogram to remember that the answers to the sustainable development we seek may lie somewhere in our most primordial and traditional past. And that it is necessary to invest on building new paths from different worldviews and approaches to epistemology on the other side of the abyssal line.

Keywords:
Noncommunicable Diseases; Sustainable Development; Human Rights; Black People; Indigenous Peoples

Resumen:

Este ensayo aporta una reflexión teórica acerca de los desafíos para lograr las metas de los Objetivos de Desarrollo Sostenible de la Agenda 2030, teniendo en cuenta su lema “no dejar a nadie atrás”. Para ejemplificar estos desafíos, tomamos como telón de fondo las enfermedades crónicas no transmisibles (ECNT), uno de los principales temas de la agenda de salud global antes de la pandemia de COVID-19, discutiendo las dimensiones políticas y económicas que determinan su presencia y avance global. Después de un breve panorama de las ECNT, el texto busca responder tres preguntas: En “¿Sin dejar a nadie atrás?” enumeramos algunos temas para reflexionar sobre cómo y quién ha quedado históricamente atrás, profundizando un poco más los ejemplos al centrarse en “¿Quién ha quedado atrás en el mundo?” y “¿Quién ha quedado atrás en Brasil?”. Con base en datos de la literatura más relevante y reciente sobre el tema, presentamos los desafíos y algunas maneras de no dejar a nadie atrás en un mundo en el que el modo de producción ha vulnerabilizado históricamente a algunos grupos sociales, con énfasis en la población negra y en la población indígena. En nuestras consideraciones finales, nos inspiramos en el ideograma de Sankofa para recordar que las respuestas al desarrollo sostenible que buscamos pueden estar en algún lugar de nuestro pasado más original y tradicional. Y es necesario apostar por la construcción de nuevos caminos basados en otras epistemologías y cosmovisiones presentes al otro lado de la línea abisal.

Palabras-clave:
Enfermedades no Transmisibles; Desarrollo Sostenible; Derechos Humanos; Población Negra; Pueblos Indígenas

Um breve panorama sobre a Agenda 2030 e as doenças crônicas não transmissíveis

Estamos a seis anos de 2030, ano previsto para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), parte do mais atual e importante acordo global liderado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em conjunto com todos seus Estados-membros. Para alcançar os 17 objetivos e 169 metas que integram a Agenda 2030, os Estados-membros se comprometeram a “tomar medidas ousadas e transformadoras para promover o desenvolvimento sustentável nos próximos anos, sem deixar ninguém para trás11. Nações Unidas Brasil. Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-desenvolvimento-sustent%C3%A1vel (acessado em 01/Mai/2023).
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Se, por um lado, os ODS dão continuidade aos esforços conjuntos iniciados com os objetivos de desenvolvimento do milênio para reduzir a pobreza mundial, por outro, marcam uma mudança fundamental ao ampliarem o foco de países pobres ou em desenvolvimento para todas as pessoas em todos os países 22. Becerra Pozos L, Pérez Baeza R. Progreso de la Agenda 2030 para el Desarrollo Sustenible de México. Informe Luz de las Organizaciones de la Sociedad Civil Mexicanas-2021. https://portales.sre.gob.mx/dgvosc/images/phocadownload/Documentos/InformeLuzDeLasOSC2021.pdf (acessado em 01/Fev/2023).
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. São orientados por uma agenda coletiva e ambiciosa ao tratar a economia, o social e o ambiente como dimensões estruturais para o desenvolvimento sustentável, de forma que o compromisso com o presente não comprometa as gerações futuras 11. Nações Unidas Brasil. Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-desenvolvimento-sustent%C3%A1vel (acessado em 01/Mai/2023).
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,33. World Health Organization. Sustainable Development Goals. https://www.who.int/europe/about-us/our-work/sustainable-development-goals (acessado em 01/Mai/2023).
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O alcance dos objetivos da Agenda 2030 e seu compromisso em não deixar ninguém para trás requer a revisão de um complexo emaranhado de relações sistêmicas no campo político-econômico, envolvendo países, governos, sociedade civil e grandes corporações internacionais e transnacionais. Essas relações orientam e são orientadas por macrodeterminantes sociais e econômicos que “geram e reforçam hierarquias sociais que definem o poder, prestígio e acesso a recursos...44. Borde E, Hernández-Álvarez M, Porto MFS. Uma análise crítica da abordagem dos determinantes sociais da saúde a partir da medicina social e saúde coletiva latino-americana. Saúde Debate 2015; 39:841-54. (p. 844), tanto de países quanto de indivíduos, impactando as formas de nascer, viver e morrer.

As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) - cânceres, doenças cardiovasculares, doenças respiratórias crônicas, diabetes e condições de saúde mental - são consideradas uma ameaça, sob amplos aspectos 55. Beaglehole R, Bonita R, Alleyne G, Horton R, Li L, Lincoln P, et al. UN high-level meeting on non-communicable diseases: addressing four questions. Lancet 2011; 378:449-55.,66. United Nations General Assembly. Political declaration of the high-level meeting of the General Assembly on the Prevention and Control of Non-Communicable Diseases. https://digitallibrary.un.org/record/720106?ln=en#record-files-collapse-header (acessado em 19/Set/2022).
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,77. Bloom DE, Cafiero ET, Jané-Llopis E, Abrahams-Gessel S, Bloom LR, Fathima S, et al. The global economic burden of non-communicable diseases. http://www3.weforum.org/docs/WEF_Harvard_HE_GlobalEconomicBurdenNonCommunicableDiseases_2011.pdf (acessado em 11/Dez/2022).
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, para o desenvolvimento no século XXI, e, por isso, foram alçadas ao topo dos problemas da saúde global com sua entrada nos ODS. Elas compartilham do mesmo complexo emaranhado ao qual está submetida a Agenda 2030, uma vez que sua incidência e prevalência também são influenciadas por atores e poderes globais e locais, assim como pela globalização do modo de vida moderna.

As DCNT são responsáveis por 71% de todas as mortes no mundo, representando 41 milhões de mortes prematuras - entre 30-69 anos - em 2019 88. Luciani S, Agurto I, Caixeta R, Hennis A. Prioritizing noncommunicable diseases in the Americas region in the era of COVID-19. Rev Panam Salud Pública 2022; 46:e83.. As projeções sobre o custo global com as mortes prematuras até 2030 chegavam a US$ 47 trilhões, representando 75% do produto interno bruto (PIB) mundial em 2010. Prospecta-se que milhões de pessoas sejam empurradas para abaixo da linha da pobreza 77. Bloom DE, Cafiero ET, Jané-Llopis E, Abrahams-Gessel S, Bloom LR, Fathima S, et al. The global economic burden of non-communicable diseases. http://www3.weforum.org/docs/WEF_Harvard_HE_GlobalEconomicBurdenNonCommunicableDiseases_2011.pdf (acessado em 11/Dez/2022).
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,99. Malta DC, Bernal RTI, Lima MG, Araújo SSC, Silva MMA, Freitas MIF, et al. Doenças crônicas não transmissíveis e a utilização de serviços de saúde: análise da Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil. Rev Saúde Pública 2017; 51 Suppl 1:4s., uma vez que as condições de saúde e trabalho dos indivíduos, muitas vezes já vulnerabilizadas, são agravadas pelos custos do tratamento e dos cuidados necessários para o restabelecimento da saúde.

