Recaídas na drogadição: uma via para (re)pensar a atenção à saúde

Relapses in drug addiction: a way to (re)think health attention

Edna Linhares Garcia Dulce Grasel Zacharias Bruna Rocha de Araújo Sobre os autores

RESUMO

Problematiza se o fenômeno da ‘recaída’ por meio da análise de entrevistas com 100 usuários de crack e 100 familiares, da pesquisa ‘A realidade do crack em Santa Cruz do Sul’. Na análise de sentidos dos discursos, as ‘recaídas’ ganharam múltiplas significações, contrastando com a ideia que as reduzem a mera reprodução do vivido, ligando-se ao círculo internação-desintoxicação-intoxicação-internação. Apoiados na Psicanálise, propõe-se entender a ‘recaída’ como experiência de repetição com significados simbólicos, sinalizadora de conflitos psíquicos que urgem atenção suportada na Política de Humanização. Destituir as vivências de significação precariza a oferta de cuidados, obstaculizando ampliação da clínica.

PALAVRAS-CHAVE
Crack; Recaída; Compulsão a repetição; Psicanálise; Políticas Públicas

ABSTRACT

This article reflects on the relapse phenomenon through the analysis of interviews with 100 crack users and 100 family members, carried out as part of the research project ‘The reality of crack in Santa Cruz do sul.’ In the analysis of discourse meanings, relapses have had multiple meanings, contrasting with the idea of mere reproduction of what was lived, being part of the cycle internment detoxication intoxication internment. Based on Psychoanalysis, we propose to understand relapses as an experience of repetition with symbolical meanings, which signal psychological conflicts that claim for attention supported by Humanization Policy. The interpretation of subjects’ experiences withoutmeanings may worsen the conditions of care offer, being obstacles to the necessary expansion of clinics.

KEYWORDS
Crack; Relapse; Compulsive Repetition; Psychoanalysis; Public policies

Introdução

Já fiz vários tratamentos[...] Em chácaras, hospital o último agora foi no hospital em (cidade) [...]tenho muitas internações, eu acredito que umas 30. Eu cheguei a ficar (abstinente) uns 3 meses, cheguei a ficar uns 6 meses (Bernardo11Os nomes utilizados neste trabalho são fictícios, de forma a manter o anonimato dos sujeitos envolvidos., 21 anos).

O fenômeno que se popularizou como ‘recaída’, no âmbito da drogadição, constitui um dado que intriga e desacomoda profissionais, cuidadores e familiares que se encontram envolvidos, de algum modo, com a problemática trazida pelos usuários que mantêm relação de dependência com a droga. A realidade vivida nessa dimensão impõe grande desafio ao modelo de atenção dirigido ao atendimento dessa população, pois a demanda que se faz presente por parte de parentes e de muitos cuidadores é o de estancar esse comportamento, denominado de ‘recaída’, compreendido como destituído de significação, pela via da internação.

A reflexão sobre a estreita relação ‘recaída’ e internação, experiência frequente na história de sujeitos que mantêm dependência com as drogas, reclama sua urgência tendo em vista o contexto atual no qual vem acontecendo um retrocesso no que se refere às estratégias de atenção à saúde de usuários de drogas que, contrário aos avanços da Reforma Psiquiátrica, tem aumentado o número de internações dessa população. Nessa perspectiva, até mesmo um Projeto de Lei (PL7663/2010) vem sendo discutido com O intuito de incentivar a internação compulsória de modo prevalente no cuidado para essa população.

Desde 2010, a Universidade de Santa Cruz do Sul/ UNISC realiza a pesquisa ‘A realidade do crack em Santa Cruz do Sul’, na qual foram entrevistados 100 dependentes de crack e 100 familiares. A análise dos dados aponta para a seguinte realidade sobre ‘recaídas’ após período de internação (hospitais especializados, leitos para dependentes químicos em hospital geral e comunidades terapêuticas): 31% dos dependentes recaíram antes de completar um mês após o período de internação; 19% recaíram entre 2 e 4 meses; 7%, entre 5 e 8 meses; 3%, entre 9 e 12 meses; 1%, após um ano; 20% não responderam; 13% estavam na primeira internação e 6% nunca fizeram tratamento.

Essa realidade desenha um contexto que impõe a problematização da internação, tendo em vista o estabelecimento de um círculo vicioso e fechado, composto de intoxicação-internação-desintoxicação-intoxicação-internação. Embora tenhamos constatado que, para muitos sujeitos, a internação aparece, em um primeiro momento, como a única saída para o problema, em que pese as inúmeras re-internações vivenciadas, um número expressivo de usuários demonstram, desde cedo, a consciência de que não podemos tomar a internação como sinônimo de tratamento. Internação passa a ser entendida como parte de um processo/sistema mais complexo, que deve aprofundar a análise dos conflitos dos sujeitos em sua integralidade:

César, aos 43 anos, traz a seguinte fala: "Já fiz vários (tratamentos), se bem que tratamento no hospital é desintoxicação, eu já frequentei 2 anos lá, e CAPS eu me trato desde 2003, né [...]".

