RESUMO
Pela primeira vez na história, presenciam-se transformações no padrão esperado do clima com consequências ainda desconhecidas para sociedade industrial moderna. Esses riscos globais ocorrem em um mundo cada vez mais conectado, com população crescente e ambientalmente degradado, tendo como pano de fundo um cenário em que há uma relação proporcionalmente inversa entre os países, populações e grupos sociais que sofrem, de modo mais amplo e intenso, os riscos e danos provocados pelas mudanças climáticas. Um dos impactos imediatos já observados é o aumento na frequência e na magnitude de eventos extremos, gerando cenários propícios ao surgimento de emergências em saúde. Este artigo teve como objetivo apresentar os principais desafios para redução de riscos à saúde relacionados com mudanças no clima, desastre e Emergências em Saúde Pública; os principais avanços nas políticas sobre o tema; e ações de saúde dentro desse complexo cenário social, ambiental e sanitário iminente. Como resultado, apresentam-se os principais acordos globais relacionados e as necessidades de ampliação do Sistema Nacional de Redução de Riscos à Saúde visando fortalecer as ações necessárias, a fim de obter resposta adequada aos fatores de risco apresentados. Para tanto, apresentam-se seis recomendações necessária à elaboração desse sistema.
PALAVRAS-CHAVE
Risco à saúde humana; Mudança climática; Emergências; Capacidade de resposta ante emergências
ABSTRACT
For the first time in history, transformations in the expected pattern of the climate are witnessed with consequences still unknown for modern industrial society. These global risks occur in an increasingly connected world, with a growing and environmentally degraded population, against the background of a scenario in which there is a proportionately inverse relationship between countries, populations and social groups that suffer, in a broader and more intense way, the risks and damages caused by climate change. One of the immediate impacts already observed is the increase in the frequency and magnitude of extreme events, generating scenarios favorable to the emergence of health emergencies. This article aimed to present the main challenges for reducing health risks related to climate change, disaster and Public Health Emergencies; the main advances in policies on the subject; and health actions within this complex imminent social, environmental and health scenario. As a result, the main related global agreements and the needs to expand the National Health Risk Reduction System are presented, aiming at strengthening the necessary actions, in order to obtain an adequate response to the risk factors presented. To this end, six recommendations are presented that are necessary for the elaboration of this system.
KEYWORDS
Health risk; Climate change; Emergencies; Surge Capacity
Introdução
Mudanças climáticas, ameaças terroristas, acidentes com agentes Químicos, Biológicos e Radionucleares (QBRN), insegurança alimentar, hesitação vacinal, resistência microbiana, associadas às iniquidades em saúde, geram os fatores de risco que compõem um cenário complexo e propício ao surgimento de Emergências em Saúde Pública (ESP). Os impactos sobre o sistema social, em decorrência disso, podem ser diretos e indiretos, variando em escalas locais e globais.
A emissão de gases de efeito estufa e as mudanças climáticas têm provocado aumento na frequência e intensidade dos fenômenos climáticos; e, em alguns casos, tornando-se a gênese de ESP. Não se trata mais apenas dos impactos que os desastres relacionados com o clima provocam no nível local, mas de processos globais que envolvem riscos de difícil compreensão e gestão11 Solomon C, LaRocque R. Climate Change — A Health Emergency. New Engl. J. Med. 2019; 380(3):209-211..
Concomitantemente, a conexão entre pessoas, lugares e mercadorias no mundo contemporâneo torna cada vez mais rápida a disseminação de agentes patogênicos. Atentados, sobretudo com agente químicos e biológicos, provocados com objetivos de afirmação política por parte de grupos extremistas, têm sido uma preocupação constante entre líderes governamentais, principalmente durante eventos de massa, como Olimpíadas e Copa do Mundo. Somam-se a isso as instabilidades políticas em um cenário econômico neoliberal, que potencializa situações de crise e conflitos ao mesmo tempo que reduz a capacidade de resposta local, intensificando a coexistência de velhos e novos problemas de saúde.
Nesse cenário, a produção industrial segmentada internacionalmente em suas diferentes etapas (extração, produção, transporte e armazenamento) tem resultado em eventos com grandes impactos locais e regionais sobre o meio ambiente, atingindo populações variando de dezenas a milhares de pessoas, como nos desastres de origem química como Seveso em 1976 e Bhopal em 1984, ou nuclear, como Three Mile Island em 1979, Chernobyl em 1986 e Fukushima em 201122 Lucchini R, Hashim D, Acquilla S, et al. A comparative assessment of major international disasters: the need for exposure assessment, systematic emergency preparedness, and lifetime health care. BMC Public Health. 2017; 17(46):1-12., Samarco em Mariana (MG) em 2015 e Vale S.A. em Brumadinho (MG) em 201933 Freitas C, Barcellos C, Asmus C, et al. Da Samarco em Mariana à Vale em Brumadinho: desastres em barragens de mineração e Saúde Coletiva. Cad. Saúde Pública. 2019; 35(5):e00052519..
Os desafios que se colocam nos níveis globais e locais incluem a sobreposição de eventos e potencializam riscos existentes. Desastres naturais podem ser combinados com desastres tecnológicos, que são muitas vezes seguidos de crises humanitárias ou conflitos, que podem ainda desencadear eventos epidêmicos e ESP. Essas situações, na maioria das vezes, são moduladas pelas precárias condições de vida em que se encontra grande parcela populacional44 Spiegel P, Le P, Ververs M, et al. Occurrence and overlap of natural disasters, complex emergencies and epidemics during the past decade (1995–2004). Conflict and Health. 2007; 1(2):1-9.,55 Sanders D, Sengupta A, Scott V. Ebola epidemic exposes the pathology of the global economic and political system. Inter J. Health Serv. 2015; 45(4):643-656..
Tais conjunturas reativam antigos e trazem novos desafios para a saúde coletiva, pois, além dos cenários de risco conhecidos, intensificados por conta de vulnerabilidades socioambientais, é necessário planejamento para tomada de decisão em cenários prospectivos (e incertos), envolvendo sobreposição de riscos. Nesse contexto, este artigo tem como objetivo apresentar os principais desafios para redução de riscos à saúde relacionados com mudanças no clima, desastre e ESP; os avanços nas políticas internacionais sobre o tema; e recomendações para fortalecer as ações de saúde pública dentro desse complexo cenário social, ambiental e sanitário iminente.
