O PERCURSO PELA HISTÓRIA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA remete à leitura de um movimento heterogêneo iniciado na década de 1970 e que agregou diversos atores em torno de temáticas como a clínica, a política, o social, o cultural e as subjetividades. Influenciados por movimentos reformistas presentes na Europa e nos Estados Unidos, em especial pela experiência italiana denominada psiquiatria democrática, setores da sociedade brasileira iniciaram mobilizações em favor de direitos para os que eram então tomados como doentes mentais.
Nessa direção, o livro ‘Loucura e transformação social: autobiografia da reforma psiquiátrica no Brasil’, organizado pelo psiquiatra, pesquisador e militante da reforma psiquiátrica, Paulo Amarante, com contribuição da equipe do Laboratório de Estudos e Pesquisa em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps), mostra em detalhes um processo que vai além da transformação do modelo socioassistencial da política de saúde mental no País. Como assinala o próprio autor, o objetivo do livro é demarcar que a reforma é “uma transformação de mentalidades, de culturas, de referências científicas, de relações sociais, de formas de ver e estar no mundo”11 Amarante P. Loucura e transformação social: autobiografia da reforma psiquiátrica no Brasil. São Paulo: Zagodoni; 2021.(15). O caminho traçado na obra é resultado de pesquisa coordenada por Amarante e desenvolvida no Laps da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Com uma abordagem meticulosa, a obra lança o leitor na arena da reforma psiquiátrica brasileira, capitalizando os dispositivos de composição de um projeto político e ampliando o trabalho de mesma autoria desenvolvido na obra denominada ‘Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil’22 Amarante P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1995., publicada em 1995.
É especialmente no campo da política que o livro aqui resenhado se torna tão importante. Em primeiro lugar, pela apresentação de um movimento que coincide com a história de luta política pela redemocratização do Brasil. Nessa direção, o prefácio assinado por Leonardo Pinho é finalizado com a enfática afirmação de que ‘a Democracia é Antimanicomial’. Em segundo lugar, pelo alinhamento entre a Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária Brasileira, ambas construindo um projeto democrático, solidário e participativo, com a saúde tomada como um direito para todos e como defesa da vida. Por último, mas não menos importante, pelo diálogo com a militância, com a comunidade científica e com a sociedade que acredita na potência do tratamento em liberdade.
Na apresentação, o autor situa o período de abrangência da pesquisa, qual seja, a segunda metade da década de 1970 até 2016. O período final de delimitação da pesquisa coincide com o momento em que se inicia um forte avanço do conservadorismo no País, alinhado com uma agenda de contrarreforma psiquiátrica, o que coloca em risco as conquistas alcançadas ao longo de mais de cinco décadas de luta e mobilização.
A introdução, intitulada ‘Reforma psiquiátrica como processo social complexo e a dimensão teórico-conceitual’, traz a noção de um movimento dinâmico, democrático e heterogêneo, em constante mudança e que abarca práticas, conceitos e atores plurais. A noção de processo social complexo está atrelada à leitura de quatro dimensões, que, na proposta do autor, estruturam a reforma: dimensão teórico-conceitual ou epistemológica; técnico-assistencial; jurídico-política e sociocultural. Ainda na introdução, destaca-se o protagonismo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), instituição que teve participação ativa e direta na produção das condições de emergência das Reformas e do Sistema Único de Saúde.
Em ‘A indústria da loucura é denunciada! O nascimento da reforma psiquiátrica brasileira’, Amarante situa importantes acontecimentos no campo da saúde mental no Brasil finalizando na criação da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Ao retomar a crise na Divisão Nacional de Saúde Mental, a Dinsam – um marco político importante ocorrido em 1978, que contribuiu para a formação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) – o capítulo cartografa os caminhos e linhas de constituição de um movimento mais amplo que agregou importantes intelectuais da psiquiatria, psicanálise e ciências sociais, além de trabalhadores, familiares e usuários. O termo usuário substitui os termos doente ou paciente, e passou a ser adotado no âmbito das políticas públicas para se referir àqueles que delas faziam uso. Outro importante marco nesse processo foi a aprovação, em 27 de março de 2001, doze anos após sua apresentação, da Lei nº 10.216/01, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica. Embora o texto aprovado tenha sido mais brando do que o projeto de lei original, apresentado pelo deputado federal Paulo Delgado, a Lei instaura uma tentativa de dar outra resposta ao tema da saúde mental de modo não asilar.
O livro dá destaque especial à dimensão sociocultural, discutida em dois capítulos: ‘A dimensão sociocultural: experiências concretas de produção de um novo lugar para a loucura e o sofrimento psíquico’ e ‘A dimensão sociocultural no trabalho, geração de renda e economia solidária’. No primeiro, Amarante resgata o surgimento e organização de coletivos e movimentos que se configuraram importantes dispositivos de participação e controle social no campo da saúde mental, como é o caso do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA). No segundo capítulo, reforça a potência da arte e da cultura na luta antimanicomial e na construção da reforma psiquiátrica. As oficinas de arte, cultura, trabalho e renda desenvolvidas nos serviços de atenção psicossocial, são importantes instrumentos de visibilidade, reconhecimento e inserção social.
A diversidade cultural é expressão de uma dimensão de diálogo com a diferença que implica a aceitação do outro, não como prática de tolerância, mas de reciprocidade, de reconhecimento, de solidariedade11 Amarante P. Loucura e transformação social: autobiografia da reforma psiquiátrica no Brasil. São Paulo: Zagodoni; 2021.(104).
Finalmente, o último capítulo do livro, ‘Considerações e comentários finais: contrarreforma sanitária e psiquiátrica ou desmonte do estado de direito no Brasil?’, tão importante pela questão ética e política que o circunscreve, discute a reforma no interior de um processo de desmonte do Estado democrático no País. O êxito da reforma não impede a possibilidade da ascensão de movimentos que promovam retrocessos frente a uma política democrática de despatologização, com modelos substitutivos ao manicomial e que fomentem a produção de vida. Em um Brasil que passa a valorizar as internações compulsórias e a intolerância, bem como a financiar as políticas proibicionistas, carregadas de estigmas e violências, em detrimento de um tratamento em liberdade, é preciso resgatar a memória para que se possa continuar a luta em defesa da reforma.
Amarante nos convida a pensar a reforma como um processo permanente de afirmação de um modo de experimentar a vida em liberdade. Das resistências às conquistas, a reforma psiquiátrica tem se configurado um acontecimento dinâmico que convulsiona constantes embates e desperta reações diversas da sociedade. O acontecimento da reforma e as diversas lutas travadas ao longo desses anos foram combustível para uma composição de afetos, de corpos e pautas que criou e continua criando espaços de potência inventiva, realizadora e criativa. Pesquisadores, estudantes, trabalhadores, familiares e demais interessados no tema da reforma encontrarão no livro de Amarante uma história que traz inspiração, reflexão e ferramentas que poderão alimentar a luta.
- Suporte financeiro: não houve
- *Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
Referências
- 1Amarante P. Loucura e transformação social: autobiografia da reforma psiquiátrica no Brasil. São Paulo: Zagodoni; 2021.
- 2Amarante P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1995.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Jun 2022 - Data do Fascículo
Apr-Jun 2022
Histórico
- Recebido
22 Out 2021 - Aceito
10 Mar 2022