Carlos, 29 anos, relata a sua percepção a respeito da própria trajetória em serviços de saúde: "Desde 2008, já tenho cinco internações [...] Em clínicas de desintoxicação[...] tratamento mesmo eu vou começar agora (no CAPS AD)".

Pedro, 29 anos, teve quatro internações e diversas experiencias de ‘recaída’: "Já saía do tratamento com atitudes de recaída. Voltava a usar logo".

A partir dos discursos dos usuários de crack acerca das sucessivas internações, torna-se procedente a questão: as ‘recaídas’ devem ser realmente atribuídas ao sujeiro, ou, de fato, o que apresenta ‘recaída’ é o próprio sistema de saúde, por meio de um modelo de tratamento à drogadíção que se reproduz indefinidamente?

No que diz respeito às ‘recaídas’, emerge dos discursos dos sujeitos da pesquisa uma multiplicidade de sentidos, não se reduzindo a uma re-vivência de algo. Essa noção ou forma de compreensão trazida pelos usuários contrasta com discursos de familiares e cuidadores, que tendem a compreender as ‘recaídas’ como mera reprodução do já vivenciado pelo sujeito.

Nessa perspectiva, apontamos a necessidade da problematização do próprio termo ‘recaída’, pois decorre daí, certamente, um conflito de interesses que vai delinear formas distintas de entender a atenção e o cuidado para essa população.

No Brasil, o crescente aumento do uso abusivo de drogas tem sido utilizado como justificativa às intervenções que buscam estancar essa prática antes mesmo de compreender os sentidos, assim como as relações de poder e de verdades que a sustentam. Romanini e Roso (2012)ROMANINI, M.; ROSO, A. Mídia e Crack: Promovendo Saúde ou Reforçando Relações de Dominação? Psicologia: Ciência e Profissão, 2012, V. 32, n.1, p. 82-97. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932012000100007>. Acesso em: 20 abr.2013.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
contribuem para essa discussão ao problematizar as ideias hegemonicamente vigentes na sociedade brasileira que se pautam em um discurso antidrogas, organizando ações no âmbito da repressão e que tem como modelo de tratamento aqueles centrados em aspectos biológicos e curativos.

Nesse sentido, Santos (2010)SANTOS, L. M. B. (org.) Outras palavras: sobre o cuidado de pessoas que usam drogas. Porto Alegre, Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2010. se refere à grande necessidade de maiores debates na área, na perspectiva de discutir e problematizar a lógica dominante, a qual preserva a ideia reducionista do usuário como um indivíduo isolado de outros contextos, para o qual o tratamento deve estar baseado na internação e manutenção da abstinência.

Com efeito, consideramos que há um contexto incentivador de práticas de caráter rígido e reducionista, fechadas em si mesmas, configurando um ciclo de reprodução de uma ‘mesmicidade’, que finda por se tornarem pouco resolutivas.

Na direção de uma compreensão diferenciada desse fenômeno complexo, torna-se fundamental o estranhamento frente a discursos que veiculam apenas sentidos de fracasso em relação à ‘recaída e/ou a entendem como comportamento que demonstra ingratidão e/ou falta de caráter do sujeito em relação ao outro, seja este seu familiar) cuidador etc, pois, em decorrência desse viés de compreensão, concretiza-se como única saída/solução a re-internação, novamente, reativando um círculo vicioso.

Essa parece ser uma faceta presente na história de Emanuel, 23 anos, que relatou na entrevista, suas 11 internações em clínicas, hospitais, fazendas, comunidades terapêuticas, e ainda ressaltou, quando questionado se havia passado pela experiência da ‘recaída’: "Sim, já saía usando no outro dia, eu fugia das fazendas logo, aquela (nome) não presta".

As reflexões que apresentamos no presente artigo visam, sobretudo, à problematização das atuais formas de compreender e intervir sobre a questão do uso de crack, com apoio daquilo que se preconiza na política de atenção integral à saúde de usuários de álcool, crack e outras drogas. Para esse fim, serão apresentados alguns recortes dos sentidos produzidos ao longo dos encontros com os sujeitos, por ocasião da realização da pesquisa ‘A realidade do Crack em Santa Cruz do Sul’, de modo a ilustrar e subsidiar a reflexão aqui pretendida.

Metodologia

A pesquisa ‘A realidade do Crack em Santa Cruz do Sul,’ nos anos de 2010 e 2011, realizou um levantamento de dados que permitiu o reconhecimento de aspectos psicossociais de usuários de crack e familiares do município, de modo a compor uma espécie de diagnóstico, que pudesse auxiliar na definição de estratégias de enfrentamento das problemáticas advindas do uso de crack em Santa Cruz do Sul. A pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), sob o nº 2527/10.

