O sistema de justiça biologizante-mecanicista na hermenêutica poético-linguística

André Felipe Alves da Costa Tredinnick Maria Helena Barros de Oliveira Sobre os autores

RESUMO

O presente texto analisa o sistema de justiça biologizante-mecanicista, assim entendido o hegemônico pela hermenêutica poético-linguística heideggeriana. Para tanto, é utilizado o ensaio crítico, forma de pensamento de maior alcance que a dogmática de uma metodologia, como diz Adorno. De início, apresenta-se a hermenêutica poético-linguística, que demonstra que, em algumas ocasiões, pensamentos sedimentados impedem a abertura de perspectivas para o reexame radical de uma questão. Não raras vezes, o pensamento ocidental encontra-se moldado pela perspectiva da metafísica-conceitual, que limita a investigação à localização de essências e à busca de categorias para satisfazer essa cosmologia. A seguir, demonstra-se que sistema de justiça convencional é herança do medievo sem solução de continuidade em suas concepções até os dias de hoje em todas as suas formulações estruturantes. Na Modernidade, é permeado por teses vitalistas e mecanicistas com pretensões a justificá-lo de um ponto de vista racional. Tais teses modernas, embora superadas pela ciência, continuam a constituir paradigma ativo do sistema de justiça contemporâneo. Assim, vem sendo construído como um algoritmo, a restringir a atividade humana, criativa e caótica, a uma função maquinal. A repercussão para o processo saúde-doença é apreciável e deve ser investigada apropriadamente.

PALAVRAS-CHAVE
Direitos humanos; Estado; Hermenêutica; Saúde

Introdução

Pretender analisar de modo radical o sistema de justiça convencional dos Estados contemporâneos impõe exsudar todo o condicionamento insuperável do pensamento do interior da linguagem, para promover um pensamento original, no sentido de superar a forma de pensar que busca essências, categorias e predicados para explicar, definir e catalogar instituições humanas. O desafio talvez seja como questionar efetivamente a questão?11 Heidegger M. A essência da liberdade humana: introdução à filosofia. Rio de Janeiro: Via Verita; 2012..

Talvez o imprescindível seja se apropriar dessa forma de pensar, que é poetizar: a mais inocente de todas as ocupações11 Heidegger M. A essência da liberdade humana: introdução à filosofia. Rio de Janeiro: Via Verita; 2012., assumindo a angústia de lidar com o mais perigoso de todos os bens, a linguagem, uma vez que somos um diálogo e nos escutamos uns aos outros22 Nunes B. Heidegger e a poesia. Nat. hum. 2000; 2(1):103-127., como os poetas fornecem, na análise de Nunes22 Nunes B. Heidegger e a poesia. Nat. hum. 2000; 2(1):103-127.. Portanto, dentro da hermenêutica poético-linguística, diz-se poeticamente o que só pode ser interpretado de modo pensante33 Heidegger M. Explicações da poesia de Hölderlin. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2013., isto é, escapa-se da sina metafísica-conceitual e busca-se, pela ferramenta da obra de arte, formular perguntas para investigar de modo percuciente a questão.

Especialmente no campo do Direito, há forte resistência a essa hermenêutica heideggeriana, tanto a inicial (da facticidade), que buscava o 'Ser das coisas', quanto a tardia (poético-linguística), vista como precipitada, pouco rigorosa, por vezes enigmática e que dificilmente poderia ser aproveitada na esfera jurídica, que exigiria um discurso racional44 Krell AJ. A hermenêutica ontológica de Martin Heidegger, o seu uso da linguagem e sua importância para a área jurídica. Belo Horizonte: Rev Bras Estud Políticos 2016; 113:101-147..

Aceitar algo da hermenêutica poético-linguística seria – sob essa crítica – algo ainda menos apropriado, como render-se ao discurso antirracional, um anátema para a forma metafísico-conceitual delimitante da atual cosmologia do direito, que comumente se vale do discurso racional. Por cosmologia, entendo o modelo de compreensão do mundo que expressa a forma necessariamente mutável (e diversa) do pensamento humano55 Romano R. Cosmologias. In: Enciclopédia Einaudi - Matéria-Universo. Porto: Imprensa Nacional - Casa da Moeda; 1986.. Logo, há cosmologias.

Parece que a todo tempo há uma esfaimada necessidade de apresentar conclusões, certezas, realidades e verdades. Contudo, é preciso não contrapor esses discursos: o racional e o poético não são autoexcludentes; pertencem ao humano de modo inseparável.