Do desenvolvimento econômico às mudanças climáticas: principais desafios da modernidade
As ações humanas são responsáveis pelo processo de aquecimento global, uma das múltiplas consequências da mudança do padrão climático. O desenvolvimento da sociedade contemporânea acelerou o processo de emissão de dióxido de carbono (CO2) e de outros gases de efeito estufa, como o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O). Os efeitos desses gases combinados ao processo de ocupação e manejo da terra são considerados os responsáveis pelo processo de aquecimento global. Essas conclusões foram apontadas nos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) nos anos de 2007 e 2014. Considerando a produção desses gases em nível mundial, o CO2 é responsável pela maior parte do efeito nesse sistema. No Brasil, evidencia-se que a produção de gás CH4 é responsável pela maior parcela de produção de gases de efeito estufa, boa parte dessa produção relacionada com atividades de desmatamento e com o agronegócio66 Steudler P, Melillo J, Feigl B, et al. Consequence of forest-to-pasture conversion on CH4fluxes in the Brazilian Amazon Basin. J. Geophy. Research: Atmospheres. 1996; 101(D13):18547-18554..
Um aspecto importante a ser destacado nesse processo é que, pela primeira vez na história, estamos diante de transformações no clima que são desconhecidas para as civilizações humanas passadas e para a sociedade industrial moderna77 World Health Organization. Mudança climática e saúde humana – riscos e respostas: resumo atualizado. Tradução de Bié. Brasília, DF: Organização Pan-Americana da Saúde; 2008.. Nesse sentido, uma das metas propostas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) é entender a dinâmica de produção de gases de efeito estufa, propor ações de mitigação dos danos e diminuir o impacto presente e futuro das alterações climáticas.
Um dos impactos imediatos observados do sistema complexo das mudanças climáticas globais é o aumento na frequência e na magnitude de eventos extremos, a alterações no ciclo hidrológico (aumento de secas e inundações), a elevação dos níveis dos oceanos e o aumento da ocorrência de tempestades. Eventos extremos, quando combinados com outros fatores, como o processo de ocupação do espaço e condições de vulnerabilidade das populações, podem gerar desastres88 Freitas C, Silva D, Sena A, et al. Desastres naturais e saúde: uma análise da situação do Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2014; 19(9):3645-3656..
Os desastres apresentam características importantes, que podem ser combinadas ou não. A primeira delas é resultar em uma séria interrupção do funcionamento normal de uma comunidade, afetando seu cotidiano por meio de perdas materiais e econômicas, danos ambientais e à saúde das populações. A segunda é exceder a capacidade de uma comunidade ou sociedade afetada em lidar com a situação utilizando seus próprios recursos, o que pode resultar na ampliação das perdas e danos, bem como doenças e óbitos88 Freitas C, Silva D, Sena A, et al. Desastres naturais e saúde: uma análise da situação do Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2014; 19(9):3645-3656..
Os riscos climáticos que vêm se intensificando não se limitam apenas aos efeitos dos desastres, mas produzem impactos sobre a saúde humana por diferentes vias e intensidades, especialmente aos mais vulneráveis – crianças, idosos e pessoas com problemas crônicos de saúde. Algumas dessas mudanças impactam de forma direta e imediata. No entanto, na maior parte das vezes, esse impacto é indireto, sendo mediado por mudanças no ambiente, como a alteração de ecossistemas, a perda de biodiversidade e a alteração dos ciclos biogeoquímicos, como demonstrado no quadro 1.
Além dos desastres com origem em processos climáticos e meteorológicos, é importante destacar a categoria dos desastres tecnológicos que podem ter origem nas diferentes etapas do processo produtivo das sociedades industriais modernas, que envolve desde a extração de matérias primas e energia até o processamento e produção, transporte e armazenamento, bem como descarte final, envolvendo principalmente produtos químicos e radionucleares.
Hogan, citado por Bonatti e Carmo99 Bonatti TF, Carmo RL. Desastres tecnológicos: revisitando a discussão sobre a questão dos eventos de contaminação a partir da relação entre população, espaço e ambiente [internet]. In: Anais do 20º Encontro Nacional de Estudos Populacionais; 2016 Out 17-22; Campinas. Campinas: Unicamp; 2016. p. 1-21. [acesso em 2019 jul 20]. Disponível em: https://www.abep.org.br/publicacoes/index.php/anais/index.
https://www.abep.org.br/publicacoes/inde... , elenca alguns dos principais desastres tecnológicos que influenciaram uma nova percepção sobre a degradação ambiental no mundo. Além de impactos diretos, mensurados em danos físicos, econômicos e sociais, os danos em longo prazo são dificilmente estimados, dado que os riscos desses eventos podem se ampliar no tempo e no espaço. Entre os eventos, os autores citam a contaminação química por mercúrio em Minamata (Japão) em 1956 e do Love Canal em Nova Iorque na década de 1980, a nuvem tóxica em Seveso na Itália em 1976, o vazamento de gás em Bhopal na Índia em 1984, o desastre nuclear de Chernobyl em 1986.
No Brasil, destacam-se os recentes desastres envolvendo a mineração. O primeiro, envolvendo a mineradora Samarco (uma subsidiária da Vale S.A.), em 2015, com 19 óbitos, abrangendo 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos e atingindo 36 municípios em uma extensão de 650 km ao longo da Bacia do rio Doce. O segundo, envolvendo a Vale S.A., em 2019, entre desaparecidos e óbitos, totaliza cerca de 270 vítimas, constituindo o maior acidente de trabalho já ocorrido no Brasil. Além de vítimas fatais e afetados, esse desastre envolveu 13 milhões de metros cúbicos de rejeitos, atingindo, ao menos, 18 municípios. Em ambos os desastres, os impactos socioambientais nas bacias dos rios Doces e Paraopeba foram intensos; liberado ao meio ambiente grande quantidade de rejeitos e elevados níveis de contaminação por metais pesados, modificando as condições de vida e trabalho de milhões de pessoas e ameaçando os serviços ecossistêmicos e os modos de sobrevivência das futuras gerações1010 Freitas C, Silva M. Acidentes de trabalho que se tornam desastres: os casos dos rompimentos em barragens de mineração no Brasil. Rev. Bra. Med. Trab. 2009; 17(1):21-29..
Em outras situações, os desastres naturais podem desencadear também desastres tecnológicos, como no caso de Fukushima, Japão, registrado em 11 de março de 2011, quando um terremoto atingiu a Ilha do Japão. Como consequência, um tsunami atingiu a usina nuclear de Fukushima ampliando os danos. O evento levou a óbito mais de 18.500 pessoas de forma direta, contudo, os efeitos na saúde da população por conta do vazamento nuclear geraram exposição de difícil contabilização, demandando monitoramento da área e acompanhamento dos atingidos no longo prazo1111 Yamashita J, Shigemura J. The Great East Japan Earthquake, Tsunami, and Fukushima Daiichi Nuclear Power Plant Accident. Psych. Clinics North Am. 2013; 36(3):351-370..
