Saúde mental das pessoas em situação de desastre natural sob a ótica dos trabalhadores envolvidos

Alessandra Rossoni Rafaloski Maria Terezinha Zeferino Bárbara Aparecida Oliveira Forgearini Gisele Cristina Manfrini Fernandes Fabrício Augusto Menegon Sobre os autores

RESUMO

O fenômeno do desastre causa sérios impactos à população que está direta ou indiretamente envolvida. Este estudo teve como objetivo compreender a atenção psicossocial às pessoas em situação de desastre no município de Blumenau na ótica dos trabalhadores envolvidos. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória, descritiva, realizada no contexto de um município com recorrentes desastres naturais que marcam a história da população. A coleta de dados se deu por meio de entrevistas semiestruturadas, realizadas com trabalhadores do setor saúde, defesa civil e corpo de bombeiros, selecionados pela técnica Bola de Neve. Os dados foram analisados pelo método de análise de conteúdo. Como resultado, descrevem-se três unidades de análise: Evento inesperado com a população desprevenida; Aumento do número de pessoas em sofrimento psíquico e agravo dos casos já em tratamento; Estratégias atuais do município, discutindo-se os conceitos de crise, trauma e síndrome disruptiva como efeitos à saúde mental nos desastres. Conclui-se que a atenção psicossocial na situação de desastre precisa ir além, deve estar mais atuante na prevenção, durante e no pós-desastre, garantindo o cuidado integral a todas as pessoas envolvidas.

PALAVRAS-CHAVE
Saúde mental; Desastres naturais; Impacto psicossocial; Trabalhador da saúde

Introdução

Desastre é definido pela Defesa Civil Nacional, como

[...] resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais e/ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais11 Brasil. Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. Ministério de Integração Nacional. Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil. Política Nacional de Defesa Civil. Diário Oficial da União. 11 Abr 2012..

São episódios desorganizadores e com grande potencial de adoecimento físico e psíquico, em que ficam suscetíveis as pessoas atingidas direta ou indiretamente, os trabalhadores envolvidos e até mesmo as pessoas que acompanham ocorrência pelos meios de comunicação22 Beniakar M, Collazo C. Salud mental em desastres: Problemáticas, paradojas y perspectivas clínicas. In: Benikar M, Thomé JT, Taralli IH. Intervenção em situações limite desestabilizadoras: crises e traumas. Rio de Janeiro: ABP; 2009.. Nesse contexto adverso, a saúde mental da população se torna alvo fácil, demandando dos trabalhadores da atenção psicossocial o desenvolvimento de ações para lidar com essa condição. No entanto,

[...] o número de pessoas capacitadas no assunto nem sempre é proporcional às necessidades apresentadas, pois, para cada pessoa com ferimento físico, existem pelo menos duzentos que precisam de assistência (não tratamento) na área de saúde mental22 Beniakar M, Collazo C. Salud mental em desastres: Problemáticas, paradojas y perspectivas clínicas. In: Benikar M, Thomé JT, Taralli IH. Intervenção em situações limite desestabilizadoras: crises e traumas. Rio de Janeiro: ABP; 2009.(88).

O grande potencial de impacto dos desastres na população nos revela a importância da atuação, em todas as esferas, embasada nos conhecimentos em saúde mental para proporcionar à população e aos próprios profissionais a realização de atividades que promovam a prevenção, a mitigação e o tratamento em saúde mental.

Dessa maneira, buscar a compreensão sobre as experiências subjetivas das pessoas nos contextos de desastres e na recuperação pós-desastre denota como os afetados compreendem o seu mundo social, após a experiência do trauma, e permite serem ouvidos, legitimando o sofrimento que emerge dessas situações de vida, oportunizando o entendimento sobre o sofrimento que é muitas vezes marginalizado e invisível com o passar do tempo33 McKinzie AE. In their own words: disaster and emotion, suffering, and mental health. Int J Qual Stud Health and Well-being. 2018; 13(1):1440108..

No ‘Guia prático de saúde mental em situações de desastre’44 Rodríguez J, Davoli, MZ, Pérez, R. Organización Panamericana de La Salud. Guía práctica de salud mental en desastres [internet]. Washington, DC: OPAS; 2009. [acesso em 2019 maio 26]. Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/2800.
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, consta que, durante uma situação de desastre, na maioria das vezes, o sujeito se depara de forma abrupta com a realidade. Nesse momento, o sistema nervoso se altera e pode afetar as respostas imunológicas, podendo experimentar sensações emocionais intensas que podem ir do medo paralisante à agitação desordenada, da dor extrema à ausência de dor. Após a situação de desastre, pode continuar sentindo forte medo e ansiedade, que vão dando espaço para sensações de tristeza e irritabilidade. Podem, ainda, surgir sintomas psicossomáticos como dores e agravos em geral.

A dor pode ser intensificada quando acontecem perdas materiais e pessoais. O sujeito precisa lidar com luto e com uma nova adaptação de sua vida. Nesse sentido, a readaptação será facilitada quando ele encontra apoio psicossocial, e esta intervenção não pode ser limitada aos serviços especializados. Ela deve estar presente nas ações de todos os trabalhadores que são envolvidos, de forma que a atenção em saúde mental seja oferecida a todos os atingidos pelo desastre.