Pode ser oportuno apresentar uma perspectiva diversa de pensar, de modo a fornecer trilhas para um pensamento que busque experimentar situações mais originárias. Não posso falar de justiça convencional se não poeticamente, já que sou um diálogo. Não posso falar de processo saúde-doença sem o discurso poético. Se eu o fizer de modo racional, produzirei conceitos. Se o fizer de modo poético, já que não devo tirar poesia das coisas66 Andrade CD. A rosa do povo. São Paulo: Companhia das Letras; 2012., permitirei que a verdade do Ser floresça na linguagem, nesse mais perigoso de todos os bens. Essa não é a verdade das certezas, fruto do pensamento condicionado. O poema aqui, e como Heidegger77 Heidegger M. A origem da obra de arte. In: Caminhos de floresta. Lisboa: Serviço de Educação e Bolsas, Fundação Calouste Gulbenkian; 2002. enfatizou, é forma de arte igualmente possível, como um devir e um acontecer histórico da verdade e só acontece na medida em que é poetada, isto é, quando permite que a verdade brote, verdade não como expressão 'do que é', da construção científica das 'verdades', mas o não-estar-encoberto do ente enquanto ente77 Heidegger M. A origem da obra de arte. In: Caminhos de floresta. Lisboa: Serviço de Educação e Bolsas, Fundação Calouste Gulbenkian; 2002. e cuja beleza é o aparecer.

Criar uma instância dialógica, então, é o percurso do discurso poético, a 'consequência' do discurso poético, uma vez que o poema é forma de manifestação da linguagem, uma forma de linguagem tão forte que se 'mostra' o Ser88 Eco U. Kant e o ornitorrinco. Rio de Janeiro: Record; 1998., por consequência, em sua essência, dialógico99 Célan P. Alocução na entrega do Prêmio Literário da Cidade Livre Hanseática de Bremen. In: Fenati MC, organizador. Gratuita v. 2. Belo Horizonte: Chão de Feira; 2015..

Eis a chave de pensamento para, assumindo a angústia da consciência da finitude humana, com a abertura do Ser à existência, escapar da determinação do discurso da metafísica-conceitual, que domina o pensamento racional, de ordem representativa e, portanto, incapaz de seguir o rastro do não pensado e de desenvolver o que ainda resta a pensar.22 Nunes B. Heidegger e a poesia. Nat. hum. 2000; 2(1):103-127.

Que poesia? A ideia de finitude, necessária à angústia, tão bem poetada por Drummond, talvez possibilite, como diz Pöggeler1010 Pöggeler O. A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Inst. Piaget; 2001., não reduzir noção na categoria, princípio no juízo, a ligação da frase no final:

E a matéria se veja acabar: adeus, composição que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade. Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas, meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro, sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, [ideia de justiça, revolta e sono, adeus, vida aos outros legada]1111 Andrade CD. Os últimos dias. In: A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record; 1998..

Conceitos, categorizações, predicações, estruturas prisionais da própria linguagem, são insuficientes, por qualquer ângulo, para não só a mínima compreensão de uma questão como especialmente permitir a produção de conhecimento pelo percurso da análise da questão.

No desenvolvimento da hipótese, foi utilizada essa chave de pensamento, ao propor caminhos de investigação não trilhados de forma original, próprios para a experimentação, para o despontar originário das questões, para a construção do conhecimento pela poiésis do pensamento como linguagem, que, na palavra-chave da linguística voloshinoviana, é diálogo: só existe língua onde houver possibilidade de interação social, dialogal. Na ação dialógica qualificada, a pessoa humana é sendo.

Talvez o Abaporu de Tarsila do Amaral1212 Amaral T. Abaporu. 1928. Óleo sobre tela, 85 cm x 72 cm. tenha mais potencialidade de desvelar uma questão posta, como o sistema de justiça convencional, do que qualquer tentativa de explicação científica que se lhe dê. Sendo abá-pora-ú, que deglute a colonização mental do pensamento metafísico-conceitual na análise do sistema de justiça convencional, 'justiça codificação da vingança', opera-se contra o mundo reversível e as idéas objectivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dynamico. O indivíduo victima do systema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores1313 Andrade O. Manifesto antropófago. Rev Antropofagia. 1928; I(I)..

Nessa perspectiva de que um sistema de justiça não é redutível a uma fórmula mecanicista, não pode objetificar o ser humano nem se propor a solução total do conflito, mas, necessariamente, pode indicar um caminho para a experiência da justiça ela mesma.

Problemática

O sistema de justiça convencional, em sua forma estruturante, é um sistema de procedimentos fechados para a solução pragmática dos conflitos e é uma herança histórica, sem solução de continuidade, do sistema de justiça medieval, e talvez anterior, que na Modernidade ganha ares cientifizantes para legitimá-lo.

Ao se falar em um sistema de justiça, discute-se toda a ideologia envolvida na abordagem do conflito (assim delimitado o fato social 'conflito') com o intuito para promover seu desvelamento e tratamento.

Muitas vezes, entretanto, confunde-se 'sistema de justiça' com o 'sistema de justiça legal', ou 'sistema de justiça convencional', que, embora hegemônico, em absoluto, representa a totalidade das possibilidades de abordagem de um conflito.

O sistema de justiça convencional, na hegemonia que se apresenta nas sociedades contemporâneas, é uma aparente herança da Modernidade, período histórico que se inicia com as 'conquistas das liberdades individuais' nas revoluções liberais exitosas na Europa e nos Estados Unidos da América.