Ambas as situações de desastres revelam a necessidade de trabalhar de modo integrado, pois tanto um desastre tecnológico pode acarretar um desastre relacionado com crises hídricas, como ocorrido em Brumadinho e a consequente contaminação do Rio Paraopeba, como um desastre de origem natural pode desencadear um desastre de origem tecnológica, como ocorrido em Fukushima.
Ademais, nesses processos, há tanto os que se relacionam com as mudanças e variabilidade climática como também os que envolvem as grandes transformações ecológicas provocadas pelos padrões de desenvolvimento econômico. Anyamba et al.1212 Anyamba A, Chretien J, Britch S, et al. Global Disease Outbreaks Associated with the 2015–2016 El Niño Event. Scient. Repor. 2019; 9(130):1-14. demonstraram que o intenso El Niño de 2015-2016 resultou em condições de anomalia climática e ambiental. Em regiões específicas do mundo, essa condição favoreceu surtos e/ou amplificação de doenças como chikungunya, hantavírus, febre do vale do Rift, cólera, peste e zika. Sanders et al.55 Sanders D, Sengupta A, Scott V. Ebola epidemic exposes the pathology of the global economic and political system. Inter J. Health Serv. 2015; 45(4):643-656., ao abordar a emergência envolvendo Ebola, destacam os processos sociais e econômicos que estiveram na base do evento, envolvendo desde guerras civis até a rápida expansão do agronegócio e da indústria de extração de minérios, com abertura de novas estradas e desmatamento em larga escala para ampliar as novas áreas de exploração. Para esses autores, a combinação das alterações ecológicas modificou os circuitos de circulação dos patógenos e das populações; associada a existências de sistemas sociais desestruturados, estabeleceram as bases para ESP do Ebola nos países africanos.
Entre os anos de 2016 e 2018, o Brasil vivenciou algumas situações que exigiram atenção especial das autoridades de saúde como, os casos da microcefalia associada ao Zika vírus, que levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar ESP de importância internacional; a expansão das áreas de circulação do vírus da febre amarela, que exigiu vacinação em estados considerados não endêmicos; e a notificação de mais de 10 mil casos de sarampo em 2018, com vacinação de 11 milhões de crianças com menos de 5 anos1313 United Nations Children’s Fund. Surto global de sarampo, uma ameaça crescente para crianças [internet]. 2019 [acesso em 2019 set 28]. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/surto-global-de-sarampo-uma-ameaca-crescente-para-criancas.
https://www.unicef.org/brazil/comunicado... ,1414 World Health Organization Brasil, Pan American Health Organization. Folha informativa – Febre amarela [internet]. 2019 [acesso em 2019 set 28]. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5578:f olha-informativa-febre-amarela&Itemid=875.
https://www.paho.org/bra/index.php?optio... ,1515 World Health Organization. Declara vírus zika e microcefalia ‘emergência pública internacional’ [internet]. 2019. [acesso em 2019 set 28]. Disponível em: https://nacoesunidas.org/oms-declara-virus-zika-e-microcefalia-emergencia-publica-internacional/.
https://nacoesunidas.org/oms-declara-vir... . As relações causais entre estas situações e alterações ambientais ainda estão sendo investigadas, entretanto, servem de alerta para gestores, comunidade científica e profissionais de saúde.
Desenvolvimento de políticas sobre mudanças climáticas, Redução de Risco de Desastres e Emergências em Saúde Pública
Em 1989, a Assembleia Geral da ONU lançou a Década Internacional para a Redução de Risco de Desastres (RRD), reforçando a necessidade de redução do impacto de desastres de origem natural, em particular, para os países em desenvolvimento. Esse processo desencadeou duas iniciativas: a Estratégia de Yokohama (1994) para um mundo mais seguro e a criação da Estratégia Internacional das Nações Unidas para a Redução de Desastres – UNISDR (1999).
Em 2002, no marco de proposição das Funções Essenciais da Saúde Pública (Fesp), sistematizado pela Organização Panamericana da Saúde, a Redução do Impacto das Emergências e Desastres em Saúde surge como a décima primeira Fesp1616 Organização Pan-Americana da Saúde. La salud en las Américas. Edición 2002. [internet]. 2019 [acesso em 2019 set 28]. Disponível em: http://iris.paho.org/xmlui/handle/123456789/2747.
http://iris.paho.org/xmlui/handle/123456... . Em 2005, dois novos marcos internacionais das Nações Unidas reforçaram essa tendência. O primeiro, relacionado com as ESP – Regulamento Sanitário Internacional (RSI) na OMS –; e o segundo, com os desastres – Marco de Ação de Hyogo na Estratégia Internacional de Redução de Desastres (Eird), e que serviu de base para o Marco de Sendai. Esses dois acordos colocam a RRD como prioridade de ação aos Estados signatários. Foi também nesse período que a relação entre mudanças climáticas e saúde passou a ganhar cada vez maior destaque na agenda internacional.
A maior convergência entre as agendas de ESP, desastres e mudanças climáticas ocorreu a partir de 2015, com o Marco de Sendai para a RRD 2015-2030, apresentando três mudanças importantes. A primeira foi a aproximação do conceito dos desastres com ESP, reconhecendo que a RRD deve incluir as emergências definidas no RSI: origens: naturais (geológicas, hidrometeorológicas e biológicas) ou induzidas por processos humanos (degradação ambiental e perigos tecnológicos- químicas e radioativas/radiológicas).
Nesse processo, destacam-se os Princípios de Bangkok que apresentam medidas e ações em saúde visando à integração sistemática do setor nas políticas e planos de RRD, nos diferentes níveis – nacional/local, público/ privado, com o foco na redução do risco comunitário, formação e fortalecimento da capacidade de resposta nacionais e subnacionais.
A segunda foi o reconhecimento do setor saúde como contribuinte e beneficiário das estratégias de RRD. A ampliação da agenda e a conexão dos temas relacionados com os desastres e com ESP significam que não é possível assegurar a segurança sanitária e o bem-estar sem que se estruture o gerenciamento de riscos nacionais e globais de saúde, envolvendo desde os processos de prevenção de riscos de desastres e ESP até os que envolvem a preparação, o alerta precoce, as respostas e os processos de reabilitação, recuperação e reconstrução das condições de vida e saúde.