A investigação se deu através de roteiro semiestruturado, o qual foi realizado com 100 usuários de crack e 100 familiares de usuários, havendo a preocupação para que se proporcionasse aos sujeitos pesquisados um espaço de diálogo e reflexão sobre o tema. Todas essas pessoas entrevistadas foram contatadas por intermédio de instituições parceiras, compostas por serviços de saúde (Estratégias de Saúde da Família, CAPSia, CAPS AD, Comunidades Terapêuticas, Hospitais de referência) e associações comunitárias. Todos os sujeitos pesquisados foram informados das propostas da pesquisa e do sigilo dos dados, assim como devidamente esclarecidos sobre a voluntariedade da participação, mediante leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A análise dos dados de caráter quantitativo foi realizada por agrupamento estatístico, com auxílio do software SPSS Statistics 19. Posteriormente, seguiu-se a análise qualitativa, que iniciou com leitura flutuante das entrevistas dos sujeitos, conforme sugere Bardin (1977, p. 96)BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977., e discussão em grupos (de pesquisadores) acerca dos principais pontos e hipóteses. Em seguida, realizamos a exploração do material, buscando dar visibilidade aos sentidos que se produzem em relação às questões suscitadas e significativas para a problemática pesquisada.

A partir desse contato com realidade dos usuários de crack e familiares, optamos pela proposta teórico-metodológica denominada de produção de sentidos no cotidiano por meio de práticas discursivas, alinhada à perspectiva de conhecimento afiliada ao construcionismo social. Segundo Spink (2000)SPINK, Mary Jane P. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. 2. ed São Paulo: Cortez, 2000., essas práticas discursivas implicam ações, seleções, escolhas, linguagens, contextos, enfim, uma variedade de produções sociais das quais são expressão. O conceito de práticas discursivas remete a momentos de ressignificações, de rupturas de produção de sentidos, ou seja, corresponde aos momentos ativos do uso da linguagem, nos quais convivem tanto a ordem como a diversidade. Assim, pode-se definir ‘práticas discursivas’ como as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas.

Ao longo das análises do estudo, elaboramos algumas categorias e subcategorias decorrentes de marcos ou temas que mais se apresentavam, de modo a facilitar as análises. Para o presente trabalho, consideramos apenas a categoria ‘a questão do tratamento’ e a subcategoria ‘recaída’, por constatarmos que os sentidos revelam importantes questões acerca da relação entre ‘recaída’ e internação.

Vias de compreensão definem modos de intervenção

Ao escutar os discursos desses sujeitos, emerge a necessidade de problematizar a questão da ‘recaída’, pois revelam não apenas um modo de compreender a situação de dependência em que esses sujeitos se encontram em relação às drogas, mas também modos de cuidado prestados.

Certamente, constatamos hoje que o termo ‘recaída’ não tem sua aplicação apenas à questão da dependência química, mas alcança outros comportamentos que, do mesmo modo, encontram o sujeito impossibilitado de não repeti-los. Como exemplo, podemos citar os transtornos alimentares, compulsões por compras, pela internet e pela estética ideal, a automutilação, entre outros. Faz-se necessário assinalar que essa gama de comportamento reflete os modos de subjetivação produzidos com os ideais da nossa sociedade atual. (BIRMAN, 2006BIRMAN, J. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.).

No âmbito da drogadição, a ‘recaída’ é comumente tomada como uma mera repetição do já vivido, tornando-se automaticamente destituída da possibilidade de qualquer produção de sentido pelo sujeito. A reflexão sobre os discursos que atravessam o fenômeno da ‘recaída’ deve levar em consideração, conforme sugere Sommer (2007)SOMMER, L. A Ordem do Discurso Escolar. Revista Brasileira de Educação, v. 12, n. 34, p. 57-67, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v12n34/a05v1234.pdf>. Acesso em: 20 abr.2013.
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v12n34/a0...
, que essa rede discursiva compõe práticas organizadoras da realidade.

Veiga-Neto (2011)VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação. 3. ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011. esclarece que os discursos não podem ser pensados como o ‘resultado de palavras que representariam as coisas do mundo’, mas, conforme explica Foucault (1987, apudVEIGA-NETO, 2011, p. 93VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação. 3. ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011.) "os discursos formam sistematicamente os objetos de que falam".

Conforme coloca Furtado (2011, p. 156)FURTADO, L. E. et al. Subjetivação, discursos científicos e midiáticos: revisitando estudos foucaultianos sobre corpos. Fractal: Revista de Psicologia. Niterói, v. 23, n. 1, p. 155-170, jan./abr. 2011. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-02922011000100011&Ing=pt&nrm=iso&tlng=pt>http://lilacs.bvsalud.org/. Acesso em: 18 abr. 2013.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, a visão dos sujeitos sobre o corpo e a saúde é produzida por meio de práticas discursivas e não-discursivas que fazem parte do dia-a-dia da sociedade. Essas práticas envolvem redes de poder e saber produzidas, por exemplo, pela mídia e pela ciência, que ‘recortam’ os corpos, ‘como um ato que, ao mesmo tempo em que delimita, dá forma e produz exclusões’. Assim, os discursos mantêm essa forte ligação com o poder e se materializam na criação e reprodução de formas de ser e estar no mundo dos sujeitos. Nesse sentido, os discursos correntes na mídia e na ciência sobre o uso de crack delimitam tanto modos de compreender a problemática como as formas de tratá-la.

Ao longo da história da humanidade, existiram modificações no conceito de saúde imbricadas no contexto cultural, social, político e econômico de cada tempo histórico. Portanto, a compreensão do que é saúde e/ou doença estará conectada às redes discursivas e de significação da sociedade e, embora possa ser mais ou menos uniformizada em relação a algumas disposições sociais, terá diversos sentidos entre os sujeitos.

