Práticas restaurativas na gestão de uma equipe de Estratégia Saúde da Família: relato de experiência em Pato Branco, PR

Clodoaldo Penha Antoniassi Janine Gehrke Pessotto Luciane Bergamin Sobre os autores

RESUMO

O presente artigo trata-se de um relato de experiência, que contextualiza a importância das práticas restaurativas como ferramentas no gerenciamento de conflitos na Estratégia Saúde da Família, realizado em um município do sudoeste do Paraná, entre os anos de 2017 e 2018. O objetivo foi relatar a experiência da utilização das técnicas de Comunicação Não Violenta (CNV) e processo circular para gerenciar conflitos e promover o trabalho colaborativo na Unidade de Saúde Alvorada, em Pato Branco, Paraná. Para o relato, optou-se por articular a revisão da literatura sobre práticas restaurativas à experiência. Os resultados incluem maior integração e responsabilização da equipe de saúde, produção de encontros com reflexão coletiva, utilização da CNV e processo circular na gestão do trabalho e o retorno dos grupos de caminhada para hipertensos e diabéticos. Ressalta-se a importância de estudos nessa área, bem como a introdução de temas ligados às práticas restaurativas em disciplinas durante o período de formação, a fim de proporcionar aos profissionais da gestão e da assistência ferramentas para lidar com conflitos que possam ocorrer em suas futuras atuações profissionais.

PALAVRAS-CHAVE
Organização e administração; Liderança; Relações interpessoais; Estratégia Saúde da Família

Introdução

A Estratégia da Saúde Família (ESF) surgiu com o objetivo de alterar o modelo assistencial em saúde para um sistema centrado no usuário, em que o cuidado desse indivíduo é o imperativo ético-político para a organização do atendimento. O trabalho em equipe no contexto da ESF ganha uma nova dimensão no sentido da divisão de responsabilidades do cuidado entre os membros do grupo, no qual todos participam com suas especificidades contribuindo para qualidade das ações de saúde11 Figueiredo WM, Camargo AM, Ribeiro LG. Estratégia da saúde da família: avaliação da percepção da comunidade / Family health strategy: assessment of community perception. Braz. J. of Develop. [internet]. 2018 [acesso em 2019 jan 21]; 4(6):3579-96. Disponível em: http://www.brjd.com.br/index.php/BRJD/article/view/364.
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No trabalho em equipe, é imprescindível que se abordem as relações interpessoais como processos que têm como premissa a mutualidade, o convívio, as trocas entre os indivíduos. Estas são intensamente mediadas pelos sentimentos dos envolvidos, e para evitar interferências nas relações, faz-se necessário diálogo franco e exposição de suas percepções, a fim de evitar o distanciamento, a superficialidade e a incomunicabilidade22 Pinho LB, Santos SMA. O relacionamento interpessoal como instrumento de cuidado no hospital geral. Cogitare Enferm. [internet]. 2007 [acesso em 2019 jan 19]; 12(3). Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cogitare/article/view/10038.
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. No processo das relações interpessoais, a comunicação se tornou um instrumento essencial, pois pode ser utilizada para estimular, motivar e até solucionar conflitos, que estão presentes rotineiramente no dia a dia dos gerentes das organizações da saúde33 Cecílio LCO. Can conflict be used as the "raw material" for health services management? Cad. Saúde Pública [internet]. 2005 [acesso em 2019 jan 21]; 21(2):508-16. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-311X2005000200017&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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As práticas restaurativas são formas de gerenciamento de conflitos muito adotadas na Justiça Restaurativa. No contexto das Unidades Básicas de Saúde (UBS), pode-se utilizar, por exemplo, a Comunicação Não Violenta (CNV) e o Processo Circular. Não obstante, a literatura nos mostra que essas ferramentas ainda são incipientes no cenário brasileiro44 Ferrão IS, Santos SS, Dias ACG. Psicologia e Práticas Restaurativas na Socioeducação: Relato de Experiência. Psicol cienc Prof [internet]. 2016 [acesso em 2019 set 16]; 36(2):354-363. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932016000200354&lng=en&nrm.
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Na abordagem dessas ferramentas, o facilitador, papel que deve ser ocupado preferencialmente pelo gerente da UBS, auxilia as partes, direta ou indiretamente envolvidas, a realizarem um processo dialógico visando transformar uma relação de resistência e oposição em uma relação de cooperação e colaboração. Nesse processo, os envolvidos decidem coletivamente como lidar com circunstâncias decorrentes do ato conflituoso. A ideia é promover reflexão, restauração e responsabilização, permitindo o fortalecimento das relações e dos laços entre as pessoas. Elas também ajudam pessoas a lidar com os conflitos de forma diferenciada, pois, ao desafiar padrões tradicionais, possibilitam a percepção dos conflitos como oportunidades de mudança e de aprendizagem, ressaltando os valores da inclusão, do pertencimento, da escuta ativa e da solidariedade.

