Atenção Primária e dependência química: contribuições do matriciamento em saúde mental

Primary Health Care and chemical dependency: contributions of specialist orientation in mental health

Ana Carolina da Costa Araujo Sobre o autor

RESUMO

O presente estudo tem o objetivo de avaliar como profissionais de saúde têm abordado a questão da dependência química na Atenção Primária à Saúde, identificando as principais dificuldades na abordagem dessa temática e avaliando como o Matriciamento pode contribuir para o cuidado desses usuários. A coleta de dados se deu a partir de sete entrevistas com profissionais de CAPSad e da Atenção Primária que participavam das atividades de Matriciamento no município. De maneira geral, avaliou-se que o Matriciamento se mostra como importante estratégia de troca de saberes e articulação da rede de serviços, possibilitando que um novo olhar seja lançado sobre a dependência de substâncias psicoativas.

PALAVRAS-CHAVE
Dependência química; Atenção primária; Matriciamento em saúde mental

ABSTRACT

This paper is intended to evaluate how health professionals have addressed the issue of addiction in Primary Health Care, identifying the main difficulties related to approaching this issue and appraising how the Specialist Orientation can contribute to the care of those users. Data collection took place from seven interviews with professionals located on CAPSad and Primary Care services, who were participating on the Specialist Orientation activities at the municipality. Overall, it was evaluated that the Specialist Orientation had been revealed as an important strategy for knowledge exchange and management of network services, enabling a new look on psychoactive substances addiction.

KEYWORDS
Chemical dependency; Primary health care; Specialist orientation

Introdução

No Brasil, é possível identificar dois principais posicionamentos políticos para o enfrentamento de questões relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas: o proibicionismo e a abordagem de redução de danos, De acordo com Alves (2009)ALVES, V. S. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro: v. 25, n. 11, nov. 2009. pp. 2309-2319., as políticas proibicionistas concentram esforços em intervenções de repressão e criminalização da produção e do consumo de drogas, não tolerando nenhum padrão de consumo e tendo a abstinência como condição, meio e finalidade do tratamento.

Enquanto isso, as políticas e programas de redução de danos disseminam intervenções orientadas para a minimização dos danos físicos, sociais e econômicos relacionados ao uso de álcool e outras drogas. Os princípios da Redução de Danos se baseiam no fato de que o consumo de drogas sempre esteve presente na história da humanidade, o que desperta a necessidade de traçar estratégias para conter os danos que seu uso causa aos usuários e á sociedade, sem necessariamente proibi-lo. Sendo assim,

Ao invés de estabelecer a abstinência como única meta aceitável de prevenção e do tratamento, a redução de danos concilia o estabelecimento de metas intermediárias. O foco dessa abordagem está na adoção de estratégias para minimizar os danos sociais e à saúde relacionados ao consumo de drogas, mesmo que a intervenção não produza uma diminuição imediata do consumo (ALVES, 2009, p. 2313ALVES, V. S. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro: v. 25, n. 11, nov. 2009. pp. 2309-2319.).

Em 2003, foi formulada a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, a qual afirma a responsabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) em garantir assistência especializada aos usuários de álcool e outras drogas, até então oferecida predominantemente por instituições não governamentais, como comunidades terapêuticas e grupos de autoajuda. Tal política prevê também a implementação de uma rede de atenção a usuários de substâncias psicoativas, com destaque para a implementação dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPSad), o qual desempenha papel estratégico na articulação da rede de cuidados em seu território.

Secundo Oliveira; Santos (2010)OLIVEIRA, E. M.; SANTOS, N. T. V. A rede de assistência aos usuários de álcool e outras drogas - em busca da integralidade. In: SANTOS, L. M. de B. (Org.). Outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas. Porto Alegre: Ideograf/Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2010., os CAPSad devem funcionar com estratégias de redução de danos, acolhendo também pessoas que não estejam interessadas na abstinência, trabalhando com projetos terapêuticos individualizados, com o objetivo de reinserção do usuário ao ambiente social-comunitário, cabendo a esses dispositivos a invenção de práticas cujos objetivos não se reduzam a buscar um ideal em que haveria uma suposta cura representada pela abstinência às drogas.

