Desafios da comunicação em Unidade de Terapia Intensiva Neonatal para profissionais e usuários

Carla Andréa Costa Alves de Campos Luciano Bairros da Silva Jefferson de Souza Bernardes Andressa Laiany Cavalcante Soares Sonia Maria Soares Ferreira Sobre os autores

RESUMO

Comunicar notícias com sensibilidade é competência dos profissionais de saúde. Para analisar falas de profissionais e familiares de internos da Unidade de Terapia Intensiva Neonatal de um Hospital Universitário, foi realizada pesquisa qualitativa tendo como instrumentos entrevistas e Roda de Conversa, norteados pelo protocolo SPIKES. As categorias produzidas foram analisadas por meio das Práticas Discursivas e Produção de Sentidos. Os resultados evidenciaram ambiência desumanizada; sobrecarga de serviço; ausência de local e falta de treinamento para comunicar notícias e apontam a importância de valorizar a comunicação em saúde para melhorar a qualidade do trabalho e relações interpessoais.

PALAVRAS-CHAVE
Comunicação; Notícias; Unidade de Terapia Intensiva Neonatal

Introdução

Comunicação pode ser compreendida como um conjunto de ações, incluindo comportamentos verbais e não verbais usados nas relações entre as pessoas. Não se reduz, portanto, ao ato de falar simplesmente. Comunicação é relação (SILVA, 2012SILVA, M. J. P. Comunicação de más notícias. Artigo de Revisão. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 49-53, 2012.). É a partir e por meio da relação com o outro que o ser humano se torna humano (GUARESCHI, 2007GUARESCHI, P. A. Relações comunitárias relações de dominação. In: CAMPOS, R. H. F. (Org.). Psicologia Social Comunitária. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 81-99.).

Com relação à comunicação de notícias em Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (Utin), para comunicar bem, exige-se que o profissional de saúde reconheça a importância desse ato e tenha preparo e sensibilidade, especialmente quando necessita comunicar más notícias. Algumas vezes, dispor-se ao lado de uma pessoa, mesmo que em silêncio, pode comunicar mais que muitas palavras (SILVA, 2012SILVA, M. J. P. Comunicação de más notícias. Artigo de Revisão. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 49-53, 2012.). A comunicação é a palavra-chave na formação de profissionais e nas práticas de trabalho em equipe, na busca de consensos para construção de projetos em prol dos usuários (PEDUZZI, 2001PEDUZZI, M. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 103-9, 2001.).

Buckman (1984)BUCKMAN, R. A. Breaking bad news: why is it still so difficult? British Medical Journal, Londres, v. 288, n. 6430, p. 1597-1599, 1984. sugeriu que a comunicação de notícias difíceis aos pacientes é uma habilidade, e 'não um dom divino', e que pode ser ensinada e compreendida por todos, como parte vital do trabalho de cuidar dos doentes.

O mesmo autor e colaboradores propõem um protocolo com seis passos estratégicos, com o objetivo de orientar o profissional da saúde no momento da comunicação, denominando-o protocolo SPIKES, um dos mais didáticos para comunicar más notícias (BAILE , 2000BAILE, W. F. et al. SPIKES - a six-step protocol for delivering bad news: application to the patient with cancer. The Oncologist, Dayton, v. 5, n. 4, p. 302-311, 2000.; BUCKMAN, 2005______. Breaking bad news: the S-P-I-K-E-S strategy. Community Oncology, Nova Jersey, v. 2, n. 2, p. 138-142, 2005.):

  1. Setting - começar adequadamente, preparando o ambiente, como, o que e quem deve estar presente, ou seja, o início propriamente dito, incluindo atitudes cordiais normais;

  2. Perception - percepção do quanto o paciente sabe sobre sua doença;

  3. Invitation - convite para descobrir o quanto o paciente quer saber;

  4. Knowledge - passar o conhecimento, compartilhar a informação;

  5. Emphaty - empatia para responder aos sentimentos do paciente;

  6. Strategy e summary - estratégia para combinar o planejamento terapêutico do paciente.

Não existe regra única para uma comunicação adequada, tampouco um único modelo para toda situação. A eficácia do processo de comunicar má notícia depende da sensibilidade e flexibilidade para adequar uma técnica profissional para cada circunstância, dependendo dos contextos cultural, social, educacional e familiar (SILVA, 2012SILVA, M. J. P. Comunicação de más notícias. Artigo de Revisão. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 49-53, 2012.).