A terceira foi a incorporação das mudanças climáticas como um fator potencial de ampliar e agravar os riscos de desastres e de ESP, em sintonia com o Acordo de Paris (2015). A Agenda 20301717 United Nations. Resolution adopted by the General Assembly on 25 September 2015 – Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. Washington, DC: United Nations; 2015., com os ODS, constitui mais um passo importante de ampliação dessa agenda, conectando os temas relacionados aos desastres (ODS 1, 2 e 11) e às mudanças climáticas (ODS 13), com os que envolvem a necessidade de – reforçar a capacidade de todos os países, particularmente os países em desenvolvimento, para o alerta precoce, redução de riscos e gerenciamento de riscos nacionais e globais de saúde –, para assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos (ODS 3).
As tendências de integração das agendas têm como objetivo produzir transformações que, seguindo os processos de globalização, apontam para cenários de riscos globais (degradação ambiental e mudanças climáticas) envolvendo danos e doenças relacionados com os desastres e ESP com expressões locais e globais. Esses princípios, nos seus tópicos específicos, claramente apontam para a integração das agendas e temas relativos a Mudanças Climáticas e Segurança Sanitária Global, RRD e ESP, presentes e integradas aos ODS.
Outro marco importante das políticas no âmbito da saúde foi o RSI1818 Carmo E, Penna G, Oliveira W. Emergências de saúde pública: conceito, caracterização, preparação e resposta. Estud. Avançados. 2008; 22(64):19-32., projetado para auxiliar a comunidade global na prevenção e resposta a riscos agudos de saúde pública que têm o potencial de avançar sobre as fronteiras geopolíticas. ESP é definida como – um evento extraordinário que constitui risco para a saúde pública de outros países, com potencial para propagação internacional – e que, em geral, requer uma resposta internacional coordenada, por sua vez, por apresentar risco à saúde pública nacional e estar relacionado, direta e indiretamente, com situações epidemiológicas (surtos ou epidemias), de desastres à população que extrapolem a capacidade de resposta do Sistema Único de Saúde (SUS). A Portaria MS/GM nº 2.952, de 14 de dezembro de 20111919 Brasil. Portaria GM/MS nº 2.952, de 14 de Dezembro de 2011. Regulamenta, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Decreto nº 7.616, de 17 de novembro de 2011, que dispõe sobre a declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) e institui a Força Nacional do Sistema Único de Saúde (FN-SUS). Brasília, DF. Diário Oficial da União. 14 Dez 2011. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOU/2011/12/14.
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOU/... , considerando o Decreto nº 7.616, de 17 de novembro de 2011, dispõe sobre a declaração de ESP de Importância Nacional (Espin); considera os eventos extraordinário citados no RSI e inclui as situações de desassistência constituindo risco para à saúde pública.
As ESP envolvem qualquer evento extraordinário que se manifeste por meio de um agravo de saúde ou uma ocorrência potencial de ameaças do ponto de vista global/local, constituindo um risco para a saúde pública, requerendo uma resposta coordenada entre os diversos níveis de gestão. Outro aspecto importante é que as ESP não se restringem à ocorrência de doenças transmissíveis, contemplando também ocorrências de natureza química, radionuclear ou decorrentes de desastres1818 Carmo E, Penna G, Oliveira W. Emergências de saúde pública: conceito, caracterização, preparação e resposta. Estud. Avançados. 2008; 22(64):19-32.. No âmbito global, o objetivo do RSI é ampliar as capacidades nacionais de detecção e resposta aos riscos de disseminação de doenças entre os países.
O RSI, por sua vez, tem sido fundamental na formação da Agenda Global de Segurança Sanitária, enquanto a noção de ‘doença emergente’ anterior do RSI destinou-se a combater doenças específicas, como a cólera ou a varíola. A versão em vigor desde 2005 inovou ao criar interfaces com acordos internacionais, fortalecendo a capacidade de atuação dos sistemas de vigilância local. Nesse contexto, emerge a vasta assimetria entre os níveis de desenvolvimento dos países signatários e a desestruturação de sua capacidade de atuação, reduzida desde os anos 1990 por meio de uma série de políticas de austeridade, tornando-as incapazes de atuar sobre as principais causas de epidemias: os determinantes sociais e ambientais da saúde2020 Ventura D. Do Ebola ao Zika: as emergências internacionais e a securitização da saúde global. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(4):e00033316..
Do movimento reativo dos anos 1990 ao dano coletivo: a Redução de Risco de Desastres nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
O Marco de Sendai foi adotado em 18 de março de 2015 por 187 Estados-Membros das Nações Unidas após extensivas negociações na Terceira Conferência Mundial sobre RRD2121 United Nations Office for Disaster Risk Reduction. Sendai Framework for Disaster Risk Reduction: 2015– 2030. Geneva: UNISDR; 2015.. É um acordo não vinculante e voluntário e um quadro significativo para a implementação da saúde, que enfatiza o uso de abordagem multirriscos, envolvendo mecanismos de combate a todas as ameaças e perigos, inclusive tratando especificamente do campo de epidemias e pandemias associados ao RSI.
Considerando a experiência adquirida com a implementação do Marco de Ação de Hyogo (2005-2015) e buscando o resultado e o objetivo esperados, o Marco de Sendai enfatizou mecanismos de governança multissetorial e transdisciplinar que apoiem uma colaboração mais estreita entre os atores relevantes para prevenir, preparar e recuperar-se de desastres, bem como responder de forma eficaz. Além de incluir ESP nas discussões sobre desastres, a Conferência Internacional sobre a Implementação dos Aspectos da Saúde do Marco de Sendai identificou sete áreas de integração da RRD nos sistemas de saúde e no setor saúde, por intermédio dos Princípios de Bangkok2222 United Nations Office for Disaster Risk Reduction. United Nations International Strategy for Disaster Reduction. Bangkok principles for the implementation of the health aspects of the Sendai framework for disaster risk reduction 2015–203. Geneve: UNISDR; 2016.. A partir da figura 1, apresentaram-se as metas e prioridades estabelecidas no Marco de Sendai correlacionadas aos princípios de Bangkok.