Em 2005 foi aprovada a Política Nacional sobre Drogas, com o intuito de implantar e pôr em prática uma rede de assistência a indivíduos com transtornos recorrentes do consumo de substâncias psicoativas. Nesse sentido, o tratamento, a recuperação e a reinserção psicossocial do usuário seriam resultado da articulação e integração de uma rede de cuidados formada por vários dispositivos comunitários sociais e de saúde. Dessa rede fazem parte não apenas o CAPSad, mas também instituições governamentais e não governamentais do setor saúde e da assistência social, tais como as unidades básicas de saúde, ambulatórios, comunidades terapêuticas, grupos de autoajuda, hospitais gerais e psiquiátricos, serviços de emergência, corpo de bombeiros, clínicas especializadas casas de apoio, etc. (OLIVEIRA; SANTOS, 2010OLIVEIRA, E. M.; SANTOS, N. T. V. A rede de assistência aos usuários de álcool e outras drogas - em busca da integralidade. In: SANTOS, L. M. de B. (Org.). Outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas. Porto Alegre: Ideograf/Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2010.).

Dentro desse território, a Estratégia de Saúde da Família ocupa um lugar central, visto que é um importante elo na identificação e no acompanhamento de alguns casos nos quais o sofrimento mental está presente (JUCÁ 2009JUCÀ, V. J. S.; NUNES, M. O.; BARRETO, S. G. Programa de Saúde da Família e Saúde Mental: impasses e desafios na construção da rede. Ciência e Saúde Coletiva, V. 14, n. 1, p. 173-182, 2009.). Assim,

Por sua proximidade com famílias e comunidades, as equipes da Atenção Básica se apresentam como um recurso estratégico para o enfrentamento de importantes problemas de saúde pública, como os agravos vinculados ao uso abusivo de álcool, drogas e diversas outras formas de sofrimento psíquico, Existe um componente de sofrimento subjetivo associado a toda e qualquer doença, às vezes atuando como entrave à adesão a práticas preventivas ou de vida mais saudáveis. Poderíamos dizer que todo problema de saúde é também – e sempre – de saúde mental, e que toda saúde mental é também – e sempre – produção de saúde. Nesse sentido, será sempre importante e necessária a articulação da saúde mental com a Atenção Básica (BRASIL, 2005, p. 33BRASIL. Ministério da Saúde. Reforma Psiquiátrica e política de Saúde Mental no Brasil. Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília: Ministério da Saúde 2005.).

Figueiredo; Campos (2008) afirmam que para propiciar maior consistência às intervenções em Saúde Mental, torna-se de fundamental importância desenvolver estratégias que promovam a interlocução entre os serviços de Atenção Primária e os serviços da rede de Atenção Psicossocial, qualificando as equipes de Saúde da Família para um cuidado ampliado em saúde, que contemple a subjetividade e o conjunto de relações sociais dos indivíduos. Nesse contexto, uma das preocupações centrais na atualidade tem sido a incorporação das ações de saúde mental na rede de atenção primária. De acordo com Dimenstein (2009)DIMENSTEIN, M. et al. O Apoio Matricial na perspectiva de coordenadoras de Equipes de Saúde da Família. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João del-Rei. v. 4, n. 1, dez. 2009, p. 37-48., essa incorporação facilitaria o direcionamento dos fluxos da rede e promoveria uma articulação entre os equipamentos de saúde mental, dentre eles os CAPSad, e os Centros de Saúde da Família (CSF).

No entanto, o que se percebe é que na maioria das vezes a Equipe de Saúde da Família não se sente preparada para atender esses casos. A falta de capacitação das equipes para lidar com os problemas de saúde mental impossibilita a realização de intervenções eficazes e faz com que essa demanda que chega aos serviços de atenção primária não encontre uma escuta qualificada. Nesse sentido, Campos e Domitti (2007)CAMPOS, G. W. S.; DOMITTI, A. C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.23, n. 2, fev. 2007, p. 399-407. propõem uma metodologia de trabalho em saúde denominada Apoio Matricial, que objetiva “assegurar retaguarda especializada a equipes e profissionais encarregados da atenção a problemas de saúde” (p. 399).