Vale lembrar que a comunicação é uma das competências preconizadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação de Medicina no Brasil (BRASIL, 2014). A partir da relação entre os sujeitos, há a produção de um vínculo, essencial para efetivar a humanização, isto é, um processo de ligação afetiva e ética entre profissionais, usuários e gestores, que promove uma convivência de apoio e cuidado mútuos (BRASIL, 2004BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 2014. Disponível em: <http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/resolucao-dcn-2014.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016.
http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/r...
, 2013______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013. ).

O Ministério da Saúde (BRASIL, 2013______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013. ), por meio da Política Nacional de Humanização (PNH) e do HumanizaSUS (BRASIL, 2004BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 2014. Disponível em: <http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/resolucao-dcn-2014.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016.
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), reforça a importância do acolhimento dentro das Utins, sendo esse, a ferramenta-chave da PNH para efetivar a humanização, valorizando o vínculo e a aceitação das diferenças entre os envolvidos, como meio de inclusão social, sem esquecer do cuidado com os profissionais da saúde, a educação continuada desses profissionais e o apoio dos gestores que fazem parte do tripé da PNH da saúde: usuários, profissionais e gestores.

No entanto, são frequentes as dificuldades vivenciadas pelas equipes de saúde em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), como: o estresse de lidar com a morte e com as famílias, a escassez de recursos materiais e humanos, a falta de união e de comprometimento de alguns membros, levando a sensações de fracasso, cansaço e desânimo (LEITE; VILA, 2005LEITE, M. A.; VILA, V. S. C. Dificuldades vivenciadas pela equipe multiprofissional na unidade de terapia intensiva. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 13, n. 2, p. 145-150, 2005.).

Tudo o que se transmite ao outro não representa somente informação, mas principalmente o sentimento que ela consegue mobilizar, especialmente quando se fala de saúde e doença ou de vida e morte. Não há como fugir, faz parte da vida dar e receber notícias boas e difíceis (SILVA, 2012SILVA, M. J. P. Comunicação de más notícias. Artigo de Revisão. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 49-53, 2012.).

Apesar das inovações tecnológicas em saúde, a comunicação permanece sendo uma ferramenta de trabalho desafiadora e indispensável para os profissionais da área. Dessa forma, esta pesquisa teve como objetivo analisar as falas de profissionais de saúde e familiares de internos de uma Utin relativas à produção da comunicação de notícias, em um Hospital Universitário, na região Nordeste, Brasil.

Diante da relevância e da importância da comunicação na Utin, justifica-se analisar como são produzidas as notícias nesse ambiente, sob a observação das conversas com a equipe multiprofissional e os familiares de neonatos internados, visando à redução do sofrimento de todos os envolvidos.

Métodos

Esta pesquisa qualitativa (MINAYO, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.), foi desenvolvida em uma Utin de um Hospital Universitário, da região Nordeste, Brasil. Na época possuía 10 leitos de internação para recém-nascidos, frequentemente ocupados, pois era única Utin pública disponível para partos de risco no estado. A equipe de profissionais de saúde exclusiva da Utin estava composta por: 13 médicos pediatras, 10 médicos residentes de pediatria, 9 enfermeiras, 3 enfermeiras residentes, 22 técnicos de enfermagem e 1 fisioterapeuta, distribuídos de acordo com a carga horária de cada profissional em escalas de plantão de 6 ou 12 horas. Geralmente o plantão dispunha de 1 médico, 1 enfermeira e 3 técnicos de enfermagem. A assistente social e a psicóloga não atendem exclusivamente à Utin.

Foram convidados a participar da pesquisa: profissionais da equipe de saúde da referida Utin e familiares de recém-nascidos internos nesta. Buscou-se a proporcionalidade entre o número de participantes, de leitos disponíveis e das categorias profissionais. Tendo como base os 10 leitos disponíveis na Utin, aceitaram participar 10 familiares de internos e 10 profissionais da equipe de saúde, sendo a quantidade de cada área de atividade profissional na pesquisa proporcional a quantidade na equipe, ou seja, como na equipe há maior número de técnicos de enfermagem, nesta pesquisa, essa categoria também teve um número maior de participantes.