Nesse sentido, questionou-se: como a utilização das técnicas de comunicação não violenta e o processo circular poderiam auxiliar no gerenciamento de conflitos em unidades básicas de saúde? Dessa maneira, o presente relato visa contribuir para a compreensão de como as técnicas da CNV e do Processo Circular podem auxiliar no gerenciamento de conflitos em UBS.

Metodologia

Trata-se de um relato de experiência, que busca descrever as estratégias de gerenciamento de conflitos utilizadas pela enfermeira da equipe ESF 2 na UBS Alvorada em Pato Branco, Paraná, realizado no período do Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidade Básica de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado promovido pela Universidade Federal Fluminense (UFF), nos anos de 2017 a 2018.

Para a realização do presente relato, utilizou-se a revisão da literatura acerca de práticas restaurativas, com foco na CNV e no Processo Circular, articulando-a ao relato de experiência.

Relato de experiência: aplicação das ferramentas CNV e Processo Circular em Pato Branco, PR

O relato foi construído em três momentos relacionados com a utilização de práticas restaurativas na gestão da ESF. O primeiro desvela a percepção inicial da equipe sobre as fragilidades e desafios no processo de trabalho da ESF do município de Pato Branco. O segundo revela os ‘movimentos de encontro’ que a gestão e os trabalhadores realizaram para solucionar os problemas, por fim, o terceiro trata da Estratégia de utilizar a CNV e o Processo Circular no processo de trabalho da equipe.

PRIMEIRO MOMENTO

A Unidade de Saúde Alvorada é uma das mais antigas do município de Pato Branco e atende cerca de 6 mil pessoas, divididas entre duas equipes (ESF 1 e ESF 2), com territórios adscritos. Cada equipe é composta por um médico, um enfermeiro, um cirurgião-dentista, um auxiliar de saúde bucal, dois técnicos de enfermagem e seis Agentes Comunitários de Saúde (ACS). A equipe que recebeu a intervenção foi a ESF 2, que, na época, possuía em torno de 3.200 pessoas cadastradas. A equipe passava por dificuldades de relacionamento interpessoal entre os profissionais, distanciamento entre eles e conflitos frequentes. Havia necessidade iminente de uma maior atenção por parte de gestores e integrantes das equipes em relação ao desenvolvimento de mecanismos que reforçassem a interação e integração entre seus membros. Não havia uma definição clara de gerência das equipes; e, intuitivamente, o enfermeiro acabava por assumir a função de liderança, organizando todas às sextas-feiras à tarde reuniões com a equipe para planejar atividades e expor necessidades.

As reuniões eram conflituosas e geralmente não se alcançavam conclusões claras do que estava gerando as discordâncias. Alguns pontos eram recorrentes nesses encontros, como a grande procura da população pelo atendimento centrado no médico, o que distanciava os usuários dos demais profissionais da equipe e a baixa adesão da população aos grupos de educação e prevenção ofertados pelos profissionais, principalmente o grupo de caminhada para hipertensos e diabéticos. Esse grupo surgiu no ano de 2013, com a implantação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) em Pato Branco, e foi intitulado ‘Hiperdia para caminhar’. Na época de sua implantação, houve uma mudança na concepção sobre educação em saúde dos profissionais da equipe, antes focada na entrega de medicamentos e em palestras com pouca variação de tema.

