RESUMO
Na década de 1980, a América Latina vivenciou crises econômicas, com programas de ajuste estrutural e aumento do desemprego, que acentuaram a pobreza e as desigualdades sociais. Posteriormente, diversos países adotaram Programas de Transferência de Renda com Condicionalidades, em um cenário de ênfase das políticas sociais no combate à pobreza. No México e no Brasil, tais programas foram antecedidos por outras iniciativas de transferência de renda para os pobres, iniciadas, respectivamente, nas décadas de 1980 e 1990. O objetivo do estudo foi analisar os programas Bolsa Família do Brasil (criado em 2004) e Oportunidades do México (criado em 2002). O referencial de análise baseou-se na perspectiva histórico-comparativa, e utilizaram-se como técnicas de pesquisa revisão bibliográfica, análise documental, análise de dados secundários e entrevistas semiestruturadas. Observaram-se diferenças entre os programas quanto aos objetivos, desenho e condicionalidades, inclusive de saúde. Apesar de alguns efeitos positivos sobre indicadores de renda, de saúde e de educação, tais programas são limitados para o enfrentamento da pobreza.
PALAVRAS-CHAVE
Política pública; Programas governamentais; Pobreza
ABSTRACT
In the 1980s, Latin America experienced economic crises, with structural adjustment programs and rising unemployment, which accentuated poverty and social inequalities. Subsequently, several countries adopted Conditional Cash Transfer Programs, in a scenario of emphasis on social policies in the fight against poverty. In Mexico and in Brazil, programs were preceded by other income transfer initiatives for the poor, initiated respectively in the 1980s and 1990s. The objective of the study was to analyze the programs Bolsa Família in Brazil (created in 2004) and Oportunidades in Mexico (created in 2002). The analysis reference was based on the historical-comparative perspective and literature review, documental analysis, analysis of secondary data analysis and semi-structured interviews were used as research techniques. Differences were observed between the programs in terms of objectives, design and conditionalities, including health. Despite some positive effects on income, health and education indicators, such programs are limited for the fight against poverty.
KEYWORDS
Public policy; Government programs; Poverty
Introdução
Na década de 1980, a América Latina vivenciou crises econômicas, com programas de ajuste estrutural e aumento do desemprego, que acentuaram a situação de pobreza e desigualdades sociais historicamente marcantes na região. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) influenciaram as políticas econômicas e sociais de vários governos latino-americanos. Um elemento marcante na agenda dessas organizações é a ênfase das políticas sociais no combate à pobreza11 Pereira JMM. O Banco Mundial e a construção político-intelectual do "combate à pobreza". Topoi [internet]. 2010 jul-dez [acesso em 2017 dez 6]; 11(21):260-282. Disponível em: http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi21/Topoi21_14Artigo14.pdf.
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Ao final dos anos 1990, observou-se uma proliferação dos Programas de Transferência de Renda com Condicionalidades (PTRC) com o propósito de atenuar os impactos causados pelas reformas pró-mercado. Os PTRC destinam certa quantia monetária para famílias classificadas como pobres ou extremamente pobres, tendo por objetivo aliviar a situação de pobreza, melhorar as condições de vida, da saúde e educação dessa população. Nesse sentido, são exigidas certas corresponsabilidades dos beneficiários.
Os PTRC estão presentes em 20 países da América Latina e Caribe e cobrem mais de 120 milhões de pessoas, o que equivale a 20% da população da região, a um custo que gira em torno de 0,4% do produto interno bruto (PIB) regional. Esse modelo de programa foi disseminado em outras regiões do mundo, como a Ásia e a África22 Cecchini S. Transferências condicionadas na América Latina e Caribe: da Inovação à Consolidação. In: Campello T, Neri MC, organizadores. Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília, DF: IPEA; 2013. p. 369-396..
Esses programas são flexíveis e adaptáveis a distintas realidades socioeconômicas, políticas e institucionais, e sua implantação ocorreu em diferentes contextos e de forma heterogênea na região. Isso faz com que o desenho dos PTRC varie significativamente entre os países no que concerne a: critério e métodos utilizados para a seleção dos públicos-alvo; faixa etária para o acesso aos benefícios; benefícios oferecidos (transferências monetárias, apoio psicossocial, acompanhamento das famílias, programas de capacitação e microcrédito); modalidades de execução; tipo e controle das condicionalidades; rigor das sanções e vínculos interinstitucionais22 Cecchini S. Transferências condicionadas na América Latina e Caribe: da Inovação à Consolidação. In: Campello T, Neri MC, organizadores. Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília, DF: IPEA; 2013. p. 369-396..
Apesar dessas diferenças, algumas características comuns a vários PTRC são: o público-alvo de famílias pobres, selecionadas por testes de meios; benefícios sujeitos a condições como frequência escolar ou consultas de saúde; titularidade do programa concedida às mulheres visando fortalecê-las na família; uso de sistemas de avaliação e monitoramento; associação do alívio da pobreza em curto prazo com acumulação de capital humano em longo prazo; variação dos benefícios de acordo com o número de integrantes da família; ênfase na correção das falhas de mercado por meio da criação de incentivos à demanda por serviços; enfoque multidimensional que requer a coordenação dos atores; aplicação de penalidades em caso de não cumprimento das condicionalidades, com eventual desligamento do programa; intervenção sobre diferentes dimensões do bem-estar para a família; compromisso de provisão de longo prazo e cobertura em larga escala e controle social33 Fonseca AMM, Viana AL. Direito à saúde, atenção básica e transferências condicionadas de renda na América Latina. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2007 dez [acesso em 2015 out 20]; 12(6):1505-1512. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141381232007000600012&script=sci_abstract&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141... ,44 Lavinas L. 21st Century Welfare [internet]. London: New Left Review; 2013 [acesso em 2016 abr 20]. Disponível em: https://newleftreview.org/II/84/lena-lavinas-21st-century-welfare.
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Os programas de transferência de renda em países de renda média e baixa contribuem para melhorias na saúde, como no aumento do uso de serviços preventivos, na melhoria da cobertura da imunização e no incentivo a práticas saudáveis55 Ranganathan M, Lagarde M. Promoting healthy behaviours and improving health outcomes in low and middle income countries: A review of the impact of conditional cash transfer programmes. Prev Med [internet]. 2012 nov [acesso em 2017 jun 15]; 55(sup.1):95-105. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22178043.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/2217... . Efeitos positivos na educação, como o aumento da matrícula escolar, a diminuição na taxa de abandono e da taxa de repetição, também foram documentados66 Glewwe P, Kassouf AL. The impact of the Bolsa Escola/Familia conditional cash transfer program on enrollment, dropout rates and grade promotion in Brazil. J Development Economics [internet]. 2012 mar [acesso em 2015 dez 12]; 97(2):505-517. Disponível em: http://www.anpec.org.br/encontro2008/artigos/200807211140170-.pdf.
