Religião e transtornos mentais na perspectiva de profissionais de saúde, pacientes psiquiátricos e seus familiares

Religion and mental disorders in the perspective of health professionals, psychiatric patients and their families

Amanda Márcia dos Santos Reinaldo Raquel Lana Fernandes dos Santos Sobre os autores

RESUMO

O objetivo do estudo foi compreender as percepções de profissionais de saúde, pacientes e seus familiares com relação à religião e aos transtornos psiquiátricos. Estudo etnográfico. Para análise, foi utilizada a análise de conteúdo. Categorias identificadas: 1. Vivência religiosa/espiritualidade como fator que fortalece o indivíduo no enfrentamento da doença; 2. Vivência religiosa/espiritualidade como fator que dificulta o tratamento; 3. Dificuldades do profissional de lidar com a vivência religiosa/espiritualidade de pacientes e familiares. É necessário reconhecer a necessidade de uma abordagem cultural do tema. Muitas perguntas se mantêm sem respostas e desafiam os estudiosos da área.

PALAVRAS-CHAVE:
Religião; Saúde mental; Espiritualidade; Psiquiatria; Transtornos mentais

ABSTRACT

The aim of the study was to understand the perceptions of health professionals, patients and their families with regard to religion and psychiatric disorders. It is an ethnographic study. For analysis, it was used the content analysis. Categories identified: 1. Religious/spirituality experience as a factor that strengthens the individual in the confrontation of the disease; 2. Religious/spirituality experience as a factor that complicates the treatment; 3. Difficulties encountered by the professional in dealing with the religious/spirituality experience of patients and family members. It is necessary to recognize the need for a cultural approach to the topic. Many questions remain unanswered and challenge researchers in the field.

KEYWORDS:
Religion; Mental health; Spirituality; Psychiatry; Mental disorders

Introdução

A relação entre religião, religiosidade, espiritualidade e saúde/doença mental tem sido um assunto de interesse nas ciências sociais, comportamentais e de saúde.

A experiência religiosa e suas diferentes formas de expressão foram ignoradas por muito tempo na abordagem ao paciente psiquiátrico, e, em contrapartida, algumas religiões desencorajavam ou proibiam seus seguidores de procurar tratamento quando do adoecimento mental (ALVES ., 2010ALVES, R. R. N. et al. The influence of religiosity on health. Cienc. Saude Colet., Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 2105-2111, jun./jul. 2010. ).

Para a psiquiatria, a espiritualidade, a religião, a religiosidade e suas manifestações estiveram, historicamente, associadas a atitudes negativas que comprometiam a evolução do quadro clínico e influenciavam na produção de sintomas (PARGAMENT; LOMAX, 2013PARGAMENT, K. I.; LOMAX, J. W. Understanding and addressing religion among people with mental illness. World Psych., Londres, v. 12, n. 1, p. 26-32, fev. 2013.). São temas que estão integrados na rotina psiquiátrica, sendo essa uma evidência científica, apesar da controvérsia que o tema traz para a área (KING , 2013KING, M. et al. Religion, spirituality and mental health: results from a national study of English households. British J Psych., Londres, v. 22, n. 1, p. 68-73, jan. 2013.; ALMEIDA; KOENIG; LUCCHETTI, 2014ALMEIDA, A. M.; KOENIG, H. G.; LUCCHETTI, G. Clinical implications of spirituality to mental health: review of evidence and practical guidelines. Rev Bras Psiquiatr., São Paulo, v. 3, n. 6, p. 543-557, abr./jun. 2014.). Pesquisas apontam que o envolvimento religioso está relacionado a melhores resultados na recuperação de doença física e mental, na manutenção da saúde mental, física e da longevidade. Por outro lado, também pode estar associado a resultados negativos - como o fanatismo, as mortificações e o tradicionalismo opressivo - e ao uso inadequado dos serviços de saúde (PARGAMENT; LOMAX, 2013PARGAMENT, K. I.; LOMAX, J. W. Understanding and addressing religion among people with mental illness. World Psych., Londres, v. 12, n. 1, p. 26-32, fev. 2013.).

O potencial para os efeitos positivos e negativos está associado ao processo saúde/doença mental, combinado com o envolvimento com as questões religiosas, o que sugere que essa é uma área que demanda investigação. Independentemente das relações que se estabelecem, compreende-se que as escolhas e expressões religiosas devem ser respeitadas quando esse é o desejo do paciente, em respeito à fé individual (PARGAMENT; LOMAX, 2013PARGAMENT, K. I.; LOMAX, J. W. Understanding and addressing religion among people with mental illness. World Psych., Londres, v. 12, n. 1, p. 26-32, fev. 2013.).