O objetivo principal do ‘Hiperdia para caminhar’ era estimular a criação de grupos de caminhadas para hipertensos e diabéticos nas unidades de saúde do município. No início do grupo, a participação dos profissionais e da população era expressiva, os profissionais do Nasf participavam apoiando a equipe em dias preestabelecidos em cronograma, geralmente duas vezes por semana. No decorrer do tempo, percebeu-se que a equipe da ESF não mais se responsabilizava como antes por essa atividade. Passaram a ter a compreensão de que, como o grupo foi idealizado pelo Nasf, somente seus profissionais deveriam conduzi-lo. Nesse momento, a enfermeira percebeu que as falhas no processo de trabalho eram preocupantes e que os conflitos internos não favoreciam para que elas pudessem ser encontradas e corrigidas.

SEGUNDO MOMENTO

Por meio das reuniões de equipe e da percepção dos conflitos, a enfermeira da ESF 2 vislumbrou a possibilidade de aplicação das práticas restaurativas como possível ferramenta para melhoria dos processos falhos. O conhecimento sobre a existência dessas práticas pela profissional ocorreu entre os anos de 2017 e 2018, quando participou do Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidade Básica de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado.

A primeira atividade realizada foi pautada no Processo Circular utilizando o bastão da fala com os participantes. Durante a atividade, a enfermeira utilizou também estratégias da CNV, que é uma forma de comunicação eficaz que envolve, entre outros, a escuta empática e a reformulação da mensagem que consiste em parafrasear algumas falas, sem incluir um julgamento. As mensagens-eu e as perguntas restauradoras também foram utilizadas para estimular a reflexão e a escuta de sentimentos e necessidades, sempre buscando os diferentes pontos de vista da situação55 Abrahão AL, Franco CM. Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado. Niterói: CEAD-UFF; 2016..

O Processo Circular ou Círculo de Construção da Paz descende diretamente dos tradicionais Círculos de Diálogo comuns aos povos indígenas da América do Norte. O espaço circular garante mais autonomia aos participantes, leva ao empoderamento da equipe, gera horizontalidade nas relações, melhora o senso de pertencimento ao grupo e é uma poderosa ferramenta para o diálogo. A autora aponta que existem vários tipos de Círculos de Construção de Paz, relacionados com diferentes propósitos e motivações66 Pranis K. Processos Circulares. São Paulo: Palas Athena; 2010..

Nas UBS, os processos circulares podem ser usados para atividades de aquecimento, para acalmar possíveis desacordos ou discórdias; para repelir equívocos, desavenças e violências em potencial ou para construir e restaurar relações; para a resolução de conflitos e outros problemas; para discutir a responsabilidade coletiva, entre outras funções. Permitem também que as pessoas tímidas e que raramente falam passem a se expressar, gerando inclusão, e possibilitando que aqueles que costumam dominar os espaços coletivos aprendam a ouvir e a respeitar as demais opiniões.

Seguindo as características do Processo Circular, os participantes sentaram-se nas cadeiras dispostas em roda, sem mesa no centro. Deve-se colocar no centro algum objeto que tenha significado especial para o grupo, como inspiração, algo que evoque nos participantes valores e bases comuns66 Pranis K. Processos Circulares. São Paulo: Palas Athena; 2010.; e no processo relatado, o objeto foi um tênis de caminhada.

