RESUMO
O presente estudo analisou uma rede assistencial municipal sobre drogas a partir das percepções de seus próprios atores. Trata-se de um estudo de caso de natureza qualitativa. As estratégias de coleta de dados foram grupos focais e observação participante. Os dados foram analisados pela técnica de análise de conteúdo. Do discurso dos participantes foram levantados os seus conceitos de rede, seus desafios e possibilidades de atuação, e dois pontos-chave do panorama local: o CAPSad e os encaminhamentos. Concluiu-se que a compreensão dos aspectos articuladores e relacionais dos atores e serviços é imprescindível para o entendimento dessas redes e suas diversas formas de caracterização na realidade.
PALAVRAS-CHAVES
Assistência à saúde; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Serviços de saúde mental; Políticas públicas; Pesquisa qualitativa
ABSTRACT
The present study examined a local network care about drugs, from the perceptions of their own actors. This is a case study of qualitative nature. Strategies for data collection were focus groups and participant observation. Data were analyzed using content analysis. From the speech of the participants were raised their concepts about the network care, its challenges and possibilities and two key points of the local panorama: the CAPSad and referrals. It was concluded that the understanding of the articulators and relational aspects of actors and services is essential to understanding these networks and their various forms of characterization in reality.
KEYWORDS:
Delivery of health care; Substance-related disorders; Mental health services; Public policies; Qualitative research
Introdução
O trabalho em rede entre diversos atores sociais, serviços e instituições se apresenta como um grande desafio apregoado nas últimas décadas por diversas políticas sociais, entre elas, a saúde. Este desafio coloca-se frente à configuração fragmentada e desarticulada da implantação das políticas públicas brasileiras, o que por vezes dificulta o atendimento das necessidades da população em sua totalidade (SCHÜTZ; MIOTO, 2010SCHÜTZ, F.; MIOTO, R. C. T. Intersetorialidade e Política Social: subsídios para o debate. Sociedade em Debate, Pelotas, v. 16, pp. 61-77, 2010.; MONNERAT; SOUZA, 2009MONNERAT, G. L.; SOUZA, R. G. Da Seguridade Social à intersetorialidade: reflexões sobre a integração das políticas sociais no Brasil. Rev. Katálysis, Santa Catarina, v. 14, n. 1, pp. 41-49, 2011.).
Segundo Bourguignon (2013)BOURGUIGNON, J. A. Concepção de rede intersetorial. Disponível em: Error! Hyperlink reference not valid.>. Acesso em: 27 mar. 2013., o termo rede remete à ideia de conexão, ações complementares e relações horizontais entre parceiros, para garantir a integralidade da atenção, isto é, uma ‘horizontalização’ dos dispositivos e profissionais de saúde, superando a fragmentação das atividades no interior das unidades de saúde. Para isso, a rede requer uma articulação intersetorial, ou seja, entre diversos setores, instituições e pessoas, agregando saberes e experiências, estabelecendo um conjunto de relações interdependentes. Nesse sentido, a rede assistencial em saúde organiza-se sob os princípios da integralidade e da intersetorialidade (BRASIL, 2006BRASIL. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/pactovolume4.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2013.
http://portal.saude.gov.br/portal/arquiv... ).
No que se refere à área de álcool e outras drogas, a partir da década de 2000, a fim de tentar resolver uma lacuna histórica de ausência do Estado e, consequentemente, de políticas públicas para a área, mudanças puderam ser observadas, culminando: a) na criação, em 2002, e futuro realinhamento, em 2005, de uma Política Nacional sobre Drogas (PNAD); b) no desenvolvimento, pelo Ministério da Saúde, em 2004, de uma política voltada aos usuários, a Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas (PAIUAD); e c) em uma nova legislação brasileira sobre drogas, Lei nº 11.343/2006 (ALVES, 2009ALVES, V. S. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cadernos de Soúde Publica, Rio de Janeiro, v. 25, n. 11, pp. 2309-2319, 2009.).
Essas mudanças ocorrem em um cenário de avanços e retrocessos em relação à atenção aos usuários de drogas ganhando força e espaço tanto na legislação quanto nas políticas. No geral, ambas as políticas (PNAD e a PAIUAD) compartilham o ideal de organização dos serviços sobre drogas através de redes assistenciais integradas e intersetoriais (ALVES, 2009ALVES, V. S. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cadernos de Soúde Publica, Rio de Janeiro, v. 25, n. 11, pp. 2309-2319, 2009.; BRASIL, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. A Politica do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.; BRASIL, 2005BRASIL. Conselho Nacional Antidrogas. Política Nacional sobre Drogas. Brasília: Conselho Nacional Antidrogas, 2005.).
Mais recentemente, como e1ucida Andrade (2011)ANDRADE, T. M. Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 12, pp. 4665-4674, 2011., “num contexto de pânico social relacionado ao uso de crack e de grande fragilidade estrutural, haja vista a carência de ações comunitárias junto aos usuários de drogas”, foram instituídos o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e à Prevenção em Álcool e outras Drogas (PEAD) e o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas - Plano Crack. Apesar de algumas particularidades frente à PNAD e à PAIUAD, principalmente no que se refere a uma maior inserção do discurso jurídico, o PEAD e o Plano Crack também vão em direção à organização e à ampliação da rede de atenção aos usuários de drogas e à melhoria do atendimento desta demanda (ANDRADE, 2011ANDRADE, T. M. Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 12, pp. 4665-4674, 2011.; BRASIL, 2009BRASIL. Portaria nº 1.190, de 4 de junho de 2009. Institui o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas no Sistema Único de Saúde -SUS (PEAD 2009-2010) e define suas diretrizes gerais, ações e metas. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.; BRASIL, 2010BRASIL. Presidência da República. Decreto de Lei nº 7.179, de 20 de maio de 2010. Institui o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, cria o seu Comitê Gestor, e dá outras providências. Brasília: Casa Civil, 2010.).