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Ainda que a transferência monetária regular seja extremamente importante, não é condição suficiente para acabar com a situação de pobreza. Estima-se que a América Latina possua 28,1% da população em condições de pobreza e 11,7% em condições de pobreza extrema ou indigência. Em números absolutos, esses valores correspondem a 165 milhões e 69 milhões de pessoas respectivamente77 Comissão Econômica para América Latina e o Caribe. Panorama social de América Latina. Santiago do Chile: CEPAL; 2014 [acesso em 2014 out 10]. Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/37626/6/S1420729_es.pdf.
http://repositorio.cepal.org/bitstream/h... . A persistência de um elevado número de pessoas em situação de pobreza e indigência na região, a importância conferida aos PTRC nas últimas décadas, a variedade entre os programas dos países no que concerne aos seus objetivos, desenho e efeitos sobre indicadores de renda, de saúde e de educação justificam a realização de estudos sobre essas estratégias.
O Brasil e o México são os países mais populosos da América Latina, compreendendo juntos 53,6% da população e 63,4% do PIB da região88 Comisíon Económica para América Latina y el Caribe. Bases de Datos y Publicaciones Estadísticas [internet]. New York: Cepalstat; 2016 [acesso em 2016 out 10]. Disponível em: http://estadisticas.cepal.org/cepalstat/WEB_CEPALSTAT/Portada.asp.
http://estadisticas.cepal.org/cepalstat/... . Ambos são federações de grande extensão territorial, marcadas por profundas desigualdades entre regiões e grupos sociais. Além disso, foram pioneiros na implantação dos PTRC ainda no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Em 2014, esses países compreendiam os maiores programas desse tipo na região: o Bolsa Família do Brasil (criado em 2004) e o Oportunidades do México (criado em 2002), alcançando milhões de famílias.
Este artigo tem como objetivo analisar o Programa Bolsa Família (PBF) do Brasil e o Programa Oportunidades no México, em perspectiva comparada, com o propósito de contribuir para a reflexão sobre o significado e a relevância dos PTRC para o combate à pobreza na América Latina.
Metodologia
O estudo consistiu na realização de estudos de caso dos PTRC em dois países - Brasil e México - com base em contribuições da abordagem de análise histórico-comparativa, que pressupõe: a valorização da trajetória e temporalidade dos processos sociais; a comparação sistemática e contextualizada; a busca de explicações para os fenômenos em questão99 Mahoney J, Rueschemeyer D. Comparative Historical Analysis. Achievements and Agendas. In: Mahoney J, Rueschemeyer D, editores. Comparative historical analysis in the social sciences. Cambridge: Cambridge University; 2003..
Inicialmente, selecionaram-se os casos para comparação, segundo critérios de semelhança: relevância dos dois países na América Latina em termos populacionais e econômicos; gravidade da pobreza e das desigualdades sociais; existência de PTRC de grandes dimensões. Em seguida, definiram-se os eixos de análise do estudo: trajetória e contexto dos programas no sistema de proteção social; e características dos programas, considerando seus componentes e o caráter das condicionalidades, com destaque para a saúde. A partir desses eixos, a pesquisa compreendeu a descrição de cada caso (Oportunidades, de 2002 a 2014; Bolsa Família, de 2004 a 2014), seguida de uma análise dos programas em perspectiva comparada.
A caracterização dos casos e a sua comparação posterior basearam-se em diferentes técnicas de pesquisa, com ênfase na revisão bibliográfica e análise documental, complementadas por análise de dados secundários e entrevistas. A revisão bibliográfica sobre os PTRC na América Latina, México e Brasil enfatizou as bases Scientific Eletronic Library Online (SciELO) dos dois países e Pubmed. Analisaram-se documentos oficiais disponíveis nos sítios eletrônicos dos órgãos responsáveis pelos programas - Secretaria de Desarollo Social (Sedesol) do México e Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) do Brasil. A análise de dados secundários envolveu as bases da Comissão Econômica da América Latina e o Caribe (Cepal) e dos governos - Instituto Nacional de Estadística y Geografía (Inegi) do México e Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (Sagi) do Brasil. Em caráter complementar, foram realizadas sete entrevistas semiestruturadas no Brasil, com especialistas envolvidos na concepção, implementação ou gestão do PBF nas três esferas de governo. Os atores foram selecionados segundo cargo ou posição ocupada, conhecimento e tempo de envolvimento com o Programa. O roteiro compreendeu questões sobre trajetória dos PTRC no Brasil, características do PBF, sua inserção no contexto latino-americano e similaridades ou diferenças em relação a outros países, incluindo o México.
Resultados
O Programa Bolsa Família
No Brasil, o contexto da redemocratização nos anos 1980 acentuou a defesa de uma política de Assistência Social abrangente em contraposição ao modelo anterior baseado na filantropia e subsídios tradicionais. A Constituição Federal de 1988 consagrou a assistência como parte da seguridade social, junto com a saúde e a previdência. A seguridade brasileira se baseia na perspectiva de uma proteção social abrangente, garantida pelo Estado, de caráter universal, justo, equânime e democrático.
No que concerne aos mínimos sociais, a Constituição Federal de 1988 introduziu a garantia pelo Estado de um benefício mensal, no valor de um salário mínimo, à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que não pudessem garantir a manutenção das necessidades básicas seja por meios próprios ou pela família, independentemente de contribuição à seguridade social. A proposta se concretizou por meio do Benefício de Prestação Continuada (BPC), implementado a partir de meados dos anos 1990.
Os programas de transferência de renda às famílias com condicionalidades tiveram seu início no Brasil, em 1995, com as experiências municipais pioneiras de Campinas (SP) e do Distrito Federal. Na esfera federal, tais programas ganharam destaque no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), quando foram lançados os programas Bolsa Escola (sob responsabilidade do Ministério da Educação), Bolsa Alimentação (sob responsabilidade do Ministério da Saúde) e Auxílio Gás (sob responsabilidade do Ministério de Minas e Energia). O governo Lula, por sua vez, lançou o Programa Cartão Alimentação.