Em razão da dificuldade de encontrar horários comuns entre os profissionais da equipe da Utin, estes foram convidados individualmente e levados para ambiente reservado, garantindo o anonimato e o sigilo da participação. Pensou-se, no início, em realizar Roda de Conversa com a equipe multiprofissional, assim como realizada com os familiares, no entanto, por meio da observação participante da pesquisadora, notou-se que seria pouco viável agrupar a equipe em um único momento.

Foram realizadas 10 entrevistas semiestruturadas, com uso de roteiro com perguntas norteadoras, construído a partir das etapas presentes no protocolo SPIKES, (BAILE 2000BAILE, W. F. et al. SPIKES - a six-step protocol for delivering bad news: application to the patient with cancer. The Oncologist, Dayton, v. 5, n. 4, p. 302-311, 2000.), apresentado na introdução deste artigo e utilizado para auxiliar o profissional de saúde na comunicação de más notícias.

Os 10 familiares que participaram acompanhavam pacientes recém-nascidos em diferentes estágios de diagnóstico e períodos de internação. Eles foram convidados a uma Roda de Conversa, em ambiente reservado, com 2 horas de duração. As Rodas de Conversas são ferramentas para abertura à interação social, permitindo aos grupos produzirem novos sentidos sobre suas práticas, teorias e crenças (SPINK; MENEGON; MEDRADO, 2014SPINK, M. J.; MENEGON, V. M.; MEDRADO, B. Oficinas como estratégia de pesquisa: articulações teórico-metodológicas e aplicações ético-políticas. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 32-43, 2014.; BERNARDES , 2015BERNARDES, J.; SANTOS, R. G. A.; SILVA, L. B. A Roda de Conversa como dispositivo ético-político na pesquisa social. In: LANG, C. E. et al. (Org.). Metodologias: pesquisas em saúde, clínica e práticas psicológicas. Maceió: Edufal, 2015.).

Para a Roda de Conversa, foi utilizado um roteiro com perguntas norteadoras, também inspiradas no protocolo SPIKES (BAILE , 2000BAILE, W. F. et al. SPIKES - a six-step protocol for delivering bad news: application to the patient with cancer. The Oncologist, Dayton, v. 5, n. 4, p. 302-311, 2000.), as quais não precisaram ser feitas, pois os participantes dialogaram sobre elas de maneira voluntária e informal durante a Roda de Conversa. Ao final, foi solicitada avaliação do grupo sobre a atividade que participaram. Todas as falas fizeram parte do material de análise.

Roteiro com as perguntas norteadoras para as entrevistas e Roda de Conversa:

Com relação à primeira letra do protocolo SPIKES, o S, correspondente ao termo Setting (ambiente):

Para os profissionais: Você usa ambiente adequado para dar notícias?

Para os familiares: Qual local do hospital você é chamado para receber notícias? Você considera este local ideal, certo, apropriado?

Com relação à quinta letra, o E, correspondente ao termo Emphaty (empatia):

Para os profissionais: Você usa alguma estratégia para comunicar notícias?

Para os familiares: Com qual profissional você se considera mais à vontade para tirar suas dúvidas?

As entrevistas semiestruturas e a Roda de Conversa foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas na íntegra. Durante a realização da pesquisa, a equipe fez uso do Diário de Campo (DIEHL; MARASCHIN; TITTONI, 2006DIEHL, R.; MARASCHIN, C.; TITTONI, J. Ferramentas para uma psicologia social. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p. 407-415, 2006.), que foi produzido para registro das observações, conversas e acontecimentos. O Diário de Campo possibilitou perceber o percurso da equipe de pesquisa, seus caminhos e interações. O olhar atento fez parte das atividades desenvolvidas e auxiliou o material de análise. Por fim, a escrita do Diário foi incorporada ao cotidiano das atividades dos pesquisadores.

Para a análise das entrevistas e da Roda de Conversa, foi utilizado o referencial teórico-metodológico das Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano (SPINK; LIMA, 1999SPINK, M. J.; LIMA, H. Rigor e Visibilidade: a explicitação dos passos da interpretação. In: SPINK, M. J. P. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999.; SPINK, 2004SPINK, M. J. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.), que centra a análise na linguagem em uso. Nesse referencial, parte-se das formas como os sujeitos falam de seu cotidiano, em busca dos sentidos produzidos a partir daí. Utilizando-se do material transcrito, foram produzidos Mapas Dialógicos (NASCIMENTO; TAVANTI; PEREIRA, 2014NASCIMENTO, V. L. V.; TAVANTI, R. M.; PEREIRA, C. Q. O uso de mapas dialógicos como recurso analítico em pesquisas científicas. In: SPINK, M. J. et al. (Org.). A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2014. p. 247-272.), por meio da transcrição integral (SPINK; LIMA, 1999SPINK, M. J.; LIMA, H. Rigor e Visibilidade: a explicitação dos passos da interpretação. In: SPINK, M. J. P. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999.).