O Ministério da Saúde (2003) define o Matriciamento como um arranjo organizacional que tem como objetivo prestar suporte técnico cm áreas específicas às equipes responsáveis pelo desenvolvimento de ações básicas de saúde para a população, visando o compartilhamento e a co-responsabilização pelos casos. Essa responsabilização compartilhada exclui a lógica do encaminhamento, objetivando aumentar a capacidade resolutiva de problemas de saúde pela equipe local, estimulando a interdisciplinaridade e a ampliação da clínica da equipe, na qual outras dimensões, além da biológica, serão valorizadas, como a social e a psíquica.

A aposta no Apoio Matricial está na troca de saberes entre os diversos profissionais, o que possibilita novas ofertas de ações e serviços que tenham potencial para modificar positivamente os problemas de saúde (OLIVEIRA, 2008OLIVEIRA, W. F. Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde. Saúde em debate; v. 32, n. 78-80, p. 38-48, jan-dez. 2008.). O Apoio Matricial “poderá propiciar um espaço de trocas de experiências e de saberes no campo da saúde mental com outros profissionais da rede básica, sendo uma construção coletiva que favorece a co-responsabilização e a avaliação contínua no tratamento do usuário” (BEZERRA; DIMENSTEIN, 2008, p. 637BEZERRA, E.; DIMENSTEIN, M. Os CAPS e o trabalho em rede: tecendo o apoio matricial na atenção básica. Psicologia:Ciência e Profissão, Brasília, v. 28, n. 3, set 2008. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141498932008000300015&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 23 maio 2011.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
).

Conforme referem Chiaverini et al (2011)CHIAVERINI, D. H. (Org.). Guia prático de matriciamento em saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde, 2011., os casos mais comuns que podem vir a ser foco do matriciamento em saúde mental são: transtornos mentais comuns, frequentemente atendidos pelas equipes de atenção primária; transtornos mentais graves, como transtornos psicóticos, afetivos e de personalidade graves; alcoolismo e outras drogadições; ideação, intenção ou tentativa de suicídio; problemas do sono, como insônia ou sonolência excessiva; demências; problemas da infância e da adolescência e problemas comuns na família, como gravidez, separação, morte e luto. Nesse sentido, é de extrema importância que os profissionais da ESF estejam aptos a identificar tais casos e acolher esses indivíduos, ouvindo suas queixas sem menosprezá-las e identificando que aspectos dessas queixas têm relação com a situação que o sujeito está vivenciando naquele momento.

Dessa forma, como afirmam Oliveira; Santos (2010)OLIVEIRA, E. M.; SANTOS, N. T. V. A rede de assistência aos usuários de álcool e outras drogas - em busca da integralidade. In: SANTOS, L. M. de B. (Org.). Outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas. Porto Alegre: Ideograf/Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2010., é importante que as Equipes de Saúde da Família estejam aptas não apenas para identificarem os usuários que necessitam de atenção especializada, mas também a desenvolverem abordagens terapêuticas.

Dada à relevância do tema, o presente trabalho procurou investigar como os profissionais de saúde de serviços engajados nas atividades de Matriciamento em Saúde Mental do município de Fortaleza têm abordado a questão do Álcool e outras Drogas na Atenção Primária à Saúde, identificando as principais dificuldades na abordagem dessa temática e refletindo sobre como o Matriciamento pode contribuir para o cuidado desses usuários.

Metodologia

O presente trabalho é um recorte da Monografia “Inserção da Saúde Mental na Atenção Básica: o Matriciamento como articulador da rede de serviços de Fortaleza, CE” e se caracterizou como uma pesquisa de campo de abordagem qualitativa, aspecto elegido por ser mais adequado à obtenção do objetivo proposto, que visa compreender como os profissionais de saúde de alguns serviços engajados nas atividades de Matriciamento em Saúde Mental do município de Fortaleza têm abordado a questão do Álcool e outras drogas na Atenção Primária à Saúde.

A abordagem qualitativa se mostrou como a mais adequada devido a sua especificidade no trabalho com o universo dos significados, dos valores, das crenças, dos motivos e das atitudes dos sujeitos, respondendo assim a questões particulares com um nível de realidade que não pode ser quantificada (MINAYO, 2011MINAYO, M. C. S. (org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 30. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.).

O trabalho de campo se deu pelas entrevistas e pela observação das atividades analisadas. Foram realizadas sete entrevistas e duas observações de campo, a partir das quais surgiram as reflexões acerca das particularidades do Matriciamento com relação ao uso de álcool e outras drogas. Dos profissionais entrevistados, cinco atuam em CAPSad e dois em Centros de Saúde da Família.

