Reconectando vidas: práticas de cuidado em saúde sob o olhar de Pessoas Vivendo com HIV/Aids

Rose Ferraz Carmo Heliana Conceição de Moura Rafael Sann Ribeiro Larissa Cecília dos Santos Carlos Magno Silva Fonseca Zélia Maria Profeta da Luz Sobre os autores

RESUMO

O estudo teve como objetivo identificar estratégias para qualificar as práticas de cuidado em saúde destinadas às Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA), sobretudo o acolhimento nos serviços de saúde. Foram realizadas, entre setembro de 2021 e fevereiro de 2022, quatro oficinas pedagógicas em que PVHA residentes em Belo Horizonte e Região Metropolitana de Belo Horizonte foram convidadas a compartilhar suas vivências com HIV/Aids e a refletir sobre como grupos formais e informais, representados graficamente pela técnica do Diagrama de Venn, podem contribuir para qualificar práticas de cuidados em saúde destinadas às PVHA. Participaram do estudo 20 PVHA, 13 homens cisgênero; 6 mulheres cisgênero e 1 mulher transgênero. Os elementos incluídos nos Diagramas foram categorizados nas dimensões: estrutural, informacional e relacional. Os resultados demonstraram que, apesar de avanços na dimensão estrutural, evoluiu-se muito pouco no que diz respeito a elementos centrais das dimensões relacionais e informacionais. As metáforas moralizantes sobre HIV/Aids e o estigma permanecem modelando práticas de cuidado à saúde de PVHA enfatizando a urgência da reconstrução dessas práticas. Compreende-se que essa reconstrução exige o resgate da participação e da cidadania, alicerçada pelo fortalecimento das políticas de assistência e prevenção ao HIV/Aids e pela garantia dos direitos humanos.

PALAVRAS-CHAVES
HIV; Aids; Humanização da assistência; Estigma social; Participação da comunidade

Introdução

A produção de Ricardo Ayres11 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. 1. ed. Rio de Janeiro: CEPESC; IMS; UERJ; ABRASCO; 2009.,22 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde Soc. 2004; 13(3):16- 29. guiou estas reflexões sobre o cuidado integral e humanizado à saúde. É dele o trecho a seguir.

Cuidar da saúde de alguém é mais que construir um objeto e intervir sobre ele. Para cuidar há que se considerar e construir projetos... Então é forçoso saber qual é o projeto de felicidade que está ali em questão, no ato assistencial, mediato ou imediato11 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. 1. ed. Rio de Janeiro: CEPESC; IMS; UERJ; ABRASCO; 2009.(19).

Esse trecho, especificamente, revela elementos essenciais utilizados por um grupo de pesquisa nas discussões sobre as práticas de cuidado à saúde, sobretudo o acolhimento às Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA) nos serviços de saúde de Belo Horizonte e Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).

O primeiro elemento diz respeito à limitação da prática do cuidado como ‘intervenção sobre um objeto’, o que vincularia o cuidado a uma dimensão puramente tecnicista, desconsiderando a sua dimensão inexoravelmente ética, afetiva e estética11 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. 1. ed. Rio de Janeiro: CEPESC; IMS; UERJ; ABRASCO; 2009..

O lugar dos sujeitos nas práticas de saúde é o segundo elemento presente no trecho, relativo à identidade dos destinatários das práticas de cuidado em saúde, compreendidos como seres autênticos, com necessidades, projetos de vida e capacidades diversas, inclusive de produção de sua própria história11 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. 1. ed. Rio de Janeiro: CEPESC; IMS; UERJ; ABRASCO; 2009..

A partir desses elementos, assumiram-se neste estudo as práticas de cuidado em saúde como aquelas imediatamente interessadas na vivência das PVHA com o adoecimento e com as práticas de promoção, proteção e recuperação da saúde22 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde Soc. 2004; 13(3):16- 29., possibilitando, dessa forma, o estabelecimento de uma relação de escuta com compartilhamento de vivências e construção conjunta de diferentes estratégias para a melhoria da saúde.

Compreende-se o acolhimento como uma dimensão do cuidado integral e humanizado em saúde.

Neste artigo, trazem-se os resultados de oficinas pedagógicas realizadas com PVHA, que tiveram como objetivo identificar estratégias de/para qualificar as práticas de cuidado às PVHA com ênfase ao acolhimento nos serviços de saúde.

As oficinas fazem parte do Projeto Reconectando Vidas, desenvolvido pelo grupo de pesquisa Saúde, Educação e Cidadania (SEC), do Instituto René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz, na área de saúde coletiva. O Reconectando Vidas foi lançado em um webinário em agosto de 2020, com a participação de PVHA ligadas a movimentos sociais de Belo Horizonte, da RMBH e do Rio de Janeiro. Além das oficinas, o projeto utiliza outros caminhos metodológicos, como produção de documentário, redação de cartas e desdobramentos de projetos com profissionais de saúde. O Projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto René Rachou – parecer número 4.696.228.

Material e métodos

A abordagem qualitativa norteou o estudo, já que permitiria, como aponta Minayo33 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec; 2014., compreender a lógica interna de grupos quanto a valores culturais e representações sobre sua história e temas específicos, quanto a relações entre indivíduos, instituições e movimentos sociais e quanto a processos históricos, sociais e de implementações de políticas públicas e sociais.

Construção por pares

A equipe do projeto contou com a participação de duas PVHA, ativistas de movimentos sociais ligados à temática do HIV/Aids. Além disso, uma das participantes da equipe atuava também na Rede de Atenção à Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte realizando o acolhimento de PVHA. Todos participaram de forma efetiva em todas as etapas do estudo: concepção, redação, execução.

Oficinas pedagógicas

Apoiados na produção da educadora Vera Maria Candau44 Candau VM. Oficinas aprendendo e ensinando direitos humanos. Rio de Janeiro: Novameria/PUC-Rio; 1999. [acesso em 2021 jun 18]. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/veracandau/candau_edh_propostatrabalho.pdf.
http://www.dhnet.org.br/direitos/militan...
, realizaram-se oficinas pedagógicas como espaços coletivos de expressão e construção de saberes. Para a educadora, as oficinas são unidades produtivas de conhecimentos a partir de uma realidade concreta, para serem transferidas a essa realidade a fim de transformá-la.