A partir dos Mapas Dialógicos, produziram-se os Repertórios Linguísticos. Os Mapas Dialógicos são instrumentos criados com o objetivo de garantir a visibilidade da organização das informações, permitindo a todo leitor o acompanhamento sistemático e crítico do produto do trabalho de pesquisa (SPINK; LIMA, 1999SPINK, M. J.; LIMA, H. Rigor e Visibilidade: a explicitação dos passos da interpretação. In: SPINK, M. J. P. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999.). Os Repertórios Linguísticos são ferramentas que tentam associar conteúdos a depender dos contextos. Só se entende o sentido produzido pela fala quando se analisa o contexto mais amplo de perguntas, respostas e intervenções (SPINK, 2004SPINK, M. J. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.). Partindo dos Repertórios Linguísticos, foram produzidas as seguintes categorias de análise: Relações entre os profissionais; e Relações entre profissionais e familiares.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Cesmac, sob Parecer nº 981.561, tendo os participantes assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) antes do início da pesquisa. O anonimato dos participantes foi garantido substituindo-se os nomes dos profissionais e dos pesquisadores por flores e os de familiares por pássaros, porque essas imagens figurativas remetem a encontros e relações, enfim, a produção de comunicação. Foi utilizada a metáfora pássaros e flores não simplesmente para manter o sigilo das falas, mas principalmente na tentativa de harmonizar uma temática tensa. Optou-se por manter as falas e as expressões sem correções gramaticais, para evitar mudanças nos sentidos produzidos.

Resultados e discussão

A análise das falas será apresentada em duas categorias: a primeira trabalha as relações entre os profissionais de diferentes áreas que compõem a equipe de saúde da Utin; na segunda, são discutidas as relações produzidas entre os profissionais e os familiares.

Relações entre os profissionais

Nessa categoria, foram trabalhadas as falas das relações entre os próprios profissionais. Estes identificaram a fragilidade da sua preparação para comunicar notícias e a grande diferença entre a teoria e a prática na rotina profissional.

Os profissionais apontaram que foi atuando em serviço que se depararam com a necessidade de comunicar notícias, somente então criando estratégias para isso. Apresentaram repertório vinculado à falta de treinamento para esse trabalho, tanto para atuar em equipe como para lidar com situações de luto e morte, o que demonstra a necessidade de maior cuidado com a equipe multiprofissional de saúde. Margarida (enfermeira) queixa-se: "... quando se fala de humanizar só se pensa no cliente, mas a nossa equipe é muito sofrida". Gérbera (psicóloga) reclama: "Deveria ter projetos de humanização também para a equipe se sentir acolhida". E Orquídea (fisioterapeuta) completa: "Porque a gente lida com a dor, a gente vê muito sofrimento".

Uma estratégia utilizada pelos trabalhadores para não entrarem em sofrimento é ausentando-se da relação com o outro, a fim de criar proteção, com atitudes de ataque, frieza, insensibilidade e afastamento, mecanização do serviço ou coisificação (SILVA, 2012SILVA, M. J. P. Comunicação de más notícias. Artigo de Revisão. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 49-53, 2012.), como deparou-se Girassol (médica) em sua fala:

pedi ao pai para fazer a necropsia antes da morte do filho, depois me senti péssima com essa insensibilidade. Parecia que eu estava lidando com uma caixa.

Jasmim (técnica de enfermagem) assume: "Eu saio de perto pra não ver dando a notícia".

O exercício profissional com a finalidade de garantir a vida dos recém-nascidos impõe-se ante a falta de treinamento da equipe em lidar com a morte. A experiência de luto, quando falece um recém-nascido, promove nos profissionais a vivência de sentimentos de culpa em situações como essa, assumindo o luto como fracasso técnico, e não como elemento da vida. Em relação a isto, Orquídea (fisioterapeuta) refere: "Sempre me sinto mal após dar notícias ruins".