É imperioso observar, entretanto, que não houve ruptura entre os projetos medieval e moderno no que tange à cosmovisão do que se concebe como sistema de justiça convencional.

Tal sistema de justiça baseia-se desde sempre na falácia biologizante da premissa do livre arbítrio do sistema de justiça, pelo qual a pessoa humana seria dotada da livre escolha entre adotar ou não determinada conduta, o que não encontra respaldo em nenhuma análise científica. Não há a liberdade de decidir na mente humana. É um constructo, não um fato1414 Cashmore AR. The Lucretian swerve: The biological basis of human behavior and the criminal justice system. Proc Natl Acad Sci. 2010;107(10):4499-4504..

Diversas hipóteses, como a teoria reichiana da psicologia das massas do fascismo1515 Reich W. Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes; 2001., demonstrando a limitação e a relevância de outra teoria, a do condicionamento social pela classe econômica, a influência ambiental, paralelos evolutivos entre os grandes primatas etc., demonstram que o livre arbítrio é insustentável como premissa de um sistema que se baseia no cumprimento ou não de uma norma pela vontade humana.

Se não há ciência a sustentar a liberdade de escolha como pressuposto do sistema de justiça, como ele se mantém? Continuamos na senda histórica da hermenêutica poético-linguística.

Propõe-se, desse modo, o sistema de justiça biologizante-mecanicista, o convencional, soa lógico na redução criada pela metafísica-conceitual, como expresso na Figura 1.

Figura 1
Algoritmo do procedimento medieval de acusação de bruxaria

Nota: A figura foi adaptada por Christina Larner em sua análise pioneira dos julgamentos de bruxas na Escócia.

A Figura 1, adaptada a partir do modelo de Box1616 Box S. Deviance, reality, and society. 2. ed. London; New York: Holt, Rinehart and Winston; 1981., apresenta o fluxograma do processo penal medieval e descreve as muitas interações sociais que o julgamento de uma mulher acusada de bruxaria envolveu, que aqui não são relevantes1717 University of Oregon. The Witch in Court [internet]. Oregon: University of Oregon; 2019. [acesso em 2019 maio 10]. Disponível em: https://pages.uoregon.edu/dluebke/Witches442/Processing.html.
https://pages.uoregon.edu/dluebke/Witche...
.

Do medievo, esse fluxograma passa intacto pelo projeto moderno em toda sua estrutura, recebendo e plasmando a lógica mecanicista (e moderna) newtoniana: um mundo previsível, calculável, ordenado, pronto para ser descrito nas leis que, inexoravelmente, o sujeitam.

Essa cosmovisão levou à busca pela verdade de todas as coisas1818 Carvalho S. Antimanual de criminologia. 6. ed. São Paulo: Saraiva; 2015. que ainda hoje, fruto desse condicionamento insuperável do pensamento, encontra-se espraiada nas decisões dos tribunais brasileiros na apresentação de uma verdade.

O desenho ideal – o sistema de justiça como categoria – não mais importa. A ideia de que existe para aplicar o direito a situações concretas e garantir o cumprimento de obrigações jurídicas decorrentes da lei ou do costume, de decisões judiciais e de acordos privados e como locus de contestação das decisões públicas por meio de mecanismos como o controle de constitucionalidade ou tutela de interesses difusos e coletivos1919 Menezes-Filho NA, Souza AP, Souza AP, organizadores. A carta: para entender a Constituição brasileira. São Paulo: Todavia; 2019..

Importa como estrutura fundante de uma racionalidade artificial, imposta, idealizada. Aí pode ser descrito como um sistema no qual um indivíduo, neutro, retendo autoridade e um saber, apresenta-se como julgador, distante das partes em litígio, ou do indivíduo que é acusado de uma prática ilícita, e com a instrução probatória proferirá uma decisão com força coativa sujeita a recurso.

Grosso modo, temos essas características já na Baixa Idade Média, como era praticado, por exemplo, no Reino de Valencia, por meio dos chamados livros de 'Denunciacions': denúncias apresentadas ante a justiça criminal, seguidas, em alguns casos, da petição para que o magistrado averigue a verdade sobre os fatos expostos e, em outros, do desenvolvimento do processo até a promulgação da sentença2020 Iradiel P, Igual LD, Navarro EG. El país valenciano en la Baja Edad Media: estudios dedicados al profesor Paulino Iradiel. València: Universitat de València; 2018.. Tal estrutura é comum ao Tribunal da Inquisição, como se observa nos seus registros históricos2121 Dellon C, Amiel C, Lima A, et al. A inquisição de Goa. São Paulo: Phoebius; 2014. e documentos oficiais2222 Kramer H, Sprenger J. O martelo das feiticeiras. 2. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; 1991.. A Figura 2 apresenta o procedimento hipotético, sem variáveis, da justiça da infância e juventude brasileira.