Os quatro programas nacionais de transferência de renda eram geridos por diferentes ministérios, mas destinados a um público semelhante, com estratégias de operacionalização e gestão parecidas. Em 2004, o governo federal unificou esses programas ao criar o PBF. Esse processo envolveu conflitos, incluindo aqueles relacionados com o temor de dirigentes dos ministérios envolvidos em perder poder e atribuições com a implantação do novo programa.
O PBF é um programa de transferência direta de renda com condicionalidades, voltado para famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o País. A figura 1 demonstra o aumento do número de famílias cadastradas do início do programa até 2014.
Evolução do número de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família. Brasil – 2004 a 2014
O PBF possui três pilares centrais: a transferência de renda, os programas complementares e as condicionalidades. A transferência direta de renda tem como objetivo possibilitar alívio imediato da pobreza; as ações e programas complementares visam criar oportunidades para que as famílias superem a situação de vulnerabilidade, proporcionando a melhoria na condição de vida; já as condicionalidades têm como propósito reforçar os direitos à saúde e à educação, visando auxiliar a quebrar o ciclo intergeracional da pobreza1111 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate À Fome. Manual de Gestão do Programa Bolsa Família. Brasília, DF: MDS; 2015 [acesso em 2017 jun 15]. Disponível em: ftp://ftp.mds.gov.br/externo/ead/outros/arquivos_a_enviar/MIOLO%20-%20Manual_Gestao_Bolsa_Familia_18082015%20-%20print.pdf.
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Os valores dos benefícios pagos pelo PBF variam de acordo com a renda per capita mensal e os componentes da família. O Programa tem alguns tipos de benefícios: o básico, o variável (dependente da existência de gestantes, crianças ou jovens) e o benefício para superação da extrema pobreza.
O segundo pilar do PBF é representado pelos programas ou ações complementares como: programas de qualificação profissional, de geração de trabalho e renda, alfabetização de adultos, entre outros. Autores apontam limites dessa estratégia, uma vez que os programas complementares operam na casa dos 'milhares' de beneficiários, enquanto o PBF opera na casa dos 'milhões'1212 Lício EC, Mesquita CS, Curralero CRB. Desafios para a coordenação intergovernamental do Programa Bolsa Família. ERA [internet]. 2011 out [acesso em 2016 out 15]; 51(5):458-470. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-75902011000500004&script=sci_abstract&tlng=pt.
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O terceiro pilar do PBF diz respeito às condicionalidades, definidas como compromissos assumidos pelo poder público e pelas famílias com o objetivo de ampliar o acesso aos serviços sociais básicos.
Na educação, as crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos devem ter a matrícula e a frequência mínima de 85% da carga horária escolar mensal. Para os adolescentes de 16 e 17 anos, além da matrícula, deve-se observar a garantia de, pelo menos, 75% da frequência escolar mensal. Na área de saúde, deve ocorrer a imunização e acompanhamento do crescimento e desenvolvimento das crianças menores de 7 anos. As gestantes devem participar do pré-natal e ir às consultas na unidade de saúde. Na área de Assistência Social, o compromisso é a frequência mínima de 85% da carga horária relativa às ações de convivência e fortalecimento de vínculos desenvolvidas pelos municípios para crianças e adolescentes de até 15 anos em risco de trabalho infantil no âmbito do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti)1111 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate À Fome. Manual de Gestão do Programa Bolsa Família. Brasília, DF: MDS; 2015 [acesso em 2017 jun 15]. Disponível em: ftp://ftp.mds.gov.br/externo/ead/outros/arquivos_a_enviar/MIOLO%20-%20Manual_Gestao_Bolsa_Familia_18082015%20-%20print.pdf.
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O não cumprimento das condicionalidades implica sanções gradativas, desde a advertência até o cancelamento do benefício. O cancelamento de benefícios é considerado um instrumento extremo e sugere que, em algum momento, ocorreram falhas no sistema de proteção social.
A base para o cumprimento das contrapartidas da saúde é o Sistema Único de Saúde (SUS). As famílias beneficiárias são atendidas nas Unidades Básicas de Saúde. O acompanhamento das condicionalidades da saúde deve ser feito duas vezes ao ano; e os profissionais de saúde registram as informações no sistema correspondente.
O Programa Oportunidades
Em 1917, foi promulgada a primeira constituição mexicana com menção aos direitos sociais, dessa forma, introduzindo elementos capazes de promover um sistema econômico e social mais justo. No desenho original, o texto constitucional trazia a provisão dos serviços de bem-estar social - habitação, seguridade social, saúde e educação - com responsabilidades compartilhadas entre instituições governamentais, empregadores e as classes trabalhadoras, sendo assim, limitada a cobertura social dos benefícios. A trajetória das políticas sociais nas décadas seguintes legitimou benefícios estratificados, incluindo apenas os trabalhadores formais e seus familiares, com a participação do setor público e do privado no desenho da política e atendimento à demanda social1313 Barba GO. A century of social reforms in Mexico: historical balance and pending challenges. J Public Governance Policy [internet]. 2016 jun [acesso em 2017 set 25]; 1(3):7-33. Disponível em: http://www.revistascientificas.udg.mx/index.php/JPGPLA/article/view/6071.
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Entre os anos de 1976 e 1982, foi implementado no País o primeiro programa com foco no combate à pobreza, o Coordinación General del Plan Nacional de Zonas Deprimidas y Grupos Marginados (Coplamar), que estendeu a possibilidade de acesso à assistência à saúde por meio dos serviços do Instituto Mexicano de Seguro Social (IMSS)1414 Tomás CL, Parra EB. La política social en México, 1970-2013. Inceptum [internet]. 2013 jul [acesso em 2017 jul 24]; 8(15):177-212. Disponível em: http://inceptum.umich.mx/index.php/inceptum/article/view/230.
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Desde o final dos anos de 1980, foi observado o surgimento de uma sequência de programas sociais que imprimem um novo perfil de combate à pobreza; assim, entre 1989 e 1994, vigorou o Programa Nacional de Solidariedade (Pronasol). O programa tinha como objetivo a oferta de um mínimo de serviços básicos essenciais em forma de transferência de renda focalizada e seletiva - população pobre e indigente de áreas rurais - que propunha a melhora das condições de saúde, educação e moradia1515 Cohen E, Franco R, Villatoro P. México: El Programa de Desarrollo Humano, Oportunidades. In: Cohen E, Franco R, organizadores. Transparencia y Corresponsabilidad, una mirada Latinoamericana. México: Flacso-Sedesol; 2007. p. 87-136..