A competência técnica e a preparação da equipe para humanização devem ser igualmente valorizadas (KOVÁCS, 2005KOVÁCS, M. J. Educação para a morte. Psicologia, Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 25, n. 3, p. 484-497, 2005.). Humanização essa, que muitas vezes não é exercida na prática, pela falta de condições de trabalho necessárias à equipe, que, por sua vez, supervaloriza a técnica sobre as relações interpessoais. Rosa (residente de pediatria) desabafa: "Já deu vontade de ficar longe de dar informações, de se afastar das famílias e fazer só o trabalho técnico".

Entretanto, as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina definem a comunicação como competência profissional, que, por meio de utilização de linguagem compreensível no processo terapêutico, estimula o relato espontâneo da pessoa sob cuidados, tendo em conta os aspectos psicológicos, culturais e contextuais, sua história de vida, o ambiente em que vive e suas relações sociofamiliares, assegurando a privacidade e o conforto (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 2014. Disponível em: <http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/resolucao-dcn-2014.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016.
http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/r...
).

No cotidiano de trabalho das Utins, são frequentes as sensações de desmotivação dos profissionais diante da falta de estrutura e da sobrecarga de trabalho, ocasionando uma série de conflitos, como se refere Papoula (médica) ao seu cotidiano: "a sobrecarga de trabalho é que leva às brigas" e completa: "Não está na rotina dar notícias e se estivesse não daria pra cumprir porque a sobrecarga de trabalho não permite". Embora a comunicação de notícias aos pacientes esteja descrita como competência do profissional médico, a equipe opta por não incluir essa competência no processo de trabalho, a fim de resguardar-se e proteger-se de sofrimentos laborais, físicos e emocionais (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 2014. Disponível em: <http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/resolucao-dcn-2014.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016.
http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/r...
).

De acordo com Silva e Queiroz (2011)SILVA, A. P.; QUEIROZ, E. S. O estresse e sua relação com a jornada de trabalho da enfermagem em unidade hospitalar. NBC, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 33-50, 2011., faz-se necessária a construção de modos de enfrentamento aos estressores, como a sobrecarga de trabalho, a fim de buscar maior entrosamento com a equipe, conhecimento das reais dificuldades do serviço e promover soluções.

Esses conflitos quase sempre são apresentados em torno de processos de comunicação, por exemplo, como diz Jasmim (técnica de enfermagem): "Tem pediatras que não sabem como falar, a forma como se fala, a forma como se pede, isso interfere muito".

Somam-se ainda as desigualdades técnicas e socioeconômicas entre as diferentes categorias profissionais na Utin, que reforçam as relações de subordinação, produzindo relações e disputas de poder em um jardim pequeno e sem manutenção, como referido por Jasmim (técnica de enfermagem):

Tem pediatras que falam como se tivessem falando com a empregada da sua casa. Acham que a gente tá aqui pra obedecê-las e eu sei que a gente tá aqui pra fazer o melhor pelo paciente, não o que ela quer, o que ela manda. Acham que sua opinião tem que ser superior à do outro...

Essas desigualdades dificultam a comunicação entre a equipe e, consequentemente, a relação entre os profissionais, o que também interfere na relação com os usuários.

O trabalho dos profissionais deriva da prática centrada no médico, o que caracteriza os trabalhos como diferentes tecnicamente e mais que isso, desiguais na valorização social e econômica (DUARTE; SENA; XAVIER, 2009DUARTE, E. D.; SENA, R. R.; XAVIER, C. C. Processo de trabalho na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal: construção de uma atenção orientada pela integralidade. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 43, n. 3, p. 647-654, 2009. ). Tulipa (técnica de enfermagem) confirma:

[...] só em pensar que vai trabalhar com determinado médico, a cabeça já fica meio aperreada antes de começar, porque ele já chega reclamando, já chega cobrando [...].

Peduzzi (2001)PEDUZZI, M. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 103-9, 2001. destaca a necessidade dos profissionais de saúde de preservarem as especificidades de cada trabalho, mantendo as diferenças técnicas, porém com flexibilidade da divisão do trabalho. Lírio (assistente social) fala:

Especialmente na área de saúde, ela requer um trabalho em equipe. Cada profissional com sua especificidade dentro da equipe multi tem que se entender como equipe e a questão da interdisciplinaridade, onde entra o saber específico, a particularidade de cada profissional, onde eu vou ter um limite.