Figura 2
Procedimento hipotético de adolescente em conflito com a lei

Se for expresso em um algoritmo, palavra derivada da latinização do nome do matemático persa Mohammad ibn Musa al-Khwarizmi (c. 780 – c. 850), concebido como um processo ou conjunto de regras como instruções a serem seguidas para operações de solução de um dado problema2323 Branquinho JMB, Murcho D, Gomes NG. Algoritmo. In: Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes; 2006., especialmente por um computador (Figura 3), teremos:

Figura 3
Algoritmo da fase preliminar da apuração de ato infracional

Nota: Na parte esquerda da figura está o desenho do algoritmo em suas possibilidades hipotéticas, e na parte da direita, a transposição para um procedimento real da justiça da infância e juventude e sua continuação a partir da representação em novo algoritmo.

Esse 'modo programável' representa a lógica do processo, aqui esboçado em sua fase preliminar, com as convenções indicadas à esquerda e fases representadas à direita. Tal modelo se replica nas demais representações gráficas de qualquer procedimento do sistema de justiça convencional e de sua expressão matemática em algoritmo.

Transpondo esse mundo para o mundo 'real', temos, ali, na geografia da sala de audiências, a quase universal configuração arquetípica do poder – o 'elemento terceiro', a referência a uma ideia (regra universal) de justiça e uma decisão com poder executório, ali se encontram na ideologia do julgamento, nessa 'anedota de civilização':

Uma mesa; atrás dessa mesa, que os distancia ao mesmo tempo das duas partes, estão terceiros, os juízes; a posição destes indica primeiro que eles são neutros em relação a uma e a outra; segundo, implica que o seu julgamento não é determinado previamente, que vai ser estabelecido depois do inquérito pela audição das duas partes, em função de uma certa norma de verdade e de um certo número de ideias sobre o justo e o injusto; e, terceiro, que a sua decisão terá peso de autoridade2424 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 2003.(45).

Em teoria, em todo o mundo, e considerado um marco civilizatório, o sistema de justiça convencional funda-se em regras, valores e princípios que se delineiam em um processo para promover a análise de um conflito e dirigido a uma solução – potencialmente sujeita a recurso – por uma corte imparcial e previamente existente.

O sistema de justiça convencional baseia-se inteiramente na construção da necessidade de um corpo técnico de julgadores, acusadores e defensores distinto da figura do governante, na clássica concepção da tripartição de poderes e suas mitigações e relativizações tanto teóricas como fáticas ao longo da história.

Essa tecnologia garantiria a aplicação dessas regras, valores e princípios para possibilitar o ideário do que se entende por um 'julgamento justo', dotado sempre da imensa carga do 'verdadeiro': 'o processo deve servir para a apresentação da verdade e não possuir caráter pedagógico'2525 Garapon A. O Guardador de Promessas - Justiça e Democracia. Lisboa: Instituto Piaget; 1998..

No entanto, talvez a questão difícil seja a verdade como conceito, como universal e como eterna. A ideia de uma verdade dessa estatura é típica da metafísica-conceitual. Contra essa ideia de 'verdade', já se insurgia Nietzsche, ao considerar que: 'A verdade é a mentira em que consentimos'2626 Nietzsche F. Verdade e mentira no sentido extramoral [Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischem Sinn]. São Paulo: Hedra; [1873] 2007., ou seja, não que 'tudo pode', e daí niilismo, ou que haja múltiplas verdades, mas a verdade está em outro estatuto. Uma saída possível é tentar escapar dessa verdade Moderna europeia, o 'modelo positivo de verdade': palavras mudam seu sentido para construir um modo de pensar.

Propõe-se o desvelamento da linguagem nessa hermenêutica. Se a realidade é 'um evento europeu recente', dentro da 'transformação' das palavras latinas ao longo da história, a saber: de 'res' ('coisa') do latim romano para o latim medieval (escolástico), 'realis' ('real') e 'realitas' ('realidade') de discussão para encarnar a ideia de 'poder e propriedade', podemos falar do modelo de adequação das proposições e a realidade (verdade), em um modo pelo qual a palavra pode funcionar tanto para o controle da língua quanto para o controle social.2727 Larrosa J. Agamenon e seu porqueiro. In: Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica; 2017..

Essa realidade, desvinculada do diálogo e da vida social, essa realidade independente e única, é a (aparente) realidade da ciência. O teste de todo conhecimento é a experiência, anota Feynman, mas a fonte de conhecimento e das leis a serem testadas exige imaginação, para criar, questionar, criticar e se insurgir2828 Feynman RP. Física em 12 lições: fáceis e não tão fáceis. 2. ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira; 2017.. Daí, 'para combater a verdade do poder é necessário colocar em dúvida o poder da verdade'2727 Larrosa J. Agamenon e seu porqueiro. In: Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica; 2017..

O problema do pensamento metafísico-conceitual reside aí, em que 'a única verdade verdadeira' é a 'verdade do poder', misturando-se a palavra 'verdade' com outras parecidas na época da globalização comunicativa e informativa ('objetividade'), 'realidade', 'certeza' e outros, conforme Larrosa2727 Larrosa J. Agamenon e seu porqueiro. In: Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica; 2017..