A região do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, tem recorrência de desastres que marcam a história da população e que, por isso, demanda dos serviços algumas estratégias de atenção e cuidado para essas situações. Os desastres nessa região do País tem sido objeto de estudos em diferentes áreas, inclusive da saúde55 Fernandes GCM, Boehs AE, Sharon AD, et al. Rural families interpretations of experiencing unexpected transition in the wake of a natural disaster. Cad. Saúde Pública [internet]. 2017 [acesso em 2019 ago 2]; 33(1):e00161515. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00161515.
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. O desastre a que se referem tais estudos ocorreu em novembro de 2008, acometendo muitos municípios do Vale do Itajaí após volume intenso de chuva, trazendo enchente e precipitação que, combinadas com enxurradas, culminaram nos deslizamentos e escorregamentos de encostas. O nível do rio Itajaí-Açu alcançou 11,52 metros; e em Blumenau, que é o município escolhido para este estudo, aproximadamente 103 mil pessoas foram atingidas, 5.209 desabrigados, com 25 mil pessoas alojadas em casas de vizinhos, parentes e amigos, 2.383 foram feridas e 24 perderam a vida66 Avila MRR, Mattedi MA. Desastre e território: a produção da vulnerabilidade a desastres na cidade de Blumenau/SC. urbe, Rev. Bras. Gest. Urbana [internet]. 2017 [acesso em 2019 ago 2]; 9(2):187-202. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2175-3369.009.002.ao03.
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. É importante compreender que a intensidade de um desastre não depende somente da magnitude do evento, mas também do grau de vulnerabilidade da localidade atingida, tornando o desastre natural, em particular, como um fenômeno socialmente construído77 Noal DS, Oliveira SS, Alpino TMA, et al. Gestão Local de Desastres Naturais para a Atenção Básica [internet]. São Paulo: UNASUS; UNIFESP; 2016. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/37492/2/Curso%20AB.pdf.
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A vulnerabilidade passa a ser entendida como uma condição social de fatores advindos de mudanças ambientais e de processos sociais. Por mudanças ambientais, entendem-se as advindas da degradação ambiental, como desmatamentos de encostas e leitos de rios e igarapés, poluição, entre outros; e por processos sociais, as advindas das precariedades das condições de vida e proteção social, por exemplo, acesso a serviços, desemprego, falta de saneamento básico e água potável, habitações precárias, entre outros77 Noal DS, Oliveira SS, Alpino TMA, et al. Gestão Local de Desastres Naturais para a Atenção Básica [internet]. São Paulo: UNASUS; UNIFESP; 2016. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/37492/2/Curso%20AB.pdf.
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,88 Organização Pan-Americana da Saúde; Ministério da Saúde. Desastres Naturais Saúde no Brasil [internet]. Brasília, DF: OPAS; Ministério da Saúde; 2015. [acesso em 2017 jun 27]. Disponível em: http://semiarido.icict.fiocruz.br/wp-content/uploads/Desastres-e-Sa%C3%BAde-Brasil1.pdf.
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Um dos grandes causadores do aumento da vulnerabilidade socioambiental são os processos econômicos, culturais e sociais em desenvolvimento que provocaram um crescimento populacional acelerado e desorganizado em algumas localidades, fazendo aumentar a quantidade de casas construídas em locais inadequados e sem saneamento básico. Outro grande causador são os modelos utilizados de exploração de recursos naturais, produção agrícola e industrial88 Organização Pan-Americana da Saúde; Ministério da Saúde. Desastres Naturais Saúde no Brasil [internet]. Brasília, DF: OPAS; Ministério da Saúde; 2015. [acesso em 2017 jun 27]. Disponível em: http://semiarido.icict.fiocruz.br/wp-content/uploads/Desastres-e-Sa%C3%BAde-Brasil1.pdf.
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. Desastres são a soma de condições de vulnerabilidade socioambiental com a desigualdade social, econômica e social; essa relação acaba refletindo em catástrofes com consequências maiores em países pobres que têm menor capacidade de governança99 Organización Mundial de La Salud, Organización Panamericana de La Salud. Plan de Operaciones de Emergencia de La Red de Servicios de Salud. Guia para la Planificación. Lima: MS; 2014. [acesso em 2017 jun 28]. Disponível em: https://cursospaises.campusvirtualsp.org/pluginfile.php/71516/mod_page/content/8/plan_emergencia_red_servicios_salud.pdf.
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No Brasil, são escassos os documentos disponíveis sobre a temática de desastre com ênfase em saúde mental. Uma busca bibliográfica apontou alguns materiais, como o Protocolo Nacional Conjunto para Proteção Integral a Crianças e Adolescentes, Pessoas Idosas e Pessoas com Deficiência em Situação de Riscos e Desastres, produzido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), do Ministério da Justiça e Cidadania1010 Brasil. Secretaria de Direitos Humanos. Protocolo Nacional Conjunto para Proteção Integral de Crianças e Adolescentes, Pessoas Idosas e Pessoas Com Deficiência em Situação de Riscos e Desastres. Brasília, DF: SDH; 2013. e o Guia de preparação e resposta aos desastres associados às inundações para a gestão municipal do Sistema Único de Saúde (SUS)1111 Brasil. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de preparação e resposta aos desastres associados às inundações para a gestão municipal do Sistema Único de Saúde. Brasília, DF: SVS; 2011., elaborado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, orientando os serviços para a atuação dos profissionais em uma situação de desastre. No entanto, tais materiais não aprofundam questões relativas à atenção psicossocial, havendo lacunas sobre ações práticas para que os profissionais possam atuar efetivamente nas situações de desastres.

Nesse sentido, este estudo tem por objetivo descrever a visão dos trabalhadores sobre a saúde mental de pessoas envolvidas em situação de desastre no município de Blumenau (SC).