Em toda a estrutura do Marco de Sendai, a saúde é destacada como um resultado e uma meta, com medidas voltadas para reduzir as perdas por desastres. Quatro das sete metas globais estão diretamente relacionadas com a saúde, outras três estão indiretamente relacionadas. Há necessidade explícita de aumentar a resiliência dos sistemas nacionais de saúde, integrando a gestão de riscos de emergências e desastres aos cuidados primários, secundários e terciários, desenvolvendo a capacidade dos profissionais de saúde de compreendero risco de desastres e aplicar abordagens de RRD na rotina de trabalho do setor2222 United Nations Office for Disaster Risk Reduction. United Nations International Strategy for Disaster Reduction. Bangkok principles for the implementation of the health aspects of the Sendai framework for disaster risk reduction 2015–203. Geneve: UNISDR; 2016..
Assim, autoridades e trabalhadores do setor da saúde são identificados como atores-chave para RRD e na construção da resiliência da comunidade. Com base no Marco de Hyogo, no Marco de Sendai, a saúde é um componente explícito das ações de RRD, aumentando em abrangência e especificidade, gerando mecanismo para incorporar a avaliação de risco de todos os perigos; previsão baseada em impacto; melhor capacidades de resposta e aviso prévio; gestão de recursos; criação e compartilhamento de conhecimento; construção de compromisso público e desenvolvimento de estruturas institucionais de apoio, integrada e orientada à redução de risco, envolvendo ações de prevenção, recuperação e reabilitação2121 United Nations Office for Disaster Risk Reduction. Sendai Framework for Disaster Risk Reduction: 2015– 2030. Geneva: UNISDR; 2015..
As tendências de integração da saúde pública, da RRD e da Adaptação às Mudanças Climáticas (AMC), sob a égide da Agenda 2030 dos ODS, têm um papel significativo de ganhos à sociedade. Com o objetivo de produzir transformações, apontam para cenários de riscos globais envolvendo danos e doenças relacionados com os desastres e ESP com expressões locais e globais, necessidade de um vínculo sistemático entre RRD e a AMC na promoção dos ODS e, finalmente, da segurança humana, essencial para enfrentar esses riscos presentes, complexos e emergentes. Isso inclui não só maximizar sinergias conceituais, mas também construir resiliência e reduzir vulnerabilidades e os riscos.
Esses riscos globais ocorrem em um complexo cenário social, ambiental e sanitário que, nos últimos anos, as questões de saúde passaram a ganhar reconhecimento e defesa de causa nos círculos de políticas internacionais. Como resultado, a saúde é um tema claramente transversal na Agenda 2015-2030, particularmente dentro do Marco de Sendai para RRD2121 United Nations Office for Disaster Risk Reduction. Sendai Framework for Disaster Risk Reduction: 2015– 2030. Geneva: UNISDR; 2015., no Acordo de Paris sobre Mudança do Clima,2323 United Nations Framework Convention on Climate Change. Adoption of the Paris Agreement. Report No. FCCC/CP/2015/L.9/Rev.1 [internet] 2015. [acesso em 2019 jul 29]. Disponível em: http://unfccc.int/resource/docs/2015/cop21/eng/l09r01.pdf.
http://unfccc.int/resource/docs/2015/cop... e na Agenda 2030 dos ODS1717 United Nations. Resolution adopted by the General Assembly on 25 September 2015 – Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. Washington, DC: United Nations; 2015.. O conjunto de ações pautado nos acordos representa um passo na direção da coerência política global com referência explícita à saúde, desenvolvimento econômico e adaptação à mudança climática. Os múltiplos esforços da comunidade de saúde no processo de desenvolvimento de políticas, incluindo campanhas para escolas e hospitais seguros, ajudaram a colocar a saúde mental e física, a resiliência e bem-estar das pessoas como prioridade na agenda.
Na Resolução nº 70/1 da Assembleia Geral das Nações Unidas1717 United Nations. Resolution adopted by the General Assembly on 25 September 2015 – Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. Washington, DC: United Nations; 2015., de 25 de setembro de 2015, intitulada Transformando o mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, destaca-se o papel do planejamento e do processo de adaptação desse compromisso às realidades nacionais: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável estabelece um quadro de ação composto por 17 ODS, 169 metas e 232 indicadores, não vinculante aos Estados signatários, porém indivisível, pois incita a abordagem dos 17 Objetivos, evitando a fragmentação; integral, pois combina as três dimensões do desenvolvimento, a saber, econômica, social e ambiental; civilizatória, dado que propõe erradicar a extrema pobreza como um imperativo ético, colocando a dignidade e a igualdade das pessoas no centro; e transformador, uma vez que requer abordagens alternativas para o modo usual para alcançar o desenvolvimento sustentável.
A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável reconhece e reafirma a necessidade urgente de reduzir o risco de desastres e seus impactos sobre os sistemas econômicos. Nesse sentido, a RRD afeta diferentes aspectos do desenvolvimento; há 17 metas diretamente relacionadas com a gestão de risco de desastres em 9 dos 17 ODS, e outras com relações indiretas que resultam no desenvolvimento de estratégias de enfrentamento. Conforme indicado no quadro 2, a partir do documento ‘Disaster Risk Reduction and Resilience in the 2030 Agenda for Sustainable Development’, publicado pela Estratégia Internacional de Redução de Risco de Desastres2424 United Nations Office for Disaster Risk Reduction. Disaster risk reduction and resilience in the 2030 agenda for sustainable development. Geneva: UNISDE; 2015., apresentam-se as seguintes metas dos ODS e do Marco de Sendai. Ressalta-se que, no âmbito da Constituição Federal de 1988, conforme apresentado no quadro 2, diversos mecanismos já constituídos conectam a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável com os mecanismos de RRD já existentes.
Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS), Marco de Sendai, Princípios de Bangkok e marcos nacionais de redução de riscos de emergências e desastres em saúde
Problemas globais, expressões locais: ações necessárias para a ampliação do Sistema Nacional de Redução de Riscos à Saúde
Segundo os dados da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil2626 Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres. Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010: volume Brasil. Florianópolis: CEPED; UFSC; 2012., em 20 anos, os desastres ocorridos no Brasil afetaram a vida de mais de 96 milhões de pessoas. Em todo o território nacional, 92,8% dos municípios de grande porte (>500 mil habitantes) já registraram desastres, enquanto na classe de municípios de pequeno porte (com até 5 mil habitantes), foram registrados 18%2727 Loschi M. Desastres naturais: 59,4% dos municípios não têm plano de gestão de riscos [internet]. 2012. [acesso em 2019 set 28]. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/21633-desastres-naturais-59-4-dos-municipios-nao-tem-plano-de-gestao-de-ris cos?fbclid=IwAR12vz9h51BP7RPj2BOvSLQjHOFas MA7oJlKypoefwbW450h2bAkeNAEkOA.