Para a enfermagem, o desafio está em abordar essa temática considerando os conceitos de religião, religiosidade e espiritualidade, visto que os demais conceitos envolvidos são mais tangíveis e estão próximos do universo da profissão (RUDOLFSSON; BERGGREN; SILVA, 2014RUDOLFSSON, G.; BERGGREN, I.; SILVA, A. B. Experiences of spirituality and spiritual values in the context of nursing: an integrative review. The Open Nursing J., Hilversum, v. 6, n. 8, p. 64-70, dez. 2014.; GARCIA; KOENIG, 2013GARCIA, K.; KOENIG, H. G. Re-examining definitions of spirituality in nursing research. J Advan Nursing, Oxford, v. 69, n. 12, p. 2622-2634, dez. 2013.).

O objetivo do estudo foi compreender a percepção de profissionais de saúde, líderes religiosos, pacientes e seus familiares com relação à religião, à religiosidade, à espiritualidade e aos transtornos psiquiátricos.

Métodos

Trata-se de um estudo etnográfico que tem como objetivo a compreensão do comportamento humano inserido em seu contexto cultural. A etnografia é um trabalho descritivo da cultura de um povo ou de um grupo, e a cultura caracteriza o modo de vida desse grupo, incluindo o modo como seus integrantes resolvem seus problemas, comunicam-se, interagem, comem, vestem-se, quais são suas tradições, crenças e costumes. Engloba, também, a compreensão de suas ações e seus sentimentos diante das adversidades. Todos os grupos apresentam um modo constante e complexo de se comportar diante dos eventos que lhes rodeiam (JACKSON, 2003JACKSON, W. Methods. Toronto: Pearson Education, 2003.).

Os informantes do estudo etnográfico devem ser selecionados de acordo com o grau de envolvimento com o fenômeno de interesse do pesquisador. Já o informante-chave é aquele que, além de deter o conhecimento sobre o fenômeno, também conhece as pessoas envolvidas no desenvolvimento do mesmo e em seus desdobramentos (JACKSON, 2003JACKSON, W. Methods. Toronto: Pearson Education, 2003.).

A coleta das informações foi realizada no próprio local de trabalho ou de atuação do sujeito da pesquisa, ou em locais pré-definidos entre pesquisador e colaborador. O instrumento de coleta de dados foi um roteiro de entrevistas onde os colaboradores discorriam sobre o tema de forma livre, por um tempo de 60 a 120 minutos.

As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas. A definição dos colaboradores, a princípio, foi realizada por meio da técnica de bola de neve, na qual um indicava o outro, e assim foi composta a amostra do estudo. Compuseram a amostra 56 pessoas com diagnóstico de transtorno psiquiátrico ou abuso de drogas há mais de 3 anos, com ou sem vivência religiosa/espiritualidade e que estivessem, no momento da entrevista, fora da crise e em tratamento; 35 profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos) que desenvolviam, à época da coleta, atendimento a pacientes psiquiátricos de forma direta, com ou sem algum tipo de vivência religiosa; 46 familiares dos pacientes colaboradores do estudo, com ou sem vivência religiosa/espiritualidade, e que convivessem diretamente com eles; e 12 líderes religiosos (pastores, padres, trabalhadores de centros espíritas, trabalhadores de terreiros de umbanda) que conheciam e conviviam com usuários da saúde mental e seus familiares há, no mínimo, um ano.

A amostra dos estudos etnográficos é formada por um recorte da realidade, onde podemos observar eventos, atividades, informações, documentos, em diferentes momentos, por isso a coleta de dados foi realizada em mais de um momento e, em alguns casos, em diferentes cenários (casa espírita, igreja, residência do colaborador, centro de umbanda, consultório do profissional entrevistado, serviços de saúde) (GERMAIN, 1993GERMAIN, C. P. Ethnography: the method. In: MINHALL, P.; BOYD, C. O. (Org.). Nursing research: a qualitative perspective. New York: National league for nursing, 1993.). Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem do pesquisador principal (nº 31574814.6.0000.5149).

