Impactos da pulverização aérea de agrotóxicos em uma comunidade rural em contexto de conflito

Impacts of aerial spraying of pesticides in a rural community in a context of conflict

Lucinéia Miranda de Freitas Renato Bonfatti Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos Sobre os autores

RESUMO

Este trabalho buscou analisar o contexto social, institucional e ambiental da contaminação humana e ambiental por agrotóxicos, via pulverização aérea, por meio do estudo de caso de uma comunidade atingida, incluindo a possibilidade de os agrotóxicos serem utilizados como arma química em região onde há conflitos por terras e territórios. Como metodologia, utilizou-se o estudo de caso sobre a pulverização ocorrida no Assentamento Raimundo Vieira III, Gleba Gama, Nova Guarita-MT. No caso estudado, há indícios de intencionalidade no processo de contaminação das famílias, principalmente considerando que estas já vinham sofrendo outras agressões. O estudo mostrou a ineficiência, intencional ou não, dos aparelhos públicos tanto na investigação e responsabilização dos envolvidos quanto no atendimento das pessoas contaminadas. Conclui-se que o método de pulverização aérea é ineficiente com perdas elevadas, só podendo justificar sua adoção por razões econômicas em detrimento da racionalidade técnica e dos princípios de prevenção e precaução. O Estado não consegue manter efetivamente a fiscalização do uso de agrotóxicos, e há uma ampliação dos riscos vinculados aos agrotóxicos com as mudanças legais que têm sistematicamente ocorrido desde 2015.

PALAVRAS-CHAVES
Comunidade rural; Violência; Pulverização; Agroquímicos

ABSTRACT

This work sought to analyze the social, institutional and environmental context of human and environmental contamination by pesticides by aerial spraying, through the case study of an affected community, including the possibility of pesticides being used as a chemical weapon in a region where there are conflicts over land and territories. The methodology used was the case study on the spraying that occurred in the Raimundo Vieira III Settlement, Gleba Gama, Nova Guarita-MT. It was concluded that, in the case studied, spraying is part of a framework with several other types of violence experienced by families. The study showed the inefficiency, intentional or not, of public institutions in the investigation and accountability of those involved and in the care of t he infected people. It is concluded that the aerial spraying method is inefficient with high losses, and its adoption can only be justified for economic reasons to the detriment of technical rationality and the principles of prevention and precaution. The State is unable to effectively maintain inspection of the use of pesticides, and there is an increase in the risks linked to pesticides with the legal changes that have been systematically taking place since 2015.

KEYWORDS
Community, rural; Violence; Pulverization; Agrochemicals

Introdução

O uso de agrotóxicos via pulverização terrestre e aérea é uma prática cotidiana nas regiões agrícolas brasileiras influenciadas pelo agronegócio, provocando danos diversos desde ambientais, econômicos, sociais e à saúde de comunidades camponesas e urbanas.

Quando pessoas, territórios protegidos (reservas, córregos, nascentes, poços etc.), ou mesmo vilas e cidades, são diretamente afetadas por agrotóxicos pulverizados em lavouras próximas ou não, geralmente, considera-se que houve derivas, ou seja, acidentes. No entanto, alguns autores, como Augusto et al.11 Augusto LGS, Carneiro FF, Pignati WA, et al. Saúde, Ambiente e Sustentabilidade. In: Carneiro FF, Rigotto RM, Augusto LGS, et al., organizadores. Dossiê ABRASCO, um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular; 2015. p. 90-191.(111), avaliam que

Há pulverizações intencionais nas plantações cultivadas próximas a residências, córregos, criação de animais e reservas florestais, que também são classificadas erroneamente de deriva.

Cabe perguntar: se um agente social consciente pulveriza no entorno ou sobre uma comunidade/uma escola, com uma substância reconhecida técnica e legalmente como tóxica, isso deveria ser considerado acidente?

A ocorrência de diversas denúncias de comunidades envolvendo pulverização aérea, levou-nos ao questionar sobre a probabilidade da utilização de agrotóxicos como arma química nas áreas em conflitos, dada a possibilidade de caracterizar tais ações como acidentais, portanto, a necessidade de compreender melhor essas ocorrências.

A pulverização aérea de agrotóxicos é uma dessas modernas técnicas desenvolvidas pela indústria bélica e, posteriormente, adaptada para a agricultura. Sendo que esta tem sido alvo de críticas das organizações de saúde e ambientalistas, como a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida22 Campanha permanente contra os agrotóxicos e pela vida. Pulverização aérea. 2015. [acesso em 2022 mar 10]. Disponível em: https://contraosagrotoxicos.org/.
https://contraosagrotoxicos.org/...
‘não existe condições em que a pulverização aérea possa ser considerada segura’, por Estados nacionais e acordos supranacionais, como a orientação do Parlamento Europeu33 Parlamento Europeu. Directiva 2009/128/CE do parlamento Europeu e do conselho. 2009. [acesso em 2016 mar 30]. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A32009L0128.
http://eur-lex.europa.eu/legal-content/P...
para a sua proibição no âmbito dos países membros.