Relações entre profissionais e familiares

A respeito das relações entre os profissionais da equipe e os familiares dos internos, houve repertórios indicando o trabalho na Utin, fortemente centrado nos procedimentos, com ausência na rotina cotidiana de momentos para comunicação de notícias e outras relações interpessoais.

Passar informações é diferente de comunicar notícias. Silva (2012)SILVA, M. J. P. Comunicação de más notícias. Artigo de Revisão. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 49-53, 2012. discute a diferença entre dar notícias e comunicá-las, sendo a primeira, determinada por sua isenção de comprometimento por parte de quem passa essas notícias, diferindo da segunda, que exige um envolvimento entre aqueles que comunicam e os que são comunicados.

Essa categoria foi marcada pela fala dos familiares pela ausência de orientação e acolhimento por parte dos profissionais. Tal ausência passa pela falta de orientação, local adequado e flexibilidade na organização e rotina do trabalho.

Entretanto, também há reconhecimento por parte dos familiares quando a comunicação adequada e a orientação levam ao cuidado. Em suma, fica claro nos repertórios utilizados nessa categoria que informar é diferente de comunicar. A comunicação busca sempre a relação com orientação. Sabiá (mãe) fala: "[...] tem umas que têm um relacionamento com a gente, de chegar pra conversar: mãe e aí? Como é que tá?" e Bem-te-vi (avó): "[...] tem as pessoas que eu me dou muito bem, tem umas que conversa mais, que a gente se sente mais à vontade de perguntar".

A falta do acolhimento leva insegurança aos pais (COSTA; KLOCK; LOCKS, 2012COSTA, R.; KLOCK, P.; LOCKS, M. O. H. Acolhimento na Unidade Neonatal: percepção da equipe de enfermagem. Revista Enfermagem UERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 349-353, 2012.). O medo determina submissão nas relações interpessoais na Utin. Como o (a) filho (a) está na incubadora, sob o domínio da equipe de profissionais, as famílias verbalizam tal insegurança e medo por meio de sentimentos de vingança, por exemplo, quando diz Sabiá (mãe): "De repente elas (profissionais) vão ter raiva de você e desconta no seu filho".

Além da insegurança e medo, em função da ausência de orientações, os familiares sentem receio até em tocar seus filhos e não se sentem orientados quanto ao que podem ou não fazer dentro da Utin. Sabiá (mãe): "Eu nunca peguei no meu filho".

Por isso, orientações são fundamentais para evitar sofrimentos desnecessários. Em um diálogo da Roda de Conversa, fica explícito o quanto pode ser difícil para os pais verem seus filhos na Utin e que alguns procedimentos simples para os profissionais são muito complicados de compreender aos olhos dos pais. "[...] elas tavam pocando meu fio com um tubo!" Falcão (mãe). "Pocando?" Violeta (autora). "[...] elas tavam trocando o tubo mulher!" Andorinha (mãe).

Embora não exista uma definição de quem deve comunicar as notícias, os familiares só desejam acessibilidade e disponibilidade de tempo (KOWALSKI et al., 2006KOWALSKI, W. J. et al. Communicating with parents of premature infants: who is the informant? Journal of Perinatology, Filadélfia, v. 26, p. 44-48, 2006.). Tucano (mãe) revela: "[...] a gente procura quem tem mais jeito, não sei se é médico ou enfermeiro". Embora as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina definam que o profissional médico deva estar preparado para comunicação de notícias, esta competência não é exclusiva dessa categoria profissional.

Há familiares que compreendem as dificuldades vivenciadas pelos profissionais na sua difícil rotina laboral, porém exigem o mínimo de cuidado nas relações entre eles. Nesse sentido, os familiares não desconsideram os problemas estruturais e de gestão do trabalho, entretanto exigem seus direitos de acesso e cuidado em saúde. Sabiá (mãe): "Entendo que a senhora trabalha demais, mas também tem que me entender".