Os dados foram avaliados por meio da análise de conteúdo que compreende: 1. A pré-análise; 2. A exploração do material; e, por fim, 3. O tratamento dos resultados (BARDIM, 2009). Os dados foram tabulados com o uso do software de análise de textos, vídeos, áudios e imagens Web Qualitative Data Analysis (WebQDA). O sistema é organizado em três áreas: 1. Fontes - onde o sistema é alimentado com os dados da pesquisa, organizados de acordo com a necessidade do investigador; 2. Criação de codificação ou categorias - interpretativas ou descritivas; e 3. Questionamento - o investigador cria as dimensões, os indicadores ou as categorias, sejam elas interpretativas ou descritivas, que serão analisadas de acordo com modelos de análise previamente elaborados para cada uma delas (COSTA; LINHARES; SOUZA, 2012COSTA, A. P.; LINHARES, A. P.; SOUZA, F. N. Possibilidade de análise qualitativa no WEBQDA e colaboração entre pesquisadores em educação e comunicação. In: SIMPÓSIO EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO: INFOINCLUSÃO: POSSIBILIDADES DE ENSINAR E APRENDER, 3. Anais... Braga, p. 17-19, set. 2012.).

Neste estudo, foram utilizados os seguintes conceitos: Espiritualidade: algo que transcende o humano, como valores morais e de saúde ligados ao sobrenatural e à religião, e que está além da religião. Inclui a busca do autoconhecimento para transcender, implica fé e devoção (GARCIA; KOENIG, 2013GARCIA, K.; KOENIG, H. G. Re-examining definitions of spirituality in nursing research. J Advan Nursing, Oxford, v. 69, n. 12, p. 2622-2634, dez. 2013.); Religião: "é um sistema comum de crenças e práticas relativas a seres sobre humanos dentro de universos históricos e culturais específicos"; Religiosidade: "é o grau em que um indivíduo acredita, segue, e/ou pratica uma religião" (BEHERE, 2013BEHERE, P. B et al. Religion and mental health. Indian J Psych., Maharashtra, v. 14, n. 4, p. 187-194, jan. 2013., P. 192); Saúde mental:

o bem-estar subjetivo, a auto eficácia percebida, a autonomia, a competência, a dependência Inter geracional e a auto realização do potencial intelectual e emocional da pessoa [...] é algo mais do que a ausência de transtornos mentais. (OMS, 2001ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Relatório sobre a saúde no mundo 2001. Genebra: OMS, 2001., P. 4);

Transtornos mentais:

condições clinicamente significativas caracterizadas por alterações do modo de pensar e do humor (emoções) ou por comportamentos associados com angústia pessoal e/ou deterioração do funcionamento sustentadas ou recorrentes e que resultem em certa deterioração ou perturbação do funcionamento pessoal em uma ou mais esferas da vida. (OMS, 2001ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Relatório sobre a saúde no mundo 2001. Genebra: OMS, 2001., P. 18).

Para fins da apresentação dos resultados, foram agrupados os termos religião, religiosidade e espiritualidade sob a denominação vivência religiosa/espiritualidade. As categorias identificadas foram: 1. A vivência religiosa/espiritualidade como fator que fortalece o indivíduo no enfrentamento da doença; 2. A vivência religiosa/espiritualidade como fator que dificulta o tratamento; 3. Dificuldade do profissional de abordar e lidar com a vivência religiosa/espiritualidade com pacientes e familiares.

Resultados e discussão

Vivência religiosa/espiritualidade como fator que fortalece o indivíduo no enfrentamento da doença

As pessoas com transtornos mentais entrevistadas identificaram que a vivência religiosa/espiritualidade traz um alento para a vida quando associada ao apoio da rede social que se estabelece nas agências religiosas frequentadas por esses indivíduos. Para eles, o fato de não serem vistos como diferentes ou tratados como pessoas doentes também ajuda na lida diária com os sintomas da doença. A vivência religiosa/espiritualidade foi identificada como uma ferramenta de enfrentamento às dificuldades do dia a dia impostas pelas limitações acarretadas por delírios e alucinações, principalmente na relação dessas pessoas com familiares e amigos. Para os entrevistados, ela traz conforto e esperança de dias melhores no seu cotidiano.

Em estudo realizado na Suíça com pacientes esquizofrênicos, após três anos do diagnóstico, a religião foi compreendida como uma forma de enfrentar o adoecimento ou de se manter passivo diante do mesmo. Independentemente da forma como ela foi utilizada, os participantes do estudo consideraram a religião um recurso vital e adaptativo para sua condição de vida e sua relação com os processos de adoecimento e tratamento, tais como a autorregulação, o apego, o conforto emocional, o significado e a espiritualidade. Foi observado que os indivíduos do estudo puderam autorregular seus sintomas quando se sentiam seguros e amparados por um ser divino e apresentavam menos sintomas negativos, melhor funcionamento social e, consequentemente, melhor qualidade de vida. A religião pode ser utilizada como recurso de apoio para o indivíduo pelo sentimento de pertença ao grupo religioso, e o contrário também se dá quando esse é visto como alguém possuído por alguma entidade do mal - daí advém o sentimento de isolamento e a busca de apoio e conforto espiritual em Deus (PARGAMENT; LOMAX, 2013PARGAMENT, K. I.; LOMAX, J. W. Understanding and addressing religion among people with mental illness. World Psych., Londres, v. 12, n. 1, p. 26-32, fev. 2013.).