As duas PVHA integrantes da equipe de pesquisa foram responsáveis pela maior parte dos convites para participação no projeto, com exceção de dois participantes que foram convidados por um outro integrante da equipe de pesquisa com inserção em movimentos sociais. Acredita-se que a possibilidade de o convite ter sido realizado por pares contribuiu para adesão ao estudo.

As PVHA eram convidadas a participar das oficinas e, caso aceitassem, preenchiam, via e-mail, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

O critério de distribuição dos/as participantes em cada oficina foi a disponibilidade para participar. Em cada oficina, buscou-se conformar um grupo heterogêneo no que diz respeito ao sexo e ao local de moradia.

Todas as oficinas foram gravadas em áudio e vídeo. Era solicitado aos/às participantes que as câmeras permanecessem abertas durante toda a oficina. Em alguns momentos, devido a problemas de conectividade, alguns/as participantes precisavam fechar as câmeras, mas, sempre durante os depoimentos, as câmeras eram abertas.

Durante as oficinas, realizadas entre setembro de 2021 e fevereiro de 2022, em formato on-line devido à pandemia de Covid-19, utilizaram-se duas técnicas: Árvore da Vida55 Paschoal VN, Grandesso M. O uso de metáforas em terapia narrativa: facilitando a construção de novos significados. Nova Persp. Sist. 2014; (48):24-43. e Diagrama de Venn66 Faria AAC, Ferreira Neto PS. Ferramentas de diálogo. Qualificando o uso das técnicas de DRP Diagnóstico Rural Participativo. Brasília, DF: MMA-IEB; 2006..

A Árvore da Vida consiste em uma prática narrativa coletiva em que situações traumáticas, valores e habilidades são trabalhados a partir da figura da árvore como metáfora55 Paschoal VN, Grandesso M. O uso de metáforas em terapia narrativa: facilitando a construção de novos significados. Nova Persp. Sist. 2014; (48):24-43.. Essa técnica inaugurava as oficinas e tinha a intencionalidade de contribuir para o processo de externalização do viver com HIV/Aids pelos/as participantes desde a busca pelo diagnóstico. Partiu-se do pressuposto, apresentado por Paschoal e Grandesso55 Paschoal VN, Grandesso M. O uso de metáforas em terapia narrativa: facilitando a construção de novos significados. Nova Persp. Sist. 2014; (48):24-43., de que, ao construir uma metáfora, é possível concretizar o entendimento de uma situação como externa a si mesmo e visualizar possíveis alternativas para a ela, favorecendo, inclusive, a construção de novos significados.

Era pedido a cada participante que falasse sobre os componentes da sua árvore, e a integrante da equipe de pesquisa responsável por conduzir essa etapa da oficina registrava as falas no jamboard. Cada parte da árvore representava um aspecto da vida do/a participante: as raízes representavam as tradições e origens – étnicas, religiosas, lugares de onde vêm, entre outros; o solo no qual a árvore está plantada dizia respeito ao local onde eram registradas as atividades em que as pessoas estão envolvidas no dia a dia; o tronco estimulava as pessoas a falarem sobre suas habilidades e valores; os galhos significavam as esperanças, os sonhos e os desejos dos/as participantes em relação ao seu futuro; as folhas da árvore representavam as pessoas importantes na vida, tanto vivas quanto mortas, ou, até mesmo, animais de estimação, personagens históricos, líderes ou outros; e, por fim, as frutas representavam os presentes que foram dados para a pessoa. Agregada a essa metodologia, as sementes convidavam os/ as participantes a pensar no que gostariam deixar como sua contribuição – uma espécie de transcendência.

Após a construção da Árvore da Vida, os/as participantes da oficina eram convidados/ as a utilizar uma ferramenta de diálogo denominada Diagrama de Venn66 Faria AAC, Ferreira Neto PS. Ferramentas de diálogo. Qualificando o uso das técnicas de DRP Diagnóstico Rural Participativo. Brasília, DF: MMA-IEB; 2006.. Consideramos o Diagrama de Venn como uma ‘ferramenta de diálogo’. Usou-se essa denominação como uma referência à compilação de Faria e Ferreira Neto66 Faria AAC, Ferreira Neto PS. Ferramentas de diálogo. Qualificando o uso das técnicas de DRP Diagnóstico Rural Participativo. Brasília, DF: MMA-IEB; 2006. sobre técnicas de Diagnóstico Rápido Participativo (DRP) e à compreensão de que o acrônimo DRP pode representar, como neste estudo, técnicas que motivam o Diálogo, a Reflexão e o Planejamento e, também, de que

não há diálogos sem sujeitos, sem aqueles que se expõem e se dispõem às trocas, que se expressam e se abrem às ideias e aos conceitos de um outro alguém, na busca por novos entendimentos66 Faria AAC, Ferreira Neto PS. Ferramentas de diálogo. Qualificando o uso das técnicas de DRP Diagnóstico Rural Participativo. Brasília, DF: MMA-IEB; 2006.(9).

O Diagrama de Venn corresponde a um diagrama de círculos de diferentes tamanhos, dispostos de forma a representar as relações existentes entre eles. Cada círculo representa um grupo formal ou informal da sociedade. Durante a construção do Diagrama, dois aspectos deveriam ser considerados: 1) tamanho do círculo: referente ao poder do grupo, sua capacidade efetiva de atingir seus objetivos; 2) posicionamento do círculo: referente à relação entre diferentes grupos que compõem o Diagrama. Se os grupos são parceiros, por exemplo, são localizados próximos, podendo inclusive se sobrepor um ao outro, parcial ou integralmente. Caso os grupos possuam objetivos, concepções e/ou práticas antagônicas, diversas, devem estar localizados distantes um do outro66 Faria AAC, Ferreira Neto PS. Ferramentas de diálogo. Qualificando o uso das técnicas de DRP Diagnóstico Rural Participativo. Brasília, DF: MMA-IEB; 2006..

A construção do Diagrama de Venn foi norteada por uma pergunta: como a correlação de forças representada pelo Diagrama poderia contribuir para efetivação de estratégias de qualificação do acolhimento a PVHA?

Dessa forma, ao final das oficinas pedagógicas, além dos Diagramas construídos, tinham-se também propostas de estratégias para qualificação das práticas de cuidados em saúde, sobretudo o acolhimento às PVHA.

Iniciava-se a construção do Diagrama de Venn com um círculo representando o grupo da PVHA já desenhado na tela do jamboard, sinalizando a centralidade do grupo no processo metodológico da pesquisa e, mais do que isso, o entendimento sobre a importância da participação das PVHA nos processos de elaboração, implementação e/ou fortalecimento das políticas públicas destinadas às PVHA.