Além das variáveis ambientais fora da capacidade de controle dos aplicadores, como a direção e a velocidade dos ventos, a umidade do ar, a temperatura, tem-se um amplo debate a partir da efetividade técnica que perpassa pelo tamanho das gotas e capacidade dos bicos, considerando que o menor diâmetro das gotas permite maior cobertura das plantas44 Cunha JPAR, Ruas RAA. A uniformidade de distribuição volumétrica de pontas de pulverizadores a jato plano duplo com indução de ar. Pesq. Agro. Trop. 2006; 36(1):61-66.; no entanto, ao reduzi-las de tamanho, aumenta-se a interferência dos ventos, da temperatura e da umidade55 Christofoletti JC. Considerações sobre a deriva nas pulverizações agrícolas e seu controle. São Paulo: Teejet South América; 1999. 15 p.. Assim, diversos pesquisadores afirmam que grande parte dos produtos aplicados não atingem o alvo, são perdidos durante a aplicação66 Chain A. História da pulverização. Jaguariúna: Embrapa Meio Ambiente; 1999.,77 Pignat WA, Machado JMH, Cabral JF. Acidente rural ampliado: o caso das “chuvas” de agrotóxicos sobre a cidade de Lucas do Rio Verde-MT. Ciênc. Saúde Colet. 2007 [acesso em 2021 dez 10]; 12(1):299-311. Disponível em: https://bityli.com/uynGt.
https://bityli.com/uynGt...
,88 Reis EF, Queiroz DM, Cunha JPAR, et al. Qualidade da aplicação aérea líquida com uma aeronave agrícola experimental na cultura de soja (Glycine Max L.). Eng. Agric., Jaboticabal. 2010 [acesso em 2021 dez 10]; 30(5):958-966. Disponível em: https://www.scielo.br/j/eagri/a/6mpN5596kPG73zzfq8zWhrz/abstract/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/eagri/a/6mpN5596...
, um perdido que acha sempre outros pontos, como solo, água, ar, as plantações de outros territórios, as escolas, as comunidades.

Um fator a se considerar em relação à pulverização aérea é uma longa ausência de normatização legal, a Lei no 7.802/1989 Lei dos Agrotóxicos, não tratou desse assunto especificamente. O Decreto no 4.074/2002, que a regulamentou, também não abordou o tema, que foi normatizado pela Instrução Normativa (IN) no 02/2008 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Atualmente, além dessa normativa, alguns produtos como a banana têm normas específicas, a IN no 13/2020, porém não necessariamente mais restritiva que a norma geral. Dessa forma, percebe-se que há um vácuo entre o desenvolver das pesquisas, a utilização dos produtos e a regulação destas.

Considerando os impactos provocados pela pulverização, e os limites para realização da fiscalização das aplicações, o estado do Ceará, por meio da Lei no 16.820/2019 (Lei Zé Maria do Tomé), proibiu a pulverização aérea. Além desse estado, outros 15 municípios em todas as regiões brasileiras também criaram regras restritivas a técnicas.

Destacamos que agrotóxicos não são utilizados apenas na agricultura, mas também em ações de saúde pública, no combate de vetores como o mosquito Aedes aegypti. Nesse sentido, em 2016, no bojo da crise sanitária dos vírus da zika, da dengue e da chikungunya, o estado brasileiro sancionou a Lei no 13.301/2016, que permite a pulverização aérea em áreas urbanas, contrariando posições de entidades de saúde pública, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que alertaram em notas que os riscos de danos à saúde da população eram maiores do que a possibilidade de benefícios. A lei teve resistência também no Ministério da Saúde.

A pulverização aérea, mesmo quando cumpre todas as normas legais de sua aplicação, apresenta sérios riscos para a população que mora no entorno das plantações, que, em muitos municípios, são os bairros periféricos. Fonseca, Duso e Hoffmann99 Fonseca EM, Duso L, Hoffmann MB. Discutindo a temática agrotóxicos: uma abordagem por meio das controvérsias sociocientíficas. Rev. Bras. Educ. Camp. 2017 [acesso em 2021 dez 10]; 2(3):881-898. Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/campo/article/view/3814.
https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/i...
afirmam que, esse é um problema ambiental e de saúde pública, que perpassa pelas questões de interesses coletivos já que interfere tanto na saúde humana quanto ambiental. Outrossim, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida22 Campanha permanente contra os agrotóxicos e pela vida. Pulverização aérea. 2015. [acesso em 2022 mar 10]. Disponível em: https://contraosagrotoxicos.org/.
https://contraosagrotoxicos.org/...
afirma haver uma ocultação cotidiana em que pequenas chuvas tóxicas recaem sobre populações urbanas e rurais em diversas partes do País. Já Augusto et al.11 Augusto LGS, Carneiro FF, Pignati WA, et al. Saúde, Ambiente e Sustentabilidade. In: Carneiro FF, Rigotto RM, Augusto LGS, et al., organizadores. Dossiê ABRASCO, um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular; 2015. p. 90-191. afirmam que diversas contaminações intencionais acabam classificadas de derivas acidentais, e para Pignatti et al.77 Pignat WA, Machado JMH, Cabral JF. Acidente rural ampliado: o caso das “chuvas” de agrotóxicos sobre a cidade de Lucas do Rio Verde-MT. Ciênc. Saúde Colet. 2007 [acesso em 2021 dez 10]; 12(1):299-311. Disponível em: https://bityli.com/uynGt.
https://bityli.com/uynGt...
, o uso de agrotóxico é uma ação que provoca a contaminação intencional do ambiente.

Quando não é possível serem ocultadas, essas chuvas de veneno viram conflitos, como na contaminação das águas e das populações na Chapada do Apodi no Ceará1010 Rigotto R, organizadora. Agrotóxicos, Trabalho e Saúde vulnerabilidade e resistência no contexto da modernização agrícola no Baixo Jaguaribe/CE. Fortaleza: Edições UFC; 2011., ou a contaminação das águas com as consequentes perdas na Província de Limon na Costa Rica1111 Ferreira MLPC. A pulverização aérea de agrotóxicos no Brasil: cenário atual e desafios. Rev. Dir. Sanit. 2015 [acesso em 2021 dez 10] 15(3):18-45. Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v15i3p18-45.
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-904...
.

Segundo Ferreira1111 Ferreira MLPC. A pulverização aérea de agrotóxicos no Brasil: cenário atual e desafios. Rev. Dir. Sanit. 2015 [acesso em 2021 dez 10] 15(3):18-45. Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v15i3p18-45.
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-904...
, considerando-se os princípios da precaução e da prevenção, há necessidade urgente a proibição da pulverização aérea no Brasil.