O fato de frequentar um espaço religioso também foi visto pelos entrevistados como fator protetor para o desencadeamento da crise. Os usuários da saúde mental apontaram que a relação com os líderes religiosos tem papel fundamental no momento de avaliar se estão ou não 'entrando' em crise. É a eles que essas pessoas se reportam em primeiro plano quando identificam que há algo de errado com seus pensamentos ou ações do dia a dia. Em geral, esses líderes indicam que um serviço de apoio em saúde seja procurado o mais rápido possível e, em alguns casos, correntes de oração, trabalhos espirituais e novenas em sua intenção para ajudar naquele momento de dificuldade.

A religião atribui significado à experiência de adoecimento. Com relação aos sintomas, propriamente, estudos apontam que pacientes com delírios místicos ou religiosos e alucinações auditivas com conteúdo religioso encontraram nos representantes das agências religiosas apoio para compreender e enfrentar as dificuldades impostas pelos sintomas e formas de manejar situações de estresse (PARGAMENT; LOMAX, 2013PARGAMENT, K. I.; LOMAX, J. W. Understanding and addressing religion among people with mental illness. World Psych., Londres, v. 12, n. 1, p. 26-32, fev. 2013.).

A religião influencia a saúde mental por meio de comportamentos e estilo de vida saudáveis, apoio social, sistemas de crenças, estrutura cognitiva, práticas religiosas e expressão saudável do estresse gerado pelo adoecimento (KIM; HUH; CHAE, 2015KIM, N. Y.; HUH, H. J.; CHAE, J. H. Effects of religiosity and spirituality on the treatment response in patients with depressive disorders. Comprehensive Psych., Nova York, v. 4, n. 1, p. 77-95, jul. 2015. ).

Os profissionais de saúde entrevistados identificaram a religião como um fator que contribui para a saúde mental do indivíduo quando ela se apresenta como um recurso de reinserção social, um espaço de trocas afetivas e um local de apoio social. Alguns profissionais (15) apontam que pacientes com vivência religiosa/espiritualidade usavam menos medicação e tinham melhor qualidade de vida do que aqueles que não possuíam um sistema de crenças.

A reforma psiquiátrica brasileira e seus pressupostos, entre eles, a reabilitação psicossocial, favorecem essa compreensão por parte dos profissionais de saúde. Embora alguns profissionais se declarassem ateus, a questão da necessidade de apoio social e a possibilidade de encontrá-lo nos ambientes religiosos foi identificada nos discursos de todos os entrevistados.

Estudo comparando a cultura norte-americana e a do Reino Unido afirma que não há diferença quando se relaciona prevalência de transtornos mentais entre pessoas religiosas ou não, e assinala que a religiosidade/espiritualidade está associada a uma melhor saúde mental. Entre os 7.403 participantes do estudo, 35% tinham uma compreensão religiosa da vida, professavam uma religião; 19% consideravam ter uma vida espiritual; e 46% não tinham religião ou cultivavam uma vida espiritual. Entre as pessoas que não eram religiosas nem tinham uma vida espiritual, 73% já haviam tido alguma experiência com drogas na vida, 56% afirmaram que comiam mal e 95% queixaram-se de ansiedade e fobia ou apresentaram algum transtorno neurótico. Também foi observado que esse grupo utilizava mais medicação psicotrópica quando comparado com os que professavam alguma religião ou afirmavam ter uma vida espiritual. A pesquisa aponta que, sem uma crença, fé ou interesse religioso, esses indivíduos ficam vulneráveis no sentido de não pertencerem a um grupo social, não tendo, portanto, o apoio desse grupo quando necessitam (SMOLAK , 2013SMOLAK, A. et al. Social support and religion: mental health service use and treatment of schizophrenia. Community Mental Health J., Lexington, v. 49, n. 4, p. 444-450, ago. 2013.).

Para os familiares e líderes religiosos entrevistados, a vivência religiosa/espiritualidade é importante quando o paciente consegue separar 'o que é da doença e o que não é'; aproxima o paciente da família e do grupo religioso, protegendo-o de situações de risco; proporciona melhor convívio familiar e contribui para que o paciente siga o tratamento corretamente.