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/ag... . As ESP envolvendo doenças transmissíveis e infecciosas somam-se a esse cenário; desde 2018, o Brasil enfrenta a reintrodução do vírus do sarampo, com a ocorrência de surtos em 11 Estados, com um total de 10.326 casos confirmados2828 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Situação do Sarampo no Brasil – 2018-2019. [internet]. [acesso em 2019 set 28]. Disponível em: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2019/ marco/19/Informe-Sarampo-n37-19mar19aed.pdf.
https://portalarquivos2.saude.gov.br/ima... . Sem considerar que os novos cenários de risco experimentados nos desastres tecnológicos envolvendo as barragens de mineração, citados nos parágrafos anteriores, ambos no estado de Minas Gerais, tenham sido solucionados. São diversas as dificuldades de recuperação das formas de reprodução social enfrentadas pelas populações afetadas, coadunando vulnerabilidade com problemas ambientais complexos, envolvendo risco química e biológico33 Freitas C, Barcellos C, Asmus C, et al. Da Samarco em Mariana à Vale em Brumadinho: desastres em barragens de mineração e Saúde Coletiva. Cad. Saúde Pública. 2019; 35(5):e00052519..
Diante dos desafios expostos, ocorre a necessidade de ampliação do Sistema Nacional de Redução de Riscos à Saúde, capaz de responder aos principais desafios preconizados pela agenda 2015-2030 da ONU e apto a monitorar riscos e fortalecer as ações de resposta em saúde pública. Para tanto, apresentamos seis recomendações necessárias à ampliação desse sistema.
Reforçar as ações de gestão de risco e o cuidado integral à saúde
O RSI2929 World Health Organization. Revisão do Regulamento Sanitário Internacional. 58ª Assembleia Mundial de Saúde, Item 13.1 da Agenda Genebra: OMS; 2005. trouxe uma nova perspectiva preventiva para saúde pública – o olhar voltado para os fatores de risco que podem gerar surtos e epidemias2020 Ventura D. Do Ebola ao Zika: as emergências internacionais e a securitização da saúde global. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(4):e00033316.. Nessa perspectiva, gerir riscos à saúde exige refletir a partir de três importantes pontos: primeiro, sobre modelos de assistência que possam promover o cuidado integral à saúde; segundo, sobre sistemas de alerta adequados à diversidade do nosso país; terceiro, sobre fortalecimento do SUS na esfera municipal.
A Lei nº 8.080/1990 do Ministério da Saúde3030 Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. [internet]. Brasília, DF. Diário Oficial da União. 19 Set 1990. [acesso em 2019 jul 27]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei... , a Lei Orgânica da Saúde, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. De acordo com o art. 18 dessa lei, é competência do setor saúde planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde pertinente. A descentralização e a integralidade da atenção à saúde destinam competência ao ente federativo municipal para estar preparado e organizado para direcionar e executar ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta, reabilitação e reconstrução. Segundo Teixeira et al.3131 Teixeira M, Costa M, Viana I, et al. Vigilância em saúde: é necessária uma legislação de emergência? Rev. Direito Sanit. 2009; 10(2):126., essas estratégias devem ser baseadas nos princípios do SUS, especialmente, considerando a universalidade do cuidado, a descentralização das ações e a atenção integral à saúde da população, sem, contudo, deixar de subsidiar a formulação de políticas, bem como a organização dos serviços e ações de saúde, por meio dos conselhos de participação social.
Segundo Teixeira et al.3232 Teixeira M, Costa M, Carmo E, et al. Vigilância em Saúde no SUS – construção, efeitos e perspectivas. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(6):1811-1818., tal prática vem permitindo conferir ao País um sistema de uniformidade técnica e operacional, fluxos de informações contínuos entre as distintas esferas de gestão, integração da rede de serviços que hoje compõe o Sistema Nacional de Vigilância em Saúde (SNVS) com as demais áreas da rede de atenção à saúde. Além dessa reorganização, há que se destacar outras iniciativas do SUS, como a ampliação do acesso ao tratamento para diversas doenças transmissíveis que passaram a ser oferecidos à população de forma universal, mas também por estabelecer um conjunto de políticas sociais e econômicas que contribuíram efetivamente para a redução do risco de doenças e outros agravos3333 Freitas C, Rocha V, Silva E, et al. Conquistas, limites e obstáculos à redução de riscos ambientais à saúde nos 30 anos do Sistema Único de Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(6):981-1996..
As ESP, assim como os desastres, configuram-se situações que demandam o emprego imediato de medidas de prevenção, de controle, de contenção de riscos em situações de caráter epidemiológico, de caráter sanitário, de caráter ambiental, ou ainda situações que provoquem colapso da assistência à saúde da população3131 Teixeira M, Costa M, Viana I, et al. Vigilância em saúde: é necessária uma legislação de emergência? Rev. Direito Sanit. 2009; 10(2):126.. Isso exige criar, implantar e testar sistemas de alerta para desastres e outras ESP contendo eixos centrais conhecidos, porém com algum grau de adaptação local – regional.
A Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS) – Resolução nº 588, de 12 de julho de 20183434 Conselho Nacional de Saúde. Resolução 588, de 12 de julho de 2018 [internet]. [acesso em 2019 jul 27]. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2018/Reso588.pdf.
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes... , considera a necessidade de dispor de equipes aptas a atuar no âmbito da vigilância em saúde, com capacidade de analisar contextos e identificar fatores de risco territoriais e à saúde, organizar, monitorar e avaliar os processos de trabalho relacionados com os desastres e com as ESP. Essa política tem o objetivo de desenvolver um processo contínuo e sistemático de coleta, consolidação, análise de dados e disseminação de informações sobre eventos com potencial de riscos e danos à saúde. Nesse sentido, o planejamento e a implementação devem contar com ações de regulação, intervenção e atuação sobre os condicionantes e determinantes da saúde, visando à proteção, à promoção, à prevenção e ao controle de riscos de agravos e doenças.
O papel do setor saúde na redução de riscos envolve ações específicas de diferentes setores em diferentes temporalidades, principalmente ligados a atenção e vigilância em saúde. essas ações devem ser coordenadas e integradas em um processo único de cuidado e não se limitando à fase de resposta imediata. Envolve todas as etapas da gestão por processo na qual a saúde pública tem claras atribuições em curto, médio e longo prazos, em todas as esferas de gestão do SUS.