Mendonça e Rodrigues (2011)MENDONÇA, R.L.; RODRIGUES, C.E. Foucault com Freud: cultura, adoecimento, internação. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental. Florianópolis, V. 3, n. 6, p. 151-170, 2011. Disponível em: <http://www.incubadora.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/1507>. Acesso em 10 abr. 2013.
http://www.incubadora.ufsc.br/index.php/...
, em estudo da obra foucaultiana, trazem reflexões a respeito das formas históricas que assumiram os tratamentos da loucura, fazendo um paralelo com as atuais estratégias de enfrentamento do abuso de drogas. Durante o processo histórico reconhecido como ‘A grande internação’, a internação dos loucos assumiu um caráter moral, social, econômico e religioso. Esse tratamento moral surge quando a situação dos loucos no século XVII é de ociosidade, pobreza e mendicância, sendo a internação a resolução socialmente determinada, uma prática de caráter punitivo e moral, não curativo.

Mendonça e Rodrigues (2011, p.155)MENDONÇA, R.L.; RODRIGUES, C.E. Foucault com Freud: cultura, adoecimento, internação. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental. Florianópolis, V. 3, n. 6, p. 151-170, 2011. Disponível em: <http://www.incubadora.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/1507>. Acesso em 10 abr. 2013.
http://www.incubadora.ufsc.br/index.php/...
ainda dizem que, ‘neste ponto da história da loucura e da humanidade, o louco é colocado fora dos olhares da população mais geral porque atrapalha a ordem civil. Ele incomoda’. Portanto, a ideia de tratamento moral se aproxima dos discursos de grande parte da sociedade brasileira em relação aos ‘crackeiros’.

Nessa rede de poder-saber, exercida, sobretudo, pela ciência, como nos coloca Caponi (1997), citado por Batistella (2007, p. 26)BATISTELLA, C. Abordagens Contemporâneas do Conceito de Saúde. In: Fonseca, Angélica Ferreira (Org.). O território e o processo saúde-doença. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007. Disponível em: <http://www.retsus.fiocruz.br/upload/documentos/territorio_e_o_processo_2_livro_1.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2013.
http://www.retsus.fiocruz.br/upload/docu...
, aceitar um conceito implica “[...] o direcionamento de certas intervenções efetivas sobre o corpo e a vida dos sujeitos, implica a redefinição desse espaço de onde se exerce o controle administrativo da saúde dos indivíduos".

Torna-se fundamental o reconhecimento dos jogos de poder estabelecidos em relação ao usuário de crack, pois compreensões socialmente difundidas desse sujeito como um ser passivo e sem controle, que se articula à ‘recaída’, favorecem a compreensão errônea de que o crack se apossou do sujeito, e ele nada mais pode fazer a favor de si. Portanto, somente intervenções externas e de controle sobre o sujeito, que o retirem do espaço social, poderão ser resolutivas.

Aqui, o círculo vicioso está intimamente ligado à despontencialização do sujeito sobre o cuidado de si mesmo, sobre a gestão da vida. Os discursos que colocam o crack como ‘senhor todo poderoso’ que triunfa sobre o usuário sustentam práticas repressivas que cerceiam a liberdade desses indivíduos "sem controle sobre si mesmos" (ROMANINI; ROSO, 2012ROMANINI, M.; ROSO, A. Mídia e Crack: Promovendo Saúde ou Reforçando Relações de Dominação? Psicologia: Ciência e Profissão, 2012, V. 32, n.1, p. 82-97. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932012000100007>. Acesso em: 20 abr.2013.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Retomando o pensamento de Foucault (1987 apudVEIGA-NETO, 2011VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação. 3. ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011.) de que esses discursos produzem ‘verdades’, torna-se necessário refletir sobre como os profissionais de saúde participam dessa rede discursiva, produtos e produtores de formas de compreender o uso de drogas, conhecimentos difundidos socialmente, e de prestar atenção à dependência química.

As ‘recaídas’ têm alcançado o foco da atenção e do cuidado, desafiando os profissionais nas suas competências, que, embora previsíveis, não conseguem controlá-las. Desse modo, configura-se um quadro no qual familiares e profissionais tornam-se espectadores, convivendo num cotidiano tensionado pelas inumeráveis ‘recaídas’ de seus parentes/pacientes, ou seja, pelas reproduções do que acreditam já terem vivenciado.

A reflexão sobre esse contexto remete às políticas públicas de saúde no Brasil, nas quais se percebe um processo, ao longo dos últimos anos, de tensão entre o movimento da Reforma Psiquiátrica e as pressões para a manutenção do modelo hospitalocêntrico de atenção aos usuários de drogas, sobretudo com o aumento do uso de crack.

Segundo Mendonça e Rodrigues (2011), o modelo de atenção a essa população não pode ser segregatório e excludente, como vem sendo pautado nos últimos anos, por exemplo, no ‘Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas’ (2010), que prevê, no artigo 5°, § 1, inciso 1, o aumento do número de leitos para o tratamento de usuários de crack e outras drogas. Esse plano significou um considerável aumento de leitos, cerca de 6120 unidades, entre os quais 5000 serão divididos entre hospitais gerais e Comunidades Terapêuticas.