Dessa forma, o objetivo deste artigo foi analisar o contexto social, institucional e ambiental da contaminação humana e do meio ambiente, com agrotóxicos via pulverização aérea por meio do estudo de caso no Assentamento Raimundo Vieira III, Lote 10, Gleba Gama, Nova Guarita-MT.

Procedimentos e instrumentos metodológicos

A pesquisa foi um estudo de caso que, de acordo com Minayo1212 Minayo MCS. O desafio do conhecimento, pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo; Hucitec; 2014.(164),

utiliza uma estratégia de investigação qualitativa para mapear, descrever e analisar o contexto, as relações e as percepções a respeito da situação ou episódio em questão.

Para Yin1313 Yin RK. Estudo de Caso: Planejamento e método. trad. Daniel Grassi. 2. ed. Porto Alegre: Bookman; 2001.(21), “a necessidade de estudo de caso surge do desejo de se compreender fenômenos sociais complexos”.

Este trabalho é fruto da dissertação de mestrado em Trabalho, Saúde, Ambiente e Movimentos Sociais, cujo título foi ‘Pulverização aérea de agrotóxicos: acidente ou crime?’; e teve como objetivo analisar o caso de Nova Guarita e observar as semelhanças e diferenças com outros casos de contaminação humana e ambiental envolvendo pulverização aérea de agrotóxicos. O Estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), conforme o Parecer no 1.285.645. Todos os participantes foram incluídos somente após serem prestadas as devidas informações sobre a pesquisa e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

O levantamento dos dados se deu entre agosto de 2015 e fevereiro de 2016, por intermédio de entrevistas semiestruturadas, formulário semiestruturado, e acesso a documentos.

Foram abarcados nas entrevistas dois agentes pastorais, oito moradores do assentamento e, via formulário, uma técnica do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

O critério de seleção para as entrevistas foi terem em algum momento se envolvido com o processo de pulverização na comunidade:

  1. – os agentes pastorais acompanham o conflito da área;

  2. – em relação aos moradores, foram convidados para participar as famílias dos 12 lotes, dessas 10 responderam, 2 justificaram impossibilidade em decorrência de estar em outro município devido a problemas de saúde e 2 não nos deram retorno;

  3. – em relação à técnica do Ibama, a participação na ação de fiscalização realizada pelo órgão após a denúncia de crime ambiental na área.

Na metodologia inicial previa-se ainda a realização de entrevista com os profissionais de saúde e segurança pública, porém, não foi possível visto que alguns não foram encontrados e outros não aceitaram o convite.

Para levantamento dos dados documentais, utilizou-se o processo judicial da vara estadual de conflitos agrários, de autoria do fazendeiro; o processo na justiça federal no 2005.36.00.005674-6, 2º Vara de Sinop-MT, de autoria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra); Processo justiça estadual no 22401-72.2009.811.0041, – Vara Agrária de Cuiabá-MT, o relatório de vistoria e o processo administrativo – PA de notificação Ibama 523343 do Ibama; relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT); da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida; Relatório de Vistoria Técnica Autônoma, que foi contratada pelas vítimas.

Para análise dos dados levantados nos documentos e nas entrevistas, utilizou-se a análise de conteúdo, que, de acordo com Minayo1212 Minayo MCS. O desafio do conhecimento, pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo; Hucitec; 2014., consiste em descobrir os núcleos de sentidos, cuja presença signifique alguma coisa para o objeto analítico.

As categorias principais levantadas foram: conflitos e violência no campo, direito à saúde e ao meio ambiente sadio, legalidade x legitimidade da pulverização aérea de agrotóxicos.

Luta e resistência: como se configura o conflito na Gleba Gama, Nova Guarita-MT

Caracterização do território

A Gleba Gama se localiza no município de Nova Guarita, na região norte de Mato Grosso-MT. Segundo o processo da Justiça Federal nº 2005.36.00.005674-6, 2a Vara de Sinop-MT, a Gleba Gama se insere na área de terra pública da união, da antiga Gleba Teles Pires, com um tamanho de 435.000,00 hectares. Com a formação de municípios, houve um remanescente de 18.992,1477 hectares, da qual o Incra requereu tutela antecipada e emissão de posse para implementar Projetos de Assentamentos.

Essa área, por ser ocupada por diversos ‘donos’, originou vários processos judiciais e diferentes conflitos; entre essas áreas/conflitos, está o Lote 10 – Assentamento Raimundo Vieira III, onde ocorreu o caso de pulverização aérea que é objeto deste estudo.

O Incra recebeu, em 2005, da justiça federal, autorização para a emissão de posse da área onde assentou 12 famílias que se tornaram fiéis depositárias dos lotes. Os supostos donos apresentaram título de compra dos lotes 68 e 72 com 30 e 20 alqueires paulista respectivamente (equivalente a 120,0000 ha), mas requereu o direito de posse do lote 10 com 409,7039 hectares. Segundo Laudo Cadastral do Incra, as benfeitorias do ‘interessado’ estão em uma área de, aproximadamente, 110,0000 hectares, reconhecida como projeto de unidades autônomas, que fica subjacente ao lote 10, (processo justiça estadual, incluindo os destaques).

Pode-se considerar que esses conflitos estão relacionados com o projeto de desenvolvimento proposto para o estado de Mato Grosso que visa expandir a produção agropecuária. Nesse sentido, tem-se investido em infraestruturas na região, como asfaltamento da BR 163 – Cuiabá-Santarém, além dos projetos de ferrovias e hidrovias, que trazem no bojo a valorização das terras na região.

Segundo relatórios da CPT e depoimentos de lideranças da comunidade, o conflito na área envolveu as seguintes formas de violações: ameaças de morte, incluindo disparos de armas de fogo contra moradias de lideranças; destruição de cercas; destruição de roças, destruição de rede elétrica; queima de casa; ameaça a idosos; agressões verbais e psicológicas às crianças; retirada ilegal de madeira na área de reserva legal; pulverização de agrotóxicos sobre as moradias e plantações das famílias.