Como forma de operacionalizar a organização e o trabalho da rede assistencial sobre drogas, a PAIUAD, em específico, apregoa aos Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPSad) um papel de articulação. Os CAPSad são responsáveis pela oferta assistencial às ações do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), dando suporte técnico para qualificar suas ações e ampliar o seu campo de ação. Eles devem atuar em conjunto principalmente com as equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF), os Centros de Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializados da Assistência Social (CREAS) (BRASIL, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. A Politica do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.).
Sabe-se que a estruturação e o fortalecimento de uma rede de atenção integral e intersetorial aos usuários são diretrizes que ainda não foram plenamente consolidadas na implementação das políticas sobre drogas (ALVES, 2009ALVES, V. S. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cadernos de Soúde Publica, Rio de Janeiro, v. 25, n. 11, pp. 2309-2319, 2009.). Visando compreender melhor este processo, destaca-se o fato de que a implementação de uma política não é somente uma etapa de execução linear das atividades previstas na formulação, sendo mais bem representada como um jogo que envolve uma pluralidade de atores, os quais dão sustentação às políticas (HOWLETT; RAMESH, 1995HOWLETT, M.; RAMESH, M. Studying Public Policy: Policy Cycles and Policy Subsystems. Canadá: Oxford University Press, 1995.; SILVA; MELO, 2000SILVA, P. L. B.; MELO, M. A. B. O processo de implementação de políticas públicas no Brasil: características e determinantes da avaliação de programas e projetos. Campinas: NEPP: UNICAMP, 2000.).
A partir disso, torna-se relevante avaliar as percepções dos atores que compõem essa rede. Deve-se considerar que as políticas, idealmente formuladas, não possuem um percurso linear de implementação (MOTA, 2011MOTA, D. C. B. Avaliação da implementação das políticas públicas sobre álcool e outras drogas em nível municipal. 2011. Dissertação de Mestrado (Psicologia) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, 2011.) e que são estes atores quem vivenciam essa realidade em suas práticas cotidianas, auxiliando no processo de transformação das políticas para o nível local. Destarte, no intuito de melhor compreender este panorama e como as políticas reverberam na realidade social, o presente estudo objetivou analisar uma rede assistencial municipal sobre álcool e outras drogas, levantando seus possíveis estrangulamentos e pontos facilitadores, a partir das percepções dos seus próprios atores.
Metodologia
O presente estudo caracteriza-se por ser um estudo de caso, de natureza qualitativa. Trata-se de um recorte de uma pesquisa/intervenção realizada em um município de pequeno/médio porte de Minas Gerais, que visou implementar práticas preventivas sobre o uso de álcool e outras drogas em serviços da Atenção Primária à Saúde (APS) e Assistência Social. Segundo Yin (1984 apudALVES-MAZZOTTI, 2006ALVES-MAZZOTTI, A. J. Usos e abusos dos estudos de caso. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. 129, pp. 637-651,2006.), o estudo de caso é uma pesquisa empírica geralmente usada quando os objetos do estudo referem-se ao ‘como’ e ao ‘porquê’, estando relacionados a um fenômeno contemporâneo em seu contexto natural e com o pesquisador tendo pouco controle sobre os acontecimentos.
LOCAL
Foram definidos os seguintes critérios de elegibilidade para o município participante: 1) Aceite formal das Secretarias Municipais de Saúde e Assistência Social; 2) Implantação de ESF no município; 3) Disponibilização de hora de trabalho dos profissionais para participarem do projeto.
O município estudado está situado no Estado de Minas Gerais. Sua população, de acordo com o INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE) (2010)INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidodes@. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/cidadesat/>. Acesso em: 27 mar. 2013.
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/... , era de 69.757 habitantes. Possuía densidade demográfica (hab./km2) de 132,3 habitantes/km2 e seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) era igual a 0,794 (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO NO BRASIL, 2000PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO NO BRASIL. Atlas do Desenvolvimento Humano. Indice de Desenvolvimento Humano - Municipal, 1991 e 2000: Todos os municípios do Brasil. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/IDHM%2091%2000%20Ranking%20decrescen-te%20%28 pelos%20dados%20de%202000%29.htm>. Acesso em: 27 mar. 2013.
http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/IDH... ).
Ao todo, o município possui em sua rede assistencial de saúde 153 estabelecimentos, sendo 96 deles de natureza privada, 51 de administração direta do setor público e outros 6 serviços divididos entre entidades sem fins lucrativos, cooperativas e fundações privadas. Na atenção primária à saúde, apresenta 17 equipes de ESF, sendo 15 equipes na zona urbana e 2 na zona rural. A cobertura da ESF corresponde a 92,81% da população (SAGE, 2013SALA DE APOIO À GESTÃO ESTRATÉGICA (SAGE). Atenção à Saúde. Disponivel em: <http://189.28.128.178/sage/>. Acesso em: 27 mar. 2013.
http://189.28.128.178/sage/... ). Ademais, ainda constam no município duas equipes do Núcleo de Apoio à Saúde Família (NASF) - um núcleo com profissionais da psicologia, assistência social, fisioterapia, nutrição, farmácia e educação física -, que atuam em conjunto com os profissionais da ESF, auxiliando no matriciamento e no compartilhando das práticas de saúde.
Referente à rede assistencial em saúde mental e sobre álcool e outras drogas, o município possui um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para transtornos mentais gerais, um CAPSad (em fase de implantação no momento do estudo), oito grupos de ajuda mútua (sete Alcoólicos Anônimos - AA e um Narcóticos Anônimos - NA) e três comunidades terapêuticas. Sobre a rede de serviços socioassistenciais, o município conta com dois CRAS, um CREAS e um Centro de Referência de Proteção e Inclusão Social de Mulheres. Além disso, foi detectado o Programa Educacional de Resistência às Drogas, da Polícia Militar, com trabalhos educativo-preventivos ao uso indevido de drogas nas escolas.