À medida que os/as participantes iam incluindo novos elementos ao Diagrama de Venn, um/a integrante do grupo de pesquisa os registrava no jamboard. Dessa forma, o Diagrama era desenhado de forma síncrona.

Compreende-se que o processo de construção do Diagrama de Venn era sugerido pela equipe de pesquisa, e que deveria permitir a reflexão sobre as práticas de cuidado em saúde voltadas às PVHA. No entanto, a despeito disso, os/as participantes protagonizaram o processo de construção, discutindo e deliberando sobre os componentes de cada círculo, suas dimensões, tamanho e distância entre eles.

Destaca-se que os integrantes da equipe de pesquisa que tinham contato direto com as PVHA, seja em movimentos sociais, seja em serviços de saúde, atuaram como relatores durante as oficinas pedagógicas. A condução foi realizada por outros integrantes da equipe para evitar possíveis vieses.

Participantes do estudo

Considerando que em estudos qualitativos a amostra deve ser representativa da relevância do fenômeno em estudo em termos de experiência e envolvimento dos participantes com o fenômeno de interesse77 Denborough D. Práticas narrativas coletivas: trabalhando com indivíduos, grupos e comunidades que vivenciaram traumas. Adelaide: Dulwich Centre Publications; 2008., trabalhou-se com uma amostra intencional não probabilística. Os critérios de inclusão no estudo foram: viver com HIV/Aids; ser maior de 18 anos, concordar em participar do estudo a partir da assinatura do TCLE; residir em Belo Horizonte ou RMBH. Compreendendo os critérios de exclusão como característica ou circunstância que impede a inclusão do sujeito no estudo, apesar de cumprir os critérios de inclusão, não houve, no estudo, esse critério.

A diversidade de participantes, no que diz respeito ao gênero, orientação sexual e forma de infecção com o vírus, assegurou experiências e expressões que possibilitaram compreender o quadro empírico envolvido com as práticas de cuidados em saúde relacionadas com o HIV/Aids, fundamental para a postura propositiva da oficina pedagógica de identificação/construção de estratégias de qualificação do acolhimento às PVHA nos serviços de saúde.

Todos/as os/as participantes foram convidados/ as a participar do estudo inicialmente via contato telefônico (ligação ou mensagem) por um dos/as participantes do grupo de pesquisa ligado/a a movimentos sociais. Posteriormente, era enviado o e-mail com a descrição detalhada do projeto e o TCLE para assinatura.

Análise dos dados

Inicialmente, fez-se uma análise dos Diagramas elaborados em cada uma das quatro oficinas pedagógicas realizadas, de forma a categorizar os elementos incluídos pelos/as participantes.

A partir dessa análise, categorizaram-se os elementos dos Diagramas em três dimensões: a) Estrutural; b) Informacional; e c) Relacional.

A categorização não teve a pretensão de ser estática e definidora, alguns elementos se intercambiam entre as dimensões, conformando uma teia de relações e significados inerentes à complexidade das práticas de cuidado em saúde relacionadas com as PVHA.

Resultados e discussão

Caracterização dos/as participantes

Foram realizadas quatro oficinas on-line entre os meses de setembro de 2021 e fevereiro de 2022.

Participaram das oficinas 13 (65%) homens cisgênero; 6 (30%) mulheres cisgênero e 1 (5%) mulher transgênero. Entre os homens, 1 (7,7%) era heterossexual; e 12 (92,3%), homossexuais. Entre as mulheres, 6 (85,7%) eram heterossexuais; e 1 (14,3%), bissexual.

Com relação à etnia, os participantes se declararam: árabe (1 – 7,7%); branco (2 – 15,4%); latino (1 – 7,7%); pardo (5 – 38,4%) e preto (4 – 30,8%). Já as participantes se declararam: brancas (2 – 28,6%); pardas (2 – 28,6%) e pretas (3 – 42,8%).

A tabela 1 apresenta a caracterização dos/ as participantes de acordo com a faixa etária.

Tabela 1
Caracterização dos/as participantes da oficina pedagógica segundo faixa etária e sexo, Belo Horizonte, setembro de 2021 e fevereiro de 2022

A escolaridade dos/das participantes esteve entre ensino superior completo (12 – 60%); ensino superior incompleto (1 – 5%); pós-graduação (4 – 20%) e ensino médio (3 – 15%). A tabela 2 apresenta a caracterização dos/as participantes de acordo com a renda.

Tabela 2
Caracterização dos/as participantes da oficina pedagógica segundo a renda, Belo Horizonte, setembro de 2021 a fevereiro de 2022

É importante destacar que 12 (60%) dos/as participantes eram envolvidos de alguma forma com movimentos sociais. Quatro (20%) participantes receberam o diagnóstico para HIV há menos de cinco anos, sendo que um (5%) deles recebeu o diagnóstico há menos de um ano.

As formas de transmissão do vírus foram: vertical (1 – 5%); compartilhamento de agulha durante uso de droga injetável (1 – 5%); e sexual (18 – 90%).

Em cada uma das quatro oficinas, houve a participação de cinco pessoas. A tabela 3 apresenta a caracterização dos/das participantes de acordo com a oficina pedagógica.

Tabela 3
Caracterização dos/as participantes do estudo segundo a oficina pedagógica, Belo Horizonte, setembro de 2021 a fevereiro de 2022

Árvore da Vida

Os elementos utilizados pelos/as participantes durante a construção metafórica da Árvore da Vida foram retomados durante a construção do Diagrama de Venn, já que a reflexão sobre as práticas de cuidado à saúde perpassa as vivências das PVHA, sobretudo com os serviços de saúde.

Além disso, a técnica contribuiu para a construção de um ambiente favorável à abordagem do tema, que mobiliza tão intimamente a história de vida das pessoas e que ainda é tão permeado por estigmas.

Diagramas de Venn

Ainda que a pergunta disparadora tenha sido a mesma, cada Diagrama de Venn continha particularidades que refletiam a história de vida de cada participante e a relação estabelecida entre os/as participantes de cada oficina. Como apontam Faria e Ferreira Neto66 Faria AAC, Ferreira Neto PS. Ferramentas de diálogo. Qualificando o uso das técnicas de DRP Diagnóstico Rural Participativo. Brasília, DF: MMA-IEB; 2006., a riqueza da ferramenta de diálogo encontra-se nos caminhos percorridos para sua elaboração, nas discussões, pautas, perguntas, descobertas e propostas advindas desse processo.