O estudo foi realizado em serviços de saúde do município de Fortaleza, A rede de serviços de saúde mental do município conta com 14 CAPS, sendo 6 CAPS gerais, 6 CAPSad e dois CAPSi, uma Residência Terapêutica, quatro Ocas Comunitárias de Saúde, uma equipe do Consultório de Rua e dois hospitais públicos destinados a emergências psiquiátricas, o Instituto de Psiquiatria do Ceará (IPC) e o Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSMM), Quanto aos serviços de atenção primária, o município conta com 88 Centros de Saúde da Família.

Os participantes do estudo foram os profissionais de saúde mental e de atenção primária que se encontravam engajados nas atividades de Matriciamento em saúde mental nesses CSF A coleta de dados foi realizada através de um roteiro de entrevista semiestruturada utilizado nas conversas com os profissionais, assim como pela observação de campo, nas quais o pesquisador participou das atividades analisadas. As informações colhidas através das observações de campo foram registradas cm diário de campo.

O tratamento dos dados deu-se através do registro sistemático das anotações de campo e da transcrição do material empírico. Os dados coletados foram analisados a partir de categorias, as quais se relacionam com os objetivos propostos para o estudo.

Resultados

De maneira geral, as atividades de Matriciamento são realizadas no espaço dos CSF e sua frequência varia de semanal para quinzenal e mensal. Esse intervalo fixo de tempo é estabelecido de maneira que as equipes possam se organizar para realizar as atividades, A composição das equipes de Matriciamento é bastante variada, Da Atenção básica, participam principalmente o médico, o enfermeiro e os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), em alguns serviços de forma mais ativa e em outros de maneira secundária. Dos serviços de saúde mental atuam diversas categorias profissionais, sendo predominante a participação de psicólogos e assistentes sociais.

Os casos abordados nas discussões de Matriciamento são de natureza bastante variada, dentre os quais encontram-se usuários com queixa de dependência e uso abusivo de álcool e outras drogas e dependência de benzodiazepínicos. Boa parte dos casos chega até o Matriciamento através dos ACS, que identificam os casos no território e comunicam à equipe de referência, Outras vezes, a identificação dos casos é feita no próprio cotidiano de atendimento das equipes de referência, através das consultas clínicas ou de visitas domiciliares.

De maneira geral, os profissionais entrevistados apontaram o Matriciamento em Saúde Mental como uma importante estratégia no que diz respeito ao desenvolvimento de ações relacionadas ao uso de álcool e outras drogas na atenção primária, desde ações preventivas até o acolhimento e ações interventivas, sem necessariamente encaminhar o usuário a serviços especializados.

O Matriciamento é como se ele fosse uma mão, quando a gente faz uma escuta de um caso na Unidade, a gente já diminui esse paciente de um CAPS. É um paciente a menos, ou se for um paciente de CAPS a gente já vai saber para onde direcionar, Eu acho que é um “desafogar” do serviço de saúde mental E diminuir a demanda. (Entrevistado IV).

Consequentemente, o Matriciamento também contribui com a organização do fluxo entre os serviços, distinguindo situações que demandam atendimento especializado em saúde mental e aquelas que podem ser acolhidas pelos próprios profissionais da Atenção Básica, desde que esses contem com o suporte necessário para compreender e intervir nesse campo (FIGUEIREDO; ONOCKO CAMPOS, 2009FIGUEIREDO, M. D.; CAMPOS, R. O. Saúde Mental na Atenção Básica à saúdede Campinas, SP: uma rede ou um emaranhado? Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, fev. 2009, p.129-138.). Essa reordenação do trabalho estimula a produção de um novo padrão de responsabilidade sobre os casos, e evita a criação dos percursos intermináveis de encaminhamentos entre os serviços (CAMPOS, 1999CAMPOS, G. W. S. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.4, n.2, 1999, p.393-403.).

Porque o que acontece: chega a Unidade, é transtorno mental, encaminha para o CAPS gerai É usuário de drogas, encaminha para o AD. E não deve ser assim, tem que acolher, e mesmo fazer um trabalho com essas pessoas, nem tudo precisa ser resolvido em serviço especializado. (Entrevistado III).