Reconhecendo o impacto social e econômico das DCNT, em 2011, a ONU e a Organização Mundial da Saúde (OMS) realizaram a primeira Reunião de Alto Nível para tratar sobre o tema.

No Brasil, o cenário não é diferente: 72% das causas de morte referem-se a esse conjunto de doenças 1010. Malta DC, Morais Neto OL, Silva Junior JB. Apresentação do plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis no Brasil, 2011 a 2022. Epidemiol Serv Saúde 2011; 20:425-38.. O país esteve na vanguarda das discussões, apresentando o Plano Nacional de DCNT para o período 2011-2022 1111. Ministério da Saúde. Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) no Brasil 2011-2022. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.. Na sequência, a OMS lançou o Plano de Ação Global para o Enfrentamento e Controle das DCNT, contemplando o período de 2013-2020 1212. World Health Organization. Global action plan for the prevention and control of noncommunicable diseases 2013-2020. https://apps.who.int/iris/handle/10665/94384 (acessado em 30/Mai/2023).
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. Entre os objetivos centrais dos planos, constam como estratégias prioritárias a redução da carga de mortalidade prevenível e evitável por meio da colaboração multissetorial, a cooperação em nível nacional, regional e global, e o enfrentamento do consumo de tabaco, da alimentação não saudável, do consumo nocivo de álcool, da inatividade física e da poluição do ar, por serem considerados os fatores de risco comuns a essas doenças.

Os esforços para o enfrentamento das DCNT ganharam força com sua entrada nos ODS da Agenda 2030, integrando a meta 3, de saúde e bem-estar, mais especificamente a meta 3.4: reduzir em um terço a mortalidade prematura via prevenção e tratamento, e promoção da saúde mental e do bem-estar 1313. Organização das Nações Unidas. Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. https://brasil.un.org/sites/default/files/2020-09/agenda2030-pt-br.pdf (acessado em 20/Mai/2023).
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. Em nível regional, com a Agenda 2063 do continente africano, integram a meta 3: cidadãos saudáveis e bem nutridos 1414. African Union. Agenda 2063: the Africa we want. https://au.int/en/agenda2063/overview (acessado em 20/Mai/2023).
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.

O enfrentamento das DCNT não se limita aos fatores de risco - assim como as estratégias para a efetivação do compromisso de não deixar ninguém para trás, é necessário superar os determinantes estruturais comuns. Considerando esse cenário, as DCNT serão discutidas neste ensaio menos por seu aspecto epidemiológico e mais pelas implicações político-econômicas que as promovem a uma realidade global. Buscaremos exemplificar como alguns grupos sociais têm sido impactados por determinantes sociais e econômicos como a globalização, raça/etnia, gênero, trabalho, renda e sistema de saúde, sendo alijados dos benefícios sociais, políticos, econômicos, culturais e ambientais resultantes do projeto de desenvolvimento ao qual todos os países têm sido submetidos, embora com diferentes níveis de acesso aos bens produzidos.

Diante deste cenário, apresentam-se as reflexões: como será possível não deixar ninguém para trás? Quem tem ficado para trás? Como é possível, a partir do aprendizado do caminho trilhado, construir alternativas eficazes que não deixem ninguém para trás no Brasil e no mundo?

Sem deixar ninguém para trás?

Assumir o compromisso global de “não deixar ninguém para trás” requer coragem! Coragem para admitir que o caminho trilhado até o momento deixou muitos para trás, produzindo mortes evitáveis, exclusões e iniquidades em vários campos da vida econômica, social e ambiental. Coragem em relação ao futuro, para apostar na construção de modelos sociais que tenham como princípio não deixar ninguém para trás, ou seja, que sejam capazes de reduzir as iniquidades que historicamente têm produzido mortes e sofrimentos evitáveis para uma grande parcela da população mundial, distribuindo entre eles os benefícios alcançados com o desenvolvimento e produzindo saúde mental e bem-estar. Para tanto, é preciso fazer valer os princípios da universalidade e da equidade e cumprir antigos e novos acordos estabelecidos local e globalmente.

O compromisso assumido com a Agenda 2030 pela ONU e suas agências, os 193 Estados-membros e empresas, organizações da sociedade civil e outros atores sociais nacionais e internacionais, com ou sem fins-lucrativos, aponta para uma oportunidade promissora de não deixar ninguém para trás. Está alinhado com importantes compromissos globais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos1515. United Nations. Universal Declaration of Human Rights. https://www.un.org/en/about-us/universal-declaration-of-human-rights (acessado em 09/Nov/2022).
https://www.un.org/en/about-us/universal...
, a Conferência de Alma-Ata 1616. World Health Organization. Report of the International Conference on Primary Health Care, Alma-Ata, USSR, 6-12 September 1978. https://www.who.int/publications/i/item/9241800011 (acessado em 20/Mai/2023.
https://www.who.int/publications/i/item/...
, a Carta de Ottawa1717. Carta de Ottawa. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_ottawa.pdf (acessado em 20/Mai/2023).
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial 1818. Naciones Unidas. Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación Racial. https://www.ohchr.org/es/instruments-mechanisms/instruments/international-convention-elimination-all-forms-racial (acessado em 20/Mai/2023).
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e a Declaração sobre os Povos Indígenas1919. Nações Unidas Brasil. Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas. https://brasil.un.org/pt-br/66710-declaração-das-nações-unidas-sobre-os-direitos-dos-povos-indígenas (acessado em 24/Mai/2023).
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, que também dialogam com a Constituição da OMS 2020. World Health Organization. Basic documents: forty-ninth edition. https://apps.who.int/gb/bd/ (acessado em 09/Nov/2022).
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e a Carta das Nações Unidas2121. United Nations. United Nations Charter. https://www.un.org/en/about-us/un-charter (acessado em 09/Nov/2022).
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Mas como avançar do compromisso teórico ao compromisso real, de modo a não deixar ninguém para trás? De qual realidade partimos para pensar em estratégias para atingir esse objetivo?