Em meio à crise econômica nacional entre os anos de 1994/1995, que agravou as condições de pobreza no México, com maior intensidade nas áreas rurais, surgiram os PTRC. Entre 1997 e 2002, implantou-se o Programa de Educação, Saúde e Alimentação (Progresa) que visava ao alívio da pobreza e ao desenvolvimento do capital humano mediante transferências monetárias diretas para as famílias, recebidas pelas mulheres; e provendo o acesso da população de zonas rurais a serviços de educação e da saúde.
Em 2002, o Progresa foi transformado no Programa Oportunidades, financiado pelo governo federal mexicano e pelo Banco Mundial. O novo programa passou a ter grande repercussão na América Latina e beneficiou aproximadamente 6 milhões de famílias no México até o final de 2014.
No México, a trajetória dos programas de transferência de renda mostra como elemento de continuidade o caráter focalizado e seletivo. No entanto, sucessivas mudanças de governo levaram a alterações no nome dos programas e em seu desenho, com inovações relacionadas com a ampliação do escopo e da população-alvo, bem como com a expansão das condicionalidades e seus mecanismos de controle.
Na transição entre o Progresa e o Oportunidades, foram mantidas as características básicas do primeiro, mas esforços foram agregados com vistas à ampliação da cobertura para áreas semiurbanas e urbanas e ao desenvolvimento social, como, por exemplo, implementação da Cruzada Contra a Fome. As condicionalidades do programa foram vinculadas ao cumprimento obrigatório das famílias de condicionalidades na educação, saúde e nutrição.
A Secretaria de Desarrollo Social foi responsável pela coordenação do programa, definição das regras de operação e alocação dos recursos orçamentários. O critério para acessar o programa era a renda mensal per capita mínima, determinada abaixo do ponto de corte estabelecido pela linha de bem-estar mínimo. O valor definido para as famílias de áreas rurais foi de $ 868,03 pesos mexicanos e para as famílias de áreas urbanas foi de $ 1.216,68 pesos mexicanos, em dezembro de 20131616 México. Secretaria de Desarrollo Social. Reglas de Operación del Programa de Desarrollo Humano Oportunidades. Acuerdo por el que se emiten las Reglas de Operación del Programa de Desarrollo Humano Oportunidades, para el ejercicio fiscal 2014. Diario Oficial de la Federación do México. 30 dez 2013..
O processo de identificação de beneficiários do Oportunidades ocorreu em três fases: a primeira foi a classificação de municípios em cinco categorias de acordo com um índice de marginalidade econômica e social; a segunda foi a escolha de domicílios dentro de cada município com base em censo realizado pelo próprio programa; por fim, a terceira fase consistiu na validação dos selecionados. Após a seleção das famílias, iniciou-se a concessão dos benefícios monetários e não monetários (ações e serviços sociais), vinculados às condicionalidades de educação e saúde1717 Soares FV, Ribas RP, Osório RG. Avaliando o impacto do programa Bolsa Família: uma comparação com programas de transferência de renda condicionada de outros países. Centro Internacional de Pobreza [internet]. 2007 dez [acesso em 2017 jun 13]; (1):1-13. Disponível em: http://www.ipc-undp.org/pub/port/IPCEvaluationNote1.pdf.
http://www.ipc-undp.org/pub/port/IPCEval... , sob responsabilidade de cumprimento das mulheres de cada família. Foram utilizados sistemas de cadastro e de informações específicos nas fases de seleção e acompanhamento do programa.
Na educação, as ações visavam à inserção e permanência na escola de crianças e jovens em níveis primário e secundário (até 18 anos) com concessão ou repasse monetário de bolsas educativas e de apoio para aquisição de material escolar. O programa facilitou ainda o acesso às instituições de ensino público ou privada por meio de bolsas e o estimulo ao término da educação do ensino médio antes de atingir os 22 anos, ofertando um apoio financeiro quando concluem - similar a uma caderneta de poupança - denominado Apoyo Jovens com Oportunidades.
No âmbito da saúde, o objetivo foi a conscientização das famílias sobre a importância da boa nutrição, saúde e hábitos de higiene para o desenvolvimento das crianças e para o bem-estar geral1818 Teixeira C, Soares FV. Qual é a eficácia dos componentes não monetários dos programas PTC? Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo [internet]. 2011 jun [acesso em 2017 jul 24] (129):1-2. Disponível em: http://www.ipc-undp.org/pub/port/IPCOnePager129.pdf.
http://www.ipc-undp.org/pub/port/IPCOneP... . Para isso, o programa operou basicamente com três estratégias: (1) oferta do Pacote Básico Garantido de Saúde (Paquete Básico Garantizado de Salud), um pacote de intervenções em saúde pública (Causes) de acordo com perfil de cada beneficiário (sexo, idade e situação de vida). Esse pacote, ofertado em nível primário, incluía vacinas e consultas pré-agendadas. Caso fosse necessário o cuidado de emergência, os atendimentos seriam ofertados nas unidades da Secretaria del Salud (Ministério da Saúde) do Mexicano de Seguro Social - IMSS - Oportunidades (serviços voltados para a população rural e urbana marginalizada); e de outras instituições participantes na esfera federal, para os quais as regras se aplicavam; (2) promoção de melhora nutricional dos beneficiários (combate à desnutrição e obesidade) mediante vigilância nutricional e entrega de suplementos alimentícios para crianças menores de 5 anos, mulheres grávidas e em fase de amamentação e dos casos de desnutrição; (3) promoção do autocuidado das famílias mediante ações educativas em saúde, com ênfase na educação alimentar, promoção da saúde, prevenção de doenças e cuidados com o paciente crônico.
O programa concedia repasses monetários mensais diretamente às famílias beneficiárias com o objetivo de melhorar a alimentação da população pobre, tais como os apoios alimentar, infantil e a idosos. Esses benefícios foram criados, em parte, como resposta a crises econômicas e à alta internacional dos preços dos alimentos1919 Soares FV. Para onde caminham os programas de transferência condicionada? As experiências comparadas do Brasil, México, Chile e Uruguai. In: Castro JA, Modesto L, organizadores. Bolsa Família 2003-2010: Avanços e Desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. p. 173-200..
O montante de todos os apoios monetários e o teto básico que uma família deveria receber eram atualizados semestralmente, de acordo com a disponibilidade orçamentária e com base na variação acumulada dos índices associados da linha de bem-estar mínimo (rural e urbano).
A figura 2 mostra a evolução das famílias beneficiadas no período de vigência do programa.
Evolução do número de famílias beneficiárias do Programa Oportunidades. México – 2002 a 2014
Após mudança do governo federal em 2014, o Oportunidades foi substituído pelo Prospera (vigente de janeiro de 2015 até o momento de conclusão do estudo), que manteve suas principais características.