Nessa reunião, estava presente a equipe do Nasf, que iniciou a conversa, trazendo ênfase ao projeto ‘Hiperdia para caminhar’. Em seguida, a equipe designou a enfermeira, como a guardiã da fala ou facilitadora, que deve ser uma pessoa pertencente ao grupo e devidamente capacitada, a fim de garantir um processo justo e imparcial77 Amstutz LS, Mullet JH. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. São Paulo: Palas Athena; 2012.. A facilitadora é a pessoa que cuida para que o grupo se mantenha firme na disposição de escuta e no foco sobre o tema que foi motivador do círculo. Além disso, o facilitador não é neutro, pois ele participa do processo e contribui com suas percepções55 Abrahão AL, Franco CM. Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado. Niterói: CEAD-UFF; 2016..

A guardiã da fala explicou a metodologia do Processo Circular, em que a palavra é colocada à disposição dos presentes, de forma sequencial e rotativa88 Brancher L, Kozen A, Aguinsky B. Justiça Restaurativa. Brasília, DF: CEAG; 2011. [acesso em 2019 dez 20]. Disponível em: http://www8.tjmg.jus.br/jij/apostila_ceag/MODULO_IX.pdf.
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. Utiliza-se de um bastão da fala, que é um objeto focal aceito e usado pelo grupo, além de ter um significado especial para o grupo; e, na reunião em questão, foi escolhida uma garrafa de água. O bastão proporciona oportunidade de escutar e refletir antes de falar, já que todos devem esperar a sua vez para se manifestarem no momento em que recebem o bastão de fala77 Amstutz LS, Mullet JH. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. São Paulo: Palas Athena; 2012.. No relato em questão, a guardiã apresentou a questão norteadora do círculo: quais principais fragilidades e desafios no processo de trabalho para realizar o projeto ‘Hiperdia para caminhar’ na UBS? Iniciando a passagem do bastão da fala e informando que somente aquele que estivessem com o objeto em mãos é que têm a faculdade de falar.

Com esse processo, os participantes tendem a ouvir com atenção ao que as pessoas estão dizendo ao invés de ficar pensando em preparar uma resposta imediata. O círculo também reforça a igualdade, já que proporciona oportunidade de participação a todos, e estimulando aqueles que pouco falam a se expressar e oportunizando um exercício de escuta àqueles que muito falam77 Amstutz LS, Mullet JH. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. São Paulo: Palas Athena; 2012..

Durante o Processo Circular, a enfermeira teve que interferir ao perceber algumas trocas de acusações, o que não pode ser admitido no Processo Circular, uma vez que cada participante precisa responder à questão segundo sua própria referência. No processo, a facilitadora pôde identificar tanto os pontos com maior resistência e oposição ao projeto como descobrir potenciais de colaboração. Após todos colocarem suas falas, a enfermeira conseguiu perceber que a principal fragilidade na concepção da equipe seria a questão do horário de saída do grupo de caminhada. Em princípio, essa saída aconteceria no início da manhã, mas a equipe técnica da unidade não consegue acompanhar devido ao fluxo de atendimentos nesse horário. Em seguida, foi realizada a cerimônia de encerramento com um vídeo sobre trabalho colaborativo. Nos dias posteriores à aplicação do Processo Circular na reunião de equipe, a enfermeira sentiu a necessidade de conversar com alguns profissionais. Primeiramente, procurou os ACS que estão mais próximos da comunidade, para que, durante aquela semana, antes que ocorresse nova reunião de equipe, eles verificassem na comunidade outras possibilidades de horários para que o grupo ocorresse, a fim de facilitar a participação da população. Eles se mostraram apoiadores da atividade, pois conheciam os pacientes e suas necessidades. A pertinência tem a ver com o compromisso da equipe, quando os membros sentem que, de fato, pertencem a ela e trabalham em prol dos objetivos e metas traçados pela equipe55 Abrahão AL, Franco CM. Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado. Niterói: CEAD-UFF; 2016.. Os ACS se sentiram valorizados com o pedido da enfermeira e conversaram com várias pessoas da comunidade com interesse no grupo e evidenciaram que, por se tratar de períodos quentes do ano, o primeiro horário da manhã seria mais agradável para caminhar.