As representações gráficas dos Diagramas (figura 1) demonstram que os/as participantes inseriram, além de grupos formais e não formais, como solicitado no início das oficinas, outros elementos que não podem ser identificados exatamente como grupos. Alguns exemplos são: instituições (Ministério da Educação, Instituições de Ensino e Pesquisa); variáveis sociais (desigualdades territoriais; educação); princípios do Sistema Único de Saúde – SUS (controle social); meios e formas de comunicação (mídia, divulgação da ciência, comunicação formal); áreas de conhecimentos (ciência, saúde mental).

Figura 1
Diagramas de controle elaborados pelos participantes das oficinas pedagógicas, Belo Horizonte, setembro de 2021 a fevereiro de 2022

As dimensões dos Diagramas de Venn

DIMENSÃO ESTRUTURAL

[...] o próprio ser social de sua vítima é então posto em questão – sua cidadania é colocada em parênteses88 Flick U. Desenho da pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009..

Foram incluídos na Dimensão Estrutural os elementos: Desigualdades territoriais; Saúde mental e saúde mental dentro dos Serviços de Atenção Especializada (SAE); Direito à saúde reprodutiva e sexual; Educação Formal e Educação incluindo execução e fiscalização (figura 1).

Os elementos da Dimensão Estrutural colocam em cena a discussão sobre a cidadania, que é suspensa, como aponta Sontag99 Sontag S. Doença como metáfora. AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras; 2007., pelo acometimento do corpo biológico por uma enfermidade povoada por metáforas estigmatizantes. Todavia, suspensa também por contextos políticos, econômicos e sociais avessos ao seu pleno exercício, como na emergência da Aids no Brasil, em que a sociedade procurava restabelecer uma democracia participativa após duas décadas de regime autoritário1010 Daniel H, Parker R. AIDS: a terceira epidemia ensaios e tentativas. Rio de Janeiro: ABIA; 2018., bem como na conformação de ‘um espaço sem cidadãos’ 1111 Santos M. O espaço do cidadão. 7. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2014., assolado por desigualdades de acesso a elementos estruturais dos Diagramas como Educação e Saúde. Além disso, não há como isolar a análise dessas desigualdades sociais das desigualdades territoriais. Portanto, como aponta Santos1111 Santos M. O espaço do cidadão. 7. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2014.(151),

[...] seu tratamento não pode ser alheio às realidades territoriais. A República somente será democrática quando considerar todos os cidadãos como iguais, independente do lugar onde estejam. O cidadão é o indivíduo num lugar.

O acesso, por exemplo, a Redes de Atenção à Saúde (RAS) mais organizadas, com fluxos de cuidado compartilhados bem estabelecidos, difere de acordo com a localidade. Os participantes da oficina 2 eram residentes em Belo Horizonte e/ou RMBH e tinham acesso a uma RAS organizada. Contudo, não são raros os relatos de PVHA que deslocam o local do tratamento para outra regional de saúde, município e até mesmo estado, sobretudo quando residem em municípios de pequeno porte, para não serem reconhecidos em filas de espera por vizinhos, família, chefes e colegas de trabalho, revelando, assim, o estigma em torno da sorologia positiva.

O sofrimento e as privações vivenciadas no cotidiano de PVHA diante da possibilidade de quebra do sigilo sobre o seu diagnóstico foram destacados por Sciarotta et al.1212 Sciarotta D, Melo EA, Damião JJ, et al. O “segredo” sobre o diagnóstico do HIV/Aids na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu). 2021 [acesso em 2022 ago 22]; (25):e200878. Disponível em: https://doi.org/10.1590/interface.200878.
https://doi.org/10.1590/interface.200878...
em estudo que pretendeu analisar elementos relacionados com a gestão do sigilo diagnóstico de HIV em cenário de descentralização do cuidado com a PVHA para a Atenção Primária à Saúde (APS). As autoras e o autor ponderam a ambígua repercussão da territorialidade da APS brasileira no cuidado às PVHA, já que pode ampliar o acesso e o risco de quebra do sigilo, sendo fundamental a reorganização das práticas de cuidado, bem como de efetivação de políticas públicas de enfrentamento da discriminação e do estigma1212 Sciarotta D, Melo EA, Damião JJ, et al. O “segredo” sobre o diagnóstico do HIV/Aids na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu). 2021 [acesso em 2022 ago 22]; (25):e200878. Disponível em: https://doi.org/10.1590/interface.200878.
https://doi.org/10.1590/interface.200878...
.

Os efeitos paradoxais da lógica territorial, assim como a necessidade de novos arranjos para organização dos processos de trabalho que evitem a ampliação de vulnerabilidades, foram também apontados em estudo que buscou analisar implicações da descentralização da assistência de PVHA para a APS1313 Damião JJ, Agostini R, Maksud I, et al. Cuidando de Pessoas Vivendo com HIV/Aids na Atenção Primária à Saúde: nova agenda de enfrentamento de vulnerabilidades? Saúde debate. 2022; 46(132):163-174..

A inclusão da saúde mental no Diagrama de Venn, especificamente dentro dos SAE, como uma estratégia para qualificar o acolhimento, deslocou as práticas de cuidado em direção aos profissionais de saúde a partir do reconhecimento das fragilidades e demandas de saúde experimentadas por essa categoria.

Ayres11 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. 1. ed. Rio de Janeiro: CEPESC; IMS; UERJ; ABRASCO; 2009. convoca a refletir sobre a reconstrução das práticas de cuidado em saúde de forma ‘reconciliadora’ a partir do entendimento de que

Existe uma potencialidade reconciliadora entre as práticas assistenciais e a vida, ou seja, a possibilidade de um diálogo aberto e produtivo entre a tecnociência médica e a construção livre e solidária de uma vida que se quer feliz11 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. 1. ed. Rio de Janeiro: CEPESC; IMS; UERJ; ABRASCO; 2009.(62).

Compreende-se que esse movimento reconciliador exigirá atenção e comprometimento com o ‘outro’ e ‘consigo’ mesmo, e o olhar atento dos/ as participantes do estudo em direção aos profissionais aponta que é possível a reconstrução das práticas de cuidado em saúde, com destaque para o acolhimento humanizado.