Outro ponto que demonstra claramente esse tensionamento é o projeto de Lei nº 7663/201O, que, segundo o Conselho Federal de Psicologia (2011)CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Parecer do Conselho Federal de Psicologia (CFP sobre o Projeto de Lei nº 7663/2010. Brasília: CFP, 2011. Disponível em:<http://síte.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/03/Parecer-Conselho-Federal-de-Psicologia-PL-7663-2010.pdf>. Acesso em 13 abr. 2013.
http://síte.cfp.org.br/wp-content/upload...
, traz compreensão equivocada a respeito das estratégias de atenção aos usuários de drogas e, no caso de sua aprovação, representaria um retorno às abordagens tradicionais e conservadoras, que se pautam no aumento de privação da liberdade e da possibilidade de condenação de usuários de d rogas à prisão, como se fossem traficantes. Além disso, criaria ‘uma indústria de internações compulsórias’ que vão de encontro aos princípios e diretrizes da atenção pautada na redução de danos, significando um aumento de gastos e da violação dos direitos humanos dessas pessoas em situação de vulnerabilidade social (idem, p. 08).

Esse projeto de Lei baseia-se na tríade proibicionismo, repressão e abstinência, que ‘consagra o modelo criminal medicalizante em vigor no Brasil’ e se configura como uma opção de enfrentamento da questão de grande custo econômico e social e de baixa resolutividade. As políticas públicas pautadas nesses princípios, além de ofertar práticas pouco resolutivas, se tornam. elas mesmas, ‘parte do problema a ser superado, uma vez que seus efeitos são largamente contraproducentes’ (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2011, p. 08CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Parecer do Conselho Federal de Psicologia (CFP sobre o Projeto de Lei nº 7663/2010. Brasília: CFP, 2011. Disponível em:<http://síte.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/03/Parecer-Conselho-Federal-de-Psicologia-PL-7663-2010.pdf>. Acesso em 13 abr. 2013.
http://síte.cfp.org.br/wp-content/upload...
).

Esses, entre outros movimentos, podem significar retrocesso no que se refere ao cuidado e à atenção integral a usuários de drogas, previstos na Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas, criada em 2003 pelo Ministério da Saúde. O modelo de atenção pautado na integralidade rompe com o reducionismo ao trazer uma compreensão complexa acerca do uso de drogas na contemporaneidade, englobando aspectos sociais, psicológicos, econômicos e políticos. Reconhece a necessidade de uma ampla rede de atenção, que não se restrinja às intervenções psiquiátricas e jurídicas, ou, ainda, ao âmbito da saúde, se comprometendo com ações na perspectiva da redução dos danos, com pleno exercício dos direitos dos cidadãos (ROMANINI; ROSO, 2012ROMANINI, M.; ROSO, A. Mídia e Crack: Promovendo Saúde ou Reforçando Relações de Dominação? Psicologia: Ciência e Profissão, 2012, V. 32, n.1, p. 82-97. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932012000100007>. Acesso em: 20 abr.2013.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Assim, é urgente que a atenção à saúde de usuários de drogas se fortaleça no que concerne à atenção integral, pautada no cuidado, no acolhimento dessas pessoas, na liberdade, no fortalecimento dos vínculos sociais e da cidadania. Para Couto e Alberti (2008)COUTO, R.; ALBERTI, S. Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual. Saúde em Debate. Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008. Disponível em: <http://observasaude.fundap.sp.gov.br/BibliotecaPortal/Acervo/Condi%C3%A7%C3% B5es%20e%20Condicionantes%20de%20Vida%20e%20Sa%C3%BAde/Sa%C3%BAde%20MentaI/Revista%20Sa%C3%BAde%20em%20Debate_Sa%C3%BAde%20mental_%20v.32_n%2078-79-80_jan_%20dez_2008.pdf>. Acesso em 13 abr. 2013.
http://observasaude.fundap.sp.gov.br/Bib...
, no contexto da Reforma Psiquiátrica, a cidadania e o cuidado são base para tratamento dos usuários e a prática clínica deve caminhar paralelamente a atenção psicossocial, buscando atender aos sofrimentos psíquicos e possibilitar o desenvolvimento da autonomia e da cidadania.

(Re)pensando as (re)caídas na drogadição como repetição e não como reprodução

Lançamos mão da perspectiva psicanalítica para compreensão da ‘recaída’ por reconhecermos que esse paradigma possibilita problematizá-la como estando para além da simples reprodução do já vivido pelo sujeito. Assim, sustentamos uma via de cuidado que resiste à tendência da busca pelo estancamento desse comportamento, pelo viés da internação, sem que os sujeitos sejam escutados na singularidade das suas vivências.

Há quase um século, Freud desenvolveu o conceito de Compulsão à Repetição que nos permite hoje realizar essa outra abordagem da ‘recaída’, isto é, não mais a tomando de forma generalizada e destituída de sentido, mas passando a entendê-la como uma repetição simbólica na experiência da dependência química.