O Prospera emergiu da necessidade de melhorar os recursos e o bem-estar das famílias mexicanas em situação de pobreza por meio da articulação com outros programas estratégicos da política social e da política econômica, utilizando um enfoque interinstitucional entre os três níveis de governo, a sociedade civil organizada e a iniciativa privada. Na educação, a mudança consiste na oferta de bolsas de estudos aos jovens em universidades e para o ensino técnico, enquanto para saúde, as famílias teriam facilidades para se afiliar ao Seguro Popular e ter acesso às intervenções do Pacote Básico de Saúde2020 Comisíon Económica para América Latina y el Caribe. Programas de transferências condicionadas. Base de datos de programas de protección social no contributiva em América Latina y el Caribe [internet]. New York: Cepal; 2017 [acesso em 2017 jul 9]. Disponível em: http://dds.cepal.org/bdptc/programa/?id=22.
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Similaridades e diferenças entre os Programas Bolsa Família e Oportunidades
Os PTRC do Brasil e do México foram comparados considerando dois eixos: trajetória e contexto; e características dos programas e caráter das condicionalidades.
No que diz respeito à trajetória e contexto, destaque-se que ambos os programas surgem em cenários de expansão da ênfase nas políticas sociais no combate à pobreza e foram antecedidos por outras iniciativas de transferência de renda para os pobres. Contudo, há diferenças expressivas. O México se diferencia pela adoção mais precoce e radical da agenda neoliberal, que predominou no País e orientou os governos a partir dos anos 1980, explicando o início anterior e a centralidade dos programas de combate à pobreza na política social.
Os antecessores do programa Oportunidades foram o Pronasol e o Progresa, tendo o primeiro se iniciado ainda no final dos anos 1980. No início daquela década, a crise da dívida externa, os efeitos da conjuntura internacional e o acordo com o Fundo Monetário Internacional inauguravam a fase neoliberal no País. A partir de então, o México passou por um intenso processo de crise e ajuste econômico de influência neoliberal, que levou ao agravamento da pobreza e consequente reorientação da política social para focalização nos pobres. Foi nesse contexto que se implementaram e se expandiram os programas de transferência de renda, de forma mais precoce e com alto destaque em termos da orientação da política social. O marco político para a criação do Oportunidades ocorreu nos anos 2000 com a saída do PRI (Partido Revolucionário Institucional) do governo nacional - após mais de seis décadas no poder - e a entrada do Partido da Ação Nacional (PAN), um partido de centro-direita. O Oportunidades surgiu com o objetivo de ser um programa mais articulado com outras políticas sociais e de aumentar o escopo do que já existia, abarcando as famílias pobres de áreas urbanas. Nesse período, reafirmou-se o foco das políticas sociais no combate à pobreza, com a obstrução de iniciativas mais universalistas.
A trajetória dos PTRC no México mostra também a combinação de continuidades em relação aos programas anteriores com inovações, incluindo mudança de nome, a cada mudança de governo. O Oportunidades (2002 a 2014) foi uma ampliação do programa antecessor (Progresa, de 1997 a 2002), assim como este foi dos anteriores.
Já no Brasil, nos anos 1980, em um contexto de crise econômica e democratização, a Constituição de 1988 ampliou direitos sociais e instituiu a seguridade social, de orientação universalista, abrangendo a previdência, a saúde e a assistência social. Dentre as mudanças, destaca-se a instituição do SUS, de caráter universal, e o estabelecimento do preceito constitucional de renda mínima para alguns segmentos da população. A influência de ideias neoliberais de reforma do Estado é mais expressiva no País nos anos 1990, mais tarde do que no caso do México. Os primeiros PTRC se implementam somente no final daquela década, no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso. Entre 2003 e 2014, durante os governos de Lula e Dilma, do Partido dos Trabalhadores, houve expressiva expansão das políticas de combate à pobreza, com destaque para a criação do PBF a partir da unificação de quatro outros programas de transferência de renda. Ressalte-se que, durante todo o período, a implantação dos PTRC ocorreu sob a vigência de um marco constitucional de Seguridade universalista, o que também demarcou uma diferença em relação ao caso mexicano, ao favorecer a compreensão do benefício como direito e como estratégia para favorecer a expansão da cidadania, articulado às demais políticas sociais.
Apesar do desenho universal da seguridade social no Brasil, ainda prevalecem, nos dois países, modelos de proteção segmentados por grupos sociais, caracterizados pela fragmentação e pela presença do setor privado na oferta de serviços, incentivada pelo Estado (a última mais marcante no Brasil, mas em expansão no México). Essa condição é convergente com o regime híbrido das políticas públicas na região, marcado pela adoção simultânea de políticas neoliberais e expansão de programas sociais específicos2121 Viana AL, Fonseca AM, Silva HP. Proteção social na América Latina e Caribe: mudanças, contradições e limites. Cad Saúde Pública [internet]. 2017 [acesso em 2018 abr 14]; 33(2):1-15. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v33s2/1678-4464-csp-33-s2-e00216516.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csp/v33s2/1678-... .
O quadro 1 resume os elementos do contexto e trajetória dos PTCR nos dois países.
Quanto às características dos programas, o Bolsa Família e o Oportunidades apresentam algumas similaridades.
A primeira é a concessão da titularidade do cartão, preferencialmente, às mulheres. Essa estratégia pode contribuir para a sua autonomia e fortalecimento do seu papel dentro das famílias2222 Rego WGDL, Pinzani A. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: Unesp; 2013.. Entretanto, autores sugerem que o repasse de renda às mulheres e a obrigação das condicionalidades evidenciaria contradições entre essa política e as demandas feministas ao reforçar o papel da mulher como cuidadora das crianças e adolescentes2323 Mariano AS, Carloto CM. Gênero e Combate à Pobreza. Rev Estudos Feministas [internet]. 2009 set [acesso em 2016 jun 12]; 17(3):901-908. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2009000300018/12147.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref... .
A segunda semelhança é a presença de condicionalidades na saúde e na educação. A maior parte dos programas de transferência de renda procura enfrentar problemas das populações pobres nas áreas de alimentação e cuidados básicos de saúde. Entretanto, há também ações voltadas para o desenvolvimento do capital humano, particularmente nos casos em que se busca melhorar o nível educacional dos membros das famílias pobres.