COLETA DOS DADOS
As estratégias de coleta de dados realizadas foram três grupos focais semiestruturados com atores de diferentes áreas da rede assistencial sobre álcool e outras drogas, do município. Estes participantes foram detectados como atores-chave da rede, com participação destacada durante a realização do projeto. Além disso, procuramos compreender a realidade local de forma ampla, a partir de perspectivas construídas de diferentes localidades de intervenção.
Os roteiros destes grupos focais abarcaram questões referentes à concepção dos participantes sobre a temática de álcool e outras drogas, suas respectivas opiniões sobre o projeto que estava sendo realizado no município, além de suas percepções acerca da rede local e suas características, abrangendo conceitos sobre integralidade e intersetorialidade. Para o presente estudo foram consideradas somente as questões referentes ao último eixo.
Ademais, cabe acrescentar a observação participante dos pesquisadores durante os dez meses da implementação do projeto. Os dados observados foram registrados em diários de campo, gerando relatórios sistemáticos. A partir dessa técnica de coleta de dados, o pesquisador se coloca como observador de uma situação social para realizar uma investigação científica, ao mesmo tempo que faz parte do contexto sob sua observação (MINAYO, 2011MINAYO, M. C. S. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: MINAYO, M. C. S. (org). Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2011.).
PARTICIPANTES
O grupo focal I teve a presença de oito atores da rede: quatro enfermeiros da ESF e quatro profissionais do NASF. O grupo focal II contou com dez profissionais da ESF, sendo quatro enfermeiros e seis agentes comunitários de saúde (ACS). Do grupo focal III participaram seis atores da rede: dois policiais militares, um profissional de um centro de referência de proteção e inclusão social de mulheres, um profissional do CREAS, um gestor do CAPSad e um profissional da secretaria de saúde.
ANÁLISE DE DADOS
Os dados provenientes dos grupos focais foram gravados em mídia eletrônica e transcritos. Para a análise foi utilizada a técnica de análise de conteúdo do tipo estrutural e temática. Esta é uma técnica tradicionalmente utilizada em pesquisa qualitativa e caracteriza-se por ser uma forma sistematizada e de rigor metodológico de análise de textos e entrevistas (BARDIN, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009. 223p.).
A análise desdobrou-se em três fases: 1) a pré-análise foi a fase de organização inicial, com o objetivo de apreender, de uma forma global, as ideias principais e os seus significados, através da realização de leituras flutuantes do material; 2) a exploração do material empírico foi a análise propriamente dita, sendo realizado o recorte das unidades de registro, isolamento das falas em recortes em nível semântico (o tema), visando à categorização e à contagem frequencial. 3) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação consistiram na transformação do material em resultados brutos. Após isto, foram feitas inferências e interpretações dos dados previstas no aporte teórico da pesquisa (BARDIN, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009. 223p.).
Há, como limitação natural do método, o viés do pesquisador e da percepção, pois “mesmo as teorias pessoais do pesquisador podem vir acompanhadas de ideias pré-concebidas ou cristalizadas sobre o fenômeno” (CAMPOS, 2004CAMPOS, C. J. G. Método de análise de conteúdo: ferramenta para a análise de dados qualitativos no campo da saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 57, n. 5, pp. 611 -614, 2004.). Por isso, conforme aconselhado, quatro pesquisadores estiveram envolvidos de forma independente no processo de codificação, categorização e posterior análise dos dados, assegurando assim maior validade à análise.
ASPECTOS ÉTICOS
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Juiz de Fora, processo nº 096/2011. Todos os participantes consentiram sobre a realização da pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A coleta de dados foi realizada em horário de trabalho e conforme as possibilidades dos participantes.
Resultados e discussão
Os resultados foram agrupados nos seguintes eixos temáticos: 1) ‘Concepções sobre a rede e o trabalho em rede’, que se refere ao entendimento que os entrevistados possuem sobre o que significa a organização dos serviços no formato de redes e como se dá o trabalho nesta perspectiva; 2) ‘O papel dos encaminhamentos na rede assistencial’, concernente à importância dada ao encaminhamento dos pacientes, visto como a ‘engrenagem’ do sistema; 3) ‘A posição do CAPSad na rede’, que diz respeito às percepções sobre o papel do CAPSad, suas ações e como ele exerce a sua função de organizador da rede; 4) ‘Possibilidades no trabalho em rede’, referente aos levantamentos feitos a partir da realidade vivenciada pelos entrevistados dos pontos facilitadores no trabalho em rede; e 5) ‘Desafios no trabalho em rede’, sobre os pontos dificultadores no trabalho, a partir da perspectiva de rede. Tais eixos temáticos de análise e suas frequências de menções são dispostos no quadro l
Cabe ressaltar que esses aspectos observados, apesar de apresentados em eixos temáticos separados, se relacionam. As concepções que se tem sobre a rede e o trabalho em rede vão permear a visão que se tem sobre o CAPSad, a necessidade de consolidação da integralidade e intersetorialidade entre os serviços. Assim como os encaminhamentos, as ações do CAPSad influenciam a forma de compreensão da rede assistencial e o levantamento de dificuldades e possibilidades desse trabalho em rede, e assim sucessivamente.
CONCEPÇÕES SOBRE A REDE E O TRABALHO EM REDE
A concepções dos entrevistados sobre o que seria o trabalho em rede aparecem em consonância com as políticas na área. Elas se relacionam com a ideia de vários nós, que seriam os serviços e seus profissionais, abordando diferentes partes do problema, provendo assim uma visão mais ampla para uma questão (álcool e outras drogas) que também é multidimensional. “Parece que, é, trabalhar em rede. Eu acho que é cada um pegando a sua área. Pra tentar resolver o problema da melhor forma possível”.