Apesar do círculo que contém o elemento Direito à saúde reprodutiva e sexual ser o menor do Diagrama 1 (figura 1) e, também, quando comparado ao outros Diagramas construídos, destacamos que a temática assumiu centralidade nas discussões da oficina pedagógica em que foi elaborado devido às vivências de duas participantes com o tema. Uma delas esteve inserida na equipe de um estudo com mulheres soropositivas que tinham o desejo de engravidar e relatou o despreparo dos profissionais de saúde para lidar com a temática. Outra jovem participante que convivia com dúvidas e angústias em torno do desejo da maternidade e do pleno exercício de sua sexualidade – angústias potencializadas pelo acolhimento desastroso recebido em um serviço de saúde.

Entre os muitos sentidos e significados embricados no não reconhecimento do direito à saúde reprodutiva e sexual de mulheres soropositivas, acredita-se que a metáfora da moralidade ressoe fortemente. Como aponta Sontang99 Sontag S. Doença como metáfora. AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras; 2007.(98), “O comportamento perigoso que produz a AIDS é encarado como algo mais do que fraqueza. É irresponsabilidade, delinquência...” e, portanto, inabilitaria a mulher de exercer a maternidade.

A dimensão estrutural é abordada, em certa medida, na publicação oriunda do ‘I Seminário Amazonense de HIV/Aids, Gênero e Sexualidade: políticas e práticas de prevenção, testagem e aconselhamento’ ao enfatizar a necessidade de respostas políticas para vetores de vulnerabilização como pobreza, racismo e misoginia, a partir de uma perspectiva centrada na lógica dos direitos humanos1414 Russo K, Russo K, Camargo Jr. KR. Medicalização e conservadorismo: ameaças ao debate sobre saúde, sexualidade e gênero na educação brasileira. In: Neves ALM, Therense M, organizadores. HIV/Aids, Gênero e Sexualidade: políticas e práticas de prevenção, testagem e aconselhamento. Manaus: Editora UEA, 2018. p. 111-127..

DIMENSÃO INFORMACIONAL

Assolam-me as imagens, rasgam-me as metáforas Insidiosas1515 Al Berto. Diários. Lisboa: Assírio & Alvim; 2012..

A Comunicação Formal e Informal; a Mídia Tradicional e as Redes Sociais; a Ciência; a Divulgação da Ciência; as Instituições de Ensino e Pesquisa e os Grupos religiosos e sua capilaridade e Gestão foram os elementos inseridos na Dimensão Informacional.

Guardadas suas especificidades, esses elementos estiveram relacionados pelos/as participantes ao acesso de pessoas de perfis demográficos diversos a informações fidedignas sobre o HIV/Aids, o que incide de maneira direta nas práticas de cuidado dispensadas às PVHA, sobretudo o acolhimento.

Os meios de comunicação marcaram a trajetória da Aids no Brasil, como alertam Daniel e Parker1010 Daniel H, Parker R. AIDS: a terceira epidemia ensaios e tentativas. Rio de Janeiro: ABIA; 2018.(17),

Mesmo antes que a AIDS tenha de fato se tornado estatisticamente significativa... atraiu a atenção, particularmente dos meios de comunicação e, por extensão tornou-se um importante tópico de conversação inclusive na vida cotidiana.

A desinformação e/ou distorção, assentada inicialmente no desconhecimento científico sobre a doença e ausência de tratamento eficaz, conformaram metáforas catastróficas e moralizantes sobre a Aids, provocando pânico e medo e legitimando a opressão a grupos já estigmatizados, como homossexuais e prostitutas99 Sontag S. Doença como metáfora. AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras; 2007.,1010 Daniel H, Parker R. AIDS: a terceira epidemia ensaios e tentativas. Rio de Janeiro: ABIA; 2018..

A manutenção da associação histórica e estigmatizante da homossexualidade masculina às descrições de risco e contágio por HIV/ Aids foi evidenciada em estudo conduzido por Ferreira e Miskolci1616 Ferreira JP, Miskolci R. “Reservatórios de doenças venéreas”, “MSM/HSH” e “PWA”: continuidades, rupturas e temporalidades na produção de bioidentidades no contexto da epidemia de AIDS. Ciênc. Saúde Colet. 2022; 27(9):3461-3474. sobre as bioidentidades produzidas no contexto da epidemia de Aids.

As narrativas dos/as participantes das oficinas pedagógicas revelaram que a desinformação e a metaforização da Aids permanecem modelando respostas sociais à epidemia e práticas de cuidado às PVHA, como na sentença cruel e irreal dada, por um profissional de saúde, a uma das participantes sobre a impossibilidade de vivenciar sua vida sexual e reprodutiva e na atitude de um dos participantes em não revelar, em seu ambiente de trabalho, o motivo da ausência quando comparece às consultas com o infectologista.

De acordo com Oliveira1717 Oliveira RN. Políticas de atenção ao HIV/AIDS no Brasil: forças e valores a partir de uma aproximação genealógica. [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021. 230 p., durante a construção histórica da política de atenção ao HIV/ Aids, o estigma e a normatização ganharam expressão nas disputas e enredos sobre a política, o cuidado e o viver dos sujeitos, condicionando a produção dos sujeitos pelo medo e exclusão.

A evocação à Ciência e à Divulgação Científica, assim como a incorporação no Diagrama 4 (figura 1) de Instituições de Ensino e Pesquisa em interseção direta com o círculo dos Profissionais de Saúde, registra, em certa medida, a ebulição de novos conhecimentos que, de acordo com os/as participantes, precisam estar inseridos no âmbito das práticas de cuidado às PVHA, incluindo novas Terapias Antirretrovirais (Tarv) e carga indetectável.

Grupos religiosos estiveram associados, nas reflexões dos/das participantes, menos à metáfora moralizante da Aids como um castigo divino99 Sontag S. Doença como metáfora. AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras; 2007. e mais ao potencial de acessar as pessoas de uma comunidade devido à sua capilaridade e legitimidade em territórios específicos. Compreendendo que as intervenções desses grupos religiosos teriam cunho mais ético do que científico, no sentido de trazer para a centralidade do discurso valores como respeito e solidariedade.