A enfermeira procurou então os técnicos de enfermagem, pois estes tinham demonstrado preocupação durante a atividade do bastão da fala sentindo-se sobrecarregados no início da manhã, visto que esse é o momento com maior fluxo de pacientes na unidade. Nessas conversas, utilizou princípios da CNV, adotando a estratégia de perguntas restaurativas que visam desencadear diálogos colaborativos, pois facilitam a reflexão e a escuta de sentimentos e necessidades e ajudam a restaurar as relações rompidas, além de trazer maior clareza do que está acontecendo, levando também à verificação de diferentes pontos de vista55 Abrahão AL, Franco CM. Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado. Niterói: CEAD-UFF; 2016.. A enfermeira realizou algumas perguntas e observou que os técnicos se mostraram mais colaborativos a participar da atividade em determinados dias da semana em que o fluxo de pacientes não era tão intenso no início da manhã e que então um técnico poderia verificar os sinais vitais dos participantes.

A conversa com esses trabalhadores buscou seguir os quatro componentes da CNV: observação, reconhecer os sentimentos envolvidos com os fatos observados, reconhecer as necessidades e os pedidos, mostrando-se de extrema importância para que a enfermeira pudesse programar a próxima reunião de equipe, entrando assim em um terceiro momento de mudanças. Adotar a CNV na rotina das atividades do gerente significa ouvir na sua essência as observações, sentimentos, necessidades e pedidos manifestados pela equipe, sem julgamento do que motiva cada expressão. É importante destacar que a forma de falar transmitindo calma e o tom de voz agradável, utilizados na reunião, fizeram toda diferença quando o pedido foi realizado para a equipe99 Rosemberg MB. Comunicação Não-Violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora; 2006..

Os componentes da CNV demonstraram que são ferramentas importantes e que podem fazer a diferença no sucesso da abordagem nos conflitos, se utilizados pelos gerentes/líderes da equipe.

Se o gerente da Unidade não está preparado e motivado para trabalhar com os conflitos que aparecem rotineiramente na equipe, ele acaba transformando seus pedidos em exigências e sendo interpretado como agressivo pelas outras pessoas. Normalmente, os profissionais não são capacitados pelas universidades ou por seus empregadores para gerenciar conflitos, e somente após uma série de equívocos e inimizades acabam buscando aperfeiçoamento para minimizar os problemas que enfrentam no dia a dia.

TERCEIRO MOMENTO

A enfermeira reuniu as informações trazidas pelos ACS e pelos técnicos de enfermagem e preparou uma proposta para ser avaliada e discutida pelos profissionais, sobre o formato do grupo de caminhada. A reunião foi preparada novamente segundo a concepção do Processo Circular, uma vez que a ferramenta foi bem avaliada pela equipe.

Após as falas no círculo sobre a nova proposta, a equipe pôde refletir e perceber que poderia pensar em outras estratégias para desenvolver o grupo e não comprometer as atividades realizadas internamente na Unidade e decidiram apoiar a estruturação do grupo de caminhadas, com corresponsabilização pela condução das atividades e escala de participação dos profissionais no grupo.

Utilizar o Processo Circular e a CNV para ouvir, motivar e estimular a cooperação da equipe foi fundamental para desenvolver o grupo. As estratégias utilizadas despertaram nos integrantes da equipe a corresponsabilidade no cuidado com a população de hipertensos e diabéticos que reside em sua área de abrangência.

Foi possível observar a singularidade dos membros da equipe, como seres humanos, alguns mostrando disponibilidade e flexibilidade, outros alguma resistência por sair de suas zonas de conforto.

O grupo da caminhada na Unidade de Saúde Alvorada recomeçou com poucos participantes, mas com o passar dos dias, com mais pessoas convidadas pela equipe, foi tomando proporções maiores. É perceptível que existe rotatividade entre seus integrantes, pois eles participam quando podem, não é um grupo fechado, mas os mais assíduos estão sempre presentes.