Do mesmo modo, há quase 30 anos, a psicanalista Piera Aulagnier (1985)AULAGNIER, P. Os destinos do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1985. lançou luz para compreensão da relação problemática que muitos sujeitos estabelecem com a droga. Ao teorizar sobre a relação passional alienante, entendeu que, nesses casos, um objeto torna-se para o sujeito a fonte exclusiva de todo prazer. Assim, o objeto droga é deslocado para o registro das necessidades, e o sujeito passa a estabelecer com ela uma relação de dependência:

A paixão pela droga, pelo jogo, e, igualmente, aquela que tem como objeto o Eu de um outro referem-se àqueles para quem a droga ou o jogo tornaram-se não somente fonte do único prazer que conta realmente, mas de um prazer que se tornou necessidade (AULAGNIER, 1985, p.151AULAGNIER, P. Os destinos do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1985.).

No texto Recordar, repetir e elaborar (1914/1969), Freud toma a repetição como a expressão de um conflito psíquico que necessita ser trabalhado para que uma ressignificação seja possível. Em outros termos, é apenas através de um processo de significação que a repetição poderá ser substituída, dando lugar a outras experiências significativas para a vida.

Nesse contexto, constatamos salientada a importância da repetição para o desenvolvimento da atenção e do cuidado. Freud (1914/1969)FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II). In: _____. O caso de Schereber; Artigos sobre técnica e Outros trabalhos. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol XII. Rio de Janeiro: Imago, 1969. reconhece que, enquanto a repetição se faz presente, dificultando a recordação, turvando ou impedindo o enfretamento do sujeito com sua história e realidade, também se faz presente por meio dela a denúncia da existência do conflito psíquico. Com efeito, é exatamente pela repetição que se anuncia o conflito e que, dessa forma, fornece pistas e oportuniza a necessária intervenção cuidadosa.

Os fragmentos de casos que utilizamos para ilustrar este trabalho demonstram que estamos diante de sujeitos que estabeleceram com a droga uma relação de total dependência, de modo a torná-la objeto de necessidade e não apenas objeto de prazer. E, ainda, que, ao longo de suas trajetórias de vida, as suas ‘recaídas’ foram tomadas como reprodução do já vivido, portanto, desvalorizadas e até mesmo atribuídas à falta de caráter ou falta de respeito frente ao outro.

Nos discursos dos sujeitos entrevistados, constatamos o intenso sofrimento implicado na relação de dependência estabelecida com as drogas e, principalmente, nas situações de ‘recaída’. Tal implicação emerge com muita clareza nas falas de alguns sujeitos quando questionados sobre a que atribuem essas ‘recaídas’.

Felipe, com 30 anos na época da entrevista, relatou um histórico de 09 internações, afirmando que suas ‘recaídas’ se dão entre uma semana e um mês após o período de internação. Sobre as situações de ‘recaída’, faz a seguinte reflexão: "Ficava sem vontade de viver, sem alegria, sem motivação, ia nos lugares, tinha os companheiros e isso me deixava recair, o álcool também ajudou a recair[...]".

Francisco, aos 27 anos, já se submeteu a 04 internações, sendo que costuma voltar a usar drogas cerca de 04 meses após o período de internação. Ressaltou que suas experiências de ‘recaídas’ estavam ligadas à seguinte realidade: "Muito foi por causa dos problemas, mais é os problemas e muito porque já tinha vontade de usar, e para fugir dos problemas, não querer assumir os problemas. Achei que era uma vantagem usar, mas piora os problemas".

A partir desses fragmentos, que representam as falas de muitos outros entrevistados nesta pesquisa, podemos concluir que procede a suposição de que os sujeitos experimentam intenso sofrimento decorrente de conflitos psíquicos não elaborados. Nessa situação, as recaídas devem ser tomadas como repetições simbólicas, que veiculam sentidos diferenciados e não apenas reprodução mecânica esvaziada de significação. Devemos considerar que estamos diante de casos em que a repetição configura formas de resistência a mudanças, ao mesmo tempo, indicativas de conflitos psíquicos e demandas de ajuda para que ressignificações sejam possíveis, tal como podemos escutar na voz de Júlio:

Às vezes uns 15 dias, mas geralmente no mesmo dia [volta a usar drogas depois após internação]. É difícil, precisa de muita ajuda, acho que se eu tivesse a ajuda da mãe e dos irmãos. Ela nunca se preocupou comigo, pra ti vê, hoje é dia de visita, ninguém veio. (Júlio, 42 anos).

A repetição sinaliza de forma contundente a existência de conflitos psíquicos que não cessam de se presentificar e que exigem elaboração. A ‘recaída’, entendida como repetição, deixa de ocupar esse lugar de vilã e, em decorrência, deixa de ser combatida acima de tudo para ser reconhecida como importante instrumento terapêutico.

Dionísio, aos 27 anos, está no segundo tratamento e relata a seguinte experiência em relação à ‘recaída’:

Foi quando me separei da minha mulher. Na verdade eu gostava dela, mas não queria dar o braço a torcer. Era muito incômodo, muita desavença, muita coisa tava em jogo a gente discutia muito, por coisas pequenas, aí dá aquela fraqueza, né? Tu acha que a única coisa que vai suprir aquilo ali é usando. Eu desisti de procurar uma ajuda, né... eu comecei a beber. Fazia festas, fazia festas, mas as festas não preenchiam aquele vazio.