A partir disso, esta rede deve ser composta por diversos dispositivos/serviços de diferentes setores, trabalhando de forma integrada. Os pressupostos intersetorialidade e integralidade são bastante abordados pelos profissionais, sendo considerados como conceitos-chave nos quais a rede e os serviços devem se basear para organizar as suas ações. Os serviços, cada um a partir de sua perspectiva de trabalho, vão atuar em conjunto, se complementando e melhorando as condições de vida dos usuários. Cada um deve ter responsabilidade de sua importância, porque, se um nó não dá continuidade ao trabalho, essa rede consequentemente se fragmenta. “Então, quer que haja essa ponte entre diversos setores que trabalham desse jeito, entendeu? CAPS, CREAS, saúde, educação, assistência social é políticas públicas. Enfim, segurança pública”.
No entanto, observou-se uma aceitação naturalizada e ideologização da perspectiva do trabalho em rede, conforme constatado anteriormente por Paiva, Costa e Ronzani (2013)PAIVA, F. S.; COSTA, P. H. A.; RONZANI, T. M. Fortalecendo redes sociais: desafios e possibilidades na prevenção ao uso de drogas na atenção primária à saúde. Aletheia, Canoas, 2013. (no prelo)., e de outros aspectos, como os conceitos de integralidade e intersetorialidade. Não foram feitos questionamentos sobre outras formas possíveis de organização dos serviços e de trabalho. As reflexões realizadas já partem do pressuposto de que as ações devem ser articuladas no formato de uma rede, limitando-se a levantar as dificuldades e potencialidades em se trabalhar a partir desta perspectiva. Em alguns casos mais extremos, a rede aparece, inclusive, como uma espécie de ‘salvadora da pátria’, pois uma maior coesão e integração sua implicaria diretamente na diminuição do uso de drogas, como pode ser demonstrado pela seguinte fala: “A interação de equipe da rede diminuiria muito O uso, né?”.
Devido às especificidades do uso de drogas, um componente que aparece atrelado ao trabalho em redes é a associação da família. Nesta perspectiva, a família é vista como corresponsável no processo de prevenção, através de práticas educativas e estilos de controle parental, facilitando, ou não, o uso abusivo de drogas; e também no processo do tratamento, através da importância do seu engajamento (SCHENKER; MINAYO, 2003SCHENKER, M.; MINAYO, M. C. S. A implicação da família no uso abusivo de drogas: uma revisão crítica. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, pp. 299-306, 2003.). Dessa forma, O âmbito familiar deve ser considerado como uma im portante ferramenta no trabalho em rede.
O último aspecto referente às concepções dos entrevistados sobre o trabalho em rede é a noção de que esta rede se consolida através do planejamento das ações, articulando os setores e seus respectivos serviços, e não através de trocas pontuais entre os profissionais e motivações políticas oportunas sem reflexão das ações. Esta consolidação deve perpassar os indivíduos que ali trabalham e as ideologias que ali residem momentaneamente para que se tenha força suficiente para dar embasamento à continuação das práticas implementadas. Tal fator pode ser observado pela fala a seguir:
É consolidar o trabalho entre os setores e não entre as pessoas, né? Essa consciência entre as pessoas e não só entre o fulano que conhece a cicrana. Se a gente, de algum, por algum momento visar só questão política e não por algum, alguma outra questão, dois vão embora ou vão pra outro setor, e perde aquilo ali. Num é? Fica mais sólido esse tipo de ponte entre os setores, não só entre as pessoas.
POSIÇÃO DO CAPSAD NA REDE
Antes de quaisquer caracterizações sobre o CAPSad, é necessário ressalvar que, no momento do estudo, o CAPSad encontrava-se em fase de implantação no município, atuando somente enquanto ambulatório. Isto, por si só, nos traz algumas limitações no entendimento do seu papel dentro da rede,
Os entrevistados, em consonância com a PAIUAD, percebem o CAPSad como o centro da rede assistencial sobre drogas. A maior frequência de enunciados relaciona-se com o CAPSad propiciando maior resolutividade aos casos encaminhados, estando integrado à rede e dialogando com outros profissionais e dispositivos assistenciais.
Tal perspectiva demonstra a importância deste dispositivo no município ao dividir a responsabilidade do tratamento com os profissionais de saúde e da assistência social. Estes, em sua maioria, não têm formação específica para lidar com a situação do uso/abuso e dependência do uso de drogas, sentindo receio de abordar a temática e gerar uma demanda para a qual não conseguiriam dar resolutividade.
Isso, Você faz até meio assim, ufa, consegui! Né? Saiu daqui! Encaminhei no CAPSad então, agora, a resolutividade tá comigo mas também tô dividindo a minha responsabilidade com alguém. Então, a gente se sente um pouco mais tranquila. É, tô dizendo como eu me sinto. Realmente, eu me sinto assim quando eu consigo.
O processo de implantação e o trabalho do CAPSad foram observados positivamente pelos entrevistados, com o contato sendo realizado de forma bastante prática. A implantação deste serviço vem a suprir uma lacuna assistencial no município que acabava caindo no CAPS geral, que se encontrava sobrecarregado, não dispondo das condições suficientes para atender a demanda de saúde mental geral e também a de álcool e outras drogas.
Os CAPSad surgem como alguns dos principais mecanismos na consolidação das políticas de atenção aos usuários de álcool e outras drogas, partindo dos pressupostos da Reforma Psiquiátrica (BRASIL, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. A Politica do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.). No município, eles ocupam um lugar estratégico dentro da rede assistencial sobre álcool e outras drogas, na, tentativa de assumir um papel ativo na articulação dessa rede e atuando conjuntamente com os dispositivos socioassistenciais do município.