Estudo realizado na Coreia do Sul, com 235 pacientes ambulatoriais com transtornos depressivos, ao avaliar o quadro clínico dos pacientes associando dados, como estado civil, tempo de tratamento e gravidade da doença com maior ou menor grau de importância para religião e espiritualidade, a partir da Clinical Global Impression - Improvement Scale (CGI-I), observou melhores respostas ao tratamento medicamentoso utilizado (SMOLAK ., 2013SMOLAK, A. et al. Social support and religion: mental health service use and treatment of schizophrenia. Community Mental Health J., Lexington, v. 49, n. 4, p. 444-450, ago. 2013.).

Apesar da diversidade religiosa em nosso País, observa-se que, independentemente da vivência religiosa/espiritualidade dos indivíduos, há implicações maiores no que tange à questão em estudo. O envolvimento com o tratamento, com grupos sociais e familiares e o sentimento de pertença e segurança geram ambientes propícios para melhor qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares.

Vivência religiosa como fator que dificulta o tratamento

Neste estudo, os pacientes e familiares entrevistados evidenciam que a religião se torna algo prejudicial quando usuários e familiares, em nome da vivência religiosa/espiritualidade que professam, negam a necessidade de tratamento para os transtornos mentais. Compartilham desse pensamento os profissionais de saúde que veem nesse momento a religião como algo que desequilibra os pacientes e desestabiliza suas relações sociais, dificultando o tratamento.

Para as pessoas com transtornos mentais entrevistadas, atividades religiosas que as expõem publicamente como alguém possuído por uma entidade do mal ou algo correlacionado geram sofrimento e constrangimento, o que contribui para o isolamento social. A partir desse momento, eles identificaram que os sintomas se agravavam e que, quando essa situação não é rapidamente resolvida ou amenizada, o quadro agudo se instala.

Estudo na Inglaterra, com 7.403 pessoas, examinou a associação entre a compreensão espiritual ou religiosa da vida e os sintomas e diagnósticos psiquiátricos. O estudo indica que pessoas com uma compreensão espiritual da vida tiveram melhor saúde mental do que aquelas que não adotavam uma vida nem religiosa nem espiritual (AGORASTOS; DEMIRALAY; HUBER, 2014AGORASTOS, A.; DEMIRALAY, C.; HUBER, C. G. Influence of religious aspects and personal beliefs on psychological behavior: focus on anxiety disorders. Psych Res Behav Manag., Auckland, v. 7, n. 23, p. 93-101, mar. 2014.).

Os familiares não religiosos que colaboraram com a pesquisa apontam que seus membros portadores de transtornos mentais, quando apresentam envolvimento ativo em atividades de cunho religioso, que se caracterizam como fanatismo, em geral, têm crises mais frequentes, com manifestações e discursos de cunho religioso. Isso é percebido como prejudicial para as relações familiares, pois eles atribuem o adoecimento ao não envolvimento da família com vivência religiosa/espiritualidade.

Os profissionais citam que em alguns momentos os pacientes atribuem a piora do quadro clínico a causas externas, de cunho espiritual, e que nesses casos eles não se responsabilizam pelo tratamento, aguardando uma solução divina. Quando há compreensão da família de que a vivência religiosa do paciente está interferindo no tratamento, inicia-se um conflito onde o ponto mais vulnerável é o paciente, que assume posição central entre o que defende o líder religioso e o que pensa a família.

A família nesse momento deve ser acionada com o paciente para que estratégias sejam oportunizadas na resolução do conflito. É imprescindível compreender a importância da família como protagonista no tratamento do sujeito em sofrimento mental. A inclusão da pessoa com transtorno mental no planejamento do que é melhor para a sua vida responsabiliza e envolve esse sujeito no processo de tomada de decisões, o que possibilita assumir um papel ativo na condução do tratamento.

Para os líderes religiosos, apesar de identificarem que alguns casos de transtornos mentais estão intimamente ligados a questões espirituais, portanto, fora da esfera da saúde, o tratamento de saúde deve ser realizado concomitantemente. Não foi identificada nos discursos dos líderes religiosos proscrição ao tratamento conduzido pelos profissionais de saúde.