Material e métodos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória, descritiva. O cenário da pesquisa foi o município de Blumenau, na região do Vale do Itajaí, localizado no Norte de Santa Catarina, Brasil. Blumenau tem uma área territorial de 518,497 km² e população estimada em 2015 de 338.876 habitantes1212 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Panorama População [internet]. 2015. [acesso em 2016 jun 26]. Disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=420820&idtema=16&search=sant a-catarina|itajai|sintese-das-informacoes.
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. Tem como principal atividade econômica a indústria têxtil e de tecnologia. Geograficamente, apresenta altitudes e declives desiguais, seu clima é subtropical úmido e é atravessada pelo Rio Itajaí-Açu. Como cultura, destacam-se as dos imigrantes europeus, alemães e italianos, que colonizaram a região. O município mostra um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,806, maior do que a média nacional de 0,792 pontos1313 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2015. Síntese de Informações [internet]. Brasília, DF: IBGE; 2015. [acesso em 2016 jun 26]. Disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=420820&idtema=16&search=sant a-catarina|itajai|sintese-das-informacoes.
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Esse município foi selecionado para a realização desta pesquisa por apresentar um histórico de frequentes enchentes e inundações, conforme dados da Defesa Civil1414 Universidade Regional de Blumenau. Cota-enchente de Blumenau. Blumenau: Furb; 2012. [acesso em 2016 jun 30]. Disponível em: http://ceops.furb.br/cotas/Relatorio_Final_Cotas_Enchentes-09-11-2012.pdf.
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que registrou, de outubro de 1952, início das medidas por esse órgão, até setembro de 2011, 77 enchentes no município. É considerado enchente quando o Rio Itajaí sobe oito metros do seu nível médio. Na ocorrência de um desastre, o município articula suas secretarias de modo que os serviços atuem em conjunto. Porém, partindo do setor saúde no qual está inserida a atenção psicossocial, incluiu-se na pesquisa informantes da Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros Militar do estado de Santa Catarina.

Para seleção dos informantes, foi utilizada a técnica ‘Bola de Neve’ (snowball), também conhecida como cadeia de informantes, em que se faz o uso das relações entre as pessoas, ou seja, utiliza-se de uma amostra por referência como forma de acrescentar membros para a pesquisa1515 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas. 2014; 22(44):203-220.. Participaram da pesquisa os trabalhadores de saúde: dois enfermeiros, dois psicólogos, um assistente social; e outros trabalhadores envolvidos: um da defesa civil e outro do Corpo de Bombeiros Militar.

A coleta de dados se deu por meio de entrevista semiestruturada. Todas as entrevistas foram conduzidas a partir de um roteiro previamente estruturado com temas para exploração e aprofundamento.

Para a realização da primeira entrevista, foi anteriormente enviado um e-mail para a coordenação de saúde mental, explicando a pesquisa e a necessidade de indicação de uma pessoa da gestão para as informações iniciais. A partir da primeira indicação, sucederam-se todas as outras.

A análise dos dados seguiu as etapas da análise de conteúdo1616 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: 70. Ed.; 2011., e foram analisadas à luz da literatura sobre o tema, tendo como ordenadores o ‘Guia de preparação e resposta aos desastres associados às inundações para a gestão municipal do SUS’1111 Brasil. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de preparação e resposta aos desastres associados às inundações para a gestão municipal do Sistema Único de Saúde. Brasília, DF: SVS; 2011. e o ‘Guía práctica de salud mental en situaciones de desastres’ (‘Guia prático de saúde mental em situações de desastre’)44 Rodríguez J, Davoli, MZ, Pérez, R. Organización Panamericana de La Salud. Guía práctica de salud mental en desastres [internet]. Washington, DC: OPAS; 2009. [acesso em 2019 maio 26]. Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/2800.
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. Os resultados foram apresentados de forma descritiva, conforme resultados e discussão a seguir.

Esta pesquisa respeitou a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde1717 Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Comissão Nacional de ética em Pesquisa. [acesso em 2016 maio 16]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf.
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e está vinculada ao macroprojeto do Laboratório de Tecnologia e Inovação na Educação, Pesquisa e Extensão em Atenção Psicossocial e Drogas (Apis) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em Florianópolis (SC), submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSC, com parecer número: 924.432/2014. Para garantir o anonimato dos participantes, cada trabalhador recebeu a letra T de trabalhador e o numeral de 1 a 7 para apresentação dos dados.

Resultados e discussão

Neste estudo, emergiram três categorias de análise: Evento inesperado com a população desprevenida; Aumento do número de pessoas em sofrimento psíquico e agravo dos casos já em tratamento; Estratégias atuais do município.

Evento inesperado com a população desprevenida: esta categoria descreve que a população esperava e se preparava somente para o aumento do nível do rio; as pessoas e trabalhadores se depararam com deslizamentos que, por serem inesperados, afetaram muitas pessoas.

Muitas pessoas subiam para não pegar enchente. O que aconteceu em 2008, que foi o grande diferencial dos desastres naturais. Acho que foram três meses de chuva sistemática, chegando ao ponto desses morros começarem a desabar e aí atinge uma grande quantidade de pessoas diretamente na cidade. Tinha lugares, pontos que eram considerados nobres da cidade que até então estavam imunes, perderam tudo. (T1).

Tinha muita comunidade com boa estrutura que ninguém imaginava que cairia e naquele ano caiu, então pegou todo mundo desprevenido, onde você nunca imaginaria que iria ter o deslizamento... teve. (T3).

Hoje conseguimos prever com 24h se vai ter enchente, o que ainda estamos aprendendo em relação ao deslizamento de terra. (T5).