Independentemente dos canais de comunicação, a Dimensão Informacional convoca a refletir sobre a colocação de Inácio1818 Inácio EC. Carga zerada. HIV/AIDS, discurso, desgaste, cultura. Via Atlântica. 2016 [acesso em 2022 out 10]; 29:479-505. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/118885.
https://www.revistas.usp.br/viaatlantica...
ao avaliar e historicizar o arrefecimento das representações da Aids na Literatura e na Cultura: “pra que falar sobre isso agora/ainda?”.

No âmbito das práticas de cuidado em saúde, poder-se-ia responder, com base nas oficinas pedagógicas, que ainda há muito que se falar sobre o viver com HIV/Aids, para que haja uma reconstrução das práticas de saúde no sentido proposto por Ayres11 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. 1. ed. Rio de Janeiro: CEPESC; IMS; UERJ; ABRASCO; 2009. como ‘reconciliador’, comprometido com um cuidar que passa pelas competências e tarefas técnicas, mas não se restringe a elas.

Dessa forma, para que a transformação se concretize, a gestão, compreendida pelos/as participantes como gestores dos serviços de saúde, deve estar comprometida.

DIMENSÃO RELACIONAL

...nada me tornou mais humano do que saber que sou humano..

(Participante da oficina pedagógica, 2022)

A Dimensão Relacional abarcou os elementos: Família, Redes, Movimentos e ONGs, Grupos; Profissionais de Saúde; Grupos ampliados de convivência, Grupos de controle social; Movimentos sociais de luta contra a AIDS e Controle Social.

A Família foi apontada como um grupo fundamental do cuidado e acolhimento às PVHA, sobretudo pelos/as participantes da oficina pedagógica em que foi construído o Diagrama 1 (figura 1). A trajetória de vida, o compartilhamento do diagnóstico com a família e a rede apoio formada a partir daí foram elencados como aspectos centrais.

A participação das famílias constitui uma importante ferramenta de gestão do cuidado em saúde. Em suas reflexões sobre uma avaliação em saúde que considere as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde (individual, familiar, profissional, organizacional, sistêmica e societária), Cecílio1919 Cecílio LCO. Apontamentos teóricos conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões do cuidado em saúde. Interface Comum. Saúde Educ. 2011; 15(37):589-599. localiza a dimensão familiar no mundo da vida tendo como atores privilegiados pessoas da família, amigos e vizinhos.

No entanto, a vivência de compartilhar o diagnóstico com a família não foi a tônica das oficinas pedagógicas, corroborando dados do Índice de Estigma em relação às PVHA. Utilizado para detectar e medir mudanças de tendências em relação ao estigma e à discriminação relacionados com o HIV, o Índice, aplicado pela primeira vez no Brasil em 2019, revelou que, em geral, a condição de viver com HIV/Aids tende a ser compartilhada com esposas, maridos, e parceiros/as. Entre os respondentes do levantamento, 80,4% relataram ter compartilhado o diagnóstico com essas pessoas. Esse percentual chega a 66,4% quando o compartilhamento é realizado com filhos/as, e a 75,8%, com outros membros da família2020 Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS- Brasil. Sumário Executivo. 2019. [acesso em 2022 fev 20]. Disponível em: https://unaids.org.br/indice-estigma/.
https://unaids.org.br/indice-estigma/...
.

O estigma foi o alicerce da construção das práticas de cuidado em saúde voltadas às PVHA e continua reverberando no cotidiano dos serviços de saúde. Durante as oficinas pedagógicas, os/as participantes compartilharam a vivência de episódios de constrangimentos, julgamentos e inexistência de acolhimento, corroborando os dados do Índice de Estigma no Brasil, que demonstram que 15,3% sofreram algum tipo de discriminação por parte de profissionais de saúde pelo fato de serem PVHA e que 6,8% notaram que o/a profissional de saúde evitou contato físico ou fez comentários negativos relativos aos usuários por serem PVHA2020 Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS- Brasil. Sumário Executivo. 2019. [acesso em 2022 fev 20]. Disponível em: https://unaids.org.br/indice-estigma/.
https://unaids.org.br/indice-estigma/...
.

O receio iminente de homens que fazem sexo com homens de passarem por experiências estigmatizantes em diversos lugares, como nas Unidades Básicas de Saúde, que deveriam ser um lugar de acolhimento e escuta, foi também relatado por participantes de um estudo conduzido em Curitiba sobre vinculação ao tratamento de HIV/Aids2121 Pereira CR, Cruz MM, Cota VL. Estratégia de linkageme vulnerabilidades nas barreiras ao tratamento de HIV/Aids para homens que fazem sexo com homens. Ciênc. Saúde Colet. 2022; 27(4):1535-1546..

Os processos envolvidos na construção e justificação do estigma revelam o quanto pode ser difícil sua dissolução. Segundo Goffman2222 Goffman E. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC; 2021.(15),

construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social – [acrescenta-se, no caso específico do HIV/ Aids, a sexualidade].

Ainda assim, presenciaram-se relatos emocionantes do cuidado em ato, resultado do encontro do profissional de saúde e da PVHA. Foram tecidas, durante as oficinas pedagógicas, narrativas sobre como o acolhimento, sobretudo no momento do diagnóstico, foi fundamental no processo de aceitação, adesão e continuidade do tratamento. A esse respeito, vale ressaltar a importância do compartilhamento de informações sobre prevenção combinada de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e o HIV para o resgate à autoestima, para a emancipação e o protagonismo dos pacientes2323 Galindo WCM, Francisco AL, Rios LF. Reflexões sobre o trabalho de aconselhamento em HIV/AIDS. Temas em psicol. 2015; 23(4):815-829.,2424 Pequeno CS, Macedo SM, Miranda KCL. Aconselhamento em HIV/AIDS: pressupostos teóricos para uma prática clínica fundamentada. Rev. Bras. Enfer. 2013; 66(3):437-441..

Os significados associados às diferentes denominações inseridas nos Diagramas: Redes, Movimentos e ONGs, Grupos; Grupos ampliados de convivência, Grupos de controle social; Movimentos sociais de luta contra a Aids e Controle Social não foram discutidos pelos/as participantes, apesar de em alguns momentos ser possível identificar conotações políticas e de ativismo, associadas aos Movimentos sociais de luta contra a Aids.

Destaca-se que a denominação Controle Social, utilizada no Diagrama 2, e Grupos de Controle Social, utilizada no Diagrama 4 (figura 1), não tiveram correspondência direta, nas discussões dos/as participantes, com o princípio de participação social do SUS.