Intensificar planejamentos integrados por processo
Um sistema nacional para redução de riscos à saúde requer o estabelecimento de ações conjuntas entre diferentes setores para reduzir a exposição da população, fortalecer e ampliar a capacidade de preparação e resposta dos serviços de saúde3535 Brasil. Ministério do Meio Ambiente. Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima – Volume II: Estratégias Setoriais e Temáticas. Brasília, DF: MMA; 2016..
Os serviços públicos, em geral, possuem um sistema organizacional composto por áreas específicas de atuação com objetivos e metas fragmentadas. Cada serviço empenha-se em sua especificidade e quase sempre se articula com os demais setores de um mesmo serviço de forma vertical, respeitando hierarquias. Narváez et al.3636 Narváez L, Lavell A, Pérez Ortega G. La Gestión del Riesgo de Desastres. La Paz: Cebem; 2009. propõem um sistema de gestão de risco por processo, quebrando a lógica setorizada de atuação e promovendo uma articulação horizontal entre diferentes setores. Nessa perspectiva, o foco das ações está no processo, e somente quando todos os setores cumprem seu papel é que a meta pode ser considerada cumprida.
É importante destacar que cada setor deve reconhecer seu papel diante da redução de riscos e ser reconhecido pelos seus pares. Essa mudança de perspectiva pode contribuir para a gestão de risco, principalmente nas ações que exigem maior integração entre diferentes atores.
Preparar a força de trabalho
Um sistema nacional de redução de riscos exige ainda técnicos preparados em diferentes níveis de formação e especialidades para operacionalizá-lo. Portanto, será necessário apoio à capacitação de quadros profissionais na área da saúde preparados para o enfrentamento dos impactos imediatos de eventos provocados por mudanças climáticas, desastres e ESP, bem como para reabilitação e prevenção de situações que envolvem riscos futuros.
Nesse sentido, em novembro de 2011, por meio do Decreto nº 7.6161919 Brasil. Portaria GM/MS nº 2.952, de 14 de Dezembro de 2011. Regulamenta, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Decreto nº 7.616, de 17 de novembro de 2011, que dispõe sobre a declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) e institui a Força Nacional do Sistema Único de Saúde (FN-SUS). Brasília, DF. Diário Oficial da União. 14 Dez 2011. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOU/2011/12/14.
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOU/... , e também como uma resposta institucional aos cenários de ESP e aos desastres, bem como os envolvendo emergências provocadas pela desassistência, o Estado brasileiro ampliou a capacidade de vigilância e resposta em todo o território nacional, dispondo de regulamentação sobre a Espin, e instituindo a Força Nacional do Sistema Único de Saúde (FN-SUS). A FN-SUS é um programa de cooperação voltado à execução de medidas de prevenção, assistência e repressão a situações epidemiológicas, de desastres ou de desassistência à população quando esgotada a capacidade de resposta do estado ou do município3535 Brasil. Ministério do Meio Ambiente. Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima – Volume II: Estratégias Setoriais e Temáticas. Brasília, DF: MMA; 2016..
No entanto, no Brasil, não existe em nível nacional a inserção de conteúdo sobre RRD nas Diretrizes Curriculares na formação de pessoal na área da saúde, ou ainda, programas de educação continuada padronizados e específicos para profissionais de saúde. Em contrapartida, há oferta de cursos presenciais e a distância oferecidos por diferentes instituições, muitas vezes com incentivo e parceria do próprio Ministério da Saúde.
Estruturar programas de formação com perspectiva de formar para além da resposta imediata é um requisito importante. A proposta pedagógica deve levar em conta uma formação voltada para o processo de gestão de risco, abordando todas as suas fases (prevenir riscos futuros, reduzir riscos existentes, preparar as respostas, responder aos desastres e reabilitar as condições de vida, recuperar e reconstruir comunidades). Associado a isso, a formação para um sistema nacional de redução de risco deve contemplar os princípios básicos do SUS, como universalidade, equidade e integralidade3232 Teixeira M, Costa M, Carmo E, et al. Vigilância em Saúde no SUS – construção, efeitos e perspectivas. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(6):1811-1818..
Investir em infraestrutura resiliente
A infraestrutura e os equipamentos de saúde sofrem danos materiais em eventos decorrentes dos efeitos das a mudanças do clima ou desastres. Os danos a instalações públicas de saúde causados por desastres no Brasil, entre 2010 e 2014, chegaram a R$ 1,2 bilhão. No mesmo período, foram investidos R$ 4 bilhões em recursos públicos na aquisição de materiais permanentes e construção de edificações para a saúde, ou seja, o equivalente a 30% do valor total investido foi perdido3737 Minervino A, Duarte E. Danos materiais causados à Saúde Pública e à sociedade decorrentes de inundações e enxurradas no Brasil, 2010-2014: dados originados dos sistemas de informação global e nacional. Ciênc. Saúde Colet. 21(3):685-694..
Esses equipamentos públicos de saúde fazem parte do sistema de proteção social, ao qual uma sociedade vai recorrer, tanto durante o momento de emergência quanto nas fases posteriores, buscando recuperar os danos e retornar à situação de normalidade3838 Silva IVM. Vulnerabilidade institucional do setor saúde a desastres no município de Nova Friburgo [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2019. 158 p..
No Brasil, essa realidade exige, além de medidas mais rigorosas na construção de novas unidades, uma reconstrução com vistas a estruturas mais resistentes. A fase de reconstrução deveria ser uma oportunidade para isso, incluindo melhores serviços de abastecimento de água, fontes alternativas de energia, ou seja, adaptação e redução de vulnerabilidades desses sistemas. Na reconstrução, deveriam ser eliminados os principais fatores de risco, dando oportunidade à comunidade afetada de condições melhores que as anteriores e, consequentemente, estando mais preparada em eventos futuros3939 Birkmann J, Von Teichman K. Integrating disaster risk reduction and climate change adaptation: key challenges—scales, knowledge, and norms. Sust. Scienc. 2010; 5(2):171-184..
A incorporação da abordagem de resiliência climática nos sistemas de saúde contribuiria para assegurar a performance do sistema e a sustentabilidade e maximização dos investimentos financeiros em saúde2929 World Health Organization. Revisão do Regulamento Sanitário Internacional. 58ª Assembleia Mundial de Saúde, Item 13.1 da Agenda Genebra: OMS; 2005..