Revisão realizada a partir de 43 publicações entre os anos 2000 e 2010 sobre apoio social e religião aponta que curandeiros, clérigos, profissionais de saúde mental, membros da família, parentes, cuidadores primários e pessoas em geral atribuem como fatores causais para a esquizofrenia: 1) Feitiçaria (incluindo magia negra, maldições, olho mau, enfeitiçamento); 2) Punição de Deus (incluindo ira divina, vontade de Deus); 3) Posse (incluindo intrusão de espírito e exorcismo); 4) Espíritos malignos; 5) Cósmica (incluindo o destino/predestinação, horóscopo desfavorável, o mal feito na vida anterior, desequilíbrio de yin e yang e influências planetárias); 6) Falta de fé ou fé equivocada; 7) Antepassados (comunicação e antepassados irritados); e 8) Fator não especificado (entrevistado declarou que as atribuições de causalidade foram de ordem sobrenatural). O estudo também aponta que a religião tem papel fundamental no manejo da esquizofrenia quando se considera o apoio social, sentimento de pertença a um grupo, fé, crença em uma força superior que pode salvar o indivíduo do mal que o acomete. É importante citar que, apesar dessa compreensão, 5 dos estudos apontam a necessidade de buscar ajuda junto aos profissionais da saúde no que se refere à doença e à tomada de medicação, independentemente da crença; e 10 estudos salientaram que uma abordagem não invalida a outra (LEDFORD ., 2015LEDFORD, C. J. W. et al. Differences in physician communication when patients ask versus tell about religion/spirituality: a pilot study. Psych Res. Behav. Manag., Auckland, v. 47, n. 2, p. 138-142, fev. 2015.).

Toda vivência religiosa/espiritualidade tem seu sistema de crenças, por isso, é importante conhecê-lo para identificar se interfere de forma positiva ou não no tratamento das pessoas com transtornos psiquiátricos e para intervir, se necessário. Diante da inserção do usuário da saúde mental em diferentes cenários, que não apenas na rede de atenção de cuidados, é importante ouvir o que pensam a família e os líderes religiosos a respeito do tema, considerando-os como parceiros importantes na rede social de apoio do paciente.

Dificuldades do profissional para abordar e lidar com a vivência religiosa/espiritualidade com pacientes e familiares

Para os profissionais de saúde entrevistados, abordar o tema da vivência religiosa/espiritualidade com seus pacientes foi identificado como um problema quando eles têm que lidar com os desdobramentos dessa abordagem. Alguns profissionais (26) relataram que não abordam o tema por achá-lo irrelevante. Por fim, há uma compreensão dos profissionais de que a vivência religiosa/espiritualidade é importante para alguns pacientes e familiares, mas isso não implica que o profissional deva se envolver com essa questão.

A pesquisa sugere que os pacientes têm necessidades espirituais que devem ser identificadas e tratadas, mas que, em geral, profissionais de saúde mental não se sentem confortáveis diante do tema.

Na presença de psicopatologia, a religião pode contribuir para a produção dos sintomas. Em outros casos, ela pode integrar o paciente na sociedade ou motivá-lo a procurar tratamento, porém, pode dificultar o tratamento, quando proíbe a psicoterapia ou o uso da medicação (KIM; HUH; CHAE, 2014; COOK, 2015COOK, C. C. H. Religious psychopathology: the prevalence of religious content of delusions and hallucinations in mental disorder. Intern J Social Psych., Londres, v. 61, n. 4, p. 404-425, jun. 2015.).

Durante parte do século XX, profissionais de saúde mental negavam os aspectos religiosos da vida humana e consideravam tal dimensão como um aspecto patológico da doença. No entanto, estudos epidemiológicos realizados nas últimas décadas têm mostrado que a religiosidade continua a ser um aspecto importante da vida humana e que, geralmente, tem uma associação positiva com boa saúde mental (KIM; HUH; CHAE, 2014).

Três profissionais relataram casos em que, ao abordarem a questão da vivência religiosa/espiritualidade, verificaram que os pacientes modificaram a relação com o tratamento. Nesses casos, além do tratamento convencional, os pacientes realizaram tratamentos espirituais, com melhora geral do quadro clínico. Os profissionais declararam que, de forma geral, desconhecem o tema, mas que, entre eles, às vezes, o tema surge em conversas informais sobre casos interessantes em que pacientes, após tratamentos espirituais, não tiveram mais crises.

Um profissional relatou que, após o tratamento espiritual de um paciente que acompanhava há muitos anos, percebeu que o conteúdo dos seus delírios e das alucinações passou a ter um cunho religioso. Esse profissional avaliou que, nesse caso, a relação com o paciente também se modificou, pois, com o tempo, o paciente deixou de informar sobre sintomas dessa natureza por acreditar que essa informação poderia ser usada contra ele.

Os temas religiosos, comumente encontrados em delírios e alucinações associados a transtornos mentais, foram objeto de um estudo que buscou estabelecer a frequência de ocorrência de delírios e alucinações de cunho religioso e sua inter-relação. O estudo concluiu que são necessários critérios de pesquisa mais claros para facilitar o estudo dessas relações, mas indica que nem sempre os pacientes se sentem livres para comentar com os psiquiatras seus sintomas religiosos, com medo de serem mal interpretados e ter seu tratamento modificado (ALMEIDA; KOENIG; LUCCHETTI, 2014ALMEIDA, A. M.; KOENIG, H. G.; LUCCHETTI, G. Clinical implications of spirituality to mental health: review of evidence and practical guidelines. Rev Bras Psiquiatr., São Paulo, v. 3, n. 6, p. 543-557, abr./jun. 2014.).