Os dados revelam que o impacto sobre o modo de reagir da população, que antes estava acostumada com o enfrentamento de enchentes, parece ter mudado após o evento de 2008, pelo tipo de desastre que associou deslizamentos das encostas a uma enchente de grande proporção, trazendo prejuízos de maior amplitude à população que passou a se deparar com outros riscos ambientais do território e com a iminência dos danos à saúde mental.

A população, de modo geral, habita o território da cidade cujo risco de enchentes era conhecido, mas, ao longo dos anos e com a crescente urbanização, aliado aos problemas de infraestrutura e planejamento, culminou na ocupação de áreas próximas às encostas em locais mais altos da cidade. Nesses locais, as características quanto ao grau de vulnerabilidade social variam, dadas as diferenças de tipo de moradia e de condições econômicas das famílias. O Marco de Ação de Hyogo (MAH), que busca a implementação da redução de riscos e desastres, define a vulnerabilidade como

[...] condições determinadas por fatores ou processos físicos, sociais, econômicos e ambientais que aumentam a suscetibilidade de uma comunidade ao impacto de riscos1818 Trajber R, Olivato D, Marquezine V. Conceitos e termos para a gestão de riscos e desastres na educação. Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais [internet]. São Paulo: CEMADEN; 201[?]. [acesso em 2019 ago 26]. Disponível em: http://educacao.cemaden.gov.br/medialibrary_publication_attachment?key=EDtGLgxTQiYlb8yFZUCUND1dSaw=>.
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(5).

As pessoas atingidas eram de todas as classes sociais e de quase todas as regiões do município, situação essa que impactou a população de forma generalizada e está ligada à vulnerabilidade local da época.

Na época em que ocorreu o desastre, os alertas foram dados para a ocorrência de alagamento. Não havia alerta para os deslizamentos. Nesse sentido, a situação vivida foi considerada extrema, por ter ocorrido de forma inesperada e grave, alterando a rotina da vida das pessoas afetadas1919 Vasconcelos TP, Cury VE. Atenção Psicológica em Situações Extremas: Compreendendo a Experiência de Psicólogos. Psicol. Ciênc. Prof [internet]. 2017 [acesso em 2019 ago 19]; 37(2):475-488. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703002562015.
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Nas condições em que se deu a quebra da realidade, o trauma rompe a organização mental e causa uma anulação na continuidade da vida. A intensidade do que é vivenciado é tanta que impede a elaboração de seus conteúdos, podendo aparecer como sintoma o rompimento da articulação entre os afetos. Sem recursos internos para lidar com essa situação, tudo parece perder o sentido, tornando algo desamparado e angustiante2020 Freud S. Os Pensadores: Cinco lições de psicanálise, A história do movimento psicanalítico, O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização, Esboço de psicanálise. São Paulo: Abril Cultural; 1978.. A mente tem a capacidade de selecionar os estímulos que podem ser recebidos e processados como forma de manter a energia psíquica adequada para o desenvolvimento do processamento mental normal. A mente articula e relaciona vivências entre si, formando uma complexa cadeia experiencial e vivencial22 Beniakar M, Collazo C. Salud mental em desastres: Problemáticas, paradojas y perspectivas clínicas. In: Benikar M, Thomé JT, Taralli IH. Intervenção em situações limite desestabilizadoras: crises e traumas. Rio de Janeiro: ABP; 2009.,2020 Freud S. Os Pensadores: Cinco lições de psicanálise, A história do movimento psicanalítico, O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização, Esboço de psicanálise. São Paulo: Abril Cultural; 1978..

Trauma é um conceito que se aproxima ao contexto do desastre com a denominação de síndrome disruptiva, entendendo-se que um evento real de desastre se torna disruptivo quando algo se desorganiza, desestrutura-se e rompe na vida que até então estava equilibrada22 Beniakar M, Collazo C. Salud mental em desastres: Problemáticas, paradojas y perspectivas clínicas. In: Benikar M, Thomé JT, Taralli IH. Intervenção em situações limite desestabilizadoras: crises e traumas. Rio de Janeiro: ABP; 2009.. A singularidade com que cada um internaliza o fato real reflete também nos impactos de determinado evento, ou seja, o disruptivo é um conceito relacional que tem potencial relativista. Por isso, a reação psíquica é determinante para ser considerada disruptiva22 Beniakar M, Collazo C. Salud mental em desastres: Problemáticas, paradojas y perspectivas clínicas. In: Benikar M, Thomé JT, Taralli IH. Intervenção em situações limite desestabilizadoras: crises e traumas. Rio de Janeiro: ABP; 2009..

Ruas e bairros deixaram de existir por causa dos deslizamentos; nessas alocações, relações foram desfeitas, perderam também a referência familiar de quem antes morava próximo. A interrupção do processo natural da vida – um desastre, por exemplo – pode ser interpretada de forma distinta entre as pessoas: alguns têm a percepção de que a ameaça faz parte da própria subjetividade e que não encontrarão esforços para lidar com o ocorrido; para outros, essa é uma situação que traz sentimentos de solidão, isolamento social, auto e heteroagressão, entre outras22 Beniakar M, Collazo C. Salud mental em desastres: Problemáticas, paradojas y perspectivas clínicas. In: Benikar M, Thomé JT, Taralli IH. Intervenção em situações limite desestabilizadoras: crises e traumas. Rio de Janeiro: ABP; 2009..