O modo heideggeriano de renunciar ao controle do Outro é chegado, pelo esgotamento do sistema de justiça baseado justamente nessa ordem de ideias. 'Talvez seja a hora de aprender um novo tipo de honestidade'2727 Larrosa J. Agamenon e seu porqueiro. In: Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica; 2017., aquela honestidade exigível para se habitar com o máximo de dignidade possível um Mundo atravessado “pelo caráter plural da verdade, pelo caráter construído da realidade e pelo caráter poético e político da linguagem”2727 Larrosa J. Agamenon e seu porqueiro. In: Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica; 2017.(206). A realidade não é realidade, mas a questão. A verdade não é verdade, mas o problema.

Temos de aprender a viver de outro modo, a pensar de outro modo, a falar de outro modo e, especialmente, a ensinar de outro modo e aqui as lições de Guàrdia2929 Guardia FF. A Escola Moderna. Piracicaba: Ateneu - Diego Giménez; 2010. e Freire3030 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987., “levando à autoridade não autoritária e à liberdade não licenciosa” para “buscar uma cara humana que não endureça na autoridade”2727 Larrosa J. Agamenon e seu porqueiro. In: Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica; 2017.(165).

Se isso é um desvelamento da linguagem, desvelemos como essa estrutura absurda aparentemente consegue se manter e obter adesão da pessoa humana que, ao fazê-lo, renuncia a sua autonomia, sua liberdade e sua vida privada.

Pela radicalização da teoria foucaultiana do poder que Mbembe3131 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições; 2018. faz, não hesito em apontar que não é apenas o controle dos corpos que o dispositivo da justiça convencional, imbuído dessa verdade/realidade, busca estabelecer. Ele se direciona para a própria existência, estabelecendo o poder como gestão da vida e distribuição da morte3131 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições; 2018.. A seleção dos que permanecerão vivos e os que devem ser eliminados, entre os que são privilegiados por raça, classe e gênero e os que são descartáveis na lógica da segregação essencial ao sistema econômico do capitalismo.

No aprofundamento dessa análise, verificam-se os fenômenos da falência sistêmica da justiça, tanto na matéria patrimonial, pela judicialização da vida, como na criminal, por sua espetacularização patológica2525 Garapon A. O Guardador de Promessas - Justiça e Democracia. Lisboa: Instituto Piaget; 1998. e políticas de encarceramento em massa, precedidas pela pulsão neoliberal da gestão do modelo, sempre voltadas para o controle total e eliminação física.

Para Garapon2525 Garapon A. O Guardador de Promessas - Justiça e Democracia. Lisboa: Instituto Piaget; 1998. citado por Oliveira e Carvalho Neto3232 Oliveira VE, Carvalho Neto E. A judicialização da política: um tema em aberto. Polit hoje; 2005; 1(15):1-21., a evolução da sociedade democrática transformou a atuação da justiça, o que significa que:

[...] os laços sociais, a tradição, os costumes, a religião, foram desconstruídos pelos ideais de igualdade e liberdade da democracia. Como detinham o controle natural dos conflitos, a própria sociedade democrática teve de substituí-los, passando à justiça a atribuição de monitorar a liberdade e aplicar sanções aos excessos3232 Oliveira VE, Carvalho Neto E. A judicialização da política: um tema em aberto. Polit hoje; 2005; 1(15):1-21.(15).

Por esse motivo, conforme continua o autor, transferiu-se ao Poder Judiciário a missão de solucionar os conflitos que anteriormente não lhe pertenciam, e agora são seu objeto, em razão dessa 'maximização do controle social'. Nessa estrutura capitalista, há a necessidade de maquinizar e reduzir o humano artístico, caótico e imprevisível ao lógico, eficiente e controlável.

Não há espaço para o amor fati nietzschiano: o sistema de justiça biologizante-mecanicista quer-se científico como a 'ciência' que o embasa. Toda a estrutura é puramente metafísico-conceitual, com graves tendências ao totalitarismo na ideação de um futuro a construir ou a ilusão de um correto, verdadeiro e real.

Em muitos países, o sistema de justiça convencional vem sendo 'reformado' não para humanizá-lo, mas para atender a critérios como o controle de custos, indicadores de desempenho, remuneração de juízes baseada no mérito, generalização do processamento em tempo real de processos criminais, introdução de institutos típicos do sistema americano como plea guilty, delação, plea bargain, julgamento e execuções de pessoas portadoras de transtorno mental etc.

Essas inovações não são um capricho autoritário ou uma moda passageira. Elas marcam o advento de um novo modelo de justiça: a justiça neoliberal. Em dois patamares, desenvolve-se essa 'forma' de 'justiça'. Um é em nome da 'luta judicial contra a corrupção política', tida como 'mal maior' dessas nações, que leva a um ativismo judicial que vem levando a América Latina a uma escalada de ações cada vez mais espetaculares e públicas nessa área, estabelecendo o que Santos chama de 'teste democrático dos tribunais'3333 Santos BS. Para uma revolução democrática da justiça. Coimbra: Almedina; 2014..