Todos esses fatos estão registrados em Boletins de Ocorrência (B.O.) das Polícias Civil e Militar nos municípios de Nova Guarita e Terra Nova do Norte, e estão anexados em ambos os processos judiciais. No caso da pulverização, há também o processo administrativo no Ibama. Destaca-se que esses conflitos afetam a saúde das pessoas causando tanto problemas físicos quanto emocionais. No caso da pulverização, os prontuários médicos acusam as intoxicações oriundas da exposição a agrotóxicos e a substâncias exógenas.

Pulverização aérea no lote 10, Assentamento Raimundo Vieira III, Gleba Gama, Nova Guarita

No dia 15 de março de 2013, em torno das 10 horas da manhã, as famílias do Assentamento Raimundo Vieira III, notaram que uma aeronave sobrevoava a área. Segundo relatos, quando ouviram o barulho pensaram ser a Polícia Federal, pois no dia aguardavam vistoria do Incra, que em outras visitas a área se fez acompanhar pela Polícia Federal, em decorrência de litígios existentes na região.

Aqui no dia era para ter vistoria do Incra, no primeiro voo pensamos ser a Polícia Federal em decorrência do conflito, depois notamos que era pulverização. (Morador 03).

As pessoas acharam que era a Polícia Federal, pois estavam aguardando vistoria do Incra, logo em seguida perceberam que era veneno, a força da pulverização molhou quem estava fora de casa. (Morador 02).

Ainda de acordo com os relatos, ao saírem de suas residências, foram recebidos por uma forte neblina, avistaram o avião sobrevoando as residências, e perceberam que estava pulverizando.

Segundo os entrevistados, imediatamente eles acionaram a Polícia Militar pelo 190, mas que esta se recusou a prestar atendimento “A PM se recusou inicialmente a atender a ocorrência, por isso falamos com a promotora, que encaminhou a queixa e a viatura veio até o local”. (Morador 02). Em seguida, acionaram a Polícia Federal, que fica a aproximadamente 200 km, no munícipio de Sinop, que os orientou a permanecer em um local coberto e que cobrissem nariz e boca para não respirar ou inalar o produto: “Ligamos para a Polícia Federal, que orientou proteger boca e nariz, e disse que só podia fazer essa orientação” (Morador 03). Como terceira tentativa, acionaram a Promotoria de Justiça do município vizinho, Terra Nova do Norte, que solicitou à Polícia Militar (PM) que fizesse as devidas averiguações.

No Boletim de Ocorrência da Polícia Militar de Mato Grosso – MT (BOPM) 65/2013, de 15 de março de 20131414 Mato Grosso. Batalhão da Polícia Militar do Mato Grosso. Boletim de Ocorrência 65/2013. Mato Grosso: PMMT; 2023. – anexado ao PA de notificação do Ibama, tendo como solicitante a Promotoria de Terra Nova do Norte, consta o seguinte relato,

Esta GUPM foi acionada pela Promotoria de Justiça de Terra Nova do Norte, que na área em litígio na fazenda Baixa Verde teria um avião sobrevoando e pulverizando veneno nas casas dos assentados, esta GUPM se deslocou até o local e ao aproximar da localidade visualizamos o avião em pleno voo, e pulverizando na área1414 Mato Grosso. Batalhão da Polícia Militar do Mato Grosso. Boletim de Ocorrência 65/2013. Mato Grosso: PMMT; 2023.,1515 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. PA de notificação IBAMA 523343. Brasília, DF: Ibama; 2013..

Ainda de acordo com a descrição do BOPM, após prestar socorro às vítimas com sintomas de intoxicação aguda, foram informados que os responsáveis se encontravam no campo de aviação da cidade, que se dirigiram até o espaço no qual os encontrou, bem como os produtos que foram apreendidos.

Os produtos químicos utilizados na pulverização foram: Prend D, Dominum 20 e Defender pastagem. De acordo com as especificações técnicas, Prend D, ficha técnica do Mapa no 15.808, deve ser aplicado exclusivamente por equipamento tratorizado com barra1515 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. PA de notificação IBAMA 523343. Brasília, DF: Ibama; 2013.; o receituário agronômico apresentado é apenas do Dominum1515 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. PA de notificação IBAMA 523343. Brasília, DF: Ibama; 2013.; a nota fiscal de compra é para os três produtos; o relatório de aplicação aérea com a ordem de serviço 369, os produtos descritos são o Dominum e o Defender1515 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. PA de notificação IBAMA 523343. Brasília, DF: Ibama; 2013..

Na avaliação da técnica do Ibama responsável pela fiscalização pós-pulverização,

[...] Restou evidente, entretanto, que não houve observância das medidas de segurança operacional descritas nas normas que regem a atividade aeroagrícola, em vários aspectos. Diante disso, os danos ambientais tipificados como crime ou infração ambiental, foram apurados e responsabilizados pelo Ibama, na medida da culpabilidade do fazendeiro, contratante do serviço e da empresa aeroagrícola, com a comunicação dos fatos ao Ministério Público, para apuração na esfera penal. (entrevista analista do Ibama).

Ou seja, por intencionalidade ou negligência, houve um atentado contra as pessoas que residem na área causando danos diversos, e permitindo questionar se há viabilidade ambiental e humana da pulverização aérea e se resultados econômicos de um setor compensam os riscos inerentes à prática.

Foi nessa perspectiva que as pessoas foram indagadas da legalidade da pulverização aérea. Das 11 entrevistas realizadas, 9 pessoas caracterizaram o processo de pulverização aérea como crime devido aos impactos causados na saúde e no ambiente e à impossibilidade de controle efetivo da contaminação

Crime, pela altura que faz a aplicação, você não tem controle da ação na natureza, plantas e bichos acabam recebendo os agrotóxicos. (Agente 02).