Não mais entendida como mera reprodução de situações reais vividas, destituídas de sentidos, as ‘recaídas’ veiculam sentidos diferentes, pois que remetem sempre a equivalentes simbólicos de desejos, muitas vezes ainda inconscientes. Portanto, a ‘recaída’ passa a apontar para a necessidade de se escutar a multiplicidade de sentidos, verdades presentes na vivência singular a cada vez que se repete, exigindo mudanças nas formas de acolhimento e escuta.

Essa forma de compreensão coloca em xeque o próprio termo ‘recaída’, usado para designar esse momento na vida desses sujeitos. Se escutarmos a fala de um sujeito, Rodrigo, 23 anos, perceberemos que, na verdade, a experiência não se reproduz, não se repete do mesmo modo:

A droga ... tu te acha a melhor pessoa do mundo e ao mesmo tempo tu é a pior pessoa do mundo. Ela te leva e te derruba; te ergue e te derruba. Então, aquela sensação que tu tem é ilusória. Então, tu continua correndo atrás de uma coisa que não vem, de uma coisa que não vem mais. Porque aquele prazer, ele é momentâneo, ele dura segundos. E, por tu tá intoxicado, tu acha que aquilo vai acontecer e tu fica correndo atrás de uma coisa que não vem mais. Isso é complicado.

Embora Rodrigo tenha consciência de que está correndo atrás de uma coisa que não alcançará mais, ele projeta o retorno daquela vivência, pois se produz uma experiência que o ‘ergue’ e o leva em frente. Portanto, nesse caso, podemos concluir que a repetição traz sempre a experiência de um novo, já que não acontece nunca mais o mesmo.

De fato, diante da droga, o sujeito parece se defrontar com uma impotência, como assinala Santos, Costa-Rosa, (2007, p. 489)SANTOS, C. E.; COSTA-ROSA, A. A experiência da toxicomania e da reincidência a partir da fala dos toxicômanos. Estudos de Psicologia. Campinas: v.24, n.4, p.487-502, 2007.: "[...] se defronta com sua incapacidade de pensar, reagindo com uma ação compulsiva, correspondente de uma tensão que parece ser vivenciada como impossível de baixar por outros meios".

Contudo, em se tratando de atos humanos, torna-se impossível tomar a repetição como reprodução do mesmo. Devemos tomá-la enquanto demandante do novo, do acaso, do lúdico, como Garcia-Roza (1986 p. 35-36)GARCIA-ROZA, L. A. Acaso e Repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. 5 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986. argumenta:

O mundo humano é o mundo do sentido, mundo que não é pensável fora da referência ao simbólico. Esta é a razão pela qual Jacques Lacan [...] afirma que não há behavior humano, mas ato humano, isto é, algo que se constitui como sentido e que é indissociável da linguagem. Uma palavra, ou mesmo uma frase, quando repetida, não traz com ela a repetição do seu sentido.

Nessa perspectiva, fazem-se necessárias ofertas de condições favoráveis para que os sujeitos re-signifiquem os processos de construção do mal-estar e do sofrimento psíquico que os levam a se cristalizar nesses atos ou modelos de atuação. Thomas, 37 anos, ao refletir a respeito de suas percepções sobre tratamento e ‘recaída’, aponta, justamente, a necessidade de que a rede de saúde amplie seu leque de possibilidades e, sobretudo, qualifique a atenção aos usuários de drogas. Abaixo, sua fala que demonstra seu reconhecimento acerca do que poderia lhe ajudar a sair da situação de dependência do crack:

Num primeiro momento, trabalhar o processo de autoconhecimento; segundo lugar, uma manutenção constante do tratamento, tipo prevenção de recaída, que é em grupos. Deveria de ter em (nome da cidade) mais uma opção, um local, não só no horário comercial. Tem pessoas que vão trabalhar de dia, e como vão se tratar? É preciso ter mais uma opção, nem todos se encaixam em NA ou AA. Quanto mais opções e ferramentas, melhor seria para a gente. Seria a manutenção constante.

Considerações finais

Com este trabalho, procuramos apresentar reflexões, realizadas por ocasião da análise dos dados da pesquisa ‘A realidade do crack em Santa Cruz do Sul’, de modo a ajudar na problematização das Políticas e do cuidado que atualmente têm sido direcionados às pessoas que estabelecem relação de dependência com a droga.

Entre outras constatações, obtidas a partir dos sentidos que emergiram nos discursos dos usuários de crack, ressaltamos a necessidade de refletir sobre o fenômeno da ‘recaída’ entendida como a reprodução do mesmo, que leva o cuidador e/ou profissional a desvalorizar a experiência e os sentidos subjetivos. Tomada enquanto reprodução do já vivido, remete à experiência da impotência, da incompetência, da desesperança e de desistência.

No contexto atual, o crack passa a ser compreendido, em última instância, como a loucura no século XVII, ou seja, uma condição que, ao abstrair a ‘racionalidade’ do sujeito, o condena à margem da sociedade. Existe uma rede discursiva que encerra os sujeitos (usuários, familiares, profissionais, etc.) na situação de ‘impotência’, justificando práticas repressoras que cerceiam a liberdade e a autonomia dos usuários, sistema que reproduz a ideia de que o individuo é incompetente frente sua condição, tida como a-social e a-histórica.