A terceira semelhança é o foco nas famílias pobres selecionadas por testes de meio. Todavia, a seleção dos destinatários ocorre de forma distinta. O Programa Oportunidades utiliza métodos indiretos (fórmulas que predizem a renda)2424 Cecchini S, Martínez R. Protección social inclusiva en América Latina una mirada integral, un enfoque de derechos. Santiago de Chile: Cepal; 2011 [acesso em 2017 jun 10]. Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/2593/1/S2011914_es.pdf.
http://repositorio.cepal.org/bitstream/h... . Já o PBF utiliza uma avaliação direta dos meios de subsistência, ou seja, utiliza a declaração de renda relatada por famílias em inquéritos sobre o rendimento. Este último método tende a ser menos caro e mais sensível à inclusão de novos beneficiários, mas pode estar sujeito a variações que ocorrem na renda familiar.
Por outro lado, observam-se diferenças entre os programas. A primeira é em relação às condições de acesso. O Oportunidades utiliza um critério geográfico, localizando as áreas que apresentam os mais baixos indicadores socioeconômicos e demográficos para depois aplicar os testes de meio selecionando o público-alvo. A inclusão somente de famílias de determinadas áreas pode restringir a rede de proteção social do México ao não incorporar todas as famílias pobres e vulneráveis do País. Já o Bolsa Família abrange todo o território nacional. Os valores da renda para ingressar nos programas também diferem. O limite da renda per capita para ingressar no PBF é superior ao do México.
A segunda diferença são as relações entre os níveis de governo na gestão do programa. No Oportunidades, em cada localidade (bairro/distrito), conta-se com a atuação de um Comitê de Promoção Comunitária, em que participam beneficiários dos programas. O comitê elege um representante dos beneficiários do programa para transmitir informações às demais famílias e selecionar novos beneficiários naquela comunidade. No Brasil, a seleção de novos beneficiários ocorre no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) de cada bairro, por um profissional qualificado.
A terceira diferença é a faixa etária considerada para o acesso aos benefícios especiais. No programa Oportunidades, são incluídos os idosos (70 anos ou mais). No Brasil, essa parcela da população não é incluída; os idosos (65 anos ou mais) são em geral abarcados por outro programa de transferência de renda denominado Benefício de Prestação Continuada (BPC). Além dessa diferença, o programa do México compreende indivíduos de até 22 anos, enquanto no Brasil a idade máxima é de 17 anos. Em ambos, os jovens devem estar frequentando a escola2424 Cecchini S, Martínez R. Protección social inclusiva en América Latina una mirada integral, un enfoque de derechos. Santiago de Chile: Cepal; 2011 [acesso em 2017 jun 10]. Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/2593/1/S2011914_es.pdf.
http://repositorio.cepal.org/bitstream/h... . Ressalta-se que, no México, os jovens são os titulares do repasse financeiro realizado por meio do depósito em conta bancária, o qual pode ser sacado ao fim dos estudos, funcionando como uma poupança. Esse incentivo é importante, pois favorece a permanência na escola e garante a independência financeira dos jovens mexicanos.
A quarta diferença tem relação com a periodicidade, com os valores e com o tipo de benefício. A periodicidade do recebimento dos benefícios é mensal no PBF e bimestral no Oportunidades. Os valores monetários também diferem.
Em relação ao caráter das condicionalidades, observam-se diferenças no rigor na aplicação da sanção dos benefícios. O Oportunidades é bem mais rígido quando ocorre o descumprimento de alguma condicionalidade. Tal programa possui um complexo mecanismo de verificação de condicionalidades que permite atualizar de maneira ágil a informação sobre cumprimentos e sanções2525 Fiszbein A, Schady N. Conditional Cash Transfers. Reducing Present and Future Poverty. Washington: The World Bank, 2009.. Dessa forma, o Oportunidades suspende imediatamente a transferência monetária caso haja o descumprimento de alguma condicionalidade. Se a não conformidade persistir, o benefício é suspenso por tempo indeterminado2626 Bastagli F. From social safety net to social policy? The role of conditional cash transfers in welfare state development in Latin America. International Policy Centre for Inclusive Growth [internet]. 2009 dec [acesso em 2014 fev 27]; (60):1-17. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/46463115.
https://www.researchgate.net/publication... .
Diferentemente do Oportunidades, o PBF entende que o não cumprimento de alguma das exigências pode se relacionar com falhas no sistema de proteção social. Dessa forma, o programa compreende mecanismos para que as famílias tenham a oportunidade de conseguir cumprir as contrapartidas, evitando cortes no benefício.
O cancelamento do benefício referente ao PBF só pode ocorrer após etapas que compreendem advertência, bloqueio e suspensões temporárias. Além desse processo gradual, o programa prevê o acompanhamento de famílias em descumprimento pela assistência social. O Sistema de Condicionalidades (Sicon) permite que os técnicos responsáveis pelo acompanhamento das condicionalidades nos estados e municípios registrem recursos para os descumprimentos que ocorrerem por falhas no sistema de proteção social. O registro do acompanhamento das famílias pela assistência social suspende eventuais sanções pelo descumprimento das condicionalidades. Segundo Cecchine e Martínez2424 Cecchini S, Martínez R. Protección social inclusiva en América Latina una mirada integral, un enfoque de derechos. Santiago de Chile: Cepal; 2011 [acesso em 2017 jun 10]. Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/2593/1/S2011914_es.pdf.
http://repositorio.cepal.org/bitstream/h... , elas podem ser definidas como condicionalidades fortes para o programa mexicano e brandas para o programa brasileiro.
O quadro 2 compara as características dos programas.
Discussão
Nas últimas duas décadas, os PTRC têm sido adotados na América Latina como estratégia de combate à pobreza que buscaria a acumulação de capital humano entre famílias pobres, considerando pelo menos três dimensões: renda, educação e saúde. Entretanto, esses programas não são suficientes para combater a pobreza e as graves desigualdades na América Latina. Os critérios utilizados para identificar os beneficiários dos programas são fixados em níveis de renda extremamente baixos. Além disso, na maioria dos programas, os limiares de pobreza utilizados e os benefícios transferidos não são reajustados anualmente pela inflação. A maior parte dos países gasta menos de 0,5% do PIB com esses programas44 Lavinas L. 21st Century Welfare [internet]. London: New Left Review; 2013 [acesso em 2016 abr 20]. Disponível em: https://newleftreview.org/II/84/lena-lavinas-21st-century-welfare.
https://newleftreview.org/II/84/lena-lav... . Assim, os PTRC podem ter efeitos limitados sobre outras dimensões da pobreza (além da renda) e das desigualdades se não forem adequadamente articulados a outras políticas econômicas e sociais.