Para a compreensão sobre o conceito de disruptivo, consideram-se importantes as diferentes maneiras de perceber o mesmo evento, gerando sofrimento psíquico para alguns, e para outros, não. Esse conceito lembra o conceito de Resiliência, que significa recuperação e adaptação. Diz respeito à capacidade do ser humano em se adaptar e não entrar em sofrimento ou se tornar vulnerável no momento da ocorrência ou após a crise2121 Gonçalves C. Regiões, cidades e comunidades resilientes: novos princípios de desenvolvimento. Rev. Bras. Gest. Urbana [internet]. 2017; 9(2):371-385. [acesso em 2017 dez 5]. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2175-3369.009.002.ao15.
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. Resiliência em situação de desastre remonta ao conceito de resiliência comunitária, que corresponde aos recursos e capacidades da comunidade para recuperar-se quando é exposta à situação de desastre.

Uma comunidade resiliente gera auto-organização, adaptação e aprendizagem. A comunidade resiliente tem a capacidade de reconhecer os riscos da sua região e de se preparar, estabelecendo planos de mitigação para os riscos2121 Gonçalves C. Regiões, cidades e comunidades resilientes: novos princípios de desenvolvimento. Rev. Bras. Gest. Urbana [internet]. 2017; 9(2):371-385. [acesso em 2017 dez 5]. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2175-3369.009.002.ao15.
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. Ou seja, os dois conceitos dizem respeito à percepção do indivíduo; o disruptivo, quando o processo se dá de forma negativa e trazendo sofrimento; e a resiliência, quando um processo positivo e saudável que leva à adaptação.

Existe um potencial de adoecimento como desequilíbrio emocional e/ou psíquico na exposição prolongada das populações a acontecimentos desorganizadores naturais, configurando, assim, uma retroalimentação do padrão sintomático, em que a perda e o luto não resolvido trazem um imenso sofrimento psíquico a essas pessoas22 Beniakar M, Collazo C. Salud mental em desastres: Problemáticas, paradojas y perspectivas clínicas. In: Benikar M, Thomé JT, Taralli IH. Intervenção em situações limite desestabilizadoras: crises e traumas. Rio de Janeiro: ABP; 2009..

Aumento da procura pelos serviços de saúde mental após desastre e do número de diagnósticos para a população: esta categoria trata sobre o aumento do número de pessoas que procuraram os serviços de saúde mental, consequentemente, também o número de diagnósticos novos.

Tinham famílias sem problemas de saúde mental, mas a partir da tragédia passaram a ser público alvo da saúde mental. Por quê? Quando as casas caíram, caiu a vida delas! O que elas tinham era o imóvel, quando ela acordou naquela noite, ela não tem mais aquele imóvel ela entrou em sofrimento, e isso abalou marido, filhos e assim toda a estrutura que eles tinham construído, naquele dia, naquela noite em 2008 o sonho acabou, tiveram perdas que não foram só materiais, muitos perderam seus filhos e outros familiares soterrados. Além disso, foram para outros bairros que não eram de referência delas, elas sofrem e acabam trazendo para a saúde mental [...]. (T3).

O que se comentava foi que essa cidade que era saudável agora era atravessada por esse fenômeno que desorganiza toda a cidade, todos são afetados. [...] o que a gente percebe nos serviços de saúde mental é que essa sombra coletiva continua. Existe o dano que foi desencadeado pela catástrofe, situações que já estavam estáveis, de novo tiveram seus desequilíbrios em termos de dependência química no uso de substância e o adoecimento. (T2).

Então a gente acaba percebendo a comoção inicial nesse primeiro momento. Mas eu acabei percebendo ao longo dos anos, o que vem depois, que é a agressividade da população, a intolerância, o imediatismo que eles querem. Então, o que falta muito e que é de extrema importância para essa população é o atendimento pós-tragédia para saber como retomar a vida depois do acontecido. Retomar o caminho onde ele parou! A gente via muito na Unidade a população procurando atendimento, aumentou muito o número da população usando algum tipo de medicamento para dormir, para a ansiedade e para outras situações. (T5).

As famílias chegam totalmente fragilizadas, perderam bens, perderam suas casas e em alguns casos elas têm que ter esse amparo mental. (T4).

Após a ocorrência do desastre no município estudado, houve um expressivo aumento na procura pelos serviços de saúde, em especial, pela saúde mental. Nesse sentido, torna-se importante o oferecimento dos primeiros cuidados em saúde mental, especialmente livres da medicalização desnecessária dos sintomas. É importante o preparo da equipe de trabalhadores para que estes tenham o conhecimento prévio de como agir e como identificar os sintomas e agravos advindos de uma situação de desastre88 Organização Pan-Americana da Saúde; Ministério da Saúde. Desastres Naturais Saúde no Brasil [internet]. Brasília, DF: OPAS; Ministério da Saúde; 2015. [acesso em 2017 jun 27]. Disponível em: http://semiarido.icict.fiocruz.br/wp-content/uploads/Desastres-e-Sa%C3%BAde-Brasil1.pdf.
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,2222 Pereira CAR, Barata MML. Organização dos serviços urbanos de saúde frente à mudança do clima e ao risco de desastres na América Latina. Saúde debate [internet]. 2014 [acesso em 2019 ago 26]; (38)102:6-7. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5935/0103-1104.20140057.
http://dx.doi.org/10.5935/0103-1104.2014...
. Olhar para o desastre enquanto fenômeno socioambiental significa ampliar a percepção sobre o desastre como evento em si, a participação comunitária como forma de prevenir e, no pós-desastre, ter condições de avaliar o contexto e as estruturas sociais existentes no local, dada a importância dessas condições para a superação das dificuldades encontradas1919 Vasconcelos TP, Cury VE. Atenção Psicológica em Situações Extremas: Compreendendo a Experiência de Psicólogos. Psicol. Ciênc. Prof [internet]. 2017 [acesso em 2019 ago 19]; 37(2):475-488. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703002562015.
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.