Outro repertório presente nas falas foi relativo à flexibilidade na organização do processo de trabalho (DUARTE; SENA; XAVIER, 2009DUARTE, E. D.; SENA, R. R.; XAVIER, C. C. Processo de trabalho na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal: construção de uma atenção orientada pela integralidade. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 43, n. 3, p. 647-654, 2009. ). Os contatos e as relações de afeto não podem ser construídos seguindo uma série de rotinas, mas, sim, produzidos no cotidiano das relações intersubjetivas e superando o esperado ou controlado (FERRAZ; GOMES; MISHIMA, 2004FERRAZ, C. A.; GOMES, E. L. R.; MISHIMA, S. M. O desafio teórico-prático da gestão dos serviços de saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 57, n. 4, p. 395-400, 2004.). Essas relações também são determinadas pelas condições e organizações de trabalho, o que torna a comunicação em saúde mais difícil de ser realizada na prática. Segundo Holz e Bianco (2014)HOLZ, E. B.; BIANCO, M. F. Ergologia: uma abordagem possível para os estudos organizacionais sobre trabalho. Cad. EBAPE.BR, v. 12, n. esp., p. 494-512, 2014., convém, na organização do trabalho, considerar as regras e adaptá-las às situações sempre singulares. Para Trinquet (2010)TRINQUET, P. Trabalho e Educação: o método ergológico. Revista HISTEDBR, Campinas, v. 10, n. esp., p. 93-113, 2010., a gestão coloca-se mais como uma arte do que como uma técnica.

Dessa forma, como consequência do tópico anterior, a ausência de local adequado e a falta de treinamento da equipe para comunicar notícias, parecem interferir negativamente nas relações interpessoais, levando novamente à ausência de cuidados e acolhimentos, por exemplo, quando diz Girassol (médica): "Não existe ambiente adequado para dar notícias".

Há diferença entre passar as informações e comunicar as notícias. Andorinha (mãe): "A gente só ouve: é grave!" O descaso leva aos desencontros, gerando conflitos e piorando a relação interpessoal. Violeta (autora): "O foco tá sendo um duelo entre paciente e médico". Ao ponto de pensarem em agressão física. Andorinha (mãe): "Eu ia dar na médica".

Os pais podem lidar melhor com a morte quando ficam satisfeitos com o cuidado prestado ao seu filho (BROSIG 2007BROSIG, C. L. et al. Infant end-of-life care: the parent's perspective. Journal of Perinatology, Nova Iorque, v. 27, n. 8, p. 510-516, 2007.), como observou Margarida (enfermeira): "Infelizmente ela (bebê) faleceu no outro dia, e a família veio me procurar pra agradecer". Gérbera reflete: "[...] algumas pessoas da equipe fizeram a diferença..."; e Lírio (assistente social) reconhece: "alguns profissionais vão além da técnica, procuram ter diálogo". Felizmente, foram apontados encontros entre os familiares e a equipe multiprofissional.

Conclusões

Neste trabalho, evidenciou-se a desvalorização da comunicação de notícias no cotidiano de trabalho em uma Utin pela: ausência de ambiente adequado e reservado para conversas; falta de treinamento da equipe profissional para informar aos familiares a evolução clínica ou escutar suas dúvidas e ansiedades; não previsão na rotina e nos processos de trabalho de momentos para acolhimento dos familiares e da equipe multiprofissional.

Em função disso, foi identificado que os profissionais da Utin produziam estratégias de defesa, distanciamentos e não envolvimento com os familiares, a fim de evitar maiores sofrimentos no trabalho. Os familiares, por sua vez, vivenciavam sentimentos de insegurança, medo e subordinação ante a não disponibilidade dos profissionais para trocas e encontros. As relações interpessoais entre profissionais e familiares mostraram-se frágeis, direcionadas à disputa, e, até mesmo hostis, gerando sofrimento para todos os envolvidos.

Apontou-se a preocupação com o maior investimento de profissionais e familiares para qualificar a comunicação de notícias, a partir de atos de respeito e cuidado com o outro. Sugere-se criação de estratégias de união e organização dos profissionais e familiares, proporcionando: momentos para reflexão da equipe multiprofissional com os gestores; a escuta das necessidades dos familiares e dos profissionais; e desenvolvimento de espaços para trabalhar os sofrimentos produzidos pelo cotidiano de trabalho em Utin, tanto as dificuldades sofridas pelos familiares quanto pelos profissionais da equipe de saúde. Nesse sentido, qualificar a comunicação, passa pela necessidade de ampliar as relações interpessoais.

Torna-se imprescindível a valorização dos desafios da comunicação de notícias e do aprimoramento das relações entre flores e pássaros naquele jardim. Assim como a produção do cuidado ao recém-nascido em Utin centrado na família e na equipe multiprofissional.

  • Suporte financeiro: a pesquisa recebeu financiamento por meio de bolsa do Programa PSIC de iniciação científica

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    Ago 2016
  • Aceito
    Mar 2017
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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