Sobre esse aspecto, é importante observar os dados de pobreza no período de vigência dos programas em questão. Tais dados revelam que no México, a partir de 2002, houve uma redução da população em situação de pobreza e de indigência. Entretanto o percentual de pobres voltou a aumentar a partir de 2008; e o percentual de indigentes, a partir de 2010, alcançando, em 2014, respectivamente, 41,2% e 16,3% da população total2727 Comisión Económica para América Latina y el Caribe. Metodologías para la integración de bases de datos de encuestas de hogares [internet]. In: 11 Taller Regional; 2003 jul 16-18. Lima: Cepal; 2003 [acesso em 2016 set 12]. Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/31828/S2003686_es.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
https://repositorio.cepal.org/bitstream/... . Esses dados sugerem limites dos programas de transferência de renda para uma redução da pobreza sustentada ao longo do tempo, uma vez que esta é influenciada por determinantes mais amplos, como a estrutura socioeconômica, as condições de crescimento econômico e de emprego e pelo caráter de outras políticas sociais2828 Comissão Econômica para América Latina e o Caribe. Panorama social de América Latina. Santiago do Chile: CEPAL; 2017..
No Brasil, a partir de 2004, tanto o percentual da população em situação de pobreza quanto de indigência diminuíram, atingindo, em 2014, 16,5% e 4,6% da população total2727 Comisión Económica para América Latina y el Caribe. Metodologías para la integración de bases de datos de encuestas de hogares [internet]. In: 11 Taller Regional; 2003 jul 16-18. Lima: Cepal; 2003 [acesso em 2016 set 12]. Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/31828/S2003686_es.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
https://repositorio.cepal.org/bitstream/... . Além dos efeitos dos programas de transferência de renda, esses resultados, em parte, foram favorecidos por expansão do emprego formal, do valor do salário mínimo e de outras políticas sociais. No entanto, estudo recente mostra uma tendência de estagnação ou aumento da pobreza e desigualdades em vários países da América Latina nos anos de 2015 e 2016, endossando a importância dos condicionantes estruturais e a necessidade de políticas de proteção social abrangentes em diversas áreas2828 Comissão Econômica para América Latina e o Caribe. Panorama social de América Latina. Santiago do Chile: CEPAL; 2017..
Um aspecto importante é a relação desses programas com os sistemas de saúde dos países. O Brasil possui o SUS, que tem como diretriz a universalidade do acesso à saúde. Como a saúde é reconhecida como um direito de cidadania, todas as condicionalidades de saúde presentes no Bolsa Família são direitos garantidos constitucionalmente. Diante disso, mesmo considerando as complexidades de organização desse sistema e as desigualdades regionais do Brasil em termos de acesso e utilização dos serviços, a população beneficiária do PBF, em tese, já é ou deveria ser abarcada pelas ações de saúde ofertadas por tal sistema. Assim, a existência das condicionalidades pode ser entendida como uma estratégia potencial para favorecer o acesso de camadas mais pobres da população aos serviços ou ainda como uma estratégia para expandir e melhorar os serviços públicos de saúde por parte do Estado. Um estudo realizado em municípios brasileiros revelou que, à medida que se aumenta a cobertura do PBF, a taxa de mortalidade infantil diminui, em particular para mortes atribuíveis a causas relacionadas com a pobreza, como desnutrição e diarreia2929 Rasella D, Aquino R, Santos CAT, et al. Effect of a conditional cash transfer programme on childhood mortality: a nationwide analysis of Brazilian municipalities. The Lancet [internet]. 2013 jul [acesso em 2017 jun 1]; 382(9886):57-64. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0140673613607151.
https://www.sciencedirect.com/science/ar... .
O México não possui um sistema único e universal de saúde, mas um sistema de saúde de base corporativa aliado a um seguro voltado para os pobres (o Seguro Popular de Saúde, implantado a partir de 2003). O setor público de saúde compreende instituições que cobrem os trabalhadores assalariados e instituições que atendem a população sem capacidade contributiva e em condições de extrema pobreza. Um dos objetivos do Oportunidades era justamente garantir a oferta do Pacote Básico Garantido de Saúde, que se baseia na ampliação progressiva de um pacote de intervenções em saúde pública (Causes) de acordo com perfil de cada beneficiário (sexo, idade e situação de vida). Esse pacote é ofertado em nível primário e inclui vacinas e consultas pré-agendadas. Caso seja necessário um cuidado de emergência, os atendimentos nesse nível seriam ofertados nas unidades da Secretaria del Salud (Ministério da Saúde), do IMSS - Oportunidades e de outras instituições participantes na esfera federal, aos quais as regras se aplicam. Um estudo realizado em famílias beneficiárias do Programa Oportunidades revelou melhores resultados na saúde e no desenvolvimento da criança, incluindo altura para a idade, a concentração de hemoglobina, a diminuição do excesso de peso e várias medidas de desenvolvimento cognitivo e desenvolvimento de linguagem. Os resultados sustentam a ideia de que um dos principais mecanismos pelos quais o Programa Oportunidades está alcançando seus objetivos nesses domínios é por meio da transferência de dinheiro3030 Fernald LCH, Gertler PJ, Neufeld LM. Role of cash in conditional cash transfer programmes for child health, growth, and development: an analysis of Mexico's Oportunidades. The Lancet [internet]. 2008 mar [acesso em 2017 mar 15]; 371(9615):828-837. Disponível em: http://www.thelancet.com/article/S0140-6736(08)60382-7/abstract.
http://www.thelancet.com/article/S0140-6... .
Apesar desses resultados positivos, a titularidade dos direitos é transitória no México, na medida em que deriva da condição de pobreza e do vínculo com o programa de transferência de renda, pois o acesso para os serviços elencados é garantido enquanto cada família permanecer no programa33 Fonseca AMM, Viana AL. Direito à saúde, atenção básica e transferências condicionadas de renda na América Latina. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2007 dez [acesso em 2015 out 20]; 12(6):1505-1512. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141381232007000600012&script=sci_abstract&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141... . Esse acesso temporário expressa fragilidade no sistema de proteção social do México. Associado a isso, o critério de inclusão geográfica pode fazer com que as famílias pobres que vivem em regiões não contempladas pelo programa continuem com imensas dificuldades. Para Cecchini e Soares3131 Cecchini S, Soares FV. Conditional cash transfers and health in Latin America. The Lancet [internet]. 2015 abr [acesso em 2017 jul 10]; 385(9975):32-34. Disponível em: http://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(14)61279-4.pdf.
http://www.thelancet.com/pdfs/journals/l... , os efeitos sobre a saúde dos programas de transferência de renda poderiam ser fortalecidos se os países possuíssem cuidados universais e de alta qualidade.