Contudo, no plano nacional, os CAPSad aparecem cercados por diversos desafios, tais como: cobertura insuficiente (BRASIL, 2012BRASIL. Tribunal de Contas da União. Sistema nacional de políticas públicas sabre drogas. Brasília: TCU, Secretaria de Fiscalização e Avaliação de Programas de Governo, 2012.), desarticulação com o restante da rede assistencial (FODRA; ROSA, 2009FODRA, R. E. P.; ROSA, A. C. Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad): análises dos discursos e da prática no contexto da Reforma Psiquiátrica e atenção psicossocial. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 81, pp. 129-139, 2009.), deficiências na formação de seus profissionais (SOUZA 2007SOUZA, J. et al. Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas e Redução de Danos: novas propostas, novos desafios. Revista de Enfermagem de UERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, pp. 210-17, 2007.) e problemas de infraestrutura (BEZERRA; DIMENSTEIN, 2008BEZERRA, E.; DIMENSTEIN, M. Os CAPS e o trabalho em rede: tecendo o apoio matricial na atenção básica. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 28. n. 3, pp. 632-645, 2008.), entre outros. Alguns destes contrapontos também foram observados no município, Em certos momentos, observou-se a necessidade de uma maior divulgação do trabalho realizado pelo CAPSad para os profissionais da ESF (principalmente, os ACS) , e de uma maior integração com o restante da rede. Tais aspectos foram confirmados pela observação participante.
Dessa forma, faz-se necessário entender que, mesmo que os profissionais demonstrem a perspectiva defendida pelas políticas sobre o CAPSad, isto não impede o surgimento de diversos obstáculos para a sua implementação e fortalecimento. A partir disso, cabem aqui alguns questionamentos sobre o que impede que esta perspectiva dos profissionais seja traduzida em ação: 1) as dificuldades dos CAPSad na rede sobre drogas acontecem devido à a ausência de percepção e reflexão dos profissionais sobre estes problemas?; ou 2) existem fatores relacionados a própria política e à forma como é implementada que ultrapassam as percepções dos profissionais e incidem diretamente nas dificuldades de concretização deste dispositivo?
O fato de o CAPSad atuar somente como ambulatório no momento do estudo nos inviabiliza responder a tais questionamentos, limitando as observações acerca das ações desenvolvidas por ele e como é visto pelos atores da rede entrevistados. Contudo, os pontos levantados acima e outros, que serão abarcados mais à frente no artigo, reforçam a necessidade destas indagações a fim de se obter lima melhor compreensão deste dispositivo e dos diversos aspectos que o cercam a partir de uma perspectiva ampla.
PAPEL DOS ENCAMINHAMENTOS NA REDE
O encaminhamento, na visão dos entrevistados, adquire uma posição prioritária na rede assistencial, sendo caractcrizado de duas formas: 1) como o elo entre os serviços; e 2) como o procedimento que irá resolver o fluxo da rede, isto é, a sua ‘engrenagem’. A partir disso, compreende-se a visão dos atores voltada para o conjlll1to de circunstâncias que viabilizam ou inviabilizam a entrada do usuário na rede de serviços em seus diferentes níveis de complexidade e modalidades de atendimento. Ou seja, o que se discute é a dificuldade de se obter o tratamento desejado (MOTA, 2011MOTA, D. C. B. Avaliação da implementação das políticas públicas sobre álcool e outras drogas em nível municipal. 2011. Dissertação de Mestrado (Psicologia) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, 2011.).
No momento do estudo, a implementação do CAPSad representava um horizonte na questão dos encaminhamentos, ainda que tenham sido percebidos problemas no que se refere à falta de esclarecimento por parte de alguns entrevistados sobre as melhores opções e formas de encaminhamento. Em outras oportunidades, observou-se até a ocorrência de encaminhamentos de casos para o CAPSad que poderiam ser tratados somente na ESF, através de estratégias de prevenção, fator esse que pode vir a contribuir para uma sobrecarga futura do CAPSad e para a sua insuficiência em suprir a demanda local. Ainda assim, mesmo nesse cenário geral de melhorias para o encaminhamento de pacientes, foram relatadas queixas sobre a necessidade de um maior número de serviços de tratamento.
É imprescindível a existência de um amplo sistema de tratamento do uso/abuso e dependência de álcool e outras drogas, servindo como ponto de apoio para os profissionais, considerando o continuum do tratamento dos usuários e os níveis de complexidade da rede (primário, secundário e terciário) (RUSH, 2010RUSH, B. Tiered frameworks for planning substance use service delivery systems: origins and key principies. Nordic Studies on Alcohol and Drugs, Helsinki, v. 27, pp. 617-636, 2010.). O cenário observado no País, de forma geral, é de uma cobertura insuficiente para atender a demanda (VI-NHA, 2012). Devido ao fato do tratamento do uso de drogas também perpassar variadas dimensões, deve-se pensar em como articular os diversos serviços da rede assistencial.
Contudo, o encaminhamento não deve ser pensado como uma ferramenta de maior integração dos serviços, de modo que o aumento no número de encaminhamentos signifique um aumento na integração dos serviços. Tão importante quanto à implantação dos serviços assistenciais para álcool e outras drogas é pensar em fatores como a sua acessibilidade e diferentes modos de articulação entre eles. Em muitos dos casos, a articulação entre estes dispositivos é feita a partir de uma transferência de responsabilidades e não como um cuidado compartilhado. Essa tônica nos encaminhamentos, que, por sua vez, inserem-se em um sistema de referência e contrarreferência pouco efetivo, pode futuramente colaborar para uma descontinuidade dos tratamentos e para desresponsabilizações por parte dos profissionais (ZAMBENEDETTI; PERRONE, 2008ZAMBENEDETTI, G.; PERRONE, C. M. O Processo de construção de uma rede de atenção em Saúde Mental: desafios e potencialidades no processo de Reforma Psiquiátrica. Physis, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, pp. 277-293, 2008.).