Trabalhadores entrevistados percebem na clínica que há casos de agravos psíquicos que podem ter relação com a vivência do desastre de 2008; assim como há situações de indivíduos que já se encontravam estáveis em seus tratamentos, mas o ocorrido gerou desequilíbrios, como sintomas de depressão, síndrome do pânico, sendo comuns os transtornos de ansiedade associados. O reflexo psicológico dos desastres afeta as pessoas de forma diferenciada, levando-se em conta a estrutura psicológica e a dimensão do evento. No entanto,

[...] os desastres agravam os riscos de doenças já existentes na localidade, por isso, a importância da compreensão de como as ações de prevenção em saúde são realizadas em consonância com as de prevenção de riscos de desastres em saúde é fundamental77 Noal DS, Oliveira SS, Alpino TMA, et al. Gestão Local de Desastres Naturais para a Atenção Básica [internet]. São Paulo: UNASUS; UNIFESP; 2016. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/37492/2/Curso%20AB.pdf.
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,88 Organização Pan-Americana da Saúde; Ministério da Saúde. Desastres Naturais Saúde no Brasil [internet]. Brasília, DF: OPAS; Ministério da Saúde; 2015. [acesso em 2017 jun 27]. Disponível em: http://semiarido.icict.fiocruz.br/wp-content/uploads/Desastres-e-Sa%C3%BAde-Brasil1.pdf.
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Ou seja, é um fator de risco que não pode passar despercebido. Trata-se de uma população com mais fragilidade que deve receber atenção prioritária. Esse grupo de risco deve ser mapeado e monitorado de forma preventiva antes da situação de desastre ocorrer. Dessa forma, o trabalho deve ser preventivo, dinâmico nas redes formal e informal de cuidado, cujo conhecimento sobre as relações que as pessoas da comunidade têm com família, escola, vizinhos, anteriormente ao desastre, contribua para uma compreensão sistêmica de atuação dos profissionais no pós-desastre2222 Pereira CAR, Barata MML. Organização dos serviços urbanos de saúde frente à mudança do clima e ao risco de desastres na América Latina. Saúde debate [internet]. 2014 [acesso em 2019 ago 26]; (38)102:6-7. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5935/0103-1104.20140057.
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Todavia, pessoas que já estavam realizando tratamento em saúde mental, com ou sem medicação psiquiátrica, precisam ter esses serviços garantidos após a ocorrência do desastre2323 Munro A. Effect of evacuation and displacement on the association between flooding and mental health outcomes: a cross-sectional analysis of UK survey data. Lancet Planet Health [internet]. 2017; 1(4):134-141. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28944321.
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. Essas são demonstrações da importância da definição de Planos de Contingência da Secretaria de Saúde para que os trabalhadores saibam o que a população vai demandar nesse momento. É interessante que as equipes de saúde identifiquem sua clientela em tratamento psiquiátrico, uma vez que problemas mentais e psicossociais podem intensificar o sofrimento em situação de emergência e desastre. Nesse grupo de risco, também estão as pessoas que fazem o abuso de álcool e outras drogas, pois a ocorrência do desastre é um fator estressante que pode levar à intensificação do abuso e seus efeitos negativos, trazendo dificuldades para encontrar redes de apoio e na adesão de tratamentos posteriores ao desastre44 Rodríguez J, Davoli, MZ, Pérez, R. Organización Panamericana de La Salud. Guía práctica de salud mental en desastres [internet]. Washington, DC: OPAS; 2009. [acesso em 2019 maio 26]. Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/2800.
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Com relação ao estresse pós-traumático, mulheres donas de casa apresentam quatro vezes mais o risco de desenvolverem ideação suicida após desastre. O risco é ainda maior em desenvolver esse pensamento quando há parentes afetados pela situação de desastre, sendo que 12 pessoas de 22 que já têm ideação suicida apresentam sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT)2424 Souza Minayo SC. O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2010.. O estresse está bastante ligado à crise vivenciada no pós-desastre e ao luto decorrente das perdas, as quais são múltiplas, inesperadas e variadas nas situações de desastres: a perda da vida de antes, a perda material, morte ou agravos pessoais55 Fernandes GCM, Boehs AE, Sharon AD, et al. Rural families interpretations of experiencing unexpected transition in the wake of a natural disaster. Cad. Saúde Pública [internet]. 2017 [acesso em 2019 ago 2]; 33(1):e00161515. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00161515.
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. Os lutos estão associados às perdas significativas que podem acontecer na vida do indivíduo e que, nos desastres, também desorganizam a vida do sujeito. Não obstante, em meio à população afetada e aos atendimentos desenvolvidos em resposta aos desastres ou no período de recuperação dos desastres, encontram-se os profissionais de diversas áreas que também são afetados direta ou indiretamente em tais eventos, os quais podem também viver seus lutos e sofrer impactos na saúde psíquica.

Estratégias atuais do município: algumas estratégias que se iniciaram no desastre de 2008 ou que foram reforçados por ele foram efetivadas no município. Identificamos duas estratégias que correspondem à saúde mental da população envolvida, a saber: Apoio Matricial e Educação Permanente.