Crime, afeta, adoece, contaminação aguda e crônica. (Morador 03).

Uma entrevistada caracterizou como crime ambiental: “crime ambiental, afeta toda a natureza, plantas e animais além das pessoas” (Morador 05), e uma questionou que a ocorrência em área de litígio é, no mínimo, suspeita, e que deveria haver maior rigor na investigação para caracterizar as circunstâncias do evento.

Em relação especificamente a Gleba Gama, das oito entrevistas realizadas com os moradores, quatro afirmaram intencionalidade de contaminação humana ao descrever o ocorrido, bem como as duas entrevistas realizadas com os agentes pastorais

No caso da Gleba Gama houve intencionalidade de uso, a região do rio até as casas é onde só há pessoas e plantas de quintal, e foi onde foi pulverizado, então não há dúvida da intencionalidade de atingir as famílias. (Agente 02).

Houve intenção de envenenar, não comunicou ninguém e pulverizou, serviu de coação para as pessoas abandonar a terra. (Morador 02).

Quanto a Gleba Gama foi intencional, pois iniciou a pulverização pelas casas, ou seja, impossível de justificar como acidente, se tivessem feito na pastagem e as casas tivessem sido afetado pela deriva poderia ser acidente, mas não é o caso. (Agente 01).

Em relação ao fato de a pulverização aérea ferir diversos direitos constitucionais, como o direito à saúde e ao meio ambiente sadio, da dificuldade de ser fiscalizada, ainda assim manter a legalidade da atividade, um entrevistado assim respondeu: “A pulverização aérea é difícil de controlar porque são os grandes que fazem, se fossem os pequenos, o Estado controlaria” (Morador 01).

O sobrevoo realizado pelo Ibama na área após a pulverização atesta que o polígono afetado tangencia as moradias, isto é, foge do polígono da pastagem.

Chama atenção, entretanto, o fato de que o polígono da área afetada, tangência grande parte da área de uso e moradia dos assentados. Considerando tratar-se de uma área pública em litígio, e que os serviços de pulverização aérea foram contratados pelo réu de processo judicial de Restituição de Área Pública movido pelo Incra, faz-se necessário que as autoridades competentes promovam a apuração do fato, a fim de averiguar possíveis outros crimes associados. (analista ambiental do Ibama).

A defesa do proprietário da empresa de aviação aérea, no processo administrativo do Ibama PA de Notificação 5235811515 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. PA de notificação IBAMA 523343. Brasília, DF: Ibama; 2013., afirma que

durante o sobrevoo de qualificação e avaliação, observou a existência de barracos de lona, relatando ao proprietário este informou que se tratava de barracos abandonados e que não precisava preocupar, pois não havia presença de pessoas.

Ou seja, o proprietário que contratou o avião para pulverização tinha conhecimento da presença de moradores na área em questão e negou essa presença.

No processo que corre na Vara Agrária Estadual que solicita a reintegração de posse da área, os advogados de Izairo Batista Raposo afirmam que este “[...] não poupou esforços no sentido de persuadir os requeridos a desocuparem o imóvel, [...]”, tendo a legalidade desses esforços sido questionada pela Defensoria Pública, perante todas as denúncias de violência registrada contra ele.

Impactos à saúde

Em relação ao atendimento à saúde das pessoas com intoxicação aguda, confirma-se que seis vítimas deram entrada no hospital da cidade entre 12 e 16 horas, cujos prontuários médicos anexados aos processos judiciais atestam intoxicação exógena por pesticida agrícola. No entanto, no depoimento prestado na delegacia de Polícia Civil de Terra Nova do Norte, o médico afirmou não saber precisar as causas das intoxicações, e que assim que os pacientes apresentaram melhoras, foram liberados (partes do inquérito anexado ao processo 19854-83.2014.811.0041 – Vara Especializada de Direito Agrário), contudo, não informou se foram solicitados os exames necessários para comprovar ou não a intoxicação.

É importante registrar que, conforme consulta ao Datasus, essas ocorrências não foram notificadas ao Sistema Informação de Agravos de Notificações (Sinan); mesmo que o ‘Manual de Vigilância da Saúde de População Expostas a Agrotóxicos’ afirme que todos os casos suspeitos em qualquer unidade de saúde devem ser notificados, e que são casos suspeitos todos os indivíduos que foram expostos a agrotóxicos e que apresentem sinais ou sintoma de intoxicação1616 Burigo AC, Friedrich K, Meireles LC, et al. A crise do paradigma do agronegócio e as lutas pela agroecologia. In: Carneiro FF, Rigotto RM, Augusto LGS, et al., organizadores. Dossiê ABRASCO, um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular; 2015. p. 414-547.. Nesse caso, a exposição teve testemunho ocular dos soldados da PM que transcreveram no BOPM terem chegado na área enquanto o avião ainda pulverizava.

Ainda conforme os documentos anexados ao processo no 19854-83.2014.811.0041 – Vara Especializada de Direito Agrário, com o depoimento da enfermeira de plantão, esta informou que os pacientes que deram entrada às 12 horas apresentavam odor parecido com cheiro de agrotóxicos nas roupas, mas também não informa os procedimentos efetivados.

As vítimas relataram que, depois do atendimento inicial, não houve nenhum acompanhamento de saúde, por parte do sistema de saúde local, ou mesmo pelo responsável da pulverização, mesmo das pessoas que tiveram intoxicação aguda

Saí da área depois da pulverização, por que agravou os meus problemas de saúde. (Morador 01).

Foi tudo muito triste, a vida da gente está uma merda, eu não posso nem passar perto de área pulverizada, passo mal, tenho as marcas. (Morador 02).

Houve outras intoxicações que não foram notificadas, por que não foram ao médico: ardência na garganta, nos olhos; e não houve nenhum auxílio ou acompanhamento depois da ocorrência, nem pelo Estado, nem pelo responsável. (Morador 05).