Para finalizar, remetemo-nos ao texto ‘Différence et répétition’ de Deleuze (1968)DELEUZE,G. Différence et répétition. Paris: PUF, 1968., que ajuda a sustentar a ideia da ‘recaída’ como algo que tem natureza simbólica, e que não se trata de representar alguma coisa, mas, sim, de que ela própria significa algo. Ressalta que "repetir é uma forma de se comportar, mas em relação a algo único ou singular, que não possui semelhante ou equivalente [...] não é acrescentar uma segunda e uma terceira vez a primeira, mas conduzir a primeira a enésima potência" (p. 07,08).

  • Suporte financeiro: não houve
  • 1
    Os nomes utilizados neste trabalho são fictícios, de forma a manter o anonimato dos sujeitos envolvidos.

Referências

  • AULAGNIER, P. Os destinos do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1985.
  • BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
  • BATISTELLA, C. Abordagens Contemporâneas do Conceito de Saúde. In: Fonseca, Angélica Ferreira (Org.). O território e o processo saúde-doença. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007. Disponível em: <http://www.retsus.fiocruz.br/upload/documentos/territorio_e_o_processo_2_livro_1.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2013.
    » http://www.retsus.fiocruz.br/upload/documentos/territorio_e_o_processo_2_livro_1.pdf
  • BIRMAN, J. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
  • CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Parecer do Conselho Federal de Psicologia (CFP sobre o Projeto de Lei nº 7663/2010. Brasília: CFP, 2011. Disponível em:<http://síte.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/03/Parecer-Conselho-Federal-de-Psicologia-PL-7663-2010.pdf>. Acesso em 13 abr. 2013.
    » http://síte.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/03/Parecer-Conselho-Federal-de-Psicologia-PL-7663-2010.pdf
  • COUTO, R.; ALBERTI, S. Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual. Saúde em Debate. Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008. Disponível em: <http://observasaude.fundap.sp.gov.br/BibliotecaPortal/Acervo/Condi%C3%A7%C3% B5es%20e%20Condicionantes%20de%20Vida%20e%20Sa%C3%BAde/Sa%C3%BAde%20MentaI/Revista%20Sa%C3%BAde%20em%20Debate_Sa%C3%BAde%20mental_%20v.32_n%2078-79-80_jan_%20dez_2008.pdf>. Acesso em 13 abr. 2013.
    » http://observasaude.fundap.sp.gov.br/BibliotecaPortal/Acervo/Condi%C3%A7%C3% B5es%20e%20Condicionantes%20de%20Vida%20e%20Sa%C3%BAde/Sa%C3%BAde%20MentaI/Revista%20Sa%C3%BAde%20em%20Debate_Sa%C3%BAde%20mental_%20v.32_n%2078-79-80_jan_%20dez_2008.pdf
  • DELEUZE,G. Différence et répétition. Paris: PUF, 1968.
  • FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II). In: _____. O caso de Schereber; Artigos sobre técnica e Outros trabalhos. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol XII. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
  • FURTADO, L. E. et al. Subjetivação, discursos científicos e midiáticos: revisitando estudos foucaultianos sobre corpos. Fractal: Revista de Psicologia. Niterói, v. 23, n. 1, p. 155-170, jan./abr. 2011. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-02922011000100011&Ing=pt&nrm=iso&tlng=pt>http://lilacs.bvsalud.org/ Acesso em: 18 abr. 2013.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-02922011000100011&Ing=pt&nrm=iso&tlng=pt>http://lilacs.bvsalud.org/
  • GARCIA-ROZA, L. A. Acaso e Repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. 5 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.
  • MENDONÇA, R.L.; RODRIGUES, C.E. Foucault com Freud: cultura, adoecimento, internação. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental. Florianópolis, V. 3, n. 6, p. 151-170, 2011. Disponível em: <http://www.incubadora.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/1507>. Acesso em 10 abr. 2013.
    » http://www.incubadora.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/1507
  • ROMANINI, M.; ROSO, A. Mídia e Crack: Promovendo Saúde ou Reforçando Relações de Dominação? Psicologia: Ciência e Profissão, 2012, V. 32, n.1, p. 82-97. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932012000100007>. Acesso em: 20 abr.2013.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932012000100007
  • SANTOS, C. E.; COSTA-ROSA, A. A experiência da toxicomania e da reincidência a partir da fala dos toxicômanos. Estudos de Psicologia. Campinas: v.24, n.4, p.487-502, 2007.
  • SANTOS, L. M. B. (org.) Outras palavras: sobre o cuidado de pessoas que usam drogas. Porto Alegre, Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2010.
  • SOMMER, L. A Ordem do Discurso Escolar. Revista Brasileira de Educação, v. 12, n. 34, p. 57-67, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v12n34/a05v1234.pdf>. Acesso em: 20 abr.2013.
    » http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v12n34/a05v1234.pdf
  • SPINK, Mary Jane P. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. 2. ed São Paulo: Cortez, 2000.
  • VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação. 3. ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2013

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2013
  • Aceito
    01 Jun 2013
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br