No contexto do desastre de 2008, os serviços de saúde já utilizavam o Matriciamento como ferramenta de trabalho entre os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), Secretaria de Educação e Assistência Social, mas com a organização que foi construída pós-desastre e a implementação da Portaria nº 3.088 no mesmo ano, a Rede se tornou mais articulada e estruturada, também entre os serviços da saúde, de acordo com o relato a seguir:

A partir do final de 2008, 2009 a gente inicia com a portaria do acompanhamento matricial e vem trabalhando até hoje de uma forma bem mais estruturada... a nossa grande ferramenta de interlocução na atenção básica, trabalhando em todos os aspectos da atenção psicossocial é o Apoio Matricial. (T1).

Já a Educação Permanente foi categorizada como estratégia da saúde. O setor se mobiliza para oferecer cursos aos trabalhadores, no entanto, ainda não são contemplativos e sistemáticos, conforme fala a seguir: “A gente tem o preparo próprio da formação, mas, nunca existiu uma capacitação formal, para atendimentos durante e pós-tragédia” (T5).

As várias situações traumáticas vivenciadas pela população e trabalhadores fizeram com que algumas estratégias pontuais se tornassem estratégias atuais no município. O Apoio Matricial via Caps se iniciou após o desastre de 2008 e pela necessidade de descentralizar as ações fortemente centralizadas nos Caps e, assim, ampliar a atenção psicossocial na atenção básica.

No início, eram duas equipes para Matriciamento no município todo, hoje são quatro equipes multiprofissionais dos Capsi, Caps II, Capsad e o Serviço de Avaliação em Saúde Mental. É realizado um cronograma anual que atinge, em média, 50% das unidades ano, cerca de 33 Unidades Básicas de Saúde. A proposta é fomentar o cuidado e a atenção psicossocial das Equipes de Saúde da Família (EqSF) e dos ambulatórios gerais.

Essa configuração de Matriciamento via Caps e Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) se mostra distinta da maioria dos municípios brasileiros, onde o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) tem o Apoio Matricial como um de seus objetivos. O Nasf, instituído pela Portaria GM nº 154, de 24 de janeiro de 2008, foi criado para apoiar e ampliar a abrangência, territorialização e resolutividade das EqSF da Rede de Atenção à Saúde (RAS)2525 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família [internet]. Brasília, DF: MS; 2010. [acesso em 2019 abr 1]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/caderno_atencao_basica_diretrizes_nasf.pdf.
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É importante destacar a importância que o Matriciamento tem na política da RAS brasileira. Conforme as diretrizes para organização da Rede do SUS, dispostas na Portaria nº 4.279/2010, já mencionada neste estudo, “é preciso considerar e valorizar [...] o apoio matricial a fim de construir modos para haver a co-responsabilização do profissional e do usuário”2525 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família [internet]. Brasília, DF: MS; 2010. [acesso em 2019 abr 1]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/caderno_atencao_basica_diretrizes_nasf.pdf.
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Sendo assim, o Matriciamento se configura como uma importante estratégia que é utilizada pelo município e que consegue ser abrangente, demandando uma interlocução dos profissionais que auxiliará na integralidade do cuidado em saúde mental. Nas palavras de Campos, o Apoio Matricial valoriza o vínculo e a horizontalização do atendimento, tem o objetivo de “assegurar, de modo dinâmico e interativo, retaguarda especializada a equipes e profissionais de referência”2626 Campos GWS. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria Paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, et al., organizadores. Tratado de saúde coletiva. 2. ed. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 39-78.(77).

O Apoio Matricial, categorizado como estratégia em saúde, acaba contemplando somente o atendimento secundário de pessoas que já estão desenvolvendo sintomas advindos da situação de desastre; evidenciando, assim, a não existência do planejamento para o desenvolvimento de ações em saúde para prevenção e atuação durante a ocorrência do desastre.

Além do Apoio Matricial, o setor da saúde apresenta também a Educação Permanente como estratégia de trabalho, oferecendo cursos e capacitações para os profissionais atuarem em situações de desastre. A Educação Permanente, nesse caso, configura-se como uma estratégia descontínua, com rupturas no tempo e sem constância2727 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde [internet]. Brasília, DF: MS; 2009. [acesso em abr 1]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pacto_saude_volume9.pdf.
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Esses cursos não acontecem de forma sistemática, são disponibilizados para todos os profissionais da saúde e dependem do interesse do profissional para a matrícula. A principal iniciativa para a sua realização vem da Secretaria de Saúde por intermédio da equipe de ajuda humanitária.

Essas capacitações foram categorizadas como uma estratégia em saúde, no entanto, mostram-se não contemplativas, já que não são todos os profissionais que participam e não são sistemáticas por acontecerem esporadicamente.

Reitera-se o que menciona o Ministério da Saúde2828 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de preparação e resposta aos desastres associados às inundações para a gestão municipal do sistema único de saúde 2011[internet]. Brasília, DF: MS; 2011. [acesso em 2019 abr 1]. Disponível em: https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/junho/08/Guia_para_sms_desastres_julho_2011.pdf.
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sobre a responsabilidade do setor saúde em realizar as capacitações de forma preventiva, não só para os serviços de saúde como também para outros setores que atuam em situação de desastre, que vai ao encontro dos objetivos dos Marcos de Sendai e Hyogo que prezam por preparo e prevenção em desastre1818 Trajber R, Olivato D, Marquezine V. Conceitos e termos para a gestão de riscos e desastres na educação. Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais [internet]. São Paulo: CEMADEN; 201[?]. [acesso em 2019 ago 26]. Disponível em: http://educacao.cemaden.gov.br/medialibrary_publication_attachment?key=EDtGLgxTQiYlb8yFZUCUND1dSaw=>.
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É importante destacar que, em se tratando de uma localidade que tem enfrentado inúmeras situações de desastre, a estratégia deveria ser de Educação Permanente, a qual se diferencia da Educação Continuada à medida que é uma estratégia sem fragmentação disciplinar; sua abordagem é mais abrangente e tem como objetivo a prática como fonte de conhecimento, conforme a Portaria nº 198/2004 que institui a Política Nacional de Educação Permanente em saúde como estratégia do SUS2929 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 198, de 13 de fevereiro de 2004. Institui a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia do Sistema Único de Saúde para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras providências. Diário Oficial da União. 14 Fev 2004..