Na casa todos se intoxicaram, mas uma pessoa não foi ao hospital, as duas crianças foram. Ao chegar ao hospital o médico não relatou como intoxicação para não incriminar o fazendeiro, e no dia se recusou a entregar o prontuário. (Morador 06).

Não foi possível acessar os prontuários das crianças citadas na entrevista, sendo que, tanto no depoimento do médico quanto da enfermeira, e nos prontuários anexados nos processos que correm na justiça federal e estadual, não há referência ao atendimento de menores. Destaca nesta indicação, mas não foi possível de ser averiguado, a afirmação de que o médico não quis registrar como intoxicação por agrotóxicos para não incriminar o fazendeiro, mas remete à necessidade de refletir sobre a violência existente nos territórios com conflitos por terra e território, e como todas as pessoas podem ser expostas a essa violência.

Verifica a necessidade de o Sistema Único de Saúde (SUS) ampliar sua atuação tanto na capacitação dos profissionais para diagnosticar intoxicações, como na necessidade da notificação dos agravos, principalmente nas regiões onde há prevalência produtiva do agronegócio, haja vista situações como as analisadas no município de Lucas do Rio Verde que, pelo fato de os sintomas de contaminação terem característica de outras doenças comuns nos períodos produtivos, como a dengue e o rotavírus, registra um aumento nessas doenças, mas não testa intoxicações77 Pignat WA, Machado JMH, Cabral JF. Acidente rural ampliado: o caso das “chuvas” de agrotóxicos sobre a cidade de Lucas do Rio Verde-MT. Ciênc. Saúde Colet. 2007 [acesso em 2021 dez 10]; 12(1):299-311. Disponível em: https://bityli.com/uynGt.
https://bityli.com/uynGt...
.

Isso demanda também que o SUS debata a relação direta entre modo de produção prevalente e agravos aà saúde, bem como sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde, conforme abundante literatura1717 Organização Mundial da Saúde, Organização Pan-Americana da Saúde. Manual de vigilância da saúde de populações expostas a agrotóxicos. Brasília, DF: OMS; OPAS; 1996.,1818 Curvo HRM, Pignati WA, Pignati MG. Morbimortalidade por câncer infantojuvenil associada ao uso agrícola de agrotóxicos no Estado de Mato Grosso, Brasil. Cad. Saúde Colet. 2013; 21(1):10-7.,1919 Carneiro FF, Rigotto RM, Augusto LGS, et al., organizadores. Dossiê ABRASCO, um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular; 2015.,2020 Dutra LS, Ferreira AP. Associação entre malformações congênitas e a utilização de agrotóxicas em monoculturas no Paraná, Brasil. Saúde debate. 2017 [acesso em 2021 dez 10]; 41(esp3):241-253. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/hH6SLB9hfSPLGwNHgxSSQBQ/abstract/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/hH6SLB9hf...
,2121 Costa VIB, Mello MSC, Friedrich K. Exposição ambiental e ocupacional a agrotóxicos e o linfoma não Hodgkin. Saúde debate. 2017 [acesso em 2021 dez 10]; 41(112):49-62. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/gq7pCfbPYfCgvJqksVPCgzy/abstract/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/gq7pCfbPY...
,2222 Ploeg JDvan der. Sete tese sobre agricultura camponesa. In: Petersen P, organizador. Agricultura familiar camponesa na construção do futuro. Rio de Janeiro: AS-PTA; 2009. p. 17-32., e pautar a necessidade de maior controle das técnicas e das substâncias utilizadas.

Impactos ambientais e econômicos

Além das moradias, a pulverização atingiu as áreas de proteção ambiental, tendo sido observada por todos entrevistados,

contaminou a água para o consumo e no mesmo dia não dava mais para consumir. (Morador 02).

A pulverização foi feita diretamente sobre as casas e a floresta. (Agente CPT 01).

Durante o sobrevoo, constatou-se dano ambiental à vegetação susceptível aos produtos utilizados. Conforme consta nos processos administrativos do Ibama e no Inquérito Policial, estes produtos foram o Dominum e Prend 806, que são de classificação toxicológica I (Extremamente tóxico). Observou se os danos causados pelos agrotóxicos em áreas não permitidas (mananciais de água e moradias isoladas). Visualizou-se plantas afetadas pelos agrotóxicos em Área de Preservação Permanente (APP), como mata ciliar, entorno de nascentes e áreas em declive. (Analista ambiental do Ibama).

Percebe-se que, além das intoxicações agudas, a comunidade se manteve exposta, visto que a maioria das pessoas não conseguiram se ausentar do território, e as casas e entorno não tiveram nenhum processo de descontaminação, também em decorrência dos danos ambientais, como a contaminação da água de consumo humano e animal, que só teve o abastecimento garantido no primeiro momento: “A prefeitura distribuiu água mineral por o ito dias” (Morador 01). Com o impacto sobre as Áreas de Reserva Legal (ARL) e as Áreas de Preservação Permanente (APP), é importante marcar a inter-relação que as comunidades camponesas mantêm com as áreas de preservação2222 Ploeg JDvan der. Sete tese sobre agricultura camponesa. In: Petersen P, organizador. Agricultura familiar camponesa na construção do futuro. Rio de Janeiro: AS-PTA; 2009. p. 17-32..

Vinculado aos danos ambientais, houve um impacto econômico para as famílias, já que a produção de roças e quintais e o extrativismo são o principal meio de subsistência das famílias camponesas; e a perda dessa produção pode significar o comprometimento da reprodução social da comunidade: “Com a pulverização das plantas, houve dificuldades financeiras e insegurança alimentar, tiveram pessoas que precisaram ser socorridas pela assistência social” (Morador 06).

Além da produção de autossustento, constatam-se as perdas econômicas na impossibilidade de comercializar a produção que permaneceu nas roças, devido aos riscos de contaminação e, consequentemente, à suspensão do contrato com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA):

Minha parcela não foi diretamente atingida pelos produtos, porém fiquei mais de 06 meses sem conseguir comercializar a produção por nenhum mecanismo (nem Conab, nem na cidade) houve a perda da produção (Morador 07).