O acolhimento, o aconselhamento, o compartilhamento de vivências, a possibilidade de falar abertamente sobre sua situação sorológica e a obtenção de informações sobre o HIV/Aids, situando esses elementos em articulação com a Dimensão Informacional dos Diagramas, foram os pontos destacados pelos/ as participantes ao se referir ao que se está aqui denominando de forma mais abrangente de movimentos.

A atuação desses movimentos foi fundamental na construção da resposta brasileira à epidemia da Aids e na reivindicação por práticas de cuidado à saúde integrais e humanizadas às PVHA. Desde a fundação, em São Paulo, do Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (Gapa), pioneiro na organização voluntária de apoio às PVHA, passando pela formação da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), uma série de novas organizações surgiram, e o trabalho do Gapa e da Abia foi ampliado. Em Belo Horizonte, o Gapa MG2525 Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS-MG. [acesso em 2022 abr 22]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/grupo-de-apoio-e-prevencao-aids-gapamg.
http://www.aids.gov.br/pt-br/grupo-de-ap...
foi a primeira ONG a se organizar e se destinar ao enfrentamento na luta contra Aids e o terceiro Gapa criado no País, posteriormente a São Paulo e Rio de Janeiro. Com o tempo, o protagonismo foi se fortalecendo em Minas Gerais, e a participação se efetivando com a organização da Rede de Pessoas Vivendo com HIV/ Aids – RNP+ MG2626 Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS. Home. [acesso em 2022 abr 22]. Disponível em: http://www.rnpvha.org.br/.
http://www.rnpvha.org.br/...
, o Movimento Nacional das Cidadãs PositHIVas – MNCP MG2727 Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas. Quem somos. [acesso em 2022 abr 22]. Disponível em: https://mncp.org.br/.
https://mncp.org.br/...
e a Rede Estadual de Adolescentes e Jovens Vivendo e Convivendo com HIV/Aids2828 Rede Estadual de Jovens e Adolescentes Vivendo com HIV/AIDS. [acesso em 2022 abr 22]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/rede-estadual-de-adolescente-e-jovens-vivendo-com-hivaids-mg.
http://www.aids.gov.br/pt-br/rede-estadu...
.

Independentemente do movimento, deve-se considerar que, nesses espaços, não há a segregação entre ‘eles’ (soronegativos) e ‘nós’ (soropositivos) que marcou a epidemia do HIV/Aids88 Flick U. Desenho da pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009.,2929 Joffe H. “Eu não o meu grupo não”: representações sociais transculturais da AIDS. In: Guareschi P, Jovchelovitch S, organizadores. Textos em representações sociais. 11. ed. Petrópolis: Vozes; 2009. p. 297-321.. Há, portanto, um sentimento de pertencimento reafirmado pela proposição dos/as participantes de que a aproximação entre movimentos sociais e profissionais de saúde conformaria uma potente estratégia para qualificar o acolhimento às PVHA.

Nessa direção, vale destacar as exitosas experiências de alguns Centros de Atenção Especializada que têm utilizado a atenção por pares como ferramenta de gestão do cuidado a doenças crônicas3030 Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília, DF: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012..

Como apresentado na metodologia, durante a construção do Diagrama, dois aspectos deveriam ser considerados: 1) tamanho do círculo: referente ao poder do grupo, sua capacidade efetiva de atingir seus objetivos; e 2) posicionamento do círculo: referente à relação entre diferentes grupos que compõem o Diagrama.

Apenas o círculo referente ao Direito à saúde sexual e reprodutiva apresentou tamanho discrepante em relação aos demais círculos incluídos no mesmo Diagrama (figura 1), conforme discutido na Dimensão Estrutural.

Com relação ao posicionamento, quatro círculos não foram incluídos próximos ao ou em interseção com o círculo referente às PVHA: Gestão; Saúde mental dentro dos SAE; Grupos religiosos e sua capilaridade e Grupos ampliados de convivência apresentando, no entanto, conexão direta com outros elementos diretamente ligados às PVHA.

Pode-se dizer que cada Diagrama conformou um ‘conglomerado’ de elementos que contribuem para pensar as estratégias, já discutidas, de reconstrução das práticas de cuidado em saúde e qualificação do acolhimento às PVHA.

Considerações finais

A análise das dimensões dos Diagramas convocou a percorrer a história da epidemia da Aids no Brasil, sendo possível identificar que, apesar de avanços na dimensão estrutural, evoluiu-se muito pouco no que diz respeito a elementos centrais das dimensões relacionais e informacionais. Dessa forma, as estratégias de/para qualificar as práticas de cuidado às PVHA requerem esforços nessas duas dimensões, corroborando Pereira et al.2121 Pereira CR, Cruz MM, Cota VL. Estratégia de linkageme vulnerabilidades nas barreiras ao tratamento de HIV/Aids para homens que fazem sexo com homens. Ciênc. Saúde Colet. 2022; 27(4):1535-1546. no sentido de que o cuidado à saúde dos grupos mais vulneráveis ao HIV/Aids requer não apenas uma atuação macroestrutural nas políticas e programas de saúde, mas, sobretudo, uma atuação micropolítica de mudança de atitude e postura na abordagem do cuidado e ante a defesa da vida.

Compreende-se que o enfrentamento ao HIV/Aids, incluindo a ressignificação das práticas de cuidado em saúde e a superação dos efeitos do estigma e discriminação, requer respostas mais rápidas e reflexivas abarcando lideranças em todos os níveis, tanto governamental quanto de PVHA.

Nesse sentido, é fundamental o resgate da participação e da cidadania, sempre pensado na perspectiva do fortalecimento das políticas de assistência e prevenção ao HIV/Aids, da garantia dos direitos humanos e da produção de conhecimentos. A esse respeito, destaca- -se que a participação efetiva de duas PVHA na equipe da pesquisa foi importante para concepção e construção metodológica do estudo e fundamental para a adesão dos/as participantes do estudo.

As metáforas moralizantes sobre a Aids e o estigma permanecem modelando práticas de cuidado à saúde de PVHA, enfatizando a urgência da reconstrução reconciliadora dessas práticas. É essa a proposta de Ayres ao convidar a “[...] saber qual é o projeto de felicidade que está ali em questão, no ato assistencial, mediato ou imediato”11 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. 1. ed. Rio de Janeiro: CEPESC; IMS; UERJ; ABRASCO; 2009.(23). Acredita-se que o movimento de produção de conhecimentos ‘junto’ e não ‘para’ as PVHA fortalece a reconstrução e a sustentabilidade dessas práticas de cuidado.

Acrescenta-se à reconstrução reconciliadora a solidariedade apontada por Daniel e Parker1010 Daniel H, Parker R. AIDS: a terceira epidemia ensaios e tentativas. Rio de Janeiro: ABIA; 2018. como o único caminho possível para reescrever uma nova história da epidemia da Aids no Brasil.

Agradecimentos

Agradecemos a todas as PVHA que participaram do estudo.

  • Suporte financeiro: Instituto René Rachou - Fiocruz Minas. Emenda Federal do Deputado Patrus Ananias - nº 1408 0001

Referências

  • 1
    Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. 1. ed. Rio de Janeiro: CEPESC; IMS; UERJ; ABRASCO; 2009.
  • 2
    Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde Soc. 2004; 13(3):16- 29.
  • 3
    Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec; 2014.
  • 4
    Candau VM. Oficinas aprendendo e ensinando direitos humanos. Rio de Janeiro: Novameria/PUC-Rio; 1999. [acesso em 2021 jun 18]. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/veracandau/candau_edh_propostatrabalho.pdf
    » http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/veracandau/candau_edh_propostatrabalho.pdf
  • 5
    Paschoal VN, Grandesso M. O uso de metáforas em terapia narrativa: facilitando a construção de novos significados. Nova Persp. Sist. 2014; (48):24-43.
  • 6
    Faria AAC, Ferreira Neto PS. Ferramentas de diálogo. Qualificando o uso das técnicas de DRP Diagnóstico Rural Participativo. Brasília, DF: MMA-IEB; 2006.
  • 7
    Denborough D. Práticas narrativas coletivas: trabalhando com indivíduos, grupos e comunidades que vivenciaram traumas. Adelaide: Dulwich Centre Publications; 2008.
  • 8
    Flick U. Desenho da pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009.
  • 9
    Sontag S. Doença como metáfora. AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras; 2007.
  • 10
    Daniel H, Parker R. AIDS: a terceira epidemia ensaios e tentativas. Rio de Janeiro: ABIA; 2018.
  • 11
    Santos M. O espaço do cidadão. 7. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2014.
  • 12
    Sciarotta D, Melo EA, Damião JJ, et al. O “segredo” sobre o diagnóstico do HIV/Aids na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu). 2021 [acesso em 2022 ago 22]; (25):e200878. Disponível em: https://doi.org/10.1590/interface.200878
    » https://doi.org/10.1590/interface.200878
  • 13
    Damião JJ, Agostini R, Maksud I, et al. Cuidando de Pessoas Vivendo com HIV/Aids na Atenção Primária à Saúde: nova agenda de enfrentamento de vulnerabilidades? Saúde debate. 2022; 46(132):163-174.
  • 14
    Russo K, Russo K, Camargo Jr. KR. Medicalização e conservadorismo: ameaças ao debate sobre saúde, sexualidade e gênero na educação brasileira. In: Neves ALM, Therense M, organizadores. HIV/Aids, Gênero e Sexualidade: políticas e práticas de prevenção, testagem e aconselhamento. Manaus: Editora UEA, 2018. p. 111-127.
  • 15
    Al Berto. Diários. Lisboa: Assírio & Alvim; 2012.
  • 16
    Ferreira JP, Miskolci R. “Reservatórios de doenças venéreas”, “MSM/HSH” e “PWA”: continuidades, rupturas e temporalidades na produção de bioidentidades no contexto da epidemia de AIDS. Ciênc. Saúde Colet. 2022; 27(9):3461-3474.
  • 17
    Oliveira RN. Políticas de atenção ao HIV/AIDS no Brasil: forças e valores a partir de uma aproximação genealógica. [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021. 230 p.
  • 18
    Inácio EC. Carga zerada. HIV/AIDS, discurso, desgaste, cultura. Via Atlântica. 2016 [acesso em 2022 out 10]; 29:479-505. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/118885
    » https://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/118885
  • 19
    Cecílio LCO. Apontamentos teóricos conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões do cuidado em saúde. Interface Comum. Saúde Educ. 2011; 15(37):589-599.
  • 20
    Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS- Brasil. Sumário Executivo. 2019. [acesso em 2022 fev 20]. Disponível em: https://unaids.org.br/indice-estigma/
    » https://unaids.org.br/indice-estigma/
  • 21
    Pereira CR, Cruz MM, Cota VL. Estratégia de linkageme vulnerabilidades nas barreiras ao tratamento de HIV/Aids para homens que fazem sexo com homens. Ciênc. Saúde Colet. 2022; 27(4):1535-1546.
  • 22
    Goffman E. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC; 2021.
  • 23
    Galindo WCM, Francisco AL, Rios LF. Reflexões sobre o trabalho de aconselhamento em HIV/AIDS. Temas em psicol. 2015; 23(4):815-829.
  • 24
    Pequeno CS, Macedo SM, Miranda KCL. Aconselhamento em HIV/AIDS: pressupostos teóricos para uma prática clínica fundamentada. Rev. Bras. Enfer. 2013; 66(3):437-441.
  • 25
    Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS-MG. [acesso em 2022 abr 22]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/grupo-de-apoio-e-prevencao-aids-gapamg
    » http://www.aids.gov.br/pt-br/grupo-de-apoio-e-prevencao-aids-gapamg
  • 26
    Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS. Home. [acesso em 2022 abr 22]. Disponível em: http://www.rnpvha.org.br/
    » http://www.rnpvha.org.br/
  • 27
    Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas. Quem somos. [acesso em 2022 abr 22]. Disponível em: https://mncp.org.br/
    » https://mncp.org.br/
  • 28
    Rede Estadual de Jovens e Adolescentes Vivendo com HIV/AIDS. [acesso em 2022 abr 22]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/rede-estadual-de-adolescente-e-jovens-vivendo-com-hivaids-mg
    » http://www.aids.gov.br/pt-br/rede-estadual-de-adolescente-e-jovens-vivendo-com-hivaids-mg
  • 29
    Joffe H. “Eu não o meu grupo não”: representações sociais transculturais da AIDS. In: Guareschi P, Jovchelovitch S, organizadores. Textos em representações sociais. 11. ed. Petrópolis: Vozes; 2009. p. 297-321.
  • 30
    Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília, DF: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2022
  • Aceito
    15 Set 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br