O outro é a obsessão de agências internacionais vinculadas ao capital internacional pela reforma do sistema judicial no sentido de torná-lo mais eficiente e acessível, promovendo, na verdade, reformas tecnocráticas em detrimento da necessidade de uma reforma radical para responder às aspirações democráticas dos cidadãos, sujeitos aos abusos do Estado e dos detentores do poder econômico3434 Santos BS. A cor do tempo quando foge: uma história do presente: crônicas (1986-2013). São Paulo: Cortez; 2014..

A justiça neoliberal é a consequência óbvia de um sistema jurídico-político que nada mais é do que suporte ao sistema econômico e instrumento de guerra de classes. Se o neoliberalismo influencia o sistema de justiça mais do que qualquer outra instituição social, produz uma justiça empresarial como motor (a linguagem da economia) e como alvo (gestão da justiça), como diz Garapon3535 Garapon A. La raison du moindre État: le néolibéralisme et la justice. Paris: Odile Jacob; 2010..

Nesse sentido, importa notar o emblemático estudo publicado na concomitância com a reforma do Poder Judiciário nacional3636 Brasil. Emenda Constitucional nº 45 de 30 de dezembro de 2004. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 31 Dez 2004., produzido no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no qual os fundamentos do modelo linha de frente-retaguarda estão relacionados com a visão das organizações de sistemas, aplicável ao serviço público a partir de um 'consenso' produzido “entre as autoridades mais representativas do Poder Judiciário”3737 Fundação Getúlio Vargas. A reforma do Poder Judiciário no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; 2005: 84-92.(86).

Para esse 'modelo' de gestão, cuja canōn máxima é 'eficiência', a partir da indústria da computação “e produtos de consumo embalados pelos fabricantes e vendidos no varejo, como alimentos, cigarros e cosméticos”3737 Fundação Getúlio Vargas. A reforma do Poder Judiciário no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; 2005: 84-92.(85), que são os clientes típicos desse modelo organizacional, apresenta-se o modelo que inspirou a gestão neoliberal do sistema de justiça convencional: as pessoas atuando ordenada e obedientemente como quase máquinas (a máquina de pedir/denunciar, a máquina de defender e a máquina de julgar), o procedimento judicial como linha de montagem e a solução do litígio pelo julgamento como produto.

Há algo de perverso na equiparação da atividade jurisdicional de solucionar um conflito a uma linha de montagem da indústria capitalista cujo objetivo principal é a maximização do lucro e a minimização dos custos, em sentido latíssimo, que é regida pela lógica desumanizante do fordismo primitivo e da atual tendência à flexibilização total do trabalho3838 Maeda P. A Era dos zero direitos. São Paulo: LTr Editora Ltda.; 2017..

Nesse passo, há uma crescente aposta na força de algoritmos que, ainda que aparentemente eficientes, revelam imensa carga de criptopoder do programador3939 Almeida JCG, Cidreira Neto A, Soares JPF. Parecer (0673109). Brasília, DF: UnB; 2018. e com fortes tendências a aumentar o poder repressivo do Estado em detrimento da capacidade crítica do ser humano ocupante do cargo de magistrado.

O importante relatório da Universidade de Cambridge4040 Kleinberg J, Lakkaraju H, Leskovec J, et al. Human Decisions and Machine Predictions. Cambridge: National Bureau of Economic Research; 2017. demonstrou que juízes mais criteriosos na manutenção da prisão cautelar de indivíduos postos sob investigação criminal não são tão 'eficientes' quanto juízes que mantêm presos sem critério os acusados, sendo estes os substituíveis preferenciais pelo algoritmo, porque eles aumentam as prisões, mesmo sem reduzir proporcionalmente as taxas de crimes.

Esse algoritmo foi bem avaliado porque não incidiu no racismo de outro algoritmo, que se propunha a 'prever' a possibilidade de um indivíduo cometer crimes4141 Pennsylvania Commission on Sentencing. Proposed Sentence Risk Assessment Instrument. [internet] Pennsylvania: Pennsylvania Commission on Sentencing; 2018. [acesso em 2019 jul 10]. Disponível em http://www.pacodeandbulletin.gov/Display/pabull?file=/secure/pabulletin/data/vol48/48-44/1696.html.
http://www.pacodeandbulletin.gov/Display...
, encarcerando mais, evidentemente, pessoas negras e hispânicas4242 Nellis A. The Color of Justice - Racial and Ethnic Disparity in State Prisons. Washington D.C.: The Sentencing Project; 2016., o que pôde ser 'corrigido', reprogramando o algoritmo.

Com o único objetivo de produzir lucro ou de servir à sua produção com o menor custo possível, vemos a opção por uma solução antidemocrática, que 'busca uma decisão inteiramente racional, prescindindo de toda palavra'3535 Garapon A. La raison du moindre État: le néolibéralisme et la justice. Paris: Odile Jacob; 2010..