A existência das condicionalidades é frequentemente apontada como uma estratégia que visa promover a articulação entre políticas no combate à pobreza. Os PTRC diferem quanto ao tipo de condicionalidades e de sanção em caso de não cumprimento.
No Brasil, a população beneficiária do PBF também enfrenta dificuldades em relação ao acesso integral à saúde apesar do direito universal a ela. As condicionalidades da saúde podem favorecer o acesso a ações específicas (imunizações, controle do crescimento e desenvolvimento e acompanhamento do pré-natal) que resolveriam apenas parte dos problemas de saúde33 Fonseca AMM, Viana AL. Direito à saúde, atenção básica e transferências condicionadas de renda na América Latina. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2007 dez [acesso em 2015 out 20]; 12(6):1505-1512. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141381232007000600012&script=sci_abstract&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141... . Entretanto, na concepção do programa brasileiro, as condicionalidades impõem deveres ao Poder Público de apoiar famílias em situação de vulnerabilidade para viabilizar o acesso e a utilização dos serviços do SUS necessários. No Brasil, portanto, as condicionalidades presentes no PBF visam ampliar o acesso das famílias vulneráveis às políticas de saúde, educação e assistência social. O descumprimento das condicionalidades pode significar problemas na oferta dos serviços públicos ou obstáculos para o acesso das famílias aos serviços, devendo desencadear ações do Estado de apoio às famílias, que inclusive exigem maior articulação intersetorial, o que pode ir além das exigências estritas previstas nas condicionalidades.
Outro aspecto contraditório é o fato de as famílias eventualmente destinarem parte da renda originária do PBF para aquisição de medicamentos e realização de exames complementares de diagnóstico e terapia. A renda originária do Bolsa Família pode significar, em alguns casos, acesso à assistência médica (por meio de pagamento direto), sendo utilizada para suprir insuficiências do próprio sistema de saúde3232 Cohn A. Saúde e Desenvolvimento Social. Saúde Soc [internet]. 2009 [acesso em 2015 out 17]; 18(supl.2):41-47. Disponível em: http://www.producao.usp.br/bitstream/handle/BDPI/9470/art_COHN_Saude_e_desenvolvimento_social_2009.pdf?sequence=1.
http://www.producao.usp.br/bitstream/han... . A superação desse problema requer estratégias amplas para superar os limites estruturais e institucionais do sistema, que se expressam em desigualdades entre regiões e grupos sociais.
Já no México, o programa Oportunidades tem como principal objetivo promover o desenvolvimento humano da população pobre, o que requer reduzir as barreiras de acesso e aumentar os níveis de utilização dos serviços sociais. Há uma ênfase em condicionalidades fortes, que se relaciona com o objetivo de utilizar a transferência monetária como instrumento para incentivar o uso de serviços de educação e saúde, que poderiam melhorar o desenvolvimento individual e coletivo, aumentando o capital humano dos pobres. As condicionalidades da transferência permitiriam incentivar mudanças de comportamento dos beneficiários, o que é central no Programa Oportunidades2424 Cecchini S, Martínez R. Protección social inclusiva en América Latina una mirada integral, un enfoque de derechos. Santiago de Chile: Cepal; 2011 [acesso em 2017 jun 10]. Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/2593/1/S2011914_es.pdf.
http://repositorio.cepal.org/bitstream/h... . O maior rigor nas condicionalidades e sanções e a ênfase na mudança comportamental constituem diferenciais do programa mexicano.
Conclusões
A pesquisa teve como objetivo colaborar para o amplo debate sobre o tema, bem como contribuir para a compreensão dos PTRC em diferentes contextos. Os resultados sugerem que o contexto nacional pode ter influenciado o surgimento mais precoce dos PTRC no México, assim como características peculiares como o rigor no cumprimento das condicionalidades e a primazia pela acumulação do capital humano. No Brasil, o caráter universal do SUS e o governo dos anos 2000 levaram a um programa de desenho abrangente e condicionalidades mais brandas, com o objetivo de ampliar o acesso à saúde e à educação da população mais vulnerável.
Uma limitação do estudo foi a não realização de entrevistas com atores envolvidos com o Programa Oportunidades do México, mesmo que as semelhanças e diferenças entre os programas tenham sido abordadas nas entrevistas com especialistas do Brasil.
Ainda que os programas analisados possam ter efeitos positivos em alguns indicadores de renda, de saúde e de educação dos beneficiários, os seus resultados em longo prazo permanecem como lacunas significativas na literatura, assim como os métodos para aumentar a eficiência das condicionalidades nos contextos culturais de cada país3333 Marshall C, Hill PS. Ten best resources on conditional cash transfers. Health Policy and Plan [internet]. 2015 jul [acesso em 2017 maio 24]; 30(2):742-746. Disponível em: https://academic.oup.com/heapol/article-lookup/doi/10.1093/heapol/czu051.
https://academic.oup.com/heapol/article-... .
No que se refere à renda, além das transferências monetárias às famílias, a adoção de políticas de desenvolvimento econômico que gerem empregos bem remunerados é fundamental. Quanto aos serviços sociais, para além da existência das condicionalidades, sejam elas fortes ou brandas, o que parece ser mais relevante é garantir a expansão de serviços universais de qualidade nas áreas de educação e saúde. Nesse sentido, em países desiguais, as políticas de combate à pobreza, incluindo as de transferência de renda, não podem estar dissociadas do esforço de universalização das políticas sociais, como forma de promover um desenvolvimento mais igualitário. Como afirma Cohn3232 Cohn A. Saúde e Desenvolvimento Social. Saúde Soc [internet]. 2009 [acesso em 2015 out 17]; 18(supl.2):41-47. Disponível em: http://www.producao.usp.br/bitstream/handle/BDPI/9470/art_COHN_Saude_e_desenvolvimento_social_2009.pdf?sequence=1.
http://www.producao.usp.br/bitstream/han... , o grande desafio para os governos latino-americanos seria conjugar políticas distributivas com políticas de caráter estrutural, que promovessem efetiva redistribuição social.
- Suporte financeiro: não houve
Agradecimentos
Moraes, VD é bolsista de doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Pitthan, RGV é bolsista de mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e realizou esta pesquisa pelo Programa de Apoio à Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Saúde Pública da Ensp (Inova-Ensp) e Machado, CV é bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2018
Histórico
- Recebido
03 Jan 2018 - Aceito
04 Jun 2018