Produzir tecnologia e inovação
Os cenários de riscos relacionados com a saúde provocados pelas mudanças climáticas, desastres e ESP tendem a se tornar mais dinâmicos e complexos, exigindo inovação na pesquisa e tecnologias para lidar com novos problemas, como, por exemplo, a microcefalia associada ao Zika vírus. É preciso também inovação para lidar com problemas já conhecidos, mas que se apresentam de forma diferenciada, na qual ações antes eficientes perdem a capacidade de resolução. As pesquisas devem ter como prioridade oferecer subsídios aos serviços de saúde para lidar com novos fatores de risco presentes em cenários atuais, agravados pelas condições de vulnerabilidade, mas também com cenários prospectivos.
Em relação às Américas, destaca-se a importância de investir em estudos sobre vigilância em saúde, detecção e alerta em relação a zoonoses e doenças transmissíveis comuns ao homem e aos animais como potenciais ESP de Interesse Internacional para construir uma base de evidências para futuros esforços de redução de risco de infecção na interface saúde animal/ saúde humana. Essa interface deve ser analisada, sobretudo, no âmbito dos desastres, que agravam ou potencializam as formas de transmissão4040 Schneider MC, Tirado MC, Rereddy S, et al. Natural disasters and communicable diseases in the Americas: contribution of veterinary public health. Vet Ital. 2012; 48(2):193-218..
São necessários ainda recursos tecnológicos e ferramentas apropriadas para detecção precoce das principais doenças por tipo de desastre. Em uma experiência lançada pela OMS em regiões que necessitam de ajuda humanitária, foram distribuídos equipamentos que oferecem suporte ao funcionamento do sistema, como celulares, baterias, geradores solares, laptops, entre outros, para captar informações in loco. Essas informações são enviadas imediatamente para um sistema central, em que os dados são usados para gerar relatórios em tempo real que permitem uma resposta rápida a doenças antes que elas tenham tempo de se propagar4141 United Nations Office for Disaster Risk Reduction. Prevention web. Disease detection in a box – a high-tech solution for emergency settings [internet]. 2019. [acesso em 2019 set 29]. Disponível em: https://www.preventionweb.net/news/view/64866?&a=email&utm_ source=pw_email.
https://www.preventionweb.net/news/view/... .
O envolvimento de instituições acadêmicas em resposta aos desastres é influenciado por vários fatores, incluindo possibilidade de recursos disponíveis e de relações preexistentes de cooperação com serviços de saúde pública. Instituições acadêmicas possuem um gama de recursos relevantes e abordagens inovadoras para a preparação a desastres, a natureza multidisciplinar delas pode contribuir para o desenvolvimento do pensamento interdisciplinar valioso quando se trata de soluções para problemas desafiadores4242 Dunlop A, Logue K, Isakov A. The Engagement of Academic Institutions in Community Disaster Response: A Comparative Analysis. Pub. Health Repor. 2014; 129(6supl4):87-95.. No Brasil, esse potencial precisa ser levantado, analisado e sistematizado para melhor definir o papel destas instituições para estabelecimento de parcerias sólidas de cooperação com os serviços de saúde.
Criar fundo de financiamento
A criação de um Fundo de financiamento específico para elaborar, apoiar e promover ações e pesquisas sobre redução de riscos à saúde justifica-se pela necessidade de expandir a faixa geográfica de programas de vigilância e controle para doenças infecciosas sensíveis ao clima, buscando a melhoria dos serviços de saúde para responder, adaptar-se e tornar-se preparado a eventos climáticos extremos. Recursos adicionais serão também necessários em diversos setores para atingir metas de saúde, como implementação de projetos de saneamento, programas de segurança alimentar e nutricional durante as secas, construção e reconstrução de infraestrutura resiliente.
Recursos captados devem ser utilizados a partir de prioridades definidas por critérios técnicos, geridos por mecanismos que garantam a transparência da aplicação dos recursos e pautados em políticas que comprometam gestores atuais e futuros com a criação e implantação de um Sistema Nacional de Redução de Riscos à Saúde provocados pelas mudanças climáticas, desastres e ESP.
Considerações finais
Procuramos, neste artigo, evidenciar avanços e explicitar desafios a serem superados em cenários prospectivos e incertos relativos a mudanças do clima, desastres e ESP. Por um lado, nos últimos anos, ocorreu a implementação e o fortalecimento de instituições e políticas públicas voltadas à redução de risco, com a ampliação dos espaços institucionais e a atuação intersetorial, resultando na melhoria de indicadores de saúde, nas condições de vida e redução da mortalidade. Por outro, essas conquistas ocorrem em um contexto de redução dos investimentos públicos e do papel do estado em assegurar a realização dos direitos sociais e ambientais básicos. Assim, a mudança do cenário nacional para uma efetiva redução de riscos não está próxima, tampouco assegurada, carece ainda, no âmbito social, da combinação de atividades de preparação e investimento em formação sem, contudo, negligenciar a atuação das instituições sobre os fatores subjacentes relacionados, direta e indiretamente, com as ESP, incluindo os desastres.
Não podemos desconsiderar o contexto político atual em que se encontra nosso país, pois o cenário ambiental está diretamente relacionado com os rumos que as políticas públicas (ou a falta de) tomarão futuramente. Nos últimos anos, pudemos acompanhar uma série de políticas de proteção ambiental e garantia de direitos sociais ante os temas que envolvem saúde e o meio ambiente, incluindo a implementação do RSI no Brasil (2007), a criação da Política Nacional sobre Mudança do Clima (2009), ou ainda a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (2012). Mesmo com problemas para implementação nas esferas locais, essas políticas públicas representam avanços essenciais para nosso país.
Por fim, ao ser um problema mais grave e intenso para as comunidades vulneráveis (economicamente, socialmente ou politicamente), a relação entre sociedade civil e Estado – vínculo indispensável na gestão de risco – mostra-se em profunda tensão. As tensões aumentam à medida que a autonomia e a produção de informações e conhecimentos de instituições relacionadas com os temas aqui abordados são ameaçadas, ao mesmo tempo que imensos cortes para o financiamento de pesquisas são realizados, comprometendo um aspecto central das políticas globais e nacionais das últimas décadas: a produção de conhecimentos independentes e com autonomia. Associado a isso, no atual contexto global e nacional, são aprofundados os mecanismos de produção de condições de vulnerabilidades, sobrepondo riscos, ampliando os mecanismos perpetuadores das desigualdades no País e tornando opaco todo esforço instrumental e legislativo conquistados nos últimos anos.
Agradecimentos
Agradecemos ao Doutor Prof. Carlos Machado de Freitas, pelas preciosas contribuições ao artigo.
- Suporte financeiro: não houve
- *Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
05 Jul 2021 - Data do Fascículo
Jul 2020
Histórico
- Recebido
29 Set 2019 - Aceito
04 Fev 2020