Entre os profissionais de saúde que relataram não abordar o tema com seus pacientes e familiares, nove se declararam ateus e acham que a vivência religiosa/espiritualidade não interfere no processo de adoecimento ou no tratamento. Quando percebem que o paciente ou familiar quer falar a respeito do tema, mudam de assunto ou ignoram a informação.

Estudo desenvolvido para avaliar o grau de religiosidade e espiritualidade de 99 psiquiatras alemães concluiu que quanto mais religiosos eram, mais consideravam a religião e a espiritualidade como algo benéfico na compreensão da doença e no tratamento do paciente, articulando tratamento convencional com apoio religioso e espiritual (LEDFORD ., 2015LEDFORD, C. J. W. et al. Differences in physician communication when patients ask versus tell about religion/spirituality: a pilot study. Psych Res. Behav. Manag., Auckland, v. 47, n. 2, p. 138-142, fev. 2015.).

Autores divergem sobre até que ponto o terapeuta pode se envolver com o paciente sem colocar em risco o tratamento. Eles apontam que, apesar de a oração ser um fator de conforto e esperança para os pacientes, não há consenso se o médico deve manter uma posição neutra com relação às inclinações, crenças religiosas e espirituais dos pacientes sob o risco de violar sua individualidade e integridade, ou se ele deve defender e incentivar a vivência religiosa/espiritualidade (ALMEIDA; KOENIG; LUCCHETTI, 2014ALMEIDA, A. M.; KOENIG, H. G.; LUCCHETTI, G. Clinical implications of spirituality to mental health: review of evidence and practical guidelines. Rev Bras Psiquiatr., São Paulo, v. 3, n. 6, p. 543-557, abr./jun. 2014.).

As pesquisas assinalam que, entre as especialidades médicas, os psiquiatras são os menos religiosos, o que gera tensões entre médicos, pacientes e líderes de comunidades religiosas quando há divergências quanto à compreensão do tema (PARGAMENT; LOMAX, 2013PARGAMENT, K. I.; LOMAX, J. W. Understanding and addressing religion among people with mental illness. World Psych., Londres, v. 12, n. 1, p. 26-32, fev. 2013.).

Os profissionais de saúde que abordaram a questão (nove) eram pessoas com vivência religiosa/espiritualidade regular e que consideravam que esse tema deve ser pauta no momento da consulta e no planejamento do projeto terapêutico. Para eles e para os familiares com vivência religiosa/espiritualidade, é necessário integrar as abordagens física e espiritual em benefício do paciente e da qualidade de vida dessa pessoa.

Alguns princípios gerais devem ser seguidos para avaliar questões como espiritualidade e religiosidade em pessoas com transtornos mentais, como limites éticos, abordagem centrada na pessoa, contratransferência, interesse genuíno, respeito às crenças dos pacientes, valores e experiências (BEHERE, 2013BEHERE, P. B et al. Religion and mental health. Indian J Psych., Maharashtra, v. 14, n. 4, p. 187-194, jan. 2013.).

Entre os profissionais entrevistados, há uma queixa recorrente com relação à formação acadêmica, durante a qual esse assunto não é abordado, e não há parâmetros para avaliar se esse envolvimento é benéfico ou não para a relação terapêutica. Para pacientes e familiares, o profissional, em geral, não se importa com a questão.

As vivências religiosas/espiritualidade dos pacientes psiquiátricos podem ser um tema negligenciado no momento da consulta. Talvez esse fato esteja ligado à falta de estudos sobre a forma como tais questões podem ser abordadas na prática psiquiátrica. Para alguns autores, é importante que se pergunte sobre o quanto a fé e a religião são importantes na vida dos indivíduos, caracterizando, assim, a história espiritual dos mesmos (ALVES ., 2010ALVES, R. R. N. et al. The influence of religiosity on health. Cienc. Saude Colet., Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 2105-2111, jun./jul. 2010. ; PARGAMENT; LOMAX, 2013PARGAMENT, K. I.; LOMAX, J. W. Understanding and addressing religion among people with mental illness. World Psych., Londres, v. 12, n. 1, p. 26-32, fev. 2013.).

