As Ouvidorias do SUS e a Rede Brasileira de Escolas de Saúde Pública: uma experiência inédita

Rosa Maria Pinheiro Souza Patricia Pol Costa Francisco Gastón Salazar Muñoz Sobre os autores

RESUMO

Este relato de experiência teve como objetivo analisar o processo de formação de ouvidores do Sistema Único de Saúde (SUS), uma parceria entre a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/ Fiocruz), a Rede Brasileira de Escola de Saúde Pública (RedEscola) e a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do SUS (SGEP/MS). Considerada pioneira, a formação foi desenvolvida dentro da lógica de construção participativa, envolvendo atores municipais, estaduais e nacionais das Ouvidorias do SUS, instituições/escolas de saúde pública estaduais, Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e Secretaria Técnica e Executiva da RedEscola, em uma articulação de governança consertada que resultou na formação de 451 ouvidores.

PALAVRAS-CHAVES
Formação profissional; Ouvidoria dos pacientes; Governança em saúde; Escolas de saúde pública; Gestão de serviços de saúde

Introdução

A inspiração para o registro dessa experiência, que tem como objetivo analisar o processo de formação de ouvidores do Sistema Único de Saúde (SUS), está associada à proposta de Bondía11 Bondia BJ. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev. Bras. Educ. 2002 [acesso em 2021 maio 25]; (19):20-28. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003.
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que, ao explorar o conceito de experiência, se apresenta como um evento que passa por nós, ou um acontecimento, capaz de nos formar e nos transformar.

A Escola Nacional de Saúde Púbica Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/ Fiocruz) tem no cerne da sua missão formar profissionais, gerar e compartilhar conhecimentos e práticas no sentido de promover o direito à saúde e a melhoria das condições de vida da população. Outrossim, é nesse contexto que se ancora a experiência relatada, fruto de uma cooperação entre a Ensp/Fiocruz e o Ministério da Saúde (MS), que contou com a participação da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), sob a coordenação nacional da Rede Brasileira de Escolas de Saúde Pública (RedEscola).

A Rede Brasileira de Escolas de Saúde Pública

A criação da Rede de Escolas e Centros Formadores em Saúde Pública, hoje RedEscola, foi impulsionada pelos achados do projeto RegeSUS – Inovações na Educação em Saúde Pública com Diálogo e Parceria22 Brasil. Ministério da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca. Projeto REGESUS – 538. Relatório Final Pesquisa Nacional de Escolas de Saúde Pública. Inovação na Educação em Saúde Pública com Diálogo e Parceria. Brasília: DF: MS; Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008., fruto de convênio entre a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde do Ministério da Saúde e a Ensp/Fiocruz. Esse projeto envolveu 18 escolas de saúde pública e centros formadores que constituíram a Rede proposta pela Ensp/Fiocruz, em que está localizada a sua Secretaria Técnica e Executiva (STE).

A Rede é um espaço de diálogo permanente, composta atualmente por 59 instituições formadoras de saúde no Brasil, cuja missão é articular e fortalecer estratégias para o desenvolvimento de políticas públicas de educação na saúde, com foco na qualificação dos trabalhadores do SUS, conforme seus princípios e diretrizes constitutivas33 Souza RMP, Costa PP, organizadoras. Redescola e a nova formação em saúde pública. Rio de Janeiro: ENSP; REDESCOLA; 2017..

As instituições formadoras integrantes da RedEscola estão distribuídas em todo o território nacional, vinculadas aos três níveis de gestão pública: estaduais, municipais e federais. As organizações de trabalho em rede têm sido referidas como fundamentais à execução e à consolidação de ações imprescindíveis para a educação e o trabalho no SUS. Desde sua criação, a RedEscola vem propiciando a circulação de informações, a difusão de metodologias e o compartilhamento de saberes e práticas para a efetiva implementação das políticas públicas de educação na saúde.

Já a Secretaria de Gestão Participativa (SGP) teve sua origem em 2003, tendo Sergio Arouca como seu primeiro secretário, impulsionada pelo ideário da Reforma Sanitária Brasileira, passando a ser denominada, em 2006, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP), enquanto instrumento institucional capaz de fortalecer os princípios e as diretrizes de universalidade, equidade, integralidade e participação da comunidade no controle das políticas públicas de saúde33 Souza RMP, Costa PP, organizadoras. Redescola e a nova formação em saúde pública. Rio de Janeiro: ENSP; REDESCOLA; 2017..

A pulsante descentralização do sistema de saúde em todo o território nacional – e, por consequência, o aumento das responsabilidades e capacidades de gestão locais, tanto na execução financeira quanto na de serviços – exigiu o aprimoramento dos instrumentos de gestão estratégica. Foi então que, em 2006, a SGP incorporou o Departamento Nacional de Auditorias do SUS (DenaSUS), o Departamento de Monitoramento e Avalição do SUS (Demags) e reformulou o Departamento de Acompanhamento da Reforma Sanitária e o Departamento de Apoio à Gestão Participativa (Degep), originando a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP)44 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.027, de 26 de novembro de 2007. Aprova a Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa - PARTI-CIPASUS. Diário Oficial da União. 26 Nov 2007.. Atualmente, a Ouvidoria-Geral do SUS encontra-se vinculada à Diretoria de Integridade (Dinteg), criada pelo Decreto nº 9.795/2019.

Em julho de 2007, a SGEP lançou a Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa (ParticipaSUS)44 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.027, de 26 de novembro de 2007. Aprova a Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa - PARTI-CIPASUS. Diário Oficial da União. 26 Nov 2007., implementada pela Portaria nº 3.02744 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.027, de 26 de novembro de 2007. Aprova a Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa - PARTI-CIPASUS. Diário Oficial da União. 26 Nov 2007., com o objetivo de reunir diversas estruturas responsáveis pelas funções de apoio à gestão estratégica e participativa no SUS. Muito além do desenvolvimento de instrumentos capazes de colaborar para a gestão do SUS, a ParticipaSUS convida a amplificar e vocalizar não apenas os usuários do SUS como também os seus trabalhadores e gestores, em um exercício de transparência e cidadania inclusiva e participativa. Tal tarefa exigiu o desencadeamento de ações de educação em saúde específicas, capazes de desenvolver o conhecimento técnico necessário sem nunca perder de vista o envolvimento de significado crítico e político das múltiplas questões e possibilidades a serem abordadas55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Manual das Ouvidorias do SUS. Brasília, DF: MS; 2014..

Sob essa égide, desenvolveu-se o Curso Nacional de Qualificação de Auditorias e Ouvidorias do SUS, no escopo do Projeto Qualificação de Auditorias e Ouvidoria dos SUS. Nesse sentido, o fortalecimento de áreas estratégicas foi realizado entre 2012 e 2016 pela Ensp/Fiocruz, em parceria com o Departamento Geral das Ouvidoria do SUS (Doges/SGEP/MS) e o DenaSUS/SGEP/MS, coordenado nacionalmente pela RedEscola55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Manual das Ouvidorias do SUS. Brasília, DF: MS; 2014..

As Ouvidorias do SUS

A experiência vivida sob a perspectiva da formação dos ouvidores do SUS e as articulações dela decorrentes com o Doges, e com as Ouvidorias das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, culminaram na implementação do Sistema Nacional de Ouvidorias do SUS, uma rede interligada de ouvidorias, implantadas na União, nos estados e nos municípios, que funcione de forma descentralizada, respeitada a autonomia de cada ente da Federação, sob orientação estratégica central do Doges. Nessa perspectiva, também cabe ao Doges propor, coordenar, implementar e estimular, no âmbito do SUS, práticas de ampliação do acesso dos usuários ao processo de avaliação das ações e dos serviços públicos de saúde33 Souza RMP, Costa PP, organizadoras. Redescola e a nova formação em saúde pública. Rio de Janeiro: ENSP; REDESCOLA; 2017..

De fato, as Ouvidorias foram garantidas pela Constituição Federal de 198866 Brasil. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. [acesso em 2021 jan 25]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
, na qual, em seu art. 37, determina ao Poder Executivo instituir e manter serviços de atendimento às reclamações e às sugestões da população aos serviços públicos e privados prestados, garantindo espaços e mecanismos para tanto. As Ouvidoria do SUS recebem reclamações, denúncias, elogios, críticas e sugestões relativas aos serviços e atendimentos prestados, nas esferas municipais, estaduais e federal, interligados pelo Sistema Nacional de Ouvidorias do SUS. São canais democráticos capazes de fortalecer o SUS e o direito à saúde e a cidadania, aproximando a realidade do cotidiano dos serviços à realidade dos cidadãos, visando ao aprimoramento da gestão.

Material e métodos

As propostas iniciais e preparatórias para a formação incluíram reuniões e oficinas com as instituições formadoras integrantes da Rede em todos os estados, para a aproximação do objeto e a construção de agendas de trabalho municipais, estaduais e nacionais, tanto para construção de material instrucional quanto para a preparação dos facilitadores de aprendizagem, passando por toda logística estrutural, necessária para a realização dos cursos.

A elaboração do presente texto, portanto, utilizou-se da análise documental como técnica de pesquisa qualitativa a partir de relatórios e documentos produzidos pela STE da Rede durante os dois anos, abarcando desde a primeira reunião realizada em Brasília entre RedEscola e Doges até a oficina final de avaliação, incluindo relatos com a percepção dos participantes.

O curso

Inicialmente, a proposta do curso era de apenas 40 horas, contemplando conteúdos específicos das Ouvidorias do SUS. Porém, após a primeira reunião entre a RedEscola/Ensp e os representantes da SGEP, foi consensuado que seria imprescindível que as/ os trabalhadoras/es das ouvidorias tivessem acesso ao conhecimento mais aprofundado sobre o SUS, por reconhecer uma assimetria de informações acerca dele. Essa medida significou o acréscimo de mais 40 horas no programa do curso, que passou a totalizar 80 horas

O curso contemplou as 27 unidades federativas da União, na modalidade presencial, com 40 horas dedicadas aos estudos sobre Estado, Saúde e Sociedade; e 40 referentes aos temas específicos da Ouvidoria do SUS.

É importante ressaltar que as avaliações realizadas ao final do processo formativo revelaram que a inserção de conteúdos sobre o SUS foi fundamental para a compreensão da importância e do papel da Ouvidoria no âmbito do SUS.

Dessa forma, o curso produziu um material didático composto por duas Unidades de Aprendizagem (UA): a UA1 – Estado, Saúde e Sociedade; e a UA2, com temas referentes à Ouvidoria do SUS77 Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública. Curso Nacional de Qualificação de Auditorias e Ouvidorias do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014..

A UA1, integrada por cinco módulos: 1) Políticas de saúde no Brasil; 2) Marcos conceituais e legais do SUS; 3) Modelo institucional e instâncias de decisão no SUS; 4) Modelos de atenção e de organização do SUS; e 5) Auditoria e ouvidoria como instrumentos de gestão do SUS.

Já a UA2 abordou o conceito de Ouvidoria, bem como seus processos de trabalho, a importância da gestão da informação e as inovações no modo de atuação das Ouvidorias do SUS. O processo ensino-aprendizagem nessa Unidade foi dinamizado a partir de textos, vídeos, debates e casos concretos, selecionados pela Ouvidoria-Geral do SUS.

O projeto político-pedagógico

Esse formato foi consensuado pelos representantes da Ensp/Fiocruz e os interlocutores da STE da RedEscola e da SGEP com o objetivo específico de atualizar o conhecimento dos participantes do curso, reforçando a importância da Ouvidoria enquanto instrumento estratégico para a gestão do sistema de saúde.

A construção coletiva do material pedagógico foi orientada pela Política Nacional de Educação Permanente em Saúde88 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 198 de fevereiro de 2004. Implementa a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Ministério da Saúde como estratégia do Sistema único de Saúde (SUS) para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor. Diário Oficial da União. 14 Fev 2004. (PNEPS), que se caracteriza como uma vertente educacional com potencialidades ligadas a mecanismos e temas que possibilitam gerar reflexão sobre o processo de trabalho, autogestão, mudança institucional e transformação das práticas em serviço, por meio da proposta do aprender a aprender, de trabalhar em equipe, de construir cotidianos e eles mesmos constituírem-se como objeto de aprendizagem individual, coletiva e institucional.

Ao abordar a Educação Permanente em Saúde na formação para a saúde, considera-se que o serviço, o trabalho, a atenção, a educação, a qualidade e a cidadania têm como finalidade ou razão de ser a contribuição à satisfação das necessidades individuais e coletivas da população99 Cardoso MLM, Pol P, Xavier C, et al. A Política Nacional de Educação Permanente em Saúde nas Escolas de Saúde Pública: reflexões a partir da prática. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2021 jan 20]; 22(5):1489-1500. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017225.33222016.
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. Tendo em vista tais princípios político-pedagógicos, o material educativo do curso inspirou-se na abordagem por competências para orientar o processo ensino-aprendizagem no modelo de conhecimento, habilidades e atitudes, eleita por valorizar a experiência dos trabalhadores, identificando e refletindo seus conhecimentos por meio de suas práticas cotidianas.

A análise qualitativa dos processos de trabalho, em um mundo do trabalho cada vez mais complexo, permite o desenvolvimento de habilidades e atitudes mais coerentes com a realidade do dia a dia das instituições1010 Bordenave JD. Alguns fatores pedagógicos. [Apostila do curso de capacitação pedagógica para instrutor/supervisor da área da saúde – Ministério da Saúde. Coordenação Geral de Desenvolvimento de Recursos Humanos para o SUS]. Brasília, DF: MS; 2004..

Nesse sentido, o ensino baseado na gestão por competências pode permitir ao aluno refletir acerca da diversidade do mundo do trabalho no qual está inserido mediante estratégias que favoreçam o diálogo e a socialização dos diferentes saberes e experiências, superando a dicotomia entre o saber e o fazer, em um compartilhamento de experiências vividas que promovam o reconhecimento dos problemas dos processos de trabalho e das relações interpessoais do trabalho capazes de superar lacunas no cotidiano das instituições.

Trata-se de uma proposta que privilegia a interação entre os alunos, aproximando estes aos facilitadores de aprendizagem, possibilitando mapas referenciais de competências de onde se espera um conhecimento mais apropriado da realidade, das habilidades a serem adquiridas e quais atitudes mais efetivas a serem tomadas diante do problema concreto identificado por meio do diálogo1111 Souza RMP, Muñoz FGS, organizadoras. Qualificação de Auditorias e Ouvidorias do SUS: uma experiência dialógica. Rio de Janeiro: Fiocruz; REDESCOLA; 2017..

Objeto de estudo de diversos autores, o conceito de competência foi considerado como um conjunto e saberes mobilizados no ambiente de trabalho, em situações concretas, ativando diversos saberes, enfatizando a tríade saber, saber-fazer e saber-ser. Contudo, adverte Le Boterf1212 Le Boterf G. Travailler em réseau et em partenariat. Paris: Eyrolles; 2013. que “a competência não reside nos recursos (saberes, conhecimentos, capacidades e habilidades) a serem mobilizados, mas na própria mobilização desses recursos”.

A figura 1 ilustra as três dimensões da formação por competência.

Figura 1
As três dimensões da competência

As oficinas e reuniões de trabalho com os distintos atores que compunham a equipe de governança da qualificação de ouvidores também levaram em consideração a reflexão freiriana1414 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1967. do sujeito compreendido como protagonista do seu processo formativo, capaz de refletir ativa e continuamente sobre sua realidade e os atores nela inseridos – comunidade, gestores, trabalhadores e usuários.

Todas as etapas da concepção do curso foram amplamente discutidas. O material pedagógico foi submetido a testagem e sessões de validação, realizadas em formato de simulação, como uma espécie de pré-teste, criando-se um ambiente de sala de aula, com a participação de profissionais das ouvidorias, tanto da esfera federal quanto das secretarias estaduais e municipais, com larga experiência não só pedagógica como também na prática do exercício da Ouvidoria. Esses aspectos destacam a cooperação e a gestão participativa e representam um legado importante do ponto de vista da divulgação de conhecimentos e saberes e, consequentemente, de bases orientadoras para implantação de Ouvidorias.

Enfatiza-se ainda o caráter comunicacional e interativo do material educativo, que contou, além dos conteudistas convidados pelas suas experiências nas temáticas propostas, com a expertise da Ensp/Fiocruz na concepção de materiais pedagógicos e educativos.

Previamente a aplicação propriamente dita, o material foi submetido a um conjunto de validadores especialmente nos seguintes aspectos: a linguagem, do ponto de vista da clareza e da objetividade; o conteúdo, em função da coerência com a temática e a consonância com o material pedagógico; o cronograma, a partir do cotejamento do tempo necessário para ministrar o conteúdo e realizar as atividades complementares integrantes do material.

A etapa posterior à validação do conteúdo e das estratégias pedagógicas do material analisado consistiu no acolhimento às sugestões e recomendações advindas da simulação pedagógica. Os autores efetuaram ajustes visando atender às necessidades do curso, tomando como pontos orientadores a clientela e os objetivos do processo formativo, em consonância com a proposta dialógica e comunicativa que permeou toda a trajetória de elaboração.

Esse material organizado, editado e publicado foi previamente enviado às instituições de ensino pela STE da RedEscola, antes do início do curso, para distribuição aos participantes; e encontra-se disponível em livre acesso no site da RedEscola.

Ao final de cada Unidade, foram aplicados questionários de avaliação com perguntas abertas e fechadas e espaço para críticas, elogios e sugestões aos alunos, facilitadores e coordenadores.

A formação dos formadores

Os facilitadores de aprendizagem da UA1 foram prioritariamente selecionados pelas escolas da Rede em seus respectivos estados. Já os facilitadores das Ouvidorias do SUS municipais e estaduais foram indicados pelo Doges/ SGEP/MS. Os facilitadores participaram de quatro oficinas de formação promovidas pela coordenação nacional, visando calibrar os processos educativos e exercitar o material pedagógico.

Os objetivos das oficinas de facilitadores podem ser assim sumarizados: conhecer as distintas concepções e abordagens utilizadas em processo pedagógico; compreender a importância das metodologias ativas nos processos de formação profissional; e reconhecer as potencialidades dos pressupostos da gestão por competências nesses mesmos processos.

Avançando nessa perspectiva, privilegiou-se o questionamento das práticas docentes tradicionais e daquelas consideradas mais transformadoras sobre os modelos educativos, objetivando, a partir do conhecimento dos modelos pedagógicos como situa Davini1515 Davini MC. Educacion Permanente de Personal de Salud.Organizacion Panamericana de la Salud 1994. Washington, DC: OPS; 1994. (Serie Desarollo de Recursos Humanos nº 100)., promover a reflexão e oferecer os aportes que possibilitem opções pedagógicas mais consciente, dialogando sobre os modelos e seus autores. Assim, três modelos pedagógicos foram selecionados para ilustrar essa afirmativa.

  1. a) Pedagogia da transmissão

  2. b) Pedagogia do adestramento

  3. c) Pedagogia da problematização

Seguindo com Davini1515 Davini MC. Educacion Permanente de Personal de Salud.Organizacion Panamericana de la Salud 1994. Washington, DC: OPS; 1994. (Serie Desarollo de Recursos Humanos nº 100). e associando aos objetivos do curso, a pedagogia da problematização está comprometida com a transformação da prática. Nesse caso, é também na prática que se verifica se os problemas foram, de fato, superados.

Outro aspecto considerado e que esteve no cerne dessa experiência foi o trabalho como uma dimensão fundamental para o encontro entre teoria e prática, constituindo um espaço de convergência na atuação do ouvidor.

A ideia de uma prática transformadora e emancipatória, no dizer de Paulo Freire1616 Freire P. Educação como prática libertadora. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1967., presidiu a concepção do material educativo reforçada na formação e/ou atualização dos facilitadores de aprendizagem durante todo o processo formativo.

A seleção do município participante obedeceu aos seguintes critérios: adesão ao Contrato Organizativo de Ação Pública (Coap)1717 Brasil. Decreto Presidencial nº 7.508 de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 29 Jun 2011. ou ao Sispacto1818 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 399, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 – Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. Diário Oficial da União. 22 Fev 2011., que é o sistema que permite o registro de metas pactuadas por municípios, regiões de saúde, estados e Distrito Federal, tendo como prioridade os municípios que ainda não possuíam o componente Ouvidoria implantado.

A indicação dos cursistas conforme o número de vagas ocorreu mediante a liberação formalizada pelos secretários estaduais e municipais de saúde, visando garantir a participação do ouvidor. A frequência mínima exigida era de 70% de assistência.

Como objetivo de contribuir para o planejamento e a implementação do curso pelas coordenações estaduais, foi elaborado um Caderno, com orientações de funcionamento do curso, contemplando os seguintes componentes: estrutura de governança, atores envolvidos e suas respectivas atribuições, organização, funcionamento, material didático-pedagógico e dinâmica de organização

A governança do curso

Para dar concretude a essa iniciativa de grande envergadura, foi desenhada uma estrutura de governança, bem como elaboradas orientações de funcionamento com vistas a oferecer aos atores responsáveis pelo desenvolvimento do curso maior segurança, transparência e objetividade na operacionalização das atribuições específicas.

A estrutura de governança do curso, proposta para a primeira oferta, era composta por uma Coordenação Nacional da qual participava a Vice-Direção da Escola de Governo em Saúde da Ensp/Fiocruz, a Secretaria Executiva da Rede de Escolas e Centros Formadores em Saúde Pública; o Doges; uma Coordenação Estadual, integrada por profissional do campo da educação em saúde com experiência em educação permanente selecionado pela instituição formadora; e uma Secretaria Executiva, que contava com um profissional com experiência em gestão de projetos e secretaria acadêmica selecionado pela Escola/Centro Formador em Saúde Pública Coletiva de seu estado.

Essa estrutura de govenança teve a sua atuação no curso que foi oferecido a oito estados como uma experiência-piloto: Escola de Saúde Pública do Paraná; Centro Formador de Recursos Humanos (Cefor/ SP); Escola Tocantinense do Sistema Único de Saúde Dr. Gismar Gomes; Escola de Saúde Pública de Mato Grosso do Sul Dr. Jorge David Nasser; Escola de Governo em Saúde Pública de Pernambuco; Universidade Federal da Paraíba; Universidade Federal de Alagoas; e Escola de Saúde Pública do Ceará Paulo Marcelo Martins Rodrigues.

Aduzindo a graus progressivos de capacidade de governo, alinhados ao objetivo de adotar modelos e metodologias de gestão inovadores, ancorados nas lições de aprendizado organizacional e inspirados pela busca da cultura da inovação, a experiência adquirida com a implementação da primeira etapa do curso e da avaliação realizada com os oito coordenadores dos cursos gerou um novo esquema de governança.

Tendo como pressuposto político-pedagógico aprender a aprender, observou-se que a primeira experiência demonstrou a necessidade de incluir as secretarias e os conselhos municipais de saúde na escolha dos municípios contemplados. Essa compreensão ensejou a criação de um Grupo de Apoio, na estrutura de governança para a segunda oferta, que envolveu os 18 estados brasileiros e o Distrito Federal.

Nessa lógica, foram incorporados novos atores, como o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (Cosems) e representantes das áreas técnicas das Secretarias Estaduais de Saúde constituindo os Grupos de Apoio em cada estado, permitindo uma atuação mais colegiada e participativa na seleção dos municípios e indicação dos participantes do curso e integração na condução das atividades acadêmicas. Essa nova estrutura de governança foi considerada como uma potente estratégia de gestão, um ponto forte do projeto.

Outra medida adotada consistiu no trabalho de forma mais regionalizada, com as escolas formadoras da Rede oferecendo mais apoio na gestão do curso, rompendo com a simultaneidade aleatória entre as turmas do curso observada na primeira oferta.

Os aprendizados da primeira oferta resultaram ainda em medidas implementadas na segunda oferta, como a ampliação no número de vagas de 20 para 25.

A figura 2 demonstra o desenho esquemático da estrutura de governança da primeira oferta, de 2014, e da segunda, em 2015, com a criação do Grupo de Apoio.

Figura 2
Estrutura de governança segundo oferta

Sobre o perfil dos alunos, destacam-se aqui algumas características a serem consideradas. A figura 3 demonstra a distribuição dos alunos por esfera de atuação observando-se que 75% correspondiam a trabalhadores ouvidores da esfera municipal, enquanto 13% correspondiam às ouvidorias estaduais, e 1%, à ouvidoria nacional. No entanto, 13% não responderam.

Figura 3
Distribuição dos alunos de Ouvidoria por esfera de governo e tempo de atuação

A figura também apresenta o tempo de atuação dos trabalhadores formados, apontando que a grande maioria dos particiantes atuava entre um e cinco anos na Ouvidoria, seguidos pelos que atuavam há menos de um ano, que praticamente empataram com os participantes que sequer haviam atuado nas Ouvidorias do SUS.

Já a figura 4 refere-se à escolaridade dos participantes, apontando que 49% dos alunos tinham formação superior, seguidos por alunos com especialização com 28%, 13% possuíam formação em nível médio, 2% possuíam mestrado, o mesmo percentual para o doutorado.

Figura 4
Distribuição dos alunos por nível de escolaridade na Ouvidoria

Resultados e discussão

O curso formou 451 alunos, sendo 37% na região Nordeste, 22% na região Norte, 16% na região Centro-Oeste, o mesmo percentual para a região Sudeste, e 9% na região Sul. Tomando por base a figura 5, comparando-se relativamente o número de inscritos e concluintes, temos que a região Sudeste ficou com 90% de aproveitamento, seguida da região Nordeste com 84%; na sequência, vem a região Centro-Oeste com 81%, já a região Norte alcançou 73%, e a região Sul atingiu 71%.

Figura 5
Consolidado de alunos concluintes nas cinco regiões

Em uma avaliação feita com o total de ouvidores concluintes do curso pelas instituições formadoras envolvidas, 89% desses consideraram o método pedagógico como bom ou muito bom. Já no que tange ao material didático-pedagógico, 93% dos alunos o consideraram bom ou muito bom.

Quanto aos resultados qualitativos, percebe-se que foi necessário e possível transpor muitos desafios e que os atores envolvidos no processo se sentiram, de alguma forma, fortalecidos e com perspectivas positivas de futuro. Tal percepção decorre dos relatos recebidos por meio das fichas de avaliação, como:

Sugerimos mais encontros deste porte, para que nós, técnicos, tenhamos uma única finalidade, oferecer uma saúde de qualidade e resolutividade a todos os usuários do SUS, com transparência e universalidade.

Este curso me fez ver que o SUS tem esperança, me apaixonei pela ouvidoria, pois através dela vou poder contribuir para a melhoria da gestão e de melhores serviços para o cidadão.

O processo apresentado nos possibilita o conhecimento das fragilidades do trabalho na área da saúde. Serve de espelho para nosso direcionamento e planejamento de saúde.

Agora eu tenho argumentos para defender o SUS.

Cheguei aqui pequena, vazia e não tinha a exata noção da importância do meu trabalho. Só tenho a agradecer a todos, que me tornaram mais forte.

Considerações finais

Pode-se afirmar, diante dos resultados alcançados, que o curso representou uma oportunidade de redefinição dos processos de trabalhos das Ouvidorias do SUS, principalmente na busca ativa na escuta dos usuários do sistema de saúde e na construção de relatórios orientadores, reafirmando a Ouvidoria enquanto força motriz da gestão participativa e democrática.

O curso também alavancou a ampliação da produção acadêmica sobre a Ouvidoria do SUS, relativamente escassa até então, assim como a redefinição do papel das Ouvidorias do SUS como instrumento de gestão, contribuindo para a construção de soluções. A publicação sobre a UA2, por exemplo, foi o primeiro material didático elaborado exclusivamente para a Ouvidoria do SUS.

A estrutura de governança complexa e participativa também representou, sobretudo aos gestores estaduais e municipais, o caráter pedagógico da Ouvidoria como um instrumento aliado da gestão, fortalecendo a inserção dela de forma institucional, como prática cotidiana da gestão, mantendo a construção contínua de saberes dessas áreas e sua continuidade.

O caráter dessa experiência mostrou-se semelhante ao da política nacional da gestão estratégica e participativa, uma vez que dialoga diretamente com os princípios e diretrizes da ParticipaSUS: a construção coletiva, a participação social, a inclusão, a solidariedade e a efetiva implementação do SUS cada vez mais equânime.

A conexão metodológica foi nítida, em que os envolvidos puderam criar vínculos importantes para as Ouvidorias nos seus respectivos estados e municípios, favorecendo ações colaborativas entre os participantes.

A oferta de uma formação nacional, nesse sentido, representou o primeiro passo em uma nova trajetória para as Ouvidorias do SUS e o enriquecimento do debate técnico sobre o papel das Ouvidorias. O grande desafio que se coloca é a imensa responsabilidade de manter a regularidade da formação.

Essa iniciativa também proporcionou o fortalecimento das Escolas Estaduais de Saúde Pública, todas comprometidas e profundamente envolvidas com a proposta político-pedagógica do curso, e representam, portanto, fortes aliadas na continuidade da formação e fortalecimento tanto da PNESP quanto da ParticipaSUS.

Por fim, o curso deixa outros legados importantes: um material pedagógico considerado inédito pelo seu pioneirismo e um livro intitulado ‘Qualificação de Ouvidorias do SUS: uma experiência dialógica’1818 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 399, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 – Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. Diário Oficial da União. 22 Fev 2011. que relata com detalhes a experiência vivida nessa aventura coletiva pelas políticas públicas de educação e gestão do SUS. Cabe registrar também a proposta de curso em Educação a Distância (EAD), construída com a participação da Coordenação de Desenvolvimento Educacional e EAD (CDEAD/Ensp), a fim de oferecer maior capilaridade à formação de ouvidores e ampliar a implantação de ouvidorias no País.

Cabe apontar, porém, que, segundo dados atualizados pela Coordenação de Redes de Ouvidorias do SUS (Corede/OUVSUS/ Dinteg/MS), no final de 2015, o País contava com 1.439 ouvidorias municipais. Em 2021, foram 1.665. Em quase seis anos, observou-se um crescimento de 15,7%. Considerando os 5.570 municípios brasileiros, constata-se que apenas 29,90% deles possuem ouvidorias implantadas. Esse quadro evidencia um grande desafio, sem dúvida, sobretudo no atual cenário de desmonte das políticas públicas de saúde constitucionais consagradas pela Reforma Sanitária Brasileira.

Em que pesem as inflexões observadas, o Dinteg/MS, dando continuidade aos processos de capacitação, estabeleceu, em 2019, uma parceria com a Ensp/Fiocruz, objetivando criar um Programa de Capacitação em Ouvidoria com o objetivo de desenvolver ações educativas para qualificar profissionais e trabalhadores: ouvidores, técnicos em ouvidorias ou gestores em todo o território nacional, tendo como metas: capacitações na modalidade de EAD, com 2000 vagas, e na modalidade presencial, para mais de 900 instituições.

Essa iniciativa se nutre fortemente do sentido, dos resultados e do aprendizado da experiência aqui relatada. Destacam-se, ainda como fatores-chave de sucesso, o apoio do Doges/SGEP/MS, a atuação da Opas, o papel da Ensp/Fiocruz, a participação ativa da STE-RedEscola, o engajamento das instituições de ensino e de todos os atores envolvidos nessa proposta.

Por fim, o compartilhar dessa experiência singular, instigante, desafiadora e, ao mesmo tempo, plena de desafios e de novas questões é um convite para continuar buscando concretizar os anseios da garantia dos plenos direitos de cidadania à população brasileira.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2021
  • Aceito
    06 Out 2021
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