Compreende-se que profissionais de todas as áreas (setor saúde, bombeiros, defesa civil, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – Samu, entre outros) podem e devem atuar, direcionando um cuidado que atenda noções básicas de cuidados psicológicos que venham a prevenir futuros agravos como síndromes e transtornos.

Não se trata de oferecer a todos os atingidos serviços especializados como consultas psiquiátricas ou psicológicas, mas é necessário oferecer cuidados psicossociais a essa população com o objetivo de reduzir o estresse e o surgimento de possíveis transtornos psicológicos, ajudar as pessoas na organização de uma nova rotina e, conforme a demanda, na elaboração de perdas e lutos, entre outros.

A necessidade psicossocial está em acolher, compreender que os afetados precisam elaborar suas vivências dolorosas advindas desses eventos, respeitando suas manifestações de dor, não vitimizando, mas a auxiliando no enfrentamento de seu sofrimento conforme sua singularidade e os recursos socioculturais77 Noal DS, Oliveira SS, Alpino TMA, et al. Gestão Local de Desastres Naturais para a Atenção Básica [internet]. São Paulo: UNASUS; UNIFESP; 2016. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/37492/2/Curso%20AB.pdf.
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Esse acolhimento é compreendido como Primeiros Cuidados Psicológicos (PCP) pelo Projeto Esfera3030 Esfera. El Proyecto Esfera. Carta Humanitaria y normas mínimas para la respuesta humanitaria. Reino Unido: Proyecto Esfera; 2011.. Trata-se de um apoio que deve ser executado imediatamente após a ocorrência de um desastre, sendo destinado às pessoas que estejam em sofrimento psicológico. Não é considerada uma intervenção clínica nem de emergência psiquiátrica88 Organização Pan-Americana da Saúde; Ministério da Saúde. Desastres Naturais Saúde no Brasil [internet]. Brasília, DF: OPAS; Ministério da Saúde; 2015. [acesso em 2017 jun 27]. Disponível em: http://semiarido.icict.fiocruz.br/wp-content/uploads/Desastres-e-Sa%C3%BAde-Brasil1.pdf.
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Todas as pessoas, desde que recebam treinamento, podem aplicar o método PCP, dessa forma, esse seria um importante método a ser agregado nas mais diversas funções profissionais que atendem uma situação de desastre, tais como Bombeiros, profissionais da Defesa Civil, profissionais da Atenção Básica à Saúde, entre outros.

A partir das entrevistas analisadas por este estudo, percebe-se que existe uma dificuldade dos profissionais em dar atenção e/ou apoio em saúde mental a quem esteja necessitando, durante a execução de suas atividades em uma situação de desastre. Nesse sentido, o PCP pode ser considerado um apoio psicossocial importante como forma de prevenção de possíveis agravos futuros e de avaliação de casos que precisam ser encaminhados para um serviço especializado em saúde mental.

Considerações finais

O presente estudo revelou a percepção de trabalhadores sobre a vivência da população na tragédia de 2008, no Vale do Itajaí (SC), destacando os impactos sobre a saúde mental refletidos pelo processo de interrupção da vida e à exposição de consequências que amplificaram o potencial de adoecimento mental dos atingidos. A notificação sobre o aumento expressivo na procura da população, especialmente por serviços de saúde mental, o agravamento de quadros preexistentes e sob tratamento antes do desastre, e a ocorrência de novos casos de sofrimento mental enfocam a pertinência do tema para a formação profissional em saúde. Ao passo que a importância de realizar cuidados em saúde mental nas práticas cotidianas dos profissionais, durante e após a ocorrência do desastre, torna-se desafio pela ausência de planos de contingência que envolvam os profissionais para as ações de saúde mental, bem como oferta de preparo das equipes para tais eventos.

Percebemos também que o município considerou as experiências no processo de reformular e atualizar as estratégias que se tornaram atuais. O Apoio Matricial e a Educação Permanente se efetivaram e se mostram importantes ferramentas para a população e trabalhadores envolvidos em situações de desastre. A partir do momento que ao trabalhador é destinado um suporte adequado para sua atuação, a população terá meios de enfrentar a realidade com mais possibilidade de reduzir riscos em todos os contextos do desastre.

A falta de qualificação estruturada e articulada para o atendimento em saúde mental em desastre repercute em ações desarticuladas da realidade pós-desastre, sem levar em consideração as potencialidades do evento para a reintegração da população. Nesse sentido, a qualificação prepara o trabalhador para lidar com a crise, promovendo a saúde da população no processo de recomeçar, a partir de onde se encontra na vida pós-desastre. Por conseguinte, o apoio de profissionais requer o olhar atento ao sofrimento das equipes, enquanto parte da população direta ou indiretamente afetada, cujo cuidado também precisa ser dedicado nessas situações considerando suas potencialidades para a resiliência no trabalho e no convívio comunitário diante de desastres.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jul 2020

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2019
  • Aceito
    05 Mar 2020
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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