A dificuldade de pesquisar a área e definir limites e relações entre saúde, doença, religião, religiosidade e espiritualidade é multifatorial, pois esses são fenômenos multidimensionais, e nenhum fato pode explicar completamente suas ações e consequências. A combinação de crenças, comportamentos e ambiente promovida pelo envolvimento religioso, provavelmente, age para determinar os efeitos sobre a saúde de pessoas religiosas. No entanto, estudos empíricos têm tido sucesso limitado quando se propõem mensurar os mecanismos psicossociais envolvidos nessa relação e seus efeitos na promoção da saúde (BEHERE, 2013BEHERE, P. B et al. Religion and mental health. Indian J Psych., Maharashtra, v. 14, n. 4, p. 187-194, jan. 2013.).

Para os pacientes falarem sobre suas vivências religiosas/espiritualidade, depende da relação que existe entre eles e o profissional que os acompanha. Com alguns profissionais, eles se sentem seguros para explorar a questão, já com outros, têm a impressão de que não são ouvidos ou que terão sua medicação aumentada. Após relatarem suas experiências, crenças e valores a respeito do tema, eles sentem medo de não serem cuidados pelos profissionais.

Ao estudar a relação espiritualidade, valores espirituais e enfermagem, observa-se que a espiritualidade, quando relacionada aos cuidados de enfermagem, pode ser confundida com cuidado por parte do enfermeiro com o paciente (GARCIA; KOENIG, 2013GARCIA, K.; KOENIG, H. G. Re-examining definitions of spirituality in nursing research. J Advan Nursing, Oxford, v. 69, n. 12, p. 2622-2634, dez. 2013.).

Um profissional relatou que visitou um serviço fora do País onde se congregavam tratamentos espirituais e convencionais. Segundo ele, essa visita modificou a sua forma de pensar e abordar essa questão, e agora ele discute o tema com os pacientes e os incentiva a buscar apoio em suas crenças e valores espirituais.

Crenças espirituais e religiosas são comuns em todo o mundo, sendo que pelo menos 90% da população mundial está atualmente envolvida em alguma forma de prática religiosa ou espiritual. Há evidências consistentes de que a religiosidade e a espiritualidade desempenham um papel importante em vários aspectos da vida, especialmente na saúde mental.

Diante dessa evidência, organizações profissionais, como a American College of Physicians, a American Medical Association, a American Nurses Association e a Comissão Conjunta sobre a Acreditação de Organizações de Saúde Americana, reconhecem que o cuidado espiritual é um componente importante dos cuidados de saúde e que os profissionais de saúde devem integrá-lo na prática clínica no que se refere à saúde mental. Independentemente das relações que se estabelecem entre saúde, religião e doença, compreende-se que a vivência espiritual ou religiosa deve ser motivada quando é desejo do paciente, respeitando-se a fé individual de cada um (ALMEIDA; KOENIG; LUCCHETTI, 2014ALMEIDA, A. M.; KOENIG, H. G.; LUCCHETTI, G. Clinical implications of spirituality to mental health: review of evidence and practical guidelines. Rev Bras Psiquiatr., São Paulo, v. 3, n. 6, p. 543-557, abr./jun. 2014.; GARCIA; KOENIG, 2013GARCIA, K.; KOENIG, H. G. Re-examining definitions of spirituality in nursing research. J Advan Nursing, Oxford, v. 69, n. 12, p. 2622-2634, dez. 2013.).

Considerações finais

Observa-se que os dados da pesquisa corroboram a produção científica na área, embora apresentem os limites do contexto cultural na qual ela foi desenvolvida. Percebe-se que os discursos dos colaboradores da pesquisa se entrelaçam em diferentes momentos, ora se aproximando de um consenso com relação ao tema, ora se distanciando, e que, mesmo quando divergentes, complementam-se.

Os resultados apontam avanços na percepção e na compreensão do tema pelos atores envolvidos no estudo. Alguns avanços e recuos podem ser identificados, entre eles, a necessidade de pesquisas com grupos em contextos específicos; a criação e a validação de instrumentos para mensurar até quando as vivências religiosas/espiritualidade podem ser benéficas ou não no tratamento dos transtornos mentais, já que os existentes foram desenvolvidos e validados em contextos que nem sempre expressam a coletividade, e existe a necessidade expressa do profissional de saúde de ter um parâmetro para avaliar essa interface.

Destaca-se a necessidade de pesquisar e discutir como e o que fazer para sensibilizar o profissional de saúde sobre o tema e de como lidar com as tensões entre os atores envolvidos quando há divergência entre a compreensão do mesmo. O estudo, apesar de suas limitações, ouviu os atores envolvidos na questão e, a partir dessa escuta, sugere uma nova perspectiva para as pesquisas na área.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    Out 2015
  • Aceito
    Jun 2016
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