Na advertência de Garapon, verifica-se que a passagem de um modelo retributivo a um modelo restitutivo, como ele chama, é o indício da reviravolta antropológica de uma justiça, pois, na sua opinião, renuncia a um 'horizonte educativo proposto àquele que infringe a lei para maximizar os interesses das vítimas].

Se por um lado representa a possibilidade de consecução do Estado Democrático de Direito, que é o direito a um julgamento a partir de regras preestabelecidas, em um desenvolvimento por meio de um processo permeado por princípios construídos historicamente como resistência ao autoritarismo (devido processo legal em prazo razoável, linguagem compreensível, par conditio, juiz imparcial, acusador distinto, ampla defesa, contraditório etc.), por outro, não pode ser tido como um sistema que pretenda abraçar a totalidade dos conflitos e dar conta de resolver a realidade das disputas humanas.

Metodologia

Bem compreendido que a chave de pensamento heideggeriana não é propriamente um método, já que, como diz o próprio4343 Heidegger M. As questões fundamentais da filosofia: ("problemas" seletos da "lógica"); São Paulo: WMF Martins Fontes; 2017., 'método' aqui é a maneira como o ente, como o sistema de justiça, é tematizado, mas um modo de pensar radicalmente diverso e por existenciários, estruturas como portais, sendas ou veredas. Apontar caminhos antes de apresentar essências, verdades e realidades.

Conjecturas sobre como se sustenta tal sistema, uma negação da própria vida, é algo a ser investigado. Alguns caminhos já foram apontados aqui. E como tal sistema repercute na saúde humana? Em minha pesquisa de campo sobre a influência dos sistemas de justiça convencional e de restaurativa sobre o processo saúde-doença4444 Tredinnick AFAC. A Justiça que adoece e a que cura: os sistemas de Justiça restaurativa e convencional na determinação social do processo saúde-doença. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca. Fundação Oswaldo Cruz; 2019. 288 p., talvez tenha possivelmente identificado algumas respostas claras. Propus comparar o sistema de justiça convencional ao sistema de justiça restaurativo, na 'influência' que um ou outro poderia ter no processo saúde-doença dos seus usuários. Busquei entrevistá-los por entrevista com roteiro semiestruturado.

No roteiro assim construído, na hermenêutica poético-linguística, busca-se um poeta que, como Hölderlin, pense de um modo mais originário4545 Heidegger M. Carta sobre o humanismo. Lisboa: Guimarães & Ca Editores; 1973., em conexão com seu povo e com a história de seu povo, como, por exemplo, Drummond66 Andrade CD. A rosa do povo. São Paulo: Companhia das Letras; 2012., poetas que apresentam em suas obras elementos necessários para atender a tal giro de pensamento.

O formulário abaixo mostra um modelo para promover a hermenêutica, em fases sucessivas, nas quais é possível destruir significados, conceitos e categorias das palavras, para então buscar o seu sentido mais profundo, e depois parte-se para uma verificação da área que o poema abriu, o lugar onde o Mundo se revela, já que o interpretar compreender-se diante do texto que a fala poética traz ao Mundo. Busca-se aquilo que está mais escondido no poema, a origem do que se oculta e se desoculta em todo o poema (quadro 1).

Quadro 1
Exposição do poema ao entrevistado pela hermenêutica poético-linguística heideggeriana

A partir daí, dessas descorticações, o entrevistado, muitas vezes, pode encontrar um espaço para promover uma experiência com a articulação mais íntima de nossa presença, e podemos nos transformar com essas experiências, como discorre Heidegger4747 Heidegger M. A essência da linguagem. In: A Caminho da Linguagem. Bragança Paulista: Vozes; 2003..

Em Drummond66 Andrade CD. A rosa do povo. São Paulo: Companhia das Letras; 2012., temos um exemplo no poema 'Procura da poesia', que na linha hermenêutica que se propõe, inicia com o verso 'Não faças versos sobre acontecimentos' e prossegue fugindo do categórico com pretensões universais: 'Não cantes tua cidade, deixa-a em paz'; e então sugere: 'Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos'.

A hermenêutica poético-linguística empregada nessas entrevistas pretende possibilitar essa 'abertura de comportamento' e aflorar do Ser, em harmonia com essa visão da saúde humana, já que, como entende Silveira4848 Silveira N. Os inumeráveis estados do ser. Rio de Janeiro: Museu das Imagens do Inconsciente; 1987., a arte é uma forma direta de expressão, a mais desveladora do Ser, capaz de fazê-lo fulgurar em direção a sua liberdade, o não controle, para permitir a verdade do Ser na história do Ser, o acontecimento-apropriativo, em que as palavras 'história' e 'acontecimento' são diferenciadas de seu sentido corrente, para representar a busca do Ser por um dizer oculto na própria linguagem e a essência poética da linguagem, buscar franquear o Ser para que o ente apareça33 Heidegger M. Explicações da poesia de Hölderlin. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2013..