Aqui prejudicou muito, pois a Conab parou com as compras, por seis meses não foi possível comercializar. (Morador 05).

Durante visita constatou-se plantações completamente destruídas, enquanto outras parcialmente afetadas na parte vegetativa, porém comprometidas produtivamente, como é o caso da plantação de mandioca, se regenerando vegetativamente enquanto suas raízes apodrecerão totalmente. O que fica evidente é que os referidos danos a essas plantações ocorreram por conta da aplicação direta de agrotóxico sobre as plantas. Conforme tabela acima se conclui ter perdido/comprometido um montante de produção avaliado em R$ 44.500,00 que seria parte utilizada no uso familiar e parte para comercialização nos vários mercados, institucional ou convencional1515 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. PA de notificação IBAMA 523343. Brasília, DF: Ibama; 2013..

Outro problema não visualizado nos cálculos dos impactos econômicos foi a dificuldade de retomar a produção após a contaminação das plantas, sementes, águas e do solo. Os depoimentos das famílias nas entrevistas são corroborados com as informações constantes no receituário agronômico.

Aqui matou as plantações, a mandioca apodreceu nas raízes, até o esterco ficou contaminado, e mesmo depois de um tempo não há brotação de algumas plantas. (Morador 08).

Já são quase 03 anos e há dificuldade de produzir, principalmente na horta. (Morador 04).

Segundo o receituário agronômico do Dominum, o plantio de espécie suscetíveis a ele só deve ser efetivado de dois a três anos após sua última aplicação, ou seja, há resíduos que impedem o desenvolvimento das plantas suscetíveis. Esse é um impacto não contabilizado, mesmo nos laudos agronômicos independentes, que contabilizaram apenas as perdas imediatas.

Constatamos que as 12 famílias assentadas no Assentamento Raimundo Vieira III, Lote 10 da Gleba Gama, têm sofrido diversas violências e violações. Entre essas, a intoxicação por agrotóxicos decorrente de pulverização aérea sobre a comunidade, tem um impacto ampliado para a reprodução social delas, pois além do adoecimento físico e mental, causa comprometimento econômicos e alimentar.

A legislação em vigor impõe normas e limites para os projetos de desenvolvimento a serem implementados pelo Estado e por particulares. Porém, os casos como da Gleba Gama juntam-se a outros, como da TI Marãiwatsédé-MT, povo Guarani Kaiowá-MS, Escola Rural em Rio Verde-GO, Quilombolas em Buritis-MA, Assentados em Nova Santa Rita-RS, entre outras denúncias;, e mostram que os registros de pulverização de agrotóxicos com aviões sobre comunidades que se encontram em áreas de conflitos, ou de interesse para expansão de monocultura, tornam-se cada vez mais frequentes, e adquirem um caráter de naturalização, como se contaminar seres humanos, fauna, flora e bens comuns, intencionalmente ou não, fosse um mal menor para manter a balança comercial.

Augusto et al.11 Augusto LGS, Carneiro FF, Pignati WA, et al. Saúde, Ambiente e Sustentabilidade. In: Carneiro FF, Rigotto RM, Augusto LGS, et al., organizadores. Dossiê ABRASCO, um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular; 2015. p. 90-191.(2), referindo-se ao modelo de desenvolvimento do rural brasileiro, afirmam que “o agrotóxico é a expressão de seu potencial morbígeno e mortífero, que transforma os recursos públicos e os bens naturais em janela de negócio”.

Burigo et al.1616 Burigo AC, Friedrich K, Meireles LC, et al. A crise do paradigma do agronegócio e as lutas pela agroecologia. In: Carneiro FF, Rigotto RM, Augusto LGS, et al., organizadores. Dossiê ABRASCO, um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular; 2015. p. 414-547., avaliando o caso de pulverização em Rio Verde-GO, questionaram o uso misturado de Ingredientes Ativos (IA), já que os estudos de intoxicações são feitos separadamente, e não há análise para os casos de interações, mistura essa que se repete na Gleba Gama.

Apesar da amplitude dos casos denunciando os impactos humanos e ambientais dos agrotóxicos, percebe-se que a base legal se encontra em amplo processo de retrocessos, como o Projeto de Lei (PL) no 6.299/2002, que altera a Lei no 7.802/1989 e foi aprovada em Comissão Especial do Congresso aguardando ainda ser votada em plenário, a qual foi apelidada de PL do Veneno. No entanto, também nas sucessivas liberações de substâncias que o governo fez, desconsiderando os protocolos ainda em vigência.

Considerações finais

A questão dos agrotóxicos no Brasil virou destaque público desde 2008, ano em que o País passou a ser reconhecido como o maior consumidor mundial. Porém, problemas relacionados com a pulverização aérea já eram ocasionados anteriormente, como a chuva de veneno sobre o município de Lucas do Rio Verde-MT em 2005.

A concepção ideológica da legislação de agrotóxicos no Brasil é a do uso seguro. No entanto, há limites na fiscalização, desde a comercialização até a aplicação, e um processo de desconsideração dos riscos associados ao seu uso, seja da toxicidade dos produtos ou das técnicas de aplicação, como verificado com a pulverização aérea de produtos não autorizados por essa técnica.

Percebe-se que intencionalidade ou negligência em relação às normas acarretam um forte impacto sobre a vida das pessoas que vivem e trabalham nas regiões contaminadas, nas regiões de conflitos e nas regiões de expansão da fronteira agrícola, desde adoecimentos e mortes, até dificuldades econômicas com destruição de modos de vida e de bens comuns.