A participação dos pacientes no grupo demonstrou maior entrosamento com a equipe; e nos pacientes mais assíduos, após aproximadamente um ano do grupo, é possível verificar alguma melhora nos índices pressóricos e glicêmicos. Os ACS se mostraram mais uma vez importantes no elo entre a comunidade e a equipe, pois são eles que acompanham rotineiramente as caminhadas na Unidade, contribuindo para o sucesso do grupo.

Considerações finais

A implementação de práticas restaurativas por meio da utilização da CNV e do Processo Circular produziu resultados positivos, como o resgate de relações interpessoais, uma maior integração e responsabilização da equipe de saúde, a produção de encontros com foco na escuta que facilitaram a reflexão coletiva, uma qualificação da gestão do trabalho e o retorno dos grupos de caminhada para hipertensos e diabéticos.

A lógica de escuta qualificada e a utilização dos componentes da CNV contribuíram efetivamente para o planejamento em conjunto, despindo os participantes de julgamentos, permitindo que cada integrante pudesse contribuir de forma mais assertiva para o desenvolvimento das atividades propostas.

O profissional que assume uma posição de liderança na equipe deve não só ter empatia e respeito pelos demais profissionais, mas também conviver com opiniões diferentes e tentar conhecer as limitações e potencialidades de sua equipe. As práticas restaurativas auxiliam nesse processo, pois colocam o líder em posição semelhante aos demais, gerando oportunidades de participação iguais, permitindo a expressão da equipe, sem imposições. Dessa forma, o grupo constrói ambiente de responsabilização mútua, minimizando possíveis crises e conflitos interpessoais.

Ressalta-se a importância de que sejam realizados estudos nessa área, bem como a introdução da temática em disciplinas durante o período de formação, a fim de apresentar aos profissionais da gestão e da assistência ferramentas para lidar com conflitos que possam ocorrer em suas futuras atuações profissionais.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

  • 1
    Figueiredo WM, Camargo AM, Ribeiro LG. Estratégia da saúde da família: avaliação da percepção da comunidade / Family health strategy: assessment of community perception. Braz. J. of Develop. [internet]. 2018 [acesso em 2019 jan 21]; 4(6):3579-96. Disponível em: http://www.brjd.com.br/index.php/BRJD/article/view/364
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  • 2
    Pinho LB, Santos SMA. O relacionamento interpessoal como instrumento de cuidado no hospital geral. Cogitare Enferm. [internet]. 2007 [acesso em 2019 jan 19]; 12(3). Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cogitare/article/view/10038
    » https://revistas.ufpr.br/cogitare/article/view/10038
  • 3
    Cecílio LCO. Can conflict be used as the "raw material" for health services management? Cad. Saúde Pública [internet]. 2005 [acesso em 2019 jan 21]; 21(2):508-16. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-311X2005000200017&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-311X2005000200017&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
  • 4
    Ferrão IS, Santos SS, Dias ACG. Psicologia e Práticas Restaurativas na Socioeducação: Relato de Experiência. Psicol cienc Prof [internet]. 2016 [acesso em 2019 set 16]; 36(2):354-363. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932016000200354&lng=en&nrm
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  • 5
    Abrahão AL, Franco CM. Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado. Niterói: CEAD-UFF; 2016.
  • 6
    Pranis K. Processos Circulares. São Paulo: Palas Athena; 2010.
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    Amstutz LS, Mullet JH. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. São Paulo: Palas Athena; 2012.
  • 8
    Brancher L, Kozen A, Aguinsky B. Justiça Restaurativa. Brasília, DF: CEAG; 2011. [acesso em 2019 dez 20]. Disponível em: http://www8.tjmg.jus.br/jij/apostila_ceag/MODULO_IX.pdf
    » http://www8.tjmg.jus.br/jij/apostila_ceag/MODULO_IX.pdf
  • 9
    Rosemberg MB. Comunicação Não-Violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora; 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2019
  • Aceito
    14 Nov 2019
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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