Por essa hermenêutica, por exemplo, o entrevistado Karaxim – nome de um mago personagem de Hilda Hilst –, ao ser exposto à poesia de Chacal4949 Chacal. Belvedere: 1971-2007. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras; 2007., 'Rápido e Rasteiro', desvela uma metáfora de uma doença. Nem é preciso dizer que ele é um senhor de meia idade, severamente atingido por doença incapacitante, pai de um jovem que se envolveu com ato infracional.

Ah, nesse caso aí, é como se fosse uma doença. Você pega uma doença, aí não tem cura. Você fica o resto da vida lutando com ela. Pra poder conseguir vencer ela, mas não consegue. (Cora).

Sua luta diária contra suas limitações não representa a 'doença' como limitação, como 'mal', como o contrário de 'saúde', mas o trágico da existência, e, desse modo, Karaxim não se 'conforma' com a sua condição; antes, exerce um domínio sobre sua condição e a recebe com amor fati.

Como uma boa descrição do sistema de justiça estatal, há o depoimento de Américo, profissional da justiça, narrando a mecanização do indivíduo, visto como objeto de uma abordagem pela intitulada ciência do direito. Aqui há teoricamente um tempo, um modo, falas, próprios da verticalidade do poder:

A: O cliente, que você acompanha na justiça comum, político... Curso superior aquela coisa... Ocupando um cargo público... Talvez. Ele relata pra você, quando vai entrar numa corte, relata uma angústia, uma ansiedade? Na véspera? Você sente isso?

A: É interessante. Depende muito do cliente. O cliente mais novato, né? O indivíduo que tá começando, você percebe aquela ansiedade, aquele... Um certo respeito. Já aquele macaco velho, ele já vai lá, ele parece que ele já tá querendo conduzir o procedimento [risos]. Ele já sabe o que vai fazer ali, então ele vai com muita naturalidade, e uma certa frieza. Isso é, às vezes até...

P: Impressiona, né?

A: Impressiona. A forma como lida, a frieza com que lida com aquelas questões. E é como se fosse: 'É mais um, menos um. Se der isso, vamos fazer aquilo'. E isso é, parece que sai um pouco da realidade e vai pra uma questão de uma lógica cartesiana. 'Eu vou fazer isso, aquilo'. Muito...

P: Entendi.

A: De vez em quando, assustador [risos].

P: Imagino o que você tá falando.

A: Sai da, parece que o indivíduo se deveste de toda a humanidade. Ele tá ali pra poder resolver o seu problema, né? Da forma como ele acha mais conveniente, né?

A lógica mecanicista do processo, concebido como uma conquista da ciência jurídica, representa em última instância a negação do humano que, transformado em objeto, é incompatível com qualquer experiência que se possa ter de justiça.

Considerações finais

Um sistema de justiça desenhado a produzir uma verdade, isto é, como diz Derrida em suas palavras, a dimensão da justiça dos enunciados performativos, que possui certa qualidade de violência, resvala em um 'estatuto da verdade'. Paradoxalmente, é por causa desse transbordamento do performativo, por causa desse adiantamento sempre excessivo da interpretação, por causa dessa urgência e dessa precipitação estrutural da justiça que essa não tem horizonte de expectativa (reguladora ou messiânica). Todavia, por isso mesmo, ela talvez tenha um futuro, um porvir que precisamos distinguir do futuro. A justiça permanece porvir. Talvez seja por isso que a justiça, na medida em que não é só um conceito jurídico ou político, abre ao porvir a refundação e refundição do direito.

Maquinado e ideado como símile ao modo de produção capitalista, constitui-se em determinação social da saúde, a impactar negativamente o processo saúde-doença: antes de simplesmente perpetuar iniquidades, próprias da sociedade em guerra de classes, torna-se agora máquina inumana, voltada não mais para a solução de litígios, porém para a produção de números, dados e resultados, em uma eficiência racional e inumana.

Onde o ser humano poderá se desenvolver sob uma justiça neoliberal que não novamente se alienando, se oprimindo e se negando? No algoritmo do sistema de justiça convencional não há espaço para o desviante, o caótico e o imprevisível, traços fundamentais da existência humana.

Se é evidente que, no modelo do conceito ampliado de saúde, múltiplos fatores acabarão por, de um modo ou outro, influenciar o processo saúde-doença, é certo que as iniquidades são um traço marcante de uma repercussão antivital, que exigem sua eliminação.

A justiça – liberta de análises metafísico-conceituais –, longe de pretender nada ver ou tudo ver com olhos clarividentes, como diz Nietzsche, desvela-se como experiência impossível e, portanto, demanda percepção, construção coletiva e dialogicidade, atitudes incomuns a uma investigação clássica do tema, que vou experimentar provocando o pensamento nos seus limites.

Se não é reformulável, se sempre incidirá em imperfeições já que humano, demasiado humano, o sistema de justiça convencional não melhorará ou para ele se encontrará uma fórmula para torná-lo eficiente, perfeito, acabado. Talvez demande ser visto como um caminho, entre muitos caminhos possíveis e desejáveis.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2019
  • Aceito
    29 Out 2019
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