A pulverização aérea de agrotóxico é um crime contra a vida e os direitos humanos, haja vista a impossibilidade de controle dessas substâncias quando lançadas na atmosfera. Dessa forma, reverter esse quadro é estratégico para um desenvolvimento mais justo, saudável e sustentável.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Augusto LGS, Carneiro FF, Pignati WA, et al. Saúde, Ambiente e Sustentabilidade. In: Carneiro FF, Rigotto RM, Augusto LGS, et al., organizadores. Dossiê ABRASCO, um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular; 2015. p. 90-191.
  • 2
    Campanha permanente contra os agrotóxicos e pela vida. Pulverização aérea. 2015. [acesso em 2022 mar 10]. Disponível em: https://contraosagrotoxicos.org/
    » https://contraosagrotoxicos.org/
  • 3
    Parlamento Europeu. Directiva 2009/128/CE do parlamento Europeu e do conselho. 2009. [acesso em 2016 mar 30]. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A32009L0128
    » http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A32009L0128
  • 4
    Cunha JPAR, Ruas RAA. A uniformidade de distribuição volumétrica de pontas de pulverizadores a jato plano duplo com indução de ar. Pesq. Agro. Trop. 2006; 36(1):61-66.
  • 5
    Christofoletti JC. Considerações sobre a deriva nas pulverizações agrícolas e seu controle. São Paulo: Teejet South América; 1999. 15 p.
  • 6
    Chain A. História da pulverização. Jaguariúna: Embrapa Meio Ambiente; 1999.
  • 7
    Pignat WA, Machado JMH, Cabral JF. Acidente rural ampliado: o caso das “chuvas” de agrotóxicos sobre a cidade de Lucas do Rio Verde-MT. Ciênc. Saúde Colet. 2007 [acesso em 2021 dez 10]; 12(1):299-311. Disponível em: https://bityli.com/uynGt
    » https://bityli.com/uynGt
  • 8
    Reis EF, Queiroz DM, Cunha JPAR, et al. Qualidade da aplicação aérea líquida com uma aeronave agrícola experimental na cultura de soja (Glycine Max L.). Eng. Agric., Jaboticabal. 2010 [acesso em 2021 dez 10]; 30(5):958-966. Disponível em: https://www.scielo.br/j/eagri/a/6mpN5596kPG73zzfq8zWhrz/abstract/?lang=pt
    » https://www.scielo.br/j/eagri/a/6mpN5596kPG73zzfq8zWhrz/abstract/?lang=pt
  • 9
    Fonseca EM, Duso L, Hoffmann MB. Discutindo a temática agrotóxicos: uma abordagem por meio das controvérsias sociocientíficas. Rev. Bras. Educ. Camp. 2017 [acesso em 2021 dez 10]; 2(3):881-898. Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/campo/article/view/3814
    » https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/campo/article/view/3814
  • 10
    Rigotto R, organizadora. Agrotóxicos, Trabalho e Saúde vulnerabilidade e resistência no contexto da modernização agrícola no Baixo Jaguaribe/CE. Fortaleza: Edições UFC; 2011.
  • 11
    Ferreira MLPC. A pulverização aérea de agrotóxicos no Brasil: cenário atual e desafios. Rev. Dir. Sanit. 2015 [acesso em 2021 dez 10] 15(3):18-45. Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v15i3p18-45
    » http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v15i3p18-45
  • 12
    Minayo MCS. O desafio do conhecimento, pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo; Hucitec; 2014.
  • 13
    Yin RK. Estudo de Caso: Planejamento e método. trad. Daniel Grassi. 2. ed. Porto Alegre: Bookman; 2001.
  • 14
    Mato Grosso. Batalhão da Polícia Militar do Mato Grosso. Boletim de Ocorrência 65/2013. Mato Grosso: PMMT; 2023.
  • 15
    Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. PA de notificação IBAMA 523343. Brasília, DF: Ibama; 2013.
  • 16
    Burigo AC, Friedrich K, Meireles LC, et al. A crise do paradigma do agronegócio e as lutas pela agroecologia. In: Carneiro FF, Rigotto RM, Augusto LGS, et al., organizadores. Dossiê ABRASCO, um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular; 2015. p. 414-547.
  • 17
    Organização Mundial da Saúde, Organização Pan-Americana da Saúde. Manual de vigilância da saúde de populações expostas a agrotóxicos. Brasília, DF: OMS; OPAS; 1996.
  • 18
    Curvo HRM, Pignati WA, Pignati MG. Morbimortalidade por câncer infantojuvenil associada ao uso agrícola de agrotóxicos no Estado de Mato Grosso, Brasil. Cad. Saúde Colet. 2013; 21(1):10-7.
  • 19
    Carneiro FF, Rigotto RM, Augusto LGS, et al., organizadores. Dossiê ABRASCO, um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular; 2015.
  • 20
    Dutra LS, Ferreira AP. Associação entre malformações congênitas e a utilização de agrotóxicas em monoculturas no Paraná, Brasil. Saúde debate. 2017 [acesso em 2021 dez 10]; 41(esp3):241-253. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/hH6SLB9hfSPLGwNHgxSSQBQ/abstract/?lang=pt
    » https://www.scielo.br/j/sdeb/a/hH6SLB9hfSPLGwNHgxSSQBQ/abstract/?lang=pt
  • 21
    Costa VIB, Mello MSC, Friedrich K. Exposição ambiental e ocupacional a agrotóxicos e o linfoma não Hodgkin. Saúde debate. 2017 [acesso em 2021 dez 10]; 41(112):49-62. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/gq7pCfbPYfCgvJqksVPCgzy/abstract/?lang=pt
    » https://www.scielo.br/j/sdeb/a/gq7pCfbPYfCgvJqksVPCgzy/abstract/?lang=pt
  • 22
    Ploeg JDvan der. Sete tese sobre agricultura camponesa. In: Petersen P, organizador. Agricultura familiar camponesa na construção do futuro. Rio de Janeiro: AS-PTA; 2009. p. 17-32.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2020
  • Aceito
    29 Set 2021
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br