Embora sejam inegáveis os avanços tecnológicos, econômicos e sociais trazidos pela globalização, seus resultados não têm alcançado a todos. Ao contrário, muitos têm ficado para trás no acesso a seus benefícios. O anúncio de que todos viveriam integrados, em uma aldeia global, tentou esconder o que Santos 2222. Santos M. Por uma globalização: do pensamento único à consciência universal. 17ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Record; 2008. chamou de globalização como perversidade: a perversidade do acesso desigual aos benefícios da globalização, da priorização dos interesses econômicos sobre os sociais, responsáveis por profundas iniquidades, entre e dentro dos países. Esse é um cenário anteriormente analisado por Castro 2323. Castro J. Geografia da fome. O dilema brasileiro: pão ou aço. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2008., definido como progresso de fachada, por ser resultante de políticas orientadas por interesses privados, limitadas aos setores mais rendosos das sociedades e voltadas para a manutenção da riqueza de países ricos a partir da exploração da riqueza dos países pobres. Um progresso para poucos, nas palavras do autor.

Essa perversidade se concretiza no fato de que 1% das pessoas mais ricas globalmente concentram a mesma riqueza que 60% de toda a população mundial 2424. Ahmed N, Marriott A, Dabi N, Lowthers M, Lawson M, Mugehera L. Inequality kills: the unparalleled action needed to combat unprecedented inequality in the wake of COVID-19. https://oxfamilibrary.openrepository.com/handle/10546/621341 (acessado em 25/Jan/2023).
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, ou que 828 milhões de pessoas no mundo (8% da população) não tinham nada para comer ou alimentar os seus no ano de 2021 2525. Food and Agriculture Organization of the United Nations; International Fund for Agricultural Development; United Nations Children's Fund; World Food Programme; World Health Organization. The state of food security and nutrition in the world 2022. Repurposing food and agricultural policies to make healthy diets more affordable. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2022..

Essas e outras iniquidades foram intensificadas pela emergência da pandemia de COVID-19 - que teve início declarado em março de 2020 e fim em maio de 2023 -, contexto no qual se pôde observar o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, do sedentarismo e a redução de atividade física 2626. Malta DC, Gomes CS, Barros MBA, Lima MG, Almeida WS, Sá ACMGN, et al. Doenças crônicas não transmissíveis e mudanças nos estilos de vida durante a pandemia de COVID-19 no Brasil. Rev Bras Epidemiol 2021; 24:e210009., com destaque entre pessoas com DCNT, com mais idade e menor escolaridade, assim como maior adesão ao distanciamento social por pessoas com uma ou mais DCNT 2727. Malta DC, Gomes CS, Silva AG, Cardoso LSM, Barros MBA, Lima MG, et al. Uso dos serviços de saúde e adesão ao distanciamento social por adultos com doenças crônicas na pandemia de COVID-19, Brasil, 2020. Ciênc Saúde Colet 2021; 26:2833-42.. Ademais, ressaltam-se as insuficientes respostas políticas e econômicas dadas no âmbito da governança local e global. Algumas dessas questões, porém, precedem esse momento pandêmico, pois conformam o modelo de desenvolvimento hegemonicamente excludente, sustentado pelo colonialismo e pela colonialidade, tendo a exploração do trabalho e das riquezas, a naturalização das hierarquias territoriais, étnico-raciais, de gênero, culturais e epistêmicas e a (re)produção das relações de poder como centrais para sua manutenção 2828. Restrepo E, Rojas A. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamentos. Popayán: Universidad del Cauca; 2010. (Colección Políticas de la Alteridad).. Crianças, mulheres e populações e países mais pobres sofrem mais intensamente o impacto negativo dessa forma de globalização e desenvolvimento 2929. The Lancet Gastroenterology & Hepatology. The world is failing on hunger. Lancet Gastroenterol Hepatol 2022; 7:895.,3030. Anjos A. Novo índice aponta que desigualdades sociais em saúde se aprofundaram na pandemia. https://portal.fiocruz.br/noticia/novo-indice-aponta-que-desigualdades-sociais-em-saude-se-aprofundaram-na-pandemia (acessado em 13/Nov/2022).
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,3131. NGO Major Group. High Level Political Forum; 2022. https://static1.squarespace.com/static/603c11839959d83fcdc14604/t/62a2e0a6c4f4933172325329/1654841518485/2022+NGO+Major+Group+Position+Paper+%281%29.pdf (acessado em 10/Nov/2022).
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,3232. United Nations. Draft ministerial declaration of the high-level segment of the 2022 session of the Economic and Social Council and the high-level political forum on sustainable development, convened under the auspices of the Council. https://hlpf.un.org/sites/default/files/2022-07/HLPF%202022%20MD%2013%20July.pdf (acessado em 05/Nov/2022).
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Nos países pobres, somam-se aos desafios sanitários os desafios políticos, econômicos, sociais e ambientais dos quais eles historicamente não têm conseguido se desvencilhar 3333. Organização Mundial da Saúde - Escritório Regional para África. PEN-plus - uma estratégia regional para combater as doenças não transmissíveis graves nas unidades de saúde de encaminhamento de primeiro nível: relatório do Secretariado. https://apps.who.int/iris/handle/10665/363671 (acessado em 29/Mai/2023).
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,3434. Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Ciênc Saúde Colet 2010; 15:2297-305., visto que suas políticas sociais e econômicas são controladas por países ricos e poderosos, dos quais os países pobres se encontram dependentes e ad aeternum3535. Conte F. Dívida externa no contexto dos direitos dos povos e dos direitos humanos. Revista de Direito da Procuradoria Geral 2001; (54):121-36. devedores.

Nesse contexto, os países pobres precisam lidar com uma tripla carga de doenças: as infecciosas e parasitárias, as crônicas e as causas externas, além da tríade - obesidade, subnutrição e mudança climática - batizada de sindemia global 3636. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: The Lancet Commission report. Lancet 2019; 393:791-846.,3737. Machado AD, Bertolini AM, Brito LS, Amorim MS, Gonçalves MR, Santiago RAC, et al. O papel do Sistema Único de Saúde no combate à sindemia global e no desenvolvimento de sistemas alimentares sustentáveis. Ciênc Saúde Colet 2021; 26:4511-8.. A situação é agravada pelo avanço do envelhecimento da população mundial, que tem projeção de dobrar até 2050 e triplicar até 2100, chegando a 3,1 milhões de pessoas, sendo os países de baixa e média renda os locais nos quais viverá 80% dessa população 3838. World Health Organization. Ageing and health. https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/ageing-and-health (acessado em 29/Mai/2023).
https://www.who.int/news-room/fact-sheet...
,3939. Organização das Nações Unidas - Centro Regional de Informação para a Europa Ocidental. Envelhecimento. https://unric.org/pt/envelhecimento/ (acessado em 30/Nov/2022).
https://unric.org/pt/envelhecimento/...
. Não obstante, é nesses países que se encontram grande parte dos sistemas de saúde fragilizados e distantes dos princípios de universalidade e equidade necessários para assegurar a saúde como um direito humano fundamental.

A cobertura universal de saúde é a grande aposta global para garantir o cuidado integral à saúde sem riscos financeiros. A meta 3.8 consiste em “atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos”. Um de seus indicadores é o índice de cobertura universal, que vai de 0 a 100. O monitoramento global dos ODS 4040. Sachs J, Lafortune G, Kroll C, Fuller G, Woelm F. From crisis to sustainable development: the SDGs as roadmap to 2030 and beyond. Sustainable Development Report 2022. Cambridge: Cambridge University Press; 2022. mostra que, em 2019, o grupo de países de baixa renda alcançou 42 pontos do índice, sendo relatados “desafios importantes persistentes” como justificativa para o resultado. Por sua vez, os países de alta renda alcançaram 83 pontos, sendo relatados como países que estavam “no caminho certo”, sem considerar as relações histórico-políticas de dependência e a assimetria de poderes que explicam esses resultados 4141. Borowy I. Global health and development: conceptualizing health between economic growth and environmental sustainability. J Hist Med Allied Sci 2013; 68:451-85..

O relatório do Grupo de Trabalho (GT) de Especialistas para Inclusão de Pessoas de Descendência Africana, ao analisar a meta 3.8, relatou que “mesmo em países muito desenvolvidos, as pessoas de ascendência africana enfrentam barreiras para acesso aos cuidados de saúde4242. United Nations. Operational Guidelines on the inclusion of People of African Descent in the 2030 Agenda. https://www.ohchr.org/en/documents/legal-standards-and-guidelines/operational-guidelines-inclusion-people-african-descent (acessado em 23/Mai/2023).
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. Barreto 4343. Barreto ML. Saúde global, grandes desafios contemporâneos: dinâmica populacional, determinantes, riscos e condições de saúde. In: Buss PM, Tobar S, organizadores. Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017. p. 195-223. (p. 203), ao analisar os desafios globais contemporâneos na saúde global, lembra que pesquisas da saúde pública e da epidemiologia acumulam evidências de que “...a ocorrência das mais diversas doenças e problemas de saúde se agrava (...), entre os mais pobres, entre grupos étnicos minoritários ou grupos que sofrem qualquer tipo de discriminação”.

Giovanella 4444. Giovanella L. Desafios contemporâneos dos sistemas de saúde. In: Buss PM, Tobar S, organizadores. Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017. p. 225-57., ao analisar os desafios dos sistemas de saúde na América Latina e no Caribe, observa como características a segmentação da cobertura e a privatização do financiamento e da prestação de serviços. Os prestadores privados, embora atendam mais prontamente e ofereçam cuidados mais personalizados - por atenderem uma parcela menor da população -, “...violam mais frequentemente os padrões de boa prática médica e têm resultados inferiores em saúde dos pacientes4444. Giovanella L. Desafios contemporâneos dos sistemas de saúde. In: Buss PM, Tobar S, organizadores. Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017. p. 225-57. (p. 236). A fragilidade dos sistemas públicos de saúde e o lento avanço da cobertura universal de saúde representam um agravo central para a oferta de cuidados em saúde em muitos países, uma vez que quanto mais pobre é um país, mais desafios são enfrentados para lidar com a transição epidemiológica ainda em curso. Embora as doenças transmissíveis ainda sejam muito incidentes e prevalentes, as doenças crônicas já são uma realidade que muitas vezes acometem os mesmos indivíduos, implicando em maior agilidade e efetividade em sistemas de saúde pouco estruturados ou já fragilizados 3333. Organização Mundial da Saúde - Escritório Regional para África. PEN-plus - uma estratégia regional para combater as doenças não transmissíveis graves nas unidades de saúde de encaminhamento de primeiro nível: relatório do Secretariado. https://apps.who.int/iris/handle/10665/363671 (acessado em 29/Mai/2023).
https://apps.who.int/iris/handle/10665/3...
,4343. Barreto ML. Saúde global, grandes desafios contemporâneos: dinâmica populacional, determinantes, riscos e condições de saúde. In: Buss PM, Tobar S, organizadores. Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017. p. 195-223..

Embora a alimentação seja essencial no processo de saúde, a produção alimentícia definitivamente se afastou da concepção de alimento como direito humano, afirmando-se como alimento-mercadoria 4545. Teixeira LSC. A fome na reprodução do capital: uma análise do alimento-mercadoria. Revista Katálysis 2022; 25:449-58.. Ela é orientada por uma lógica imperialista, centrada na monocultura, na transgenia, no uso de adubos químicos e agrotóxicos, na monopolização das patentes e na apropriação privada da terra, viabilizada pelo cerceamento de países pobres a meros exportadores de produtos primários 4545. Teixeira LSC. A fome na reprodução do capital: uma análise do alimento-mercadoria. Revista Katálysis 2022; 25:449-58.,4646. Pignati WA, Lima FANS, Lara SS, Correa MLM, Barbosa JR, Leão LHC, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a vigilância em saúde. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:3281-93..

Esse cenário é agravado pelas condições do trabalho assalariado, fetichizado, alienado e precarizado 4747. Antunes R. Século XXI: nova era da precarização estrutural do trabalho? In: Antunes R, Braga R, Nogueira A, organizadores. Infoproletários: degradação real do trabalho virtual. São Paulo: Boitempo Editorial; 2009. p. 231-8. (Coleção Mundo do Trabalho).,4848. Mendes R. Os piores países do mundo para trabalhadores e trabalhadoras: a Confederação Sindical Internacional (ITUC) divulga o ranking mundial de 2022. Cadernos CRIS/FIOCRUZ 2022; (21):57-65., frequentemente mal ou não remunerado, em especial no caso das mulheres 4949. Samarasekera U. 6 million female health workers are unpaid or underpaid. Lancet 2022; 400:87., assim como pelo subemprego e desemprego sistêmicos aos quais está submetida grande parcela da população mundial. Esse panorama configura solo fértil para a produção e reprodução das condições que geram as DCNT, reafirmando a necessidade de entendimento do processo saúde-doença a partir do conceito de determinação da saúde 44. Borde E, Hernández-Álvarez M, Porto MFS. Uma análise crítica da abordagem dos determinantes sociais da saúde a partir da medicina social e saúde coletiva latino-americana. Saúde Debate 2015; 39:841-54.. Nesse contexto, as estratégias voltadas para o enfrentamento dos fatores de risco, com políticas pontuais e práticas individuais, biológicas e biomédicas, ligadas ao lado perverso da globalização - que padroniza o modo de nascer, viver, produzir, adoecer e morrer 5050. Lopes F. Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer: tópicos em saúde da população negra no Brasil. In: Fundação Nacional de Saúde, organizador. Saúde da população negra no Brasil: contribuições para a promoção da equidade. Brasília: Fundação Nacional de Saúde; 2005. p. 9-48. e produz doenças e mal-estar -, oferecem respostas circunscritas, que tendem a deixar muitos para trás.

Embora o Plano Global de Enfrentamento das DCNT seja ousado ao tornar público o comprometimento em não deixar ninguém para trás, e apesar de importantes avanços na condição de saúde e acesso das populações no cenário internacional e nacional, os desafios para tornar esse compromisso real exigem mudanças estruturais que enfrentem os macrodeterminantes que estão na raiz do avanço das DCNT 4343. Barreto ML. Saúde global, grandes desafios contemporâneos: dinâmica populacional, determinantes, riscos e condições de saúde. In: Buss PM, Tobar S, organizadores. Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017. p. 195-223., muitos deles fora do controle direto da saúde 5151. Birn A-E. ¿Politizándolo o puliéndolo? Subsanar las desigualdades en una generación: alcanzar la equidad sanitaria actuando sobre los determinantes sociales de la salud. Medicina Social 2009; 4:189-207.. São requeridas mudanças que problematizem a desigual correlação de forças que mantém a relação de dominação histórico-estrutural de países do Norte Global sobre países do Sul Global 2828. Restrepo E, Rojas A. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamentos. Popayán: Universidad del Cauca; 2010. (Colección Políticas de la Alteridad).. Adicionalmente, são necessárias transições que centralizem o capitalismo global como a principal determinação social e econômica a ser revista 5151. Birn A-E. ¿Politizándolo o puliéndolo? Subsanar las desigualdades en una generación: alcanzar la equidad sanitaria actuando sobre los determinantes sociales de la salud. Medicina Social 2009; 4:189-207..

Respostas efetivas que tenham como princípio não deixar ninguém para trás no campo da saúde e do bem-estar não deveriam passar ao largo: (i) do fortalecimento dos sistemas de proteção social universais e gratuitos; (ii) do combate ao pensamento abissal 5252. Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos CEBRAP 2007; (79):71-94.; (iii) do equilíbrio da correlação de forças entre os países, de forma a garantir cooperações multilaterais; (iv) da discussão sobre a legalidade, legitimidade e eticidade da dívida externa dos países 3535. Conte F. Dívida externa no contexto dos direitos dos povos e dos direitos humanos. Revista de Direito da Procuradoria Geral 2001; (54):121-36.; e (v) do respeito a outros saberes, práticas e modos de viver e suas cosmovisões 3535. Conte F. Dívida externa no contexto dos direitos dos povos e dos direitos humanos. Revista de Direito da Procuradoria Geral 2001; (54):121-36.,5353. Malomalo B. Ubuntu como projeto alternativo de sociedade diante da crise social, econômica, política e ambiental do modelo desenvolvimentista ocidental: um olhar a partir da América Latina e da África. In: Calazans ME, Malomalo B, Piñeiro ES, organizadores. As desigualdades de gênero e raça na América Latina no século XXI. Porto Alegre: Fi; 2019. p. 511-32..

Quem tem ficado para trás no mundo?

Na Declaração Ministerial de Alto Nível produzida em função da Reunião Política de Alto Nível sobre o Desenvolvimento Sustentável realizada em julho de 2022 3232. United Nations. Draft ministerial declaration of the high-level segment of the 2022 session of the Economic and Social Council and the high-level political forum on sustainable development, convened under the auspices of the Council. https://hlpf.un.org/sites/default/files/2022-07/HLPF%202022%20MD%2013%20July.pdf (acessado em 05/Nov/2022).
https://hlpf.un.org/sites/default/files/...
, ministros reafirmaram que “os países menos desenvolvidos, como o grupo mais vulnerável de países, precisam de apoio global reforçado para superar os desafios estruturais, o impacto devastador recente da pandemia de COVID-19 e outros obstáculos que esses países enfrentam na implementação da Agenda 2030”.

No decorrer da pandemia de COVID-19, o atendimento às pessoas com DCNT na região das Américas foi reduzido ou interrompido em muitos países, em função do fechamento dos serviços para o redirecionamento da força de trabalho para atendimento aos pacientes acometidos pelo novo vírus 5454. Luciani S, Caixeta R, Chavez C, Ondarsuhu D, Hennis A. What is the NCD service capacity and disruptions due to COVID-19? Results from the WHO non-communicable disease country capacity survey in the Americas region. BMJ Open 2023; 13:e070085., assim como pelo afastamento dos pacientes, em especial os idosos, para adesão ao distanciamento por medo de infecção 1010. Malta DC, Morais Neto OL, Silva Junior JB. Apresentação do plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis no Brasil, 2011 a 2022. Epidemiol Serv Saúde 2011; 20:425-38.,5555. MacLeod S, Tkatch R, Kraemer S, Fellows A, McGinn M, Schaeffer J, et al. COVID-19 era social isolation among older adults. Geriatrics 2021; 6:52.. Esse contexto ficou ainda mais tenso com a escassez do acesso a vacinas e equipamentos de proteção individual, motivada pela ganância de países ricos 5656. Ruiz-Gómez F, Fernández-Niño JA. La lucha contra la COVID-19: una perspectiva desde América Latina y el Caribe. Rev Panam Salud Pública 2022; 46:e60..

Durante o Fórum Político de Alto Nível sobre Desenvolvimento Sustentável, a organização não governamental (ONG) Major Group, que representa globalmente algumas organizações que trabalham em prol do alcance dos ODS, apresentou seu Documento de Posição de 2022 3232. United Nations. Draft ministerial declaration of the high-level segment of the 2022 session of the Economic and Social Council and the high-level political forum on sustainable development, convened under the auspices of the Council. https://hlpf.un.org/sites/default/files/2022-07/HLPF%202022%20MD%2013%20July.pdf (acessado em 05/Nov/2022).
https://hlpf.un.org/sites/default/files/...
, informando que mulheres, jovens, indígenas e pessoas com deficiência são os grupos identificados como mais propensos a serem deixados para trás. A ONG destacou como preocupantes as situações de exploração de mulheres e crianças, o retrocesso das ações em direitos humanos, os conflitos regionais e nacionais, as ameaças à biodiversidade e a divisão digital entre países ricos e pobres, rurais e comunidades remotas.

Outros estudos internacionais evidenciam mais detalhadamente quem tem ficado para trás e como: (i) o acesso à água potável é uma realidade para 74% da população mundial, sendo 96% na Europa e na América do Norte e 30% na África Subsaariana 5757. United Nations. UN-Water SDG 6 Data Portal. https://www.sdg6data.org/ (acessado em 30/Dez/2021).
https://www.sdg6data.org/...
; (ii) 0,4% das pessoas que vivem com US$ 1,90 por dia estão em países de alta renda e 41,7% em países de baixa renda; e (iii) 89,8% da população que usa a internet está em países de alta renda, na África Subsaariana são somente 28,4% 5858. Sachs J, Lafortune G, Kroll C, Fuller G, Woelm F. From crisis to sustainable development: the SDGs as roadmap to 2030 and beyond. Sustainable Development Report 2022. Cambridge: Cambridge University Press; 2022..

O GT de Especialistas para Inclusão de Pessoas de Descendência Africana analisou cada meta dos ODS, indicando desafios enfrentados e recomendações para inclusão da população negra. Em relação à meta 3.4, o GT “encoraja os Estados a introduzirem programas especificamente designados para pessoas de descendência africana visando reduzir a mortalidade prematura por DCNT4242. United Nations. Operational Guidelines on the inclusion of People of African Descent in the 2030 Agenda. https://www.ohchr.org/en/documents/legal-standards-and-guidelines/operational-guidelines-inclusion-people-african-descent (acessado em 23/Mai/2023).
https://www.ohchr.org/en/documents/legal...
. Segundo o documento, o GT apresenta argumentos convincentes em matéria de direitos humanos que justificam a necessidade de direcionar especial atenção às pessoas de ascendência africana como um dos grupos populacionais que enfrentam formas múltiplas e combinadas de discriminação e que devem ser consideradas prioritárias para acabar com as desigualdades e a discriminação, para “não deixar ninguém para trás” e para “chegar primeiro aos mais desfavorecidos4242. United Nations. Operational Guidelines on the inclusion of People of African Descent in the 2030 Agenda. https://www.ohchr.org/en/documents/legal-standards-and-guidelines/operational-guidelines-inclusion-people-african-descent (acessado em 23/Mai/2023).
https://www.ohchr.org/en/documents/legal...
.

A população indígena mundial é composta por aproximadamente 476 milhões de pessoas (6% da população mundial). No entanto, aproximadamente 19% desse grupo está em situação de extrema pobreza e tem a expectativa de vida 20 anos menor que pessoas não-indígenas. Em muitos países, a população indígena não integra as estatísticas nacionais, uma vez que não são produzidos dados desagregados para os monitoramentos nacionais, inclusive dos ODS. Somente 10% dos territórios indígenas são legalmente reconhecidos, embora protejam 80% da biodiversidade mundial 5959. Banco Mundial. Pueblos indígenas. https://www.bancomundial.org/es/topic/indigenouspeoples#1 (acessado em 01/Dez/2022).
https://www.bancomundial.org/es/topic/in...
,6060. Indigenous Peoples Major Group for Sustainable Development. Global overview for indigenous peoples. https://indigenouspeoples-sdg.org/index.php/spanish/todos-los-recursos/posiciones-y-publicaciones-del-ipmg/ipmg-reports/global-reports/165-global-overview-on-indigenous-peoples-english-spanish/file (acessado em 05/Jan/2023).
https://indigenouspeoples-sdg.org/index....
. Dada a importância desse grupo para o desenvolvimento sustentável, Yap & Watene 61 (p. 6) reclamam a presença da cultura entre os objetivos dos ODS, lançando a pergunta: “se a cultura não aparece como uma dimensão e, portanto, um objetivo do desenvolvimento sustentável, como é possível que as aspirações indígenas tenham sido incluídas?”.

A ausência dos grupos em situação de vulnerabilidade nos espaços de construção e discussão dos acordos, metas e indicadores globais ou locais também é uma forma de deixá-los para trás.

...as diferentes concepções destas dimensões [dos ODS] nas diferentes culturas significam que, no processo de obtenção de um consenso universal, as prioridades e os pontos de vista de alguns grupos não serão levados em conta, especialmente os que se encontram à margem. Se esses pontos de vista não fizerem parte da estrutura de prestação de contas e monitoramento, ou seja, se forem invisíveis, como poderemos saber se alcançamos um futuro em que ninguém é deixado para trás? Mais especificamente, quais serão as prioridades que se tornarão visíveis? As dimensões complexas e ‘demasiado difíceis de medir’ serão deixadas de lado?6161. Yap MLM, Watene K. The Sustainable Development Goals (SDGs) and indigenous peoples: another missed opportunity? J Human Dev Capabil 2019; 20:451-67. (p. 5).

A população e os países mais pobres, grupos sociais em maior condição de vulnerabilidade como mulheres, jovens e pessoas com deficiência e os grupos racializados, com destaque para a população afrodescendente e a população indígena, são aqueles que têm enfrentado maiores desafios para acessar os bens socialmente produzidos com o desenvolvimento global, tendo assim maior risco de (continuar a) ficar para trás. Por isso, o enfrentamento das DCNT requer ações que extrapolem o campo stricto sensu da saúde, assim como o foco na meta 3. Todas as metas da Agenda 2030 são importantes para o pleno alcance da meta 3 e vice-versa. É nessa relação intrínseca entre as metas dos ODS que se apresenta seu potencial ousado de transformação, além de seu risco: para não deixar ninguém para trás, é necessário priorizar os grupos marginalizados nas estratégias políticas, assim como incluí-los em todas as etapas, da construção à implementação das ações.

Quem tem ficado para trás no Brasil?

Similarmente ao que tem acontecido no mundo, no Brasil, a população negra, jovem e indígena tem ficado para trás. Embora 56,1% da população brasileira tenha se autodeclarado como preta ou parda, esse grupo está sub-representado nos cargos de poder (29,9%) e na representação política (24,4%), e sobre-representado na força de trabalho desocupada (64,2%), subutilizada (66,1%) e no grupo de pessoas que vive abaixo da linha de pobreza (32,9%) 6262. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/21039-desigualdades-sociais-por-cor-ou-raca-no-brasil.html (acessado em 07/Mar/2023).
https://educa.ibge.gov.br/jovens/materia...
.

Em 2019, a taxa de violência letal contra pessoas negras foi 162% maior do que entre pessoas não negras, sendo que muitas dessas mortes ocorreram em ações policiais 6363. Ramos S, Ribeiro D, Santana L, Neves L, Lins AL, Barreira LFPC, et al. Pele alvo: a cor que a polícia apaga. Rio de Janeiro: Centro de Estudos de Segurança e Cidadania; 2022.. Nessa década, foi observado o aumento de 1,6% dos homicídios entre pessoas negras e a redução de 33% entre pessoas não negras 6464. Cerqueira D, coordenador. Atlas da violência 2021. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2021.. Jovens negros representam 61% das pessoas entre 15 e 29 anos no Brasil. Eles estão sub-representados nas classes A e B, encontrando-se em situação de maior vulnerabilidade e sendo o principal alvo da violência. No biênio 2017-2018, jovens de 15 a 19 anos na área rural tinham 14,6% mais probabilidade de entrar na extrema pobreza 6565. Barão M, Resegue M, Leal R. Evidências para transformação das juventudes. https://atlasdasjuventudes.com.br/evidencias-para-a-transformacao-das-juventudes/ (acessado em 20/Abr/2023).
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. O Governo Federal instituiu o GT interministerial para elaboração da proposta do Plano Juventude Negra Viva 6666. Brasil. Decreto nº 11.444, de 21 de março de 2023. Institui Grupo de Trabalho Interministerial para elaboração da proposta do Plano Juventude Negra Viva. Diário Oficial da União 2023; 22 mar., envolvendo 16 ministérios, dada a complexidade, gravidade e urgência da situação.

Os povos indígenas também têm ficado para trás. Mais de 800 indígenas da etnia Yanomami foram internados em situação de desnutrição grave em janeiro de 2023, após vários pedidos de socorro terem sido feitos durante a gestão do Presidente Jair Bolsonaro, sem sucesso, incentivando um cenário em que a população de garimpeiros está quase igual à população nativa, com 30 mil e 20 mil habitantes, respectivamente 6767. Brasil E, Seabra R. Sônia Guajajara afirma que a crise dos Yanomami só terá fim após a retirada de garimpeiros. Agência Câmara de Notícias 2023; 11 abr. https://www.camara.leg.br/noticias/951843-sonia-guajajara-afirma-que-a-crise-dos-yanomami-so-tera-fim-apos-a-retirada-de-garimpeiros/.
https://www.camara.leg.br/noticias/95184...
.

Os ODS são a aposta global e, em muitos casos, local, para amenizar a situação de pobreza à qual alguns grupos estão submetidos. No entanto, o VI Relatório Luz, publicado por um GT formado por 48 organizações e 101 especialistas que monitoram as 169 metas do Painel ODS Brasil 6868. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Indicadores brasileiros para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. https://odsbrasil.gov.br/ (acessado em 28/Mar/2023).
https://odsbrasil.gov.br/...
, registrou que, em 2022: 65,5% das metas estão em retrocesso; 6,5% permanecem ou entraram em estagnação, 8,3% ameaçadas, 14,3% em progresso insuficiente, e 84,8% não dispõem de informação. Somente para a meta 15.8 foi registrado progresso satisfatório: “até 2020, implementar medidas para evitar a introdução e reduzir significativamente o impacto de espécies exóticas invasoras em ecossistemas terrestres e aquáticos, e controlar ou erradicar as espécies prioritárias6969. Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável. VI Relatório Luz da Sociedade Civil da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável Brasil. https://gtagenda2030.org.br/relatorio-luz/relatorio-luz-2022/ (acessado em 19/Jul/2023).
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. A meta 3.4 - reduzir em um terço a mortalidade prematura via prevenção e tratamento, e promoção da saúde mental e do bem-estar - passou de estagnada (2021) para ameaçada (2022) 6969. Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável. VI Relatório Luz da Sociedade Civil da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável Brasil. https://gtagenda2030.org.br/relatorio-luz/relatorio-luz-2022/ (acessado em 19/Jul/2023).
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. Vale destacar que, no cenário brasileiro, a situação foi agravada por uma gestão presidencial que interrompeu o monitoramento dos ODS, reduziu o orçamento para políticas públicas sociais, eliminou espaços de participação popular e apagou dados oficiais, como apresentado no Relatório Luz de 2022.

Essa gestão produziu, entre 2021 e 2022, mais de 14 milhões de brasileiros famintos! Totalizaram-se 33 milhões de brasileiros (15,5% da população) que não tinham o que comer. Essa realidade é ainda mais intensa para quem vive no Norte (26%) e Nordeste (21%), quem solicitou e não recebeu o auxílio emergencial (63%), quem não tinha água em casa (42%), quem é preto e pardo (18,1%) e quem é mulher (19,3%) 2525. Food and Agriculture Organization of the United Nations; International Fund for Agricultural Development; United Nations Children's Fund; World Food Programme; World Health Organization. The state of food security and nutrition in the world 2022. Repurposing food and agricultural policies to make healthy diets more affordable. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2022.. As principais ações políticas econômicas adotadas durante essa gestão foram deliberadamente de encontro com a promessa de não deixar ninguém para trás, comprometendo as estratégias de enfrentamento das DCNT e o compromisso da Agenda 2030 de não deixar ninguém para trás. Para o grupo populacional de pretos e pardos, observou-se um aumento de 60% das pessoas que convivem com a fome, enquanto entre brancos esse aumento foi de 34,6%, de acordo com o 2º Inquérito de Insegurança Alimentar 7070. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert/Rede PENSSAN; 2022..

O estudo de Malta 1010. Malta DC, Morais Neto OL, Silva Junior JB. Apresentação do plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis no Brasil, 2011 a 2022. Epidemiol Serv Saúde 2011; 20:425-38., com base no Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), realizado com 45.448 adultos, nas 27 capitais do Brasil em 2012, mostra as diferenças dos fatores de risco em razão da raça/cor (Quadro 1).

Quadro 1
Fatores de risco das doenças crônicas não transmissíveis, de acordo com o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), em todas as capitais brasileiras, por raça/cor, 2012.

Embora a população afrodescendente e indígena esteja sendo deixada para trás, no mundo e no Brasil, vale destacar o trabalho de organizações da sociedade civil (OSC) na defesa da garantia de direitos fundamentais de populações ou grupos expostos à situação de maior vulnerabilidade, como as nacionais Coalizão Negra por Direitos (https://coalizaonegrapordireitos.org.br/), que defende os direitos da população negra, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (https://apiboficial.org/), que defende os direitos da população indígena, e o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (https://gtagenda2030.org.br/), que monitora os ODS no Brasil. Em relação às organizações internacionais, destacam-se as organizações NGO Major Group (https://www.ngomg.org/), Women in Global Heath (https://womeningh.org/about/), que defende a igualdade de gênero na saúde global, e a Global Health Watch (https://phmovement.org/global-health-watch), uma plataforma de resistência para o domínio neoliberal na saúde, entre tantas outras organizações e temas.

No México, um grupo de trabalho composto por OSC produziu o Informe Luz 2021 22. Becerra Pozos L, Pérez Baeza R. Progreso de la Agenda 2030 para el Desarrollo Sustenible de México. Informe Luz de las Organizaciones de la Sociedad Civil Mexicanas-2021. https://portales.sre.gob.mx/dgvosc/images/phocadownload/Documentos/InformeLuzDeLasOSC2021.pdf (acessado em 01/Fev/2023).
https://portales.sre.gob.mx/dgvosc/image...
, que aponta para desafios nacionais de inserção dos ODS na estrutura executiva e legislativa do país, nos níveis nacional e local, com a criação de um Conselho Nacional para a Agenda 2030 e Comitês de Trabalho, mecanismos de participação e incidências das OSC e Cooperação Internacional, com ampla difusão dos compromissos assumidos para a população.

No Brasil, o V Relatório Luz da Sociedade Civil, de 2021 7171. Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável. V Relatório Luz da Sociedade Civil. Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável Brasil. https://gtagenda2030.org.br/relatorio-luz/relatorio-luz-2021/ (acessado em 10/Fev/2023).
https://gtagenda2030.org.br/relatorio-lu...
, aponta que: “...há maior adesão à Agenda 2030 pelos espaços subnacionais, onde comissões municipais e estaduais ODS avançam na localização da Agenda 2030; há também a iniciativa do Poder Judiciário de indexar sua base de dados (de 80 milhões de processos) aos ODS e um projeto de lei que nacionaliza a Agenda 2030, o PL 1308/2021, foi pautado no Congresso Nacional pela Frente Parlamentar Mista de Apoio aos ODS”.

O relatório da pesquisa global sobre DCNT em 2019, feito pela OMS 7272. World Health Organization. Assessing national capacity for prevention and control of noncommunicable diseases: report of the 2019 global survey. https://www.who.int/publications/i/item/9789240002319 (acessado em 30/Nov/2022).
https://www.who.int/publications/i/item/...
, informa que 95% dos países tinham uma unidade ou departamento de DCNT, 74% incluíram as DCNT em seus planos nacionais e um terço havia implementado políticas para reduzir o impacto do marketing de comidas não saudáveis para crianças ou para reduzir o consumo de açúcar e sal. A edição 2022 do Monitor de Progresso das DCNT 7373. World Health Organization. Noncommunicable diseases progress monitor 2022. https://www.who.int/publications/i/item/9789240047761 (acessado em 16/Fev/2023).
https://www.who.int/publications/i/item/...
indica que 126 dos 193 países do mundo estabeleceram metas nacionais de DCNT seguindo as orientações da OMS e, mesmo com a pandemia de COVID-19, 77 países alcançaram plenamente mais indicadores do que foi observado no relatório anterior.

Esses exemplos evidenciam um esforço para avançar no sentido do compromisso assumido pelos países, representando algum nível de envolvimento com o compromisso de não deixar ninguém para trás. No entanto, o alcance das metas dos ODS, no âmbito nacional ou global, requer transformações que ultrapassem o campo retórico e se efetivem no campo prático, político e econômico. São necessários acordos baseados em uma outra ética política, econômica e cultural, construída sob a égide da equidade e do respeito aos direitos humanos fundamentais.

Considerações finais para não deixar ninguém para trás!

O alcance dos objetivos da Agenda 2030 requer o enfrentamento de iniquidades que historicamente têm excluído uma grande população mundial. Em um cenário que cotidianamente deixa pessoas para trás, é preciso criar, revisitar e/ou personalizar estratégias políticas capazes de produzir e estimular novas realidades. Logo, a reflexão sobre os desafios para alcançar as metas dos ODS faz-se urgente e atual, pois as DCNT continuam a ser um importante problema de saúde pública no Brasil e no mundo. A pandemia de COVID-19 complexificou o alcance das metas dos ODS como um todo, das metas relacionadas às DCNT e, mais especificamente, dos cuidados às DCNT.

Embora os macrodeterminantes sociais da saúde coloquem em xeque o alcance das metas dos ODS, eles representam o grande acordo global na área da saúde que faz com que os governos tenham uma agenda de trabalho orientada por um mesmo tema, que só poderá ser efetivada com a participação de todos em todos os níveis. O alcance dessas metas aponta, de fato, para um mundo melhor.

No entanto, a não integração dos conhecimentos seculares sobre o modo de produção e reprodução sustentável dos povos originários tradicionais e do Sul Global e a ausência de ruptura com esse modelo de desenvolvimento baseado na exploração e em hierarquias raciais, de gênero e territoriais, são empecilhos estruturais para que se alcance um mundo sustentável e equitativo. O modelo de desenvolvimento atual já deu provas de que não é capaz de produzir sustentabilidade para todos, assim como o planeta vem demonstrando que não é possível ser sustentável somente para alguns.

Talvez por viver longamente em cenários de intensas iniquidades, já produzimos declarações, cartas, acordos e evidências demasiadamente potentes para apontar caminhos que pretendem não deixar ninguém para trás. No entanto, é preciso sair do campo da retórica e aplicá-los no campo prático. É preciso não deixar ninguém para trás como um princípio ético-epistemológico-científico-social-político-relacional, e apostar na construção de novos caminhos a partir de outras epistemologias e cosmovisões presentes do outro lado da linha abissal. A globalização é uma potencial importante aliada nesse processo, se, como dito por Santos 2222. Santos M. Por uma globalização: do pensamento único à consciência universal. 17ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Record; 2008. (p. 20), for orientada por bases técnicas e “postas a serviço de outros fundamentos sociais e políticos”.

O ideograma Sankofa é representado por uma ave que tem os pés voltados para frente, a cabeça para trás e segura um ovo na boca. Ele representa em imagem um provérbio tradicional dos povos de língua Akan da África Ocidental, Gana, Togo e Costa do Marfim, traduzido como aprender com o passado para construir o futuro ou voltar para buscar o que esqueceu.

Pensar em desenvolvimento sempre remete ao futuro, ao progresso. Contudo, talvez as respostas para o desenvolvimento sustentável e capaz de não deixar ninguém para trás estejam em algum lugar de nosso passado mais originário e tradicional. A boa notícia é que temos todas as ferramentas para (re)encontrá-las.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento da bolsa de doutorado e à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ) pela realização da oficina de artigos de 2022.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2023
  • Revisado
    26 Jan 2024
  • Aceito
    08 Mar 2024
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br