Então, nós, como equipe de saúde, percebemos essa necessidade de estarmos nos aproximando mais de outros serviços de saúde para que eles saibam como acolher o usuário de álcool e de drogas. Por que não é todo usuário de álcool e drogas que precisa vir para o CAPS. Então na verdade é uma troca. Uma troca de saberes, um aperfeiçoamento de práticas, tanto da nossa parte quanto da parte desses serviços.

Dessa forma, o Matriciamento representa a possibilidade de interlocução entre os diversos serviços da rede de saúde, contribuindo também para a troca de conhecimento entre os profissionais. Esse suporte que as atividades de Apoio Matricial oferecem é de extrema relevância, visto que muitos profissionais da Atenção Primária estão ou se sentem despreparados para o acompanhamento de usuários de substâncias psicoativas.

A necessidade de orientar as equipes de Saúde da Família e de trabalhar sua sensibilização com relação ao manejo dos casos de uso de substâncias psicoativas mostrou-se como uma das razões dos profissionais de saúde mental para realizar as atividades. Nesse aspecto, as próprias ações de Matriciamento se mostram como importante estratégia de educação e de troca de saberes, atuando com os profissionais dos serviços de atenção primária de maneira a proporcionar o conhecimento necessário para que estejam aptos a receber essa demanda e acolhê-la de maneira adequada e humanizada.

Por serem os casos de uso de drogas ainda vistos de maneira estigmatizada por muitos profissionais, isso dificulta que a abordagem dos usuários seja feita de maneira eficaz e cuidadosa. Dessa forma, o Matriciamento foi apontado pelos entrevistados como uma possibilidade de promover a sensibilização desses profissionais no que diz respeito ao atendimento de pessoas com histórico de uso e abuso de substâncias, Essa sensibilização, embora aconteça de maneira gradual, foi apontada pelos entrevistados como uma das mais importantes contribuições das atividades de inserção da saúde mental na atenção básica.

Então o matriciamento veio muito dessa necessidade de estarmos orientando, não só de orientar, mas de pensar um meio de estar permitindo uma capacitação da equipe de saúde da família para acolher as pessoas com transtornos mentais em gerai Então o que me fez participar do matriciamento foi exatamente essa troca de saberes, de trabalhar em rede. Isso estimula o profissional a fazer o matriciamento, porque trabalhar em rede é muito interessante. (Entrevistado II).

Combater principalmente o preconceito e o estigma que ainda existe em relação aos usuários de transtorno mental e os usuários de álcool e drogas. (Entrevistado V)

Além do estigma, a falta de conhecimentos específicos em Saúde Mental por parte dos profissionais da Atenção Primária e a inabilidade no manejo do cuidado do uso abusivo de substâncias também foram apontadas como dificuldades para a realização das atividades de Matriciamento.

Na experiência que já tive no Matriciamento em alguns lugares, o que mais percebi que teve dificuldade de alguns profissionais foi a questão do manejo, o manejo com a saúde mental, a dificuldade que eles tinham com o entendimento em relação a álcool e drogas, o que é a crise de abstinência, o que é a fissura, quando que a paranoia acontece na abstinência de álcool e drogas, por que que na fissura o usuário de crack reage daquela maneira... (Entrevistado V).

Por não possuírem o conhecimento necessário para acompanhar e intervir nos casos de abuso de substâncias psicoativas, os profissionais acabam negligenciando essa demanda ou fazendo encaminhamentos equivocados e desnecessários aos serviços de saúde mental. Nesse contexto, alguns entrevistados, especialmente os profissionais da Atenção Primária, consideram sua formação ineficiente quanto à questão do uso de álcool e drogas, mas é possível, com o devido apoio e orientação, que essa dificuldade seja superada, sendo as próprias atividades de Matriciamento vistas como espaço para promover essa educação necessária para o manejo de tais casos (CHIAVERINI 2011CHIAVERINI, D. H. (Org.). Guia prático de matriciamento em saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde, 2011.).

Como exposto anteriormente, o Matriciamento proporciona um espaço de troca de saberes entre os profissionais, possibilitando a efetivação da interdisciplinaridade e da reflexão acerca dos cotidianos de cuidado. As atividades junto a outros profissionais acarretam movimentação no serviço, possibilitando aos profissionais se depararem com situações com as quais ainda não estão aptos a lidar, que despertam dúvidas e questionamentos, provocando reflexão acerca das rotinas de trabalho por parte dos profissionais de ambos os níveis de atenção.

De acordo com Chiaverini (2011)CHIAVERINI, D. H. (Org.). Guia prático de matriciamento em saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde, 2011., no Matriciamento as atividades de educação em saúde mental devem acontecer de forma contínua, tendo como base as problemáticas e questões que surgirem no cotidiano de atuação dos profissionais envolvidos, especialmente no que diz respeito a desconstrução dos preconceitos relacionados ao adoecimento psíquico. Para isso, devem-se utilizar métodos variados, como leitura de textos, discussão de casos e planejamento conjunto de atividades.

É tão rica essa coisa do matriciamento, porque cada caso traz a sua particularidade, então a gente se reúne pra debater, e cada caso traz um novo conhecimento pra você, em cada situação dá pra se aprender muita coisa. (Entrevistado IV).

Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) têm sido importantes parceiros no que diz respeito à identificação dos casos de abuso de substâncias psicoativas, visto que nem sempre os usuários buscam ajuda por si só. A participação do ACS no Matriciamento propicia maior vinculação entre a equipe de apoio matricial e o usuário. Muito além da identificação dos casos no território, o ACS contribui com o olhar de quem faz parte da comunidade, conhece esse território, suas potencialidades e limitações, assim como dispositivos e equipamentos que poderiam ser parceiros do Matriciamento no cuidado do sofrimento mental. Nas discussões de caso, contribui com o seu conhecimento prático e sua proximidade com as famílias, fornecendo informações as quais os profissionais de referência ainda não tiveram acesso. Além disso, depois de pensados os encaminhamentos e sugeridas às intervenções ao usuário, o ACS pode atuar no acompanhamento e na evolução do caso, mantendo a equipe informada sobre a condição de saúde daquele usuário.

Os agentes de saúde eles têm sido muito importantes no sentido de articular coisas no território, ou então identificar alguma demanda e a gente estar implementando o plano terapêutico daquele usuário. (Entrevistado I).

Além da falta de conhecimentos no que diz respeito ao manejo dos casos de abuso de substancias psicoativas e do estigma que essa clientela possui, os profissionais entrevistados citaram outras limitações e desafios que o Matriciamento ainda enfrenta no município. Uma delas é a grande demanda existente nos serviços, tanto nos CAPSad quanto da atenção básica, exigindo do profissional uma atuação baseada prioritariamente na produção de atendimentos, o que muitas vezes o impossibilita de estar envolvido em outras atividades que não necessariamente as de atendimento clínico tradicional.

O fato de não haver uma política municipal que institua o Matriciamento como uma atividade constituinte da rotina dos serviços de saúde cm Fortaleza, que aponte critérios e oficialize essas ações, também tem dificultado o processo de implementação dessa ferramenta nos serviços analisados, impossibilitando também uma avaliação por parte dos profissionais acerca dos resultados que o Matriciamento tem trazido.

Não existe no ministéno da saúde nem em nível estadual nem em nível municipal um funcionamento claro com o colegiado de saúde mental a respeito da viabilização do Matriciamento, a oficialização do Matriciamento. Tanto isto não é oficial que tem causado muitos problemas pra implementação do Matriciamento, ao ponto que parece ser uma coisa apenas da Saúde Mental. (Entrevistado I).

A rotatividade dos profissionais nos serviços de saúde do município também foi citada pelos entrevistados como uma das dificuldades na consolidação das atividades de Matriciamento, visto que é necessário estar continuamente estabelecendo parcerias e sensibilizando novas equipes, o que algumas vezes interfere na evolução do processo.

Como assinalado anteriormente, a resistência de alguns profissionais em participar das atividades de Matriciamento também foi apontada como uma das principais dificuldades da implementação dessa atividade nos serviços de saúde do município. Não obstante, os relatos também trazem indícios de que, à medida que as atividades acontecem e que há um esforço para a sensibilização dos profissionais no sentido de demonstrar a importância do Matriciamento para todos os sujeitos envolvidos nesse processo, tem havido uma maior adesão dos profissionais de ambos os níveis de atenção.

Outra dificuldade trazida pelos profissionais durante a entrevista foi a relação entre os usuários de álcool e drogas e a questão da tuberculose. Sabe-se que muitos pacientes usuários de drogas possuem o diagnóstico de tuberculose, uma situação que demanda atenção especial tantos dos profissionais do CAPSad quanto da Atenção Primária. No entanto, é relatado que ainda não tem sido possível fazer a interlocução entre esses dois serviços de maneira eficaz, como podemos perceber no relato seguinte:

Eu acho que existe uma lacuna muito grande para o matriciamento com pacientes vítimas de tuberculose que nós não estamos conseguindo avançar nesse sentido, embora a gente saiba que o CAPSad está esborrotando de paciente usuário de drogas com TB, e nós estamos tendo inúmeros paciente com TB usuários de drogas, então são os mesmos sujeitos que estão sendo vistos lá, estão sendo vistos aqui, mas não estão sendo vistos conjuntamente. Então nós não estamos assistindo essa clientela, que está precisando de um olhar direcionado da equipe de matriciamento e que nós não estamos conseguindo dar conta. Isso está se tornando um problema muito sério na minha forma de perceber Isso é uma demanda que a gente poderia estar melhorando a adesão, o tratamento, os indicadores, e a gente não está percebendo. (Entrevistado VI).

A partir do que foi exposto, percebemos que existe ainda muito a ser feito no que diz respeito ao manejo de situações e casos de uso abusivo de álcool e outras drogas nos serviços de Atenção Primária, No entanto, a estratégia de Matriciamento representa uma nova possibilidade para a sensibilização de profissionais e para que um novo olhar seja lançado sobre o cuidado com os usuários de substâncias psicoativas.

Os nossos usuários, tanto os que têm perfil de AD como os que têm perfil de saúde mental, de transtornos mentais severos e persistentes, eles são muito excluídos da sociedade e existe ainda o medo, eles mesmos são autopreconceituosos e acham que não vão ser bem atendidos, que vão ser rebatidos lá dentro. A própria família não enxerga que eles têm que transitar em todas as políticas, e o matriciamento ele favorece esse trânsito dos nossos usuários em todos os serviços, trabalha muito nessa questão da rede, na perspectiva da intersetorialidade, do serviço na comunidade. (Entrevistado V).

Considerações finais

Através do Matriciamento em Saúde Mental é possível promover diversas atividades relacionadas ao uso de substancias psicoativas, desde atividades de prevenção até intervenções mais complexas e que exijam maior preparação do profissional acerca da temática. Nesse sentido, é possível, através das atividades de Matriciamento, promover a capacitação dos profissionais da Atenção Primária no que diz respeito ao uso de álcool e outras drogas, visto que muitas vezes esses profissionais se sentem despreparados para lidar com essa demanda e acabam fazendo encaminhamentos desnecessários e contribuindo para a superlotação dos serviços especializados, principalmente os CAPSad.

Nesse aspecto, as próprias ações de Matriciamento se mostram como importante estratégia de educação e de troca de saberes, atuando com os profissionais dos serviços de atenção básica de maneira a proporcionar o conhecimento necessário para que estejam aptos a receber essa demanda e acolhê-la de maneira adequada e humanizada. Os resultados também apontam o Matriciamento como importante articuíador da rede de serviços de saúde, aumentando o leque de possibilidades e a circulação dos usuários nos diversos domínios do sistema de saúde.

Apesar das dificuldades, muitos profissionais ainda persistem nessa trajetória, e aos poucos novos resultados são alcançados. A sensibilização dos profissionais no que diz respeito ao cuidado de usuários com histórico de uso de substâncias psicoativas nos próprios serviços de atenção primária exige uma disponibilidade constante desses profissionais, e o Matriciamento em Saúde Mental têm sido uma importante ferramenta para o manejo desses casos.

É exatamente através das pequenas mudanças, e gradualmente, que os objetivos do Matriciamento vão sendo alcançados e um novo olhar é lançado sobre a dependência de substâncias psicoativas. Devem essas mudanças tomar lugar em todos os espaços, desde a graduação até os diversos serviços de saúde, o que mais uma vez aponta para a necessidade de repensar a formação dos diversos cursos da área da saúde para o âmbito da Saúde Mental e Dependência Química.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2013

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2013
  • Aceito
    01 Jun 2013
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