A fim de se reverter esse cenário inicial observado e essa lógica de encaminhamento, e também de se operacionalizar o cuidado compartilhado, uma ‘ferramenta’ a ser considerada é o apoio matricial. Através do apoio matricial das equipes do CAPS e CAPSad para as equipes dos CRAS, CREAS e ESF, acompanhando-os sistematicamente, a demanda poderia vir a ser reorientada, com os encaminhamentos indiscriminados sendo modificad os pela lógica da corresponsabilização, o que, por sua vez, possibilitaria uma maior resolutividade à atenção para os usuários de álcool e outras drogas (F1GUEIREDO; CAMPOS, 2009).
POSSIBILIDADES NO TRABALHO EM REDE
Segundo os entrevistados, o cenário encontrado no município apresentava-se em processo de melhoria, mesmo ainda havendo a necessidade de avanços em muitos aspectos do trabalho em rede. Para eles, os diferentes setores, aos poucos, tomavam ciência da necessidade de se estabelecer parcerias e trabalhar de forma integrada dentro da rede assistencial. Tal constatação pode ser exemplificada na seguinte fala do participante: “Então, nós estamos começando a caminhar, entendeu? [...] Pô, o município tá caminhando pra ter essa estrutura também, entendeu? Já tá muito, progredindo bastante. Mas tem muita coisa pra fazer”.
Os principais pontos positivos notados pelos entrevistados, que se caracterizavam como possibilidades de trabalho, permeavam: a) a implantação do CAPSad no município; b) a participação dos dispositivos da assistência social, como o CRAS e CREAS; c) a atuação dos grupos de ajuda mútua: d) estratégias educativas e preventivas nas escolas.
Com a implantação do CAPSad, os entrevistados relatam melhoras na resolutividade do tratamento dos usuários de álcool e outras drogas, no que concerne à existência de um ponto central de referência para encaminhamento dos pacientes, como enuncia a seguinte fala: “Eu acho que tava faltando uma referência, que é o CAPSad. A gente não tinha é ... é um ponto público, né?, pr’a gente poder encaminhar as pessoas”. Novamente, a lógica do encaminhamento aparece perpassando a noção de rede.
Cabe também ressaltar a valorização do saber técnico, neste caso, apregoado ao CAPSad e seus profissionais (principalmente, os psiquiatras e psicólogos), com os entrevistados deixando de lado outros valores e potencialidades próprias e de suas profissões. Isso contribui para a perpetuação de um modelo de atenção pautado em um saber médico, restringindo o poder de atuação de uma diversa gama de atores que poderiam contribuir, de fato, para o tratamento dos usuários de álcool e outras drogas (MORAES, 2008MORAES, M. Integral healthcare model for treating problems caused by alcohol and other drugs: perceptions of users, their companions and practitioners. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, pp. 121-133, 2008.).
Apesar de considerarem a saúde como setor prioritário na configuração da rede, devido ao fato de que os usuários ou os problemas relacionados ao uso de substâncias ‘chegam’ primeiro no setor saúde, a realização do trabalho intersetorial é descrita como imprescindível para a consolidação da rede. Nesse contexto, os dispositivos socioassistenciais (principalmente, os CRAS e CREAS) tiveram atuações bastante destacadas, segundo relatos dos entrevistados, na tentativa de articulação da rede, propondo e realizando ações em conjunto com outros dispositivos. Estes dispositivos são identificados como elementos-chave, oferecendo suporte à vulnerabilidade social que se conjuga aos problemas do uso indevido de álcool e outras drogas.
Portanto, os papéis e posições dos dispositivos socioassistenciais dentro da rede devem ser problematizados, a fim de uma maior integração. Estes serviços aparecem como nós centrais, juntamente às equipes de ESF e ao CAPSad, na tentativa de compreensão e tratamento do problema, considerando também os fatores sociais, além dos individuais (BRASIL, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. A Politica do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.). Parte-se do pressuposto que o tratamento e a assistência social são ações complementares e devem ser planejadas e desenvolvidas de forma a convergir para fins comuns (BRASIL, 2012BRASIL. Tribunal de Contas da União. Sistema nacional de políticas públicas sabre drogas. Brasília: TCU, Secretaria de Fiscalização e Avaliação de Programas de Governo, 2012.). Ademais, ao tentar entender e abordar o fenômeno em sua complexidade, deve-se considerar a incapacidade de resposta dos setores isolados.
Ainda nesse contexto, os grupos de ajuda mútua (AA e NA) também aparecem como a parte da rede complementar citada pelos entrevistados para o suporte e o apoio aos profissionais no tratamento. Estes grupos aparecem ocupando um espaço importante dentro da rede assistencial e exercendo funções que, em tese, seriam dos serviços de natureza estatal, mas que são escassos devido à insuficiência de serviços de tratamento. Apesar disso, os entrevistados disseram desconhecer algum tipo de trabalho em conjunto do CAPS ou do CAPSad com esses dispositivos, levantando a necessidade de uma maior integração entre eles, como descrito na fala seguinte: “Então, esses grupos de apoios são muito bons, mas acho que eles têm que ter mais apoio para poder esta apoiando também”.
Em relação à prevenção, as escolas aparecem como um espaço privilegiado, com a realização de trabalhos educativos e conscientizadores. A noção de prevenção em si ficou muito voltada para aqueles que ainda não utilizaram algum tipo de droga, em sua maior parte os jovens (crianças e adolescentes), sendo operacionalizada dentro das escolas através de palestras, principalmente. Emergiram falas sobre a realização de projetos em conjunto, principalmente com as equipes de ESF e a Polícia Militar, relatando a importância de se considerar tais lócus na busca da interserorialidade apregoada pelo trabalho em rede.
Contudo, o pensar e agir preventivamente deve ultrapassar ações isoladas, como palestras educativas, sendo estas impulsionadas por projetos maiores que não embarquem apenas na transmissão de conteúdo. Somente estes atos isolados, abordando também uma visão unilateral do problema, muitas das vezes, produzem resultados contrários aos que se objetiva, aumentando a curiosidade das crianças e adolescentes sobre o assunto, levando-os à experimentação. Ademais, jaz a necessidade de se repensar o planejamento das práticas educativas em álcool e outras drogas, levando em consideração os contextos nas quais se inserem as crenças e os valores exacerbados (SOUZA; RONZANI, 2012SOUZA, I. C. W.; RONZANI, T. M. Álcool e drogas na atenção primária: avaliando estratégias de capacitação. Psicologia em estudos, Maringá, v. 17, n. 2, pp. 237-246, 2012.).
DESAFIOS NO TRABALHO EM REDE
As dificuldades encontradas pelos entrevistados no trabalho em rede, em suma, dizem respeito à necessidade da consolidação, de fato, dos preceitos de integralidade e intersetorialidade no dia a dia dos serviços. Estes dois princípios são colocados como o cerne da organização e do trabalho desempenhado nos serviços, mas, ao mesmo tempo, são muito difíceis de serem implementados satisfatoriamente devido a uma série de fatores que foram categorizados da seguinte forma: 1) desconhecimento dos profissionais sobre os serviços que compõem a rede, quais as suas funções e ações desempenhadas; 2) inexistência de espaços/momentos de diálogo que facilitem a interação entre os serviços; 3) insuficiência de mecanismos que também auxiliem a integração da rede como um todo; e 4) desconsideração da comunidade na construção e no fortalecimento da rede assistencial.
As maiores reflexões relacionaram-se com a necessidade dos próprios atores da rede se esclarecerem melhor sobre os serviços existentes e suas ações. A ênfase dos profissionais no CAPSad, desconsiderando outros potenciais dispositivos, vem a corroborar com a literatura, que mostra que muitos profissionais desconhecem propostas que não trabalham com a medicação, como é o caso dos centros de convivências, das parcerias com as escolas e dos espaços de lazer e de esporte no próprio território (GOMES, 2006GOMES, V. G. Apoio Matricial: estratégia de interlocução na rede de saúde de Campinas/SP. 2006. Trabalho de conclusão do curso (Aprimoramento em Saúde Mental) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2006.). Novamente, os encaminhamentos adquirem uma posição privilegiada nesta discussão, com os encalninhamentos errados resultando dessa falta de compreensão da realidade e interferindo na desistência do tratamento por uma parcela de usuários. Além disso, esse desconhecimento também resulta na falta de interação entre os serviços e no não estabelecimento de parcerias, como ilustrado pela fala abaixo:
Falta esclarecer qual que é o serviço de um, qual que é o serviço de outro. Porque, às vezes, o encaminhamento vem errado. [...] Não sabem, ainda, como que é o CAPSad. Aí, não encaminha pra lá; aí, já manda pro CAPS direto, né? Então, eu acho que a gente pode acabar perdendo as pessoas nesse meio do caminho, de tanto passar de um lugar pro outro e ela não conseguir resultado nenhum.
Outra possível causa, segundo os entrevistados, para a não consolidação, de fato, da integralidade e da intersetorialidade é a ausência de espaços/momentos para troca de informações entre serviços e atores da rede. Tal fator encontra-se diretamente ligado com o desconhecimento por parte dos profissionais sobre os serviços e suas funções/ações desempenhadas, devido ao fato de que a falta de diálogo pode proporcionar distanciamento e desconhecimento sobre o que é feito para além de sua própria realidade. A articulação entre os demais dispositivos da rede assistencial deve ser guiada, principalmente, através do trabalho multiprofissional e intersetorial, de forma integrada (PAIVA; COSTA; RONZANI, 2013PAIVA, F. S.; COSTA, P. H. A.; RONZANI, T. M. Fortalecendo redes sociais: desafios e possibilidades na prevenção ao uso de drogas na atenção primária à saúde. Aletheia, Canoas, 2013. (no prelo).), considerando suas posições e atuações frente à comunidade. Uma das possíveis soluções levantadas pelos entrevistados é a realização de reuniões entre os serviços da rede, de acordo com suas possibilidades. Isso facilitaria uma maior comunicação/interação, com trocas de informações e experiências, sendo vista das seguintes formas:
Aí, assim, é... Eu acho que falta é reuniões assim. Pode até ser informal. Pra cada um poder falar a respeito de seu setor e a gente ver o que liga um setor no outro, né? Que trabalho pode ser feito em parceria, pra que fique mais claro. Porque, às vezes, eu acho que deixam de encaminhar por um desconhecimento.
Eu acho que é, tipo assim, fazer reunião quinzenalmente, semanalmente, pra passar informação. É trocar informação. A dificuldade que eu tenho lã, mando pra ela; ela manda pra mim. É troca de experiência, de conhecimento, e é bom para o tratamento.
No que concerne à ausência de mecanismos/ferramentas práticas que também auxiliem a integração da rede como um todo, foram levantadas duas possíveis soluções: a) os avanços nos processos de encaminhamento, já discutidos anteriormente e com o maior número de menções; e b) a criação de um sistema informatizado unificado, onde todos os serviços possam ter acesso aos registros dos pacientes e, assim, acompanhar o seu fluxo pela rede. A partir desse acompanhamento, a coordenação conjunta de casos seria facilitada, com um melhor cenário de continuidade para o tratamento. A compreensão do trabalho dos outros serviços aumentaria juntamente com a percepção sobre a melhor forma de contribuição própria. Tal panorama pode visualizado a partir da seguinte fala:
A facilidade da informática, ainda, eu acho que ainda tá caminhando, ainda, né? Tem facilidade. Os recursos estão todos informatizados, mas, aí, para aquela questão. É, eu não consigo acompanhar o trabalho que ela está fazend o. Entend eu? Paciente que eu atendi, por exemplo, no CAPS, outro dia, aqui, que eu encaminhei pra ele, eu não sei que que ele fez com o cara. Perdi, não tenho. É um banco de dados, entendeu? Aonde eu pudesse estar acompanhando o caso do fulano: é aquele ali, que passou por isso; ele passou por aquilo, ele passou. Aonde se perdeu? Aí, você teria condições de saber aonde foi que houve a perda dele, naquele contato daquele trabalho. Vamos lá. É, vocês ... É, é... Gera demanda, mas você não tem como tá acompanhando.
Nesses pontos, cabe também a problematização acerca da responsabilidade da gestão de propiciar condições para a construção de ações estratégicas com uma perspectiva articuladora da atuação dos atores da rede. Estes profissionais devem assumir as suas responsabilidades e implicações no fortalecimento da rede assistencial sobre álcool e outras drogas, mas o nível de integração e efetividade desta está também associado ao engajamento dos gestores no processo de implementação de tais estratégias (RONZANI; MOTA; SOUZA, 2009RONZANI, T. M.; MOTA, D. C. B.; SOUZA, I. C. W. Prevenção do uso de álcool na atenção primária em municípios do estado de Minas Gerais. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 43, supl. 1, pp. 51-61, 2009.).
Um último aspecto a se considerar é que, a despeito da rede assistencial aparecer em processo de reestruturação, não há referências por parte dos entrevistados, da criação ou do desenvolvimento de uma rede comunitária, ou da participação da comunidade na construção deste processo. Apesar dos desafios que envolvem a participação efetiva dos diferentes grupos sociais na identificação, formulação e implementação das ações sobre álcool e outras drogas, a adoção desta lógica de interação com a comunidade torna-se imprescindível. É necessário, pois, considerar os usuários no planejamento e na implementação dessas ações, a partir de suas realidades e necessidades (ALBUQUERQUE; STOTZ, 2004ALBUQUERQUE, P. C.; STOTZ, E. N. A educação popular na atenção básica à saúde no município: em busca da integralidade. Interface:Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 8, n. 15, pp. 259-74, 2004.).
Apesar das dificuldades do trabalho em rede enunciadas serem passíveis de mudanças, conforme proposição dos próprios entrevistados, reverter este cenário não é tão simples quanto parece. Alguns fatores, como as normas de rotina já afixadas para os setores, o suporte insuficiente da gestão, a sobrecarga de trabalho e a ausência de categorias profissionais, além de estigmas sobre o uso de álcool e outras drogas, obstaculizam a estruturação e o fortalecimento de uma rede assistencial integrada e intersetorial (MORAES, 2008MORAES, M. Integral healthcare model for treating problems caused by alcohol and other drugs: perceptions of users, their companions and practitioners. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, pp. 121-133, 2008.). Ademais, conforme e1ucida Moraes (2008)MORAES, M. Integral healthcare model for treating problems caused by alcohol and other drugs: perceptions of users, their companions and practitioners. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, pp. 121-133, 2008., é também necessário ter a noção de que a ampliação da rede de serviços, por si só, não é suficiente para uma atenção integral à saúde dos usuários, levando em consideração os fatores acima citados e toda a complexidade que envolve a temática das drogas.
Considerações finais
A partir do explicitado acima, considera-se a importância de pesquisas visando entender a rede assistencial sobre álcool e outras drogas em nível local, seus estrangulamentos e pontos facilitadores. Apesar de o cenário encontrado no município demonstrar melhorias e avanços, algumas dificuldades foram percebidas, principalmente no que tange à necessidade da consolidação, de fato, dos preceitos de integralidade e intersetorial idade.
Os entrevistados demonstram uma incorporação dos valores das políticas sobre drogas, com vários conceitos e percepções compartilhados. No entanto, observou-se que tais fatores não garantem, por si só, a concretização de ações. Estas percepções, muitas das vezes ideologizadas e naturalizadas, acabam por refletir valores e ideais de políticas sem que se realizem maiores problematizações sobre os obstáculos concretos para a implementação dessas políticas na realidade local. Cabe, portanto, levantar alguns questionamentos: Por que, mesmo quando os atores estão em consonância com os princípios das políticas, estas são difíceis de serem consolidadas? Quais seriam os fatores que influenciariam uma melhor concretização das políticas públicas sobre drogas? Qual o papel do nível de gestão central (governo, ministérios) na operacionalização desses conceitos em diretrizes que sejam realmente passíveis de implementação, considerando também as particularidades dos níveis locais?
O presente estudo não objetivou responder essas perguntas. Entretanto, a partir dos resultados encontrados, acredita-se que uma forma de se aproximar dessas respostas é considerar as percepções dos atores que fazem parte dessa realidade prática das políticas sobre drogas, ou seja, os atores que compõem a rede assistencial. Ademais, essa abordagem pode possibilitar um maior entendimento dos aspectos processuais que configuram a rede e, ao mesmo tempo, são conformados por ela. A compreensão destes aspectos articuladores e relacionais dos grupos, atores e serviços é imprescindível para um entendimento mais aprofundado dessas redes e de suas diversas formas de caracterização na realidade.
- Suporte financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), através do Edital 09/201 O “Extensão em Interface com a Pesquisa 2010”.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Ago 2023 - Data do Fascículo
Dez 2013
Histórico
- Recebido
01 Jun 2013 